Editora: Edições 70
ISBN: 978-972-44-1845-2
Tradução: Artur Morão
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 186
Sinopse: De
onde vem a noção de pós-moderno? Quem a concebeu inicialmente, e quem a
desenvolveu? De que forma se foram alterando as suas acepções? São estas as
questões abordadas em “As Origens da Pós-Modernidade”, num percurso que nos
leva de Lima a Angkor, a Paris e a Munique, tendo sempre como figura central
Fredric Jameson, o principal teórico do pós-modernismo. Na era do espectáculo,
o que será da arte, do tempo, da política?
“Para
Lyotard, o advento da pós-modernidade estava ligado à emergência de uma
sociedade pós-industrial — teorizada por Daniel Bell e Alain Touraine — em que
o conhecimento se convertera na principal força económica de produção num fluxo
que ultrapassava os Estados nacionais, mas em que perdera ao mesmo tempo as
suas legitimações tradicionais. Pois, se a sociedade era agora mais bem
concebida, não como um todo orgânico nem como um campo dualista de conflitos
(Parsons ou Marx), antes como uma rede de
comunicações linguísticas, a própria linguagem – “o vínculo social pleno” – era
constituída por uma multiplicidade de jogos diferentes, cujas regras eram
incomensuráveis e agonísticas as interacções. Nestas condições, a ciência
transformou-se também num jogo de linguagem entre outros: já não podia
reivindicar o privilégio imperial sobre as outras formas de conhecimento, a que
na idade moderna aspirara. De facto, o seu título à superioridade como verdade
denotativa sobre os estilos narrativos do conhecimento habitual ocultara a base
da sua própria legitimação que, classicamente, assentava em duas formas de
grande narrativa. A primeira, nascida da Revolução Francesa, relatava a
história da humanidade como o agente heroico da sua própria libertação, graças
ao avanço do conhecimento; a segunda, derivada do idealismo alemão, é a história do espírito como desdobramento progressivo
da verdade. Tais eram os
grandes mitos legitimadores da modernidade.
Em
contrapartida, o traço que define a condição pós-moderna é a perda de
credibilidade destas metanarrativas. Para Lyotard, elas foram demolidas pelo
desenvolvimento imanente das próprias ciências: por um lado, por uma
pluralização dos tipos de argumento, com a proliferação do paradoxo e do
paralogismo antecipados, no seio da filosofia, por Nietzsche,
Wittgenstein e Levinas; e, por outro, por uma tecnificação da prova, em que
aparelhos dispendiosos, controlados pelo capital ou pelo Estado, reduzem a “verdade”
à “performatividade”. A ciência ao serviço do poder encontra uma nova
legitimação na eficácia. Mas a pragmática genuína da ciência pós-moderna não
reside na demanda do performativo, antes na produção do paralogístico – na
microfísica, nos fractais, nas descobertas do caos, “teorizando a sua própria
evolução como descontínua, catastrófica, não rectificável e paradoxal.”(47)
Se o sonho do consenso é uma relíquia da nostalgia pela emancipação, as
narrativas enquanto tais não desaparecem, mas tornam-se miniaturas e
competitivas: “a pequena narrativa continua a ser a forma essencial da invenção
imaginativa”(48). O seu análogo social, com que termina A Condição Pós-moderna, é a tendência para o contrato temporário em
todas as áreas da existência humana: ocupacional, emocional, sexual, política –
laços mais económicos, flexíveis e criativos do que os vínculos da modernidade.
Se esta forma é favorecida pelo “sistema”, não lhe está, porém, de todo
sujeita. Deveríamos contentar-nos por ela ser modesta e mista, concluía
Lyotard, porque qualquer alternativa pura ao sistema acabaria fatalmente por se
assemelhar àquilo a que ela tentava opor-se.
Na
viragem dos anos setenta, os ensaios de Hassan predominantemente sobre
literatura — estavam ainda por reunir: a escrita de Jencks restringia-se à
arquitectura. No título e no tópico, A Condição Pós-moderna foi o
primeiro livro a abordar a pós-modernidade como uma mudança geral da
circunstância humana. O ponto de vista do filósofo garantiu-lhe, entre o
público, um eco mais amplo do que qualquer intervenção prévia: continua a ser,
até hoje, talvez a obra mais amplamente citada sobre o assunto. Mas, considerado
apenas em si mesmo — como soi ser – o livro é um guia enganador para a posição
intelectual característica de Lyotard. A Condição Pós-moderna, escrita
como uma encomenda oficial, restringe-se essencialmente ao destino
epistemológico das ciências naturais a cujo respeito, como Lyotard mais tarde
confessou, o seu conhecimento era menos do que limitado(49). O que
ele entreviu nelas foi um pluralismo cognitivo, baseado na noção – inédita para
os públicos franceses, embora já há muito estereotipada para os anglosaxônicos –
dos diferentes e incomensuráveis jogos linguísticos. A incoerência da concepção
original de Wittgenstein, muitas vezes notada, foi apenas acrescida pela
afirmação de Lyotard de que tais jogos eram autárcicos e agonísticos, como se
pudesse haver um conflito naquilo que não possui uma medida comum. A influência
subsequente do livro esteve, neste sentido, em relação inversa ao seu interesse
intelectual, quando se converteu na inspiração de um relativismo vulgar que,
muitas vezes – aos olhos quer dos amigos, quer dos inimigos – passa pela marca
do pós-modernismo.”
