Editora: Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-649-9
Opinião: ★★☆☆☆
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Páginas: 392
Sinopse: Ver Parte
I
“Conversando com o sociólogo Ruy Braga, este classificou o PT atual como
um partido “que aposta em um caminho de políticas públicas, pequenas concessões
– aquilo que o André [Singer] chama de reformismo fraco – uma política muito
moderada que tenta não atrapalhar a riqueza”.153
De
fato, após uma relação conturbada com as ruas durante as manifestações de 2013
e as de 2014 (contra as violações da Copa do Mundo), o PT retorna às ruas de
forma articulada para a defesa contra o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, mas ainda comunicando esse mesmo caminho conturbado.
Enquanto
se acusava a direita de articular a remoção de uma presidenta eleita
democraticamente, figuras públicas, como o Lula, continuavam a afirmar, com
orgulho, que a elite brasileira havia ganhado como nunca sob os governos
petistas.
Esse
discurso feito por Lula em março de 2016 continuou a ecoar no petismo com
força, especialmente por certa indignação com o sentimento de “ingratidão” da
elite, a qual se empenhou na concretização do golpe e da prisão de Lula.
Retorno
a essa perspectiva quando discutirmos a melancolia da esquerda moderada, mas,
por ora, basta indicar o quanto comunica mais sobre a – talvez ingênua –
leitura dos petistas sobre como opera a elite brasileira no seio do Estado
capitalista do que sua atribuição como ingrata.”
153 Sabrina Fernandes, “Conjunto
de Entrevistas de Campo (2014-2016)”, 2016.
“Embora uma rerradicalização do PT não seja totalmente impossível,
especialmente porque ainda existem grupos mais à esquerda dentro do partido, a
reclamação frequente dos que criticam o PT de dentro e de fora diz respeito ao
tratamento dado a críticas construtivas, as quais são tomadas como ataques, e à
exigência que se espere o momento certo para trazer tais críticas – momento
que, parece nunca chegar.”
“À direita pertence a distopia capitalista, à esquerda pertence a utopia
socialista. Promover que não é possível mudar o Brasil radicalmente,
favorecendo o conformismo com um eterno mal menor ditado pelo capital, é negar
nossas utopias, e o fim da utopia na esquerda é o fim da esquerda.”
“A despolitização se apresenta como um dos eixos centrais de análise
deste livro. Existem vários fenômenos de despolitização, os quais podem ocorrer
separadamente ou concomitantemente. Despolitização não é desinformação, nem
mesmo manipulação ou ignorância. O processo envolve uma alteração de
significados políticos na sociedade que, dentro da leitura marxista-gramsciana,
corresponde a um distanciamento do reconhecimento de uma pessoa ou grupo do seu
papel na sua realidade concreta. A despolitização, portanto, leva pessoas cujo
interesse de classe corresponde ao anticapitalismo a acreditar que devem
defender o capitalismo, por conta de bens de consumou por conta da mera
possibilidade de eventual ascensão social. (...)
A despolitização no Brasil é o resultado
indireto da conciliação de classes, dos métodos de coerção e da construção do
consentimento na base do senso comum no poder, bem como do resultado direto do
projeto de direita para remover, diluir ou contorcer a ideologia, alterar a
consciência de massa, controlar a produção cultural e seus resultados, divulgar
informações manipuladas e preconceituosas como legítimas (posteriormente
elaborado como fake news e a era da pós-verdade), reter o pensamento crítico e
impedir a organização e mobilização coletiva, desde a ação de partidos
políticos até comícios locais. (...)
Marco
Aurélio Nogueira explica que a despolitização age de duas maneiras: (1)
distancia diretamente as pessoas do político, criando barreiras à consciência
política e desqualificando as práticas políticas atuais; (2) e marca o
surgimento de politizações alternativas difusas e erráticas que focalizam o
indivíduo e cujo descarte da necessidade de práticas institucionais e
organizativas alternativas cria a autoexclusão e impede a apropriação e
transformação do Estado.262
Essas
práticas formam a base tanto da pós-política quanto da ultrapolítica, pois são
sistemas de despolitização distintos, embora não contraditórios, que garantem o
status quo e a renovação hegemônica. De fato, podem ocorrer
simultaneamente e de forma complementar, como é o caso do Brasil.