(47) La Condition Postmoderne. Rapport sur le Savoir,
Paris 1979, P. 97. Versão inglesa: The Postmodern Condition, Minneapolis
1984, p. 60.
(48)
La Condition Postmoderne, p. 98.
(49)
“Inventei histórias, referi-me a um rol de livros que nunca lera, aparentemente
causou impressão nas pessoas, mas tudo se resume a um pouco de paródia... É o
pior dos meus livros; quase todos são maus, mas este é o pior”: Lotta
Poetica, Terceira Série, Vol. 1, Nº 1, Janeiro 1987, p. 82 – uma entrevista
de interesse biográfico mais geral.
“Se
o problema de Lyotard, ao teorizar a arte pós-moderna, reside no afastamento
das tendências estéticas da direcção que ele sempre defendera – obrigando-o a
declarar a pós-modernidade artística como um princípio perene, em vez de uma
categoria periódica, em patente contradição com a sua explicação da
pós-modernidade científica enquanto estádio do desenvolvimento cognitivo — a
sua dificuldade em construir uma política pós-moderna tornou-se, a seu tempo, análoga.
Aqui, a frustração veio do próprio curso da História. Em A Condição
Pós-moderna Lyotard anunciara o eclipse de todas as grandes narrativas. A
única cuja morte ele, acima de tudo, tentou proclamar era, claro está, o
socialismo clássico. Em textos subsequentes, alargaria a lista das grandes
narrativas que agora estavam defuntas: a redenção cristã, o progresso
iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazi, o
equilíbrio keynesiano. Mas o referente prioritário permaneceu sempre o
comunismo. E o capitalismo? Na altura em que Lyotard escrevia, no final da era Carter,
o Ocidente — que então entrava numa grave recessão — encontrava-se longe de uma
atmosfera ideológica turbulenta. Por isso, pôde ele sugerir, com alguma
plausibilidade aparente, que o capitalismo contemporâneo era apenas corroborado
por um princípio performativo, o qual não passava de uma sombra de legitimação
real.
Com
a intensa mudança da conjuntura nos anos oitenta – a euforia da expansão da era
de Reagan e a ofensiva ideológica triunfante da Direita, que culminou no
colapso do bloco soviético, no final da década – esta posição perdeu toda a credibilidade.
Longe de as grandes narrativas terem desaparecido, aparentemente, era como se,
pela primeira vez na História, o mundo estivesse a ficar sob o domínio da mais grandiosa
de todas – uma história única, universal, de liberdade e prosperidade, a
vitória global do mercado. Como é que Lyotard se ajustaria a este
desenvolvimento não negociado? A sua resposta inicial foi insistir em que o
capitalismo, embora representasse aparentemente uma finalidade universal da
História, na realidade a destruía porque não encarnava outros valores
superiores além da mera segurança factual. “O capital não carece de
legitimação, nada prescreve, no sentido estrito de uma obrigação, não tem de
anunciar qualquer regra normativa. Está presente em toda a parte, mais como
necessidade do que como finalidade”. Quando muito, ocultava porventura uma
quase-norma – “poupar tempo” – mas poderia isto realmente ser considerado um
fim universal(57)?
Mas
isto era bater uma tecla incaracterística e fraca. No final da década de
noventa, Lyotard encontrou uma saída mais forte para a sua dificuldade. O
capitalismo, começara ele, muito mais cedo, a argumentar, não se deveria
entender essencialmente como um fenómeno socioeconómico. “O capitalismo é, de
modo mais adequado, uma figura. Enquanto sistema, o capitalismo não tem por sua
fonte de calor a força de trabalho, mas a própria energia, a física (o sistema
não é isolado). Enquanto figura, o capitalismo vai buscar a sua força à Ideia
de infinidade. Pode surgir na experiência humana como o desejo de dinheiro, de
poder ou de novidade. Tudo isto pode parecer muito feio, muito inquietante. Mas
estes desejos são a tradução antropológica de algo que, ontologicamente, é a
«exemplificação» da infinidade na vontade. Esta «exemplificação» não tem lugar segundo
a classe social. As classes sociais não são categorias ontológicas(58).