Assim,
o problema da despolitização é complexo, que trata das questões dos
responsáveis (no momento e agora), aqueles que o ignoram como um problema,
aqueles que tentam resolvê-lo e os efeitos duradouros do processo.
Alguns
dizem que desde 2013 os brasileiros estão mais “politizados” por causa da maior
atenção aos eventos e atores políticos. No entanto, embora o interesse seja uma
pré-condição para a política, ele é insuficiente – e a pós-política é uma
expressão do sintoma mórbido da despolitização, dentro do quadro da crise de
práxis, que oferece um canal de interesse político que não só deixa de ter uma
politização profunda como se opõe ativamente a ela. (...)
A
esquerda deve, a todo custo, evitar uma noção de democracia como negociação
tecnocrática de interesses sem qualquer espaço para motivações ideológicas.
Deve, portanto, rejeitar qualquer perspectiva política de esquerda que exclua
utopias porque elas não caberiam nos termos da negociação.
Na
pós-política, a democracia é promovida como resultado de uma batalha de
inteligência tecnocrática, na qual as regras do jogo são estabelecidas de modo
a permitir um terreno neutro onde as ideias mais eficientes e apropriadas,
naquele exato contexto, possam florescer.
Essa
é, naturalmente, uma compreensão fetichista da democracia liberal, mas a
verdade é que a visão predominante da democracia nas sociedades democráticas
liberais é, de fato, fetichizada para que possa ser ideologicamente invocada
sempre que houver dúvidas quanto à legitimidade do sistema e para promover a
supressão da luta contra-hegemônica.”
262 Marilena Chaui & Marco
Aurélio Nogueira, “O Pensamento Político e a Redemocratização Do Brasil”, Lua
Nova 71 (2007): 220–21.
“Um povo despolitizado não se sente representado por ninguém, embora a
direita seja capaz de canalizar a indignação por trás da falta de representação
ao seu próprio favor, desviando essa indignação contra os ideais de esquerda.”
“Essa
questão da representação desalinhada está relacionada a uma visão cínica da
política, dada a corrupção generalizada e uma falta geral de coesão na política
de coalizão partidária.
O
cinismo contribui para o estado de ampla despolitização veiculado no
desinteresse pelas formas tradicionais de representação.
Há
uma suposição de que o espaço político está contaminado, principalmente devido
à ênfase na corrupção de políticos individuais e de partidos políticos.
A
lacuna de despolitização é, geralmente, o resultado de um mau posicionamento de
confiança (ou desconfiança), ou seja, culpa a esfera política como um todo pela
corrupção em vez dos veículos capitalistas e de interesses privados que a
tornam possível e até mesmo a regra.
Além
disso, a rejeição do espaço político remete à tradição, tanto das massas como,
até mesmo, da esquerda organizada, de se concentrar no aspecto contrário das
demandas. Sabemos a que somos contra – corrupção, injustiça, pobreza e
violência –, e na esquerda politizada até formulamos esse posicionamento como
nossa luta anticapitalista.
No
entanto, a representação fraca e a reificação da consciência política são
obstáculos para a formação de um projeto coletivo, que ajudaria a responder à
questão mais difícil, que é “o que queremos?” e como ir além da denúncia e da
crítica.282
O
problema de afirmar a falta de representação é que isso ignora que grandes
sociedades são, comumente, organizadas através de sistemas de representação: de
sistemas políticos formalizados a pequenos interesses cotidianos.
A
representação não é apenas o instrumento prático de uma estrutura hierárquica;
ao contrário, implica sistemas de apoio que existem com e sem hierarquia, e se
as pessoas rejeitam as tentativas de receber apoio político, tornam-se
vulneráveis à única coisa que querem evitar: o consentimento passivo dado pela
inação.
Os
esforços para ocultar e sufocar as relações antagônicas reforçam efetivamente o
status quo que é mantido através da exploração dessas relações.
Ao
fingir que essas relações não existem, as grandes multidões demonstram recusa
em examinar as causas subjacentes do fraco acesso à educação e à saúde, da
corrupção e ganância e do aumento dos custos de transporte público (entre
outros).
Eles
tomam sua experiência prática como dada, negando a importância das
investigações críticas, que informam antagonismos e que seriam mais eficazes na
articulação contra representantes falidos do que a negação da representação em
si.