A substituição da história pela
ontologia era, todavia, uma paragem intermédia: dentro de alguns anos, Lyotard
deslocava-se para a astrofísica.
O
triunfo do capitalismo sobre os sistemas rivais, argumentava ele agora, era o
resultado de um processo de selecção natural que precedera a própria vida
humana. Na incomensurável vastidão do cosmos, onde todos os corpos estão
sujeitos à entropia, um acaso original – uma “constelação contingente de formas
de energia” – fez nascer, num pequeníssimo planeta, sistemas vivos rudimentares.
Porque a energia externa era limitada, tiveram eles de entre si competir, numa
senda perpetuamente fortuita da evolução. Por fim, após milhões de anos,
emergiu uma espécie humana capaz de palavras e de utensílios; apareceram, em
seguida, “diversas formas improváveis de associação humana, e foram seleccionadas
de harmonia com a sua habilidade para descobrir, absorver e poupar fontes de
energia”. Após ulteriores milénios, assinalados pelas revoluções neolítica e
industrial, “os sistemas chamados democracias liberais” revelaram-se nesta
tarefa os melhores, derrotando os competidores comunista ou islamita e
controlando os perigos ecológicos. “Nada parecia capaz de deter o
desenvolvimento deste sistema, excepto a extinção inelutável do Sol. Mas, para
enfrentar tal desafio, o sistema já estava a desenvolver as próteses que lhe permitiriam
sobreviver após o esgotamento das fontes solares da energia”(59). Em
última análise, toda a investigação científica contemporânea agia em função do
êxodo para fora da Terra, dentro de quatro mil milhões de anos, de uma espécie
humana transformada.
Quando
começou a delinear esta concepção, Lyotard chamou-lhe um “novo cenário”(60).
O recurso à linguagem da cenografia punha de lado qualquer sugestão de
narrativa – mesmo se à custa de, inadvertidamente, sugerir a estilização do
pós-moderno, aliás objecto de profunda execração. Mas, uma vez completada, ele
apresentou-a como “o sonho inconfessado que o mundo pós-moderno sonha acerca de
si próprio” – “uma fábula pós-moderna”. De acordo com as suas palavras, “a
fábula é realista, porque narra de novo a história de uma força que faz, desfaz
e refaz a realidade”. A fábula pinta um conflito de dois processos de energia. “Um
leva à destruição de todos os sistemas, de todos os corpos, vivos ou não, no
nosso planeta e no sistema solar. Mas, no seio deste processo de entropia,
necessário e contínuo, outro processo, que é contingente e descontínuo, pelo
menos durante um longo tempo, actua no sentido contrário, aumentando a
diferenciação dos seus sistemas. Este movimento não pode deter o primeiro (a
não ser que conseguisse encontrar um meio de revigorar o sol), mas pode
subtrair-se à catástrofe, abandonando o seu habitat cósmico”. O motor por
excelência do capitalismo não é, pois, a sede de lucro ou qualquer desejo
humano: é antes o desenvolvimento como neguentropia. “O desenvolvimento não é
uma invenção dos seres humanos. Os seres humanos são uma invenção do
desenvolvimento”(61).
Não
será esta uma — nuclearmente moderna – grande narrativa? Não, responde Lyotard,
porque é uma história sem historicidade ou esperança. A fábula é pós-moderna,
porque “não tem finalidade alguma em qualquer horizonte de emancipação”. Os
seres humanos, como testemunhas do desenvolvimento, podem opor-se determinadamente
a um processo de que são veículos. “Mas até as suas críticas do
desenvolvimento, da sua desigualdade, da sua irregularidade, da sua fatalidade,
da sua inumanidade, são expressões do desenvolvimento e para ele contribuem.” A
energética universal não deixa – aparentemente – espaço algum para o pathos,
Contudo, Lyotard descreve também livremente o seu relato como uma “tragédia da
energia” que “como o Rei
Édipo acaba mal”; mas,
também, “como Édipo em Colono, permite a derradeira remissão(62).
A
fragilidade intelectual desta última construção dificilmente carece de realce.