Em
termos sociológicos, a representação seria como um fato social, e simplesmente
negá-la como indivíduo não impede a representação involuntária diante das
estruturas políticas.
Caberia
então questionar o conteúdo errôneo do modelo, mas, para isso, seria necessário
examinar a consciência prática e teórica na compreensão da realidade; ou seja,
é impossível realmente questionar a representação sem passar por um processo de
conscientização.
É
nesse vácuo que a crise de representação se estabelece, e não simplesmente
porque uma pessoa rejeita a representação. O que está sendo rejeitado é o
conteúdo de representação, os significados políticos vigentes.
O
fato da legítima crise de representação no Brasil é que um forte período de
despolitização, inevitavelmente, resulta em um descompasso nas práticas dos
representantes políticos e demandas populares.
O
pluralismo dos partidos no Brasil cresceu para favorecer a fragmentação
estrutural, o oportunismo eleitoral e outras formas de colher o poder
institucional em favor das elites e dos representantes, como por meio da
corrupção.
Combinados,
esses elementos criaram um alto nível de desconfiança no establishment
democrático, especialmente em relação à forma de partido. O reconhecimento de
que há uma crise de representação é progressista, pois expõe os problemas
relacionados à despolitização e a solicitação de mudança política, mesmo que o
conteúdo dessa mudança seja indeterminado pelas multidões em geral.
O
problema ocorre quando figuras conseguem se estabelecer simbolicamente e
discursivamente como anti-establishment quando estão intimamente ligados
a esse mesmo establishment.
Esse
é o caso do presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro, cuja atuação política
está totalmente ligada ao establishment, mas o emprego mútuo da
pós-política contra a corrupção (Meu partido é o Brasil) e da ultrapolítica
(corruptos seriam os “bandidos de vermelho”) lhe proporcionou um conjunto de
narrativas favorável, pois, de repente, o establishment não seria o
sistema político liberal burguês, mas apenas a associação confirmada
midiaticamente com a corrupção.
De
fato, a centralidade do discurso contra a corrupção roubou a cena em Junho e
continuou a desempenhar um papel tão importante que anularia outras demandas,
promoveria mais despolitização e seria instrumentalizada de forma ultrapolítica
pela direita a partir das eleições de 2014.
Isso
levou a consequências intensas em termos do fenômeno antiesquerda. Claro, o PT
deve ser responsabilizado por seus próprios escândalos concretos de corrupção,
mas a forma como esses escândalos foram abordados pela mídia e as forças de
direita fizeram com que o antipetismo, que tinha crescido no enfoque dado de
forma desequilibrada à corrupção no PT, bem como um repúdio elitista das
políticas sociais petistas, fluíssem para o sentimento antiesquerda em geral.
Isso
fez da demanda anticorrupção moralista e empregada pela direita também um
problema para a esquerda radical. Faria dela também um problema para a
centro-esquerda, a não ser que essa esteja disposta a manobrar cada vez mais à
direita para escapar da associação e disputar a hegemonia eleitoral com o PT
(disputa na qual não teve sucesso em 2018, mesmo com o potencial inicial da
candidatura de Ciro Gomes, do PDT).
Quanto
à esquerda radical, essa já sofreu com o sentimento antiesquerda em Junho. Não
importava quantas vezes e de que forma a esquerda radical tentava comunicar às
multidões que era diferente, estava claro que elas não estavam nem
familiarizadas o suficiente com a esquerda radical para julgar seus ativistas
por suas palavras – um problema da invisibilidade da esquerda radical em termos
de alcance de suas ações, e cuja visibilidade midiática passou a existir de
forma cada vez mais criminalizadora.
Ao
mesmo tempo, um setor da esquerda radical, se utilizando de uma mistura de
posições defensivas ou autoproclamatórias que não se conectavam ao estado atual
de consciência das massas, demonstrou não compreender bem, nem a crise de
representação, nem a necessidade de mudar suas práticas de interpelação para
atingir as multidões que nem ao menos sabiam de quem se tratava.
A
maneira como o tiro da crise de representação em torno da corrupção ainda saiu
pela culatra para a esquerda radical é uma evidência do quão inapropriado é a
esquerda radical continuar culpando a hegemonização do campo pelo PT por toda a
sua invisibilidade.