Nada na descrição original que Lyotard fez das metanarrativas as restringe à
ideia de emancipação — que foi apenas um dos dois discursos modernos de legitimação,
que ele tentou seguir. A fábula pós-moderna seria ainda uma grande narrativa,
mesmo se estivesse imune ao tema. Mas, de facto, e como é evidente, não está. O
que é que a fuga para as estrelas poderia ser mais do que a emancipação dos
vínculos de uma Terra moribunda? Com maior pertinência ainda, no outro registo –
intermutável – da narrativa de Lyotard, o capitalismo fala notoriamente a linguagem
da emancipação de um modo mais contínuo e confiante do que alguma vez antes
acontecera. Noutro texto, Lyotard é obrigado a reconhecer isso. De facto,
admite: “A emancipação já não é a tarefa de alcançar e impor a liberdade em
relação ao exterior” – é antes “um ideal que o próprio sistema se esforça por
actualizar na maior parte das áreas que cobre, a saber, trabalho, impostos,
mercado, família, sexo, raça, escola, cultura, comunicação”. Os obstáculos e as
resistências apenas o encorajam a tornar-se mais aberto e complexo, promovendo
empreendimentos espontâneos – e “tal é emancipação tangível”. Se o trabalho do
crítico consiste ainda em denunciar as deficiências do sistema, “tais críticas,
seja qual for a forma que tomem, são exigidas pelo sistema para, com maior
eficácia, se descartar da tarefa de emancipação”(63).
A
condição pós-moderna, anunciada como a morte da grande narrativa, termina assim
com a sua total, mas imortal, ressurreição na alegoria do desenvolvimento. A
lógica deste estranho desenlace está inscrita na trajectória política de Lyotard.
Da década de setenta em diante, enquanto o comunismo existia como uma
alternativa ao capitalismo, este último era um mal menor – ele poderia até, por
contraste, celebrá-lo sardonicamente como uma ordem aprazível. Com a
desintegração do bloco soviético, a hegemonia do capital tornou-se menos
saborosa. O seu triunfo ideológico parecia reivindicar justamente o tipo de
narrativa legitimadora, cujo obituário Lyotard decidira escrever. Mais do que
enfrentar a nova realidade num plano político, a sua solução foi fazer dela uma
sublimação metafísica. Adequadamente projectada para o espaço intergaláctico, a
sua energética original podia apenas perspectivar o capitalismo como somente um
vórtice de uma aventura cósmica mais ampla. A consolação agridoce que esta
alteração de escala poderia proporcionar a um antigo militante é clara. A “fábula
pós-moderna” não significava qualquer reconciliação final com o capital. Pelo
contrário, Lyotard recuperava agora os aspectos de oposição há muito
silenciados na sua obra: uma denúncia da desigualdade global e da lobotomia
cultural, o desdém pelo reformismo social-democrático, a retractação do seu
passado revolucionário. Mas as únicas resistências ao sistema que permaneceram
eram interiores: a reserva do artista, a indeterminação da infância, o silêncio
da alma. Esvaneceu-se a “jubilação” da ruptura inicial da representação pelo
pós-moderno; um invencível mal-estar definia agora o tom da época. O
pós-moderno era “melancolia”(64).
(56)
‘Le sublime et l’avant-garde’ (conferência de Berlim 1983), in L’Inhumain.
Causeries sur le Temps, Paris 1988, p. 117.
(57)
‘Mémorandum sur la légitimité’ (1984), in Le Postmoderne expliqué aux
enfants, p. 94.
(58) ‘Appendice svelte à la question
postmoderne’ (1982), in Tombeau de l’intellectuel et autres papiers,
Paris 1984, p. 80.
(59)
Moralités Postmodernes, Paris 1993, pp. 80-86.
(60)
‘Billet pour un nouveau décor’ (1985), in Postmoderne expliqué aux enfants,
pp. 131-134.
(61)
‘Une fable postmoderne’, in Moralités Postmodernes, pp. 86-87.
(62) ‘Une fable postmoderne’, pp. 91-93, 87.
(63) ‘Mur, golfe, systéme’ (1990), in Moralités Postmodernes, pp.
67-68.
(64)
Ver, em particular, ‘A l’insu’ (1988), ‘Ligne générale’ (1991) e ‘L’intime est
la terreur’ (1993), in Moralités Postmodernes, e ‘Avant-propos: de
l’humain’ (1988), in L ‘Inhumain, onde Lyotard confessa: “A inumanidade
do sistema agora em processo de consolidação, sob o nome de desenvolvimento
(entre outros), não se deve confundir com aquele, infinitamente secreto, de que
a alma é refém. Acreditar, como eu em tempos, que o primeiro tipo de
inumanidade pode controlar o segundo, dar-lhe expressão, é um erro. O efeito do
sistema consiste antes em sujeitar o que lhe escapa até ao esquecimento” (p.
10). Mais recentemente, em ‘La Mainmise’, Lyotard reitera a “fábula do
desenvolvimento”, mas muda o registo: aqui “ela antecipa uma contradição” –
pois “o processo do desenvolvimento ocorre contra o desígnio humano de
emancipação”, embora pretenda coincidir com ele. À pergunta – “Existirá, dentro
de nós, alguma instância que exige ser emancipada desta suposta emancipação?” –
a resposta de Lyotard é o “resíduo” transmitido pela “infância imemorial” ao
“gesto de testemunha” na obra de arte: Un Trait d’Union, Paris 1993, p.
9.
“Habermas começou por reconhecer que, de modo
muito visível, o espírito da modernidade estética, com o seu novo sentido do
tempo como um presente carregado de um futuro heroico, nascido na época de
Baudelaire e alcançando o clímax no Dada, se esvanecera; as vanguardas tinham
envelhecido. A ideia de pós-modernidade deveu o seu poder a esta mudança
incontestável. Dela, porém, os teóricos neoconservadores como Daniel Bell
tiraram uma conclusão perversa. A lógica antinómica da cultura modernista,
argumentavam eles, chegara a imbuir a textura da sociedade capitalista,
enfraquecendo a sua fibra moral e minando a sua disciplina de trabalho com um
culto da subjectividade irrestrita, justamente no momento em que esta cultura
deixara de ser uma fonte de arte criativa. O resultado ameaçava ser uma mescla
hedonista de uma ordem social outrora decorosa, que só poderia ser travada por
uma revivescência da fé religiosa – num mundo profano, por um retorno do
sagrado.
Isto, advertia Habermas, iria culpar o
modernismo estético por tudo aquilo que, de um modo demasiado óbvio, era a
lógica comercial da própria modernização capitalista. As aporias reais da
modernidade cultural residem noutro lugar. O projecto iluminista da modernidade
tinha duas vertentes. Uma era a diferenciação, pela primeira vez, da ciência,
da moralidade e da arte não já fundidas numa religião revelada – em esferas
autónomas de valor, cada qual governada pelas suas próprias normas – verdade,
justiça, beleza. A outra foi o desencadeamento do potencial destes domínios
recentemente libertados no fluxo subjectivo da vida quotidiana, interagindo
para a enriquecer. Mas este programa extraviara-se. Pois, em vez de ingressar
nos recursos comuns da comunicação quotidiana, cada esfera tendeu a
transformar-se num especialismo esotérico, fechado ao mundo dos significados
ordinários. No decurso do século XIX, a arte tornou-se um enclave crítico cada
vez mais alienado da sociedade, e até feiticizou a sua própria distância em
relação a ela. No início do século XX, vanguardas revolucionárias, como o
surrealismo, tentaram demolir a divisão resultante entre a arte e a vida,
mediante espectaculares actos de vontade estética. Mas os seus gestos eram
fúteis: nenhuma emancipação brotava da destruição de formas ou da dessublimação
dos significados – nem a vida poderia, alguma vez, ser transfigurada só através
da absorção da arte. Isso exigia também uma recuperação concorrente dos
recursos da ciência e da moralidade, e a acção recíproca dos três no seu
conjunto, para animar a mundo da vida.
O projecto da modernidade tinha ainda de se
realizar. Mas a tentativa integral de o negar – um acto desesperado – falhou. A
autonomia das esferas de valor não se podia cancelar, sob pena de regressão.
Havia ainda a necessidade de reapropriar as culturas especializadas que cada
qual produzira na linguagem da experiência comum. Para tal, porém, deve haver
barreiras, a fim de proteger a espontaneidade do mundo de vida das incursões
das forças do mercado e da administração burocrática. Mas, reconhecia Habermas
melancolicamente, “as oportunidades não são, hoje, para isso muito boas. Mais
ou menos em toda a parte, no mundo ocidental, se criou um clima que fomenta as
correntes críticas do modernismo cultural”(66). Não menos do que
três distintas correntes do conservadorismo estavam agora em oferta. O antigo
modernismo dos conservadores “jovens” apelava para os poderes arcaicos e
dionisíacos contra toda a racionalização, numa tradição que vai desde Bataille
a Foucault. O pré-modernismo dos “velhos” conservadores exigia uma ética
cosmológica substantiva de cunho quase-aristotélico, segundo linhas inculcadas
por Leo Strauss. O pós-modernismo dos “neoconservadores” acolheu bem a
reificação das diferentes esferas de valor em domínios fechados de
especialização, apetrechados contra quaisquer exigências do mundo da vida, com
concepções da ciência próximas das do primeiro Wittgenstein, da política
derivada de Carl Schmitt, da arte afim às de Gottfried Benn. Na Alemanha, uma
mescla oculta de anti- e de pré-modernismo assediava a contracultura, enquanto
uma ominosa aliança de pré- e de pós-modernismo ganhava forma no sistema
político.