O
PT é o partido de esquerda mais conhecido do Brasil, mas não está em todos os
lugares a ponto de inviabilizar com tanto sucesso toda ação da esquerda
radical.
Isso
deixa, então, a pergunta: a esquerda radical não deveria estar se construindo
para estar em todos os lugares em vez de esperar que o PT lhe abrisse espaço ou
que houvesse uma transferência da base natural do PT para si.
Diante
de todo esse contexto, a crise de representação se traduziu, na prática, em uma
crise de representação partidária, que, conjugada com os sentimentos
simultâneos antiesquerda causados por argumentos moralistas anticorrupção e
exclusão do antagonismo como elemento político, evoluiu para uma crise de
representação com mais efeitos negativos para a esquerda e para as perspectivas
de politização à esquerda.
Ao
apagar as razões políticas, sistêmicas e baseadas em classes para uma crise de
representação sob despolitização, a pós-política também se oferece como a
resposta para essa crise. Esse desafio é evidente na luta pelas multidões de
Junho de 2013 e depois, especialmente quando a sociedade se torna mais
polarizada pela ultrapolítica.
Ademais,
a própria esquerda passa a sofrer a tentação de capturar multidões com apelos
populistas e pós-políticos, já que a sua melancolia faz do seu desejo por novas
vitórias um combustível para táticas erráticas de comunicação e busca de base.
Jodi
Dean traz o conceito de multidões para dar sentido à complexidade dos protestos
em massa. Sua discussão é muito pertinente para o caso de Junho de 2013 por
causa do posicionamento da multidão em relação a ser um sujeito político. Ela
afirma que “a multidão não tem política. É a oportunidade para a política. A
determinação de se uma multidão é uma multidão ou o povo é resultado de uma
luta política”.283
282 James Ferguson, “The Uses of
Neoliberalism,” Antipode 41 (January 2010): 167.
283 Jodi Dean, Crowds and
Party, Verso (London, 2016), 8.
“A direita estava decidida a disputar as multidões desde o começo, primeiro
para desmobilizá-las, mas depois para cooptá-las. Isso foi feito principalmente
através da grande mídia, mas também das redes sociais, cuja neutralidade
finalmente passou a ser questionada pela esquerda de 2014 em diante, após
exaltações das redes (vide Manuel Castells) em 2013.
Provavelmente,
o maior triunfo na luta política da direita pelas multidões em Junho foi a
sublimação de uma crise classista politizada de representação (das tarifas à
rejeição da política tradicional oligárquica) em uma questão moralista e
antiesquerda contra a corrupção.
O
foco moralista torna a questão individual, mascarando as relações capitalistas
na corrupção brasileira, enquanto o sentimento antiesquerda funciona duplamente
para a direita para mascarar suas próprias relações corruptas e para diminuir o
consentimento popular em relação ao PT e à esquerda em geral.
Além
disso, estar em um terreno já despolitizado altera as regras do jogo em favor
da direita, e mesmo as politizações alternativas podem estar contaminadas pela
pós-política e pela ultrapolítica.
Essa
luta política sobre as multidões tem a ver com a sua interpelação. Até hoje, a
esquerda radical tenta interpelar a “multidão” de 2013. A dificuldade reside no
reconhecimento de que, embora Junho de 2013 tenha sido de fato um evento
progressista como uma escola política, não havia uma única multidão, mas
múltiplas, a ser interpelada.
Mesmo
a multidão menos progressista e pós-política pode ser interpelada, mas a tarefa
e o problema envolvido é de uma qualidade diferente da multidão mais politizada
que conseguiu se conectar com a esquerda em vários graus desde 2013.
Atribuir
apenas uma multidão para Junho ou dar para apenas uma multidão o porte
“essência de Junho” cria um fetiche. A multidão acaba sendo vista como um sujeito
político completo, em vez de um significante de subjetivações políticas
diversas.
Enquanto
isso, a esquerda moderada a descarta como profundamente conservadora e tenta
associá-la com as derrotas petistas em vez de compreender como as contradições
de Junho também estão fundamentalmente atreladas às contradições petistas.
Ambas
tentativas se equivocam por não perceberem que a “multidão é um componente
necessário, mas incompleto da subjetividade política”.284”
284 Dean, 115.
“Com o desenrolar dos protestos de 2013, tornou-se claro que isso teria
uma virada ultrapolítica, já que capacitava os partidos de direita às custas
dos partidos de esquerda.