O argumento de Habermas, compacto na forma,
era, todavia, uma construção curiosa. A sua definição de modernidade, adoptada
acriticamente de Weber, reduziu-a essencialmente à simples diferenciação formal
das esferas de valor a que em seguida anexou, como uma aspiração do Iluminismo,
a sua reconfiguração como recursos intercomunicativos no mundo da vida, uma
ideia estranha a Weber e difícil de detectar na Aufklärung (enquanto distinta de Hegel). Assaz claro é, porém, que
o “projecto” da modernidade, tal como ele o esboçou, é uma amálgama
contraditória de dois princípios opostos: especialização e popularização. Como
é que se poderia realizar uma síntese dos dois em qualquer estádio? Definido
assim, poderia alguma vez completar-se o projecto? Mas se, neste sentido, ele
se afigura menos inacabado do que irrealizável, a razão reside na teoria social
como um todo, representada por Habermas.
Pois as tensões da modernidade estética
reproduzem em miniatura as tensões que existem na estrutura da sua descrição
das sociedades capitalistas em geral. Por um lado, estas são governadas por “sistemas”
de coordenação impessoal, mediadas pelos mecanismos controladores do dinheiro e
do poder, que não podem ser recuperados por qualquer acção colectiva, sob pena
de uma desdiferenciação regressiva das ordens institucionais separadas – mercado,
administração, lei, etc. Por outro lado, o “mundo da vida” que é integrado pelas
normas intersubjectivas, em que predomina mais a acção comunicativa do que a
instrumental, precisa ser protegido da “colonização” pelos sistemas – sem,
todavia, neles se entrincheirar. O que este dualismo exclui é qualquer forma de
soberania popular, num sentido tradicional ou radical. A autonomia de
produtores livremente associados não está em discussão. O que resta é a
veleidade de uma impossível reconciliação de dois domínios desiguais. Para o Habermas
de A Teoria da Acção Comunicativa, a “esfera
pública” seria o sítio democrático de um reforço e de uma combinação entre os
dois um sítio cujo declínio estrutural, todavia, ele há muito delineara. Mas
tem o seu eco no seu único exemplo positivo daquilo a que uma reapropriação da arte
na existência quotidiana se poderia assemelhar: o retrato de jovens
trabalhadores na Berlim de antes da guerra discutindo o altar de Pérgamo, na
Estética de Resistência de Peter Weiss, que faz lembrar os equivalentes “plebeus”
da esfera pública burguesa, evocados no prefácio ao seu famoso estudo da
última. Mas, naturalmente, isto não é apenas uma ilustração fictícia. A
estética libertada é a da antiguidade clássica, não da modernidade; situada num
tempo, no caso, antes de as vanguardas terem envelhecido.
O mal à
propos pode tomar-se como um indício da derrapagem subjacente ao argumento
de Habermas. Existe uma disjunção básica entre o fenómeno que ele começa por registar
– o aparente declínio do modernismo estético e o tema que aí ele continua a
desenvolver – a superespecialização das esferas de valor. A dinâmica da ciência
não foi, claramente, afectada pelo último. Porque é que o deveria ser a arte?
Habermas não tenta nenhuma resposta: de facto, nem sequer levanta a questão. O
resultado é um hiato fastidioso entre o problema e a solução. O esmorecimento
da vitalidade experimental reside num dos extremos do texto, a reanimação do
mundo de vida no outro e quase não existe entre eles nenhuma conexão razoável.
A construção defeituosa tem o seu sintoma deslocado na taxonomia bizarra com que
ele termina. Sejam quais forem as críticas a fazer à descendência intelectual
de Bataille a Foucault (e muitas há), nenhum esforço de imaginação a pode
descrever como “conservadora”. Vice-versa, por neoconservadora que seja a
descendência de Wittgenstein, de Schmitt ou Benn, censurar os seus representantes
como veículos do “pós-modernismo” é particularmente aberrante: de modo típico,
estiveram eles entre os seus mais ferozes críticos. Rotular assim tais inimigos
foi o mesmo que obnubilar juntamente o pós-moderno.”
(66) Habermas explicou aos seus ouvintes
alemães que uma condição da “reunião diferenciada da cultura moderna com a
práxis quotidiana” não era “a capacidade do mundo da vida de desenvolver
instituições capazes de limitar a dinâmica interna dos sistemas de acção
económicos e administrativos”, mas também
de guiar a modernização social por outras
sendas, não capitalistas” – “wenn auch
die gesellschaftliche Modernisierung in andere
nichtcapitalistische Bahnen gelenkt wurden kann”. Na exposição ao seu público
americano, Habermas abandonou discretamente esta cláusula, deixando apenas a
sua flâmula anódina. Compare-se “Die
Moderne – ein unvollendetes Projekt”, p. 462, com “Modernity – an Incomplete Project”, p, 13.
“Tal era a situação, no Outono de 1981.