Para
Belchior, isso se deve em parte ao fato de que a direita nunca trabalhou muito
em associar seu projeto político à noção de partido, enquanto o partido
continua sendo parte fundamental do projeto de esquerda, por causa da
necessidade de construir instrumentos para o poder de classe.301
No
entanto, na época, a simples rejeição da forma partidária levou parte da
esquerda a vê-la simplesmente como um sintoma da crise de representação.
A
diferença é traçada quando observamos como não foi apenas a forma de partido
que foi rejeitada, mas a noção básica de que um partido político deveria ser um
instrumento de intervenção política.
Isso
é tão claro hoje que Bolsonaro pôde ser eleito em cima de sua própria figura, e
o projeto que ele representa não está atrelado a um projeto de partido, pois
foi o PSL que se beneficiou do crescimento de Bolsonaro, e não o contrário.
A
direita sofreu menos, porque seus partidos não são instrumentos para as massas,
mas para a elite, então a rejeição em massa não alterou seu status. Além
disso, sua falta de compromisso ideológico e a capacidade de esconder a
ideologia de direita no senso comum fizeram de seus partidos, na maioria das
vezes, um alvo da crítica da forma partidária, mas não de sua existência como
instrumentos políticos.
Quando
o antipartidarismo se transformou no lema “meu partido é o meu país”, ele
nacionalizou o consenso e a tolerância através da despolitização ufanista.
O
ufanismo agiu como o significado que deve ser levantado para promover uma
“aliança política impossível entre todas essas posições divergentes e
potencialmente antagônicas”, apelando para a simples unidade além de todas as
diferenças políticas.302
O
antagonismo central à consciência de classe (e mobilização de esquerda) foi
rejeitado porque dividiu o país e, portanto, atuou como um obstáculo ao
progresso e desenvolvimento de um “mítico, impossível, todos nós”.303
301 Fernandes, “Conjunto de Entrevistas de Campo
(2014-2016)”.
302 Žižek, The Ticklish Subject, 178
(ênfase no original).
303 Dean, The Communist
Horizon, 100 (ênfase no original).
“O problema da preocupação com a palatabilidade como uma maneira de ter
vitórias sob intensa despolitização é que ela implica moldar o programa para o
senso comum, em vez de politizar o senso comum para o bom senso.
Pode
acabar se tornando uma armadilha para a esquerda, principalmente ao fazer
apostas menos radicais para não assustar o eleitorado. O erro está em não
perceber que, quando as multidões olham para as organizações políticas e
enxergam mais do mesmo, talvez se destacar como mais radical seja uma aposta
mais exitosa do que evitar radicalidade para não desagradar a essas multidões.
Por
si só, o populismo não é algo negativo. É comum ver o populismo empregado como
uma tática comunicativa, tanto na esquerda quanto na direita. Como tática, o
populismo flexibiliza o debate ao ponto de promover pontes de diálogo e simplificar
pautas complexas a partir de demandas populares.
O
problema é ter o populismo como estratégia, quando essa flexibilização
substitui critérios de programa partidário e de projeto de sociedade (utopia).
Aí, sim, há um problema que, se baseado em preencher significantes esvaziados
com significados demasiadamente vagos ou flexíveis, pode acabar contribuindo
para o estado geral de despolitização.
O
elemento pós-político se faz presente quando essa flexibilização passa a negar
ideologias ou promove falsas equivalências entre os interesses da classe
trabalhadora com interesses aparentes do senso comum. Pode ser visto ainda em
proposições da esquerda como “algo” novo, sem uma elaboração concreta sobre o
que esse novo seria em termos de projeto de sociedade.”
“Se na pós-política o antagonismo é esvaziado em favor da tecnocracia
democrática-liberal, na ultrapolítica o antagonismo é substituído por ódio, por
medo e pela gestão do pânico pela via conservadora e de forma autoritária.
(...)
A
ultrapolítica reifica as relações antagônicas através de uma falsa
radicalização em torno do poder puro e das posições puras.
Ou
seja, o antagonismo é despolitizado, e todos os afetos de desamparo e rebeldia
provenientes da disputa material são sublimados em afetos manipulados e mais
facilmente geridos pelas autoridades durante uma guerra: ódio e medo.
Na
gestão do ódio e do medo, não há espaço para outros afetos. O ódio e o medo
precisam ser puros e direcionados. Essa pureza impede uma verdadeira
confrontação,316 e os conflitos materiais são
substituídos por conflitos construídos politicamente pelos mobilizadores e
instigadores ultrapolíticos.
Isso
quer dizer que a ultrapolítica despolitiza o conflito, empurrando todas as suas
facetas ao extremo, numa falsa radicalização que reifica a identidade “nós” versus
“eles”. Essa militarização direta da política impede “retornos políticos”
através de uma falsa demonstração de tentativa de resolver o impasse político.317
Por
exemplo, a transformação da “corrupção” e do “corrupto” em Inimigos, cujas
características são aquelas atribuídas pelos instigadores ultrapolíticos,
transformam os conflitos em torno de uma crise de representação em uma guerra
contra a corrupção.
A
corrupção como a explicação mais importante para uma crise política é
pós-política, uma vez que nega outras fontes de antagonismo.
A
corrupção como a expressão simbólica e despolitizada do antagonismo evolui para
a ultrapolítica e adiciona mais inimigos na forma de ameaças.
O
golpe de 1964 encontrou sua base social também na luta contra a corrupção,318 sendo que esta seria um mal trazido e promovido
pela ameaça do comunismo.
Hoje,
as ameaças também incluem o PT, e a esquerda em geral, bem como distorções
despolitizadas da política de esquerda, como a falácia da “ideologia de gênero”
(deturpação das demandas por igualdade de gênero e contra a discriminação).
A
falsa radicalização sob a ultrapolítica encoraja o pensamento maniqueísta, o
que é natural para o senso comum, em que, se você não está envolvido na guerra
contra o Inimigo (nos termos estabelecidos pela ultrapolítica), então você deve
estar com o Inimigo.”
316 S. A. Chambers, “Jacques
Ranciere and the Problem of Pure Politics,” European Journal of Political
Theory 10, no. 3 (2011): 308, https://doi.org/10.1177/1474885111406386.
317 Žižek, “For a Leftist
Appropriation of the European Legacy”, 66.
318 Guilherme Boulos, De Que
Lado Você Está? (São Paulo: Boitempo Editorial, 2015), 71.
“O terreno fértil de construção ultrapolítica contra a corrupção e contra
o PT apenas apontou o caminho mais fácil. A classe dominante reagiu oferecendo
o Inimigo ultrapolítico como substituto do antagonismo político, em alternativa
à versão já desconstruída e demonizada da esquerda encarnada pelo PT.
Considerar
o que a ultrapolítica acarreta nessa conjuntura brasileira é um exercício útil
para entender a razão de termos perdido a “civilidade” na política e porque há
tanto ódio e polarização de uma maneira que vai além das respostas imediatas da
política.
Como
a ultrapolítica cria falsas polarizações e reduz os problemas à sensação
imediata, ela é fortalecida em contextos em que há despolitização ligada à
descrença, à traição e à perda de privilégios.
Todos
esses elementos são comuns à atual conjuntura, especialmente em relação ao PT,
embora sejam expressos de maneira diferente entre as classes.
A
ultrapolítica não apenas floresce bem em um cenário de consciência geral
fragmentada, mas também favorece essa fragmentação ao posicionar indivíduos e
grupos uns contra os outros, em uma distração das explicações estruturais.
Consequentemente,
também nutre sentimentos em torno do ódio, preconceito e desacato ao outro.
Trata-se de um cenário particularmente complicado para politizar, pois ele reage
de forma reacionária.
É
ainda mais difícil quando a própria esquerda está fragmentada e não consegue
chegar a consensos e sínteses em torno de coisas importantes, como as raízes da
falsa polarização, mesmo diante do risco de criminalização.
Debates
despolitizados sob a ultrapolítica criam contradições peculiares para a classe
trabalhadora, potencializando a prevalência de uma consciência contraditória
desconectada dos esforços de expor a prática à teoria.”
“É
possível notar o consentimento amplo dado por setores da sociedade brasileira a
esse autoritarismo como modo de gestão capaz de derrotar todo e qualquer
projeto de esquerda.