Trinta anos depois de Olson ter pela primeira vez ventilado uma noção, o
pós-moderno cristalizara-se como um referente comum e um discurso competitivo.
Nas suas origens, a ideia fora sempre abordada ao de leve com associações para
lá do Ocidente – China, México, Turquia. Mais tarde ainda, por detrás de Hassan
e de Lyotard, estava o Egipto, a Argélia e a anomalia do Quebec. O espaço
estava nele inscrito, desde o início. Culturalmente, apontava para lá daquilo
que se tornou o modernismo; mas, quanto à direcção, não existia consenso, apenas
um conjunto de oposições que remontavam a De Onís; e no tocante às artes ou às
ciências, somente interesses desconexos e opiniões contrastadas. As
intervenções coincidentes de Lyotard e Habermas assinalaram, pela primeira vez,
o campo com o selo da autoridade filosófica. Mas as suas próprias contribuições
foram estranhamente indecisas. O contexto original dos dois pensadores era
marxista, mas surpreende o pouco que dele introduziram nas suas exposições da
pós-modernidade. Nenhum tentou qualquer interpretação histórica efectiva do
pós-moderno, capaz de o determinar no tempo ou no espaço. Pelo contrário,
facultaram indicadores mais ou menos variáveis e vagos como sinal do seu
aparecimento: a deslegitimação das grandes narrativas (sem data) para Lyotard,
a colonização do mundo da vida (quando é que ele não foi colonizado?) para
Habermas. Paradoxalmente, um conceito, temporal por definição, carece em ambos
de peso periódico.
Nem a bruma que rodeia o termo como
desenvolvimento social é dissipada pelo seu uso como categoria estética. Lyotard
e Habermas estavam profundamente ligados aos princípios do modernismo avançado;
mas, longe de este alinhamento os capacitar para conferirem um maior destaque ao
pós-modernismo, aparentemente foi antes um obstáculo. Ao retroceder perante a
evidência indesejada do que ele poderia significar, Lyotard viu-se reduzido a
negar que ele era apenas uma franja interior do próprio modernismo. Habermas,
mais disposto a encarar as artes, conseguia reconhecer uma passagem do moderno
ao pós-moderno, mas dificilmente foi capaz de a explicar. Nenhum deles se
atreveu a uma exploração das formas pós-modernas para as comparar com as
discussões pormenorizadas de Hassan ou Jencks. O efeito visível foi uma
dispersão discursiva: por um lado, uma sinopse filosófica e sem conteúdo
estético significativo, por outro, um discernimento estético sem horizonte
teórico coerente. Ocorrera uma cristalização temática – o pós-moderno estava
agora, como afirmou Habermas, “na agenda” – sem integração intelectual.
Todavia, o campo ostentava ainda outro tipo
de unidade: era ideologicamente consistente. A ideia do pós-moderno, tal como
se estabeleceu nesta conjuntura, era, de uma ou de outra forma, um apanágio da
Direita. Hassan, ao celebrar o jogo e a indeterminação como características do
pós-moderno, não fez nenhum segredo da sua aversão à sensibilidade que era a
sua antítese: o jugo de ferro da Esquerda. Jencks celebrou a passagem do
moderno como a libertação da escolha do consumidor, uma morte do planeamento
num mundo onde os pintores poderiam negociar com tanta liberdade e de modo tão
global como os banqueiros. Para Lyotard, os verdadeiros parâmetros da nova
condição foram criados pelo descrédito do socialismo enquanto última grande narrativa
– derradeira versão de uma emancipação que já não tinha sentido. Habermas,
rejeitando a fidelidade ao pós-moderno, a partir de uma posição ainda de
Esquerda, atribuía todavia a ideia mais à Direita, interpretando-a como figura
do neoconservadorismo. Comum a todos era a subscrição dos princípios daquilo
que Lyotard – outrora o mais radical – chamava democracia liberal, como
horizonte inultrapassável da época. Nada poderia existir, excepto o capitalismo.
O pós-moderno era uma sentença sobre ilusões alternativas.”
“Os próprios empenhamentos de Jameson como
crítico eram firmes e distintivos. Apreendem-se talvez melhor no seu posfácio a
Aesthetics and Politics (1976), um volume que reúne os debates clássicos
que opuseram entre si Lukács, Brecht, Bloch, Benjamin e Adorno. Para Jameson, que escrevia justamente no momento em que as noções de
pós-modernismo começavam a circular nos departamentos da literatura, o que
nestas trocas estava em jogo era “o conflito estético entre realismo e
modernismo, cuja navegação e renegociação nos é ainda hoje inevitável.”(74).