Žižek
considera isso do ponto de vista de uma classe média que tolera a
despolitização e se apega ao senso comum, assim como a classe média brasileira
fez, uma vez que percebeu que os ganhos de consumo experimentados na era Lula
eram limitados e contingentes à benesse de crescimento econômico.
A
classe média vive a fantasia de se tornar, um dia, a classe dominante. Sem uma
articulação expressiva de conscientização sobre sua realidade material, a
classe média tende a se identificar com os interesses da elite, mesmo sendo
ela, assalariada como a classe trabalhadora ou limitada aos espaços de
privilégio de uma pequena burguesia.
Isso
faz dessa classe uma massa de manobra bastante suscetível ao medo, ainda mais
por seu apego e confiança nos discursos dos intelectuais da direita. Ele
escreve que “a classe média é contra a politização – apenas quer manter seu
estilo de vida, trabalhar e viver em paz, por isso tende a apoiar golpes
autoritários que prometem colocar um fim na louca mobilização política da
sociedade, para que todos possam retornar ao seu devido lugar”.328
Isso
fica claro no engajamento da classe média no processo de impeachment e em
fenômenos como o bater de panelas para protestar contra o PT em bairros
privilegiados, a hostilidade contra Paulo Freire e a pedagogia do oprimido e
sua forte adesão ao ufanismo, que tem no verde e amarelo um uniforme de
protesto.
Tal
engajamento não seria possível sem a participação direta das forças direitistas
na moldagem da cultura, manipulação de informações (especialmente através da
imprensa), e a criação de figuras públicas baseadas nas crenças da classe média
em torno da meritocracia e homens de bem.
O
problema não é a classe média, mas se articula nela justamente por falta de
referência politizadora da esquerda, permitindo que essa massa tome como
referência a burguesia nacional e não aqueles que desejam direitos
trabalhistas, como férias, licença-maternidade, acesso à saúde de qualidade ao
menos mediana e estabilidade empregatícia; ou seja, demandas postas também pela
classe trabalhadora.
Mesmo
assim, não é possível falar da onda conservadora como um fenômeno de classe
média e para a classe média. Através do fundamentalismo religioso e de igrejas
que supriram a necessidade de trabalho de base onde a esquerda se ausentou, o
conservadorismo tem crescido na periferia.
Ali,
muitos trabalhadores que se sentem traídos pelo PT, e que associam a esquerda
tanto com a corrupção quanto com a deturpação de valores morais, são
alimentados com falsas esperanças de segurança pública e de mais empregos
através da flexibilização trabalhista. Mais uma vez, não basta a crise de
práxis da esquerda para causar tamanho dano.
O
senso comum foi pautado pelo conservadorismo e o punitivismo que ajudou a
eleger Bolsonaro, figura centrada no populismo penal, foi bem articulado por
programas policialescos.
A
questão é que, com as altas taxas de violência na sociedade, associadas a um
crescente encarceramento em massa, negligenciado pelo PT durante o seu governo,
o discurso conservador ganhou lastro nos bairros nobres e nas favelas.
O
PT se engajou diretamente na despolitização de alternativas e da supressão do
antagonismo de classe como ferramentas de garantias da conciliação de classes e
de sua governabilidade; ou seja, através de seu transformismo.
Assim,
é um dos atores diretamente responsáveis pela criação do terreno fértil da
ultrapolítica. Mas, mais uma vez, carrega a responsabilidade pela
despolitização e pelos lastros apropriados pela direita, não devendo ser visto
como o único ator de impacto sobre toda a conjuntura.
Afinal,
enquanto o PT errava, o restante da esquerda criticava, mas o que mais fazia de
concreto? E quais de suas ações traziam ruptura ou contribuíam para o ciclo da
crise de práxis? Seria a melancolia da esquerda radical também responsável pela
inexpressão de suas táticas de organização de base?
Mais
uma vez, são os lastros que apontam para a responsabilidade do PT na
conjuntura, e são os lastros que precisam ser objeto de autocrítica da esquerda
no geral, não somente a esquerda moderada.
Enquanto
cabe o exame dos lastros que favorecem o antipetismo na sociedade, faz-se tão
necessário quanto traçar táticas de desmonte da ultrapolítica para que as
alternativas de esquerda possam ressurgir no horizonte da conjuntura
brasileira.
328
Žižek, The Year of Dreaming Dangerously, 24.
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