Se cada um retinha a sua verdade e já nenhum, porém, se podia aceitar como tal,
o acento da exposição de Jameson recaía, de modo subtil mas inconfundível, na
vertente inatendida da oposição. Ao advertir as deficiências da tentativa de
Lukács para prolongar no presente as formas tradicionais do realismo, salientou
que Brecht já não podia ser visto apenas como um antídoto modernista, dada a
sua própria hostilidade à experimentação puramente formal. Brecht e Benjamin
tinham, de facto, pretendido uma arte revolucionária, capaz de se apropriar da
moderna tecnologia, a fim de chegar aos públicos populares – enquanto Adorno,
de modo mais especioso, afirmara que a lógica formal do próprio modernismo
avançado, na sua genuína autonomia e abstracção, era o único verdadeiro refúgio
da política. Mas o desenvolvimento, no pós-guerra, do capitalismo consumista
afastara a possibilidade de ambos: a indústria do entretenimento ridicularizava
as esperanças de Brecht ou de Benjamin, enquanto uma cultura do regime
mumificava os modelos de Adorno.
O resultado foi um presente em que “as
alternativas do realismo e do modernismo se nos afiguram intoleráveis: realismo,
porque as suas formas revivem uma experiência mais antiga de um tipo de vida
que, entre nós, não mais existe no futuro já decaído da sociedade de consumo;
modernismo, porque as suas contradições se revelaram na prática mais agudas do
que as do realismo”. Justamente aqui, poderia pensar-se, existe uma abertura
para o pós-modernismo como a arte da época. O que, porém, surpreende em
retrospectiva não é que esta resolução tenha sido evitada. É considerada e rejeitada.
“Uma estética da novidade hoje – já entronizada como a ideologia crítica e
formal dominante – deve tentar desesperadamente renovar-se si mesma por
rotações cada vez mais rápidas do seu próprio eixo, visto que o modernismo se procura
converter em pós-modernismo, sem deixar de ser moderno”. Os sinais de
semelhante involução eram o retorno da arte figurativa, mais como uma
representação de imagens do que de coisas no fotorrealismo, e a reviviscência
da intriga na ficção, com um pastiche das narrativas clássicas. A conclusão de
Jameson foi um repto calculado a esta lógica, virando os seus termos contra ela
própria. “Em tais circunstâncias, é discutível se a renovação derradeira do
modernismo, a subversão dialéctica final das convenções agora automatizadas de uma
estética da revolução perpétua, não poderia ser apenas... o próprio realismo!”
Dado que as técnicas alienantes do modernismo degeneraram em convenções
estandardizadas do consumo cultural, o seu “hábito de fragmentação” é que agora
necessitava de se alienar numa arte cruamente totalizante. Os debates do
período entre as duas guerras continham assim uma lição paradoxal para o
presente. “Num desenlace inesperado, talvez fosse Lukács – enganado porventura
na década de 30 – quem tinha para nós, hoje, a última palavra provisória”. O
legado contraditório daqueles anos põe os contemporâneos diante de uma tarefa
precisa, mas imponderável. “Não pode decerto dizer-nos qual deve ser a nossa
concepção do realismo; todavia, o seu estudo torna-nos impossível não sentir a obrigação
de reinventar um”(75).
O vislumbre inicial que Jameson teve do
pós-modernismo tendia assim a ver nele o sinal de uma espécie de deliquescência
intrínseca ao modernismo, cujo remédio reside num novo realismo, ainda por
imaginar. As tensões no interior desta posição encontraram uma ulterior, e
ainda mais marcada, expressão no ensaio programático que ele publicou sobre “a ideologia
do texto”, quase na mesma altura. Pois esta intervenção crítica abre com as
palavras: “Todos os factos parecem confirmar o sentimento muito difundido de
que «os tempos modernos acabaram» e que alguma linha divisória fundamental,
alguma ruptura básica ou salto qualitativo, nos separa agora decisivamente do
que costumava ser o novo mundo do princípio do século XX, do modernismo
triunfante”. Entre os fenómenos que agora dão testemunho de “uma distância
irrevogável relativamente ao passado imediato” além do papel dos computadores,
da genética, da détente e de outros — estava o “pós-modernismo na literatura
e na arte”. Todas estas deslocações, salientou Jameson, tendiam a gerar ideologias
de mudança, geralmente apologéticas na índole, onde era necessária uma teoria
capaz de associar a actual “grande transformação” ao “amplo e longo destino do
nosso sistema socioeconómico”(76).”
(74) “Reflections in Conclusion” a propósito de Ernst Bloch et al., Aesthetic
and Politics, Londres 1977, p. 176; reimpresso como “Reflections on the
Brecht-Lukács Debate”, in The Ideologies of Theory, Vol. 1, Minneapolis
1988, p. 133.
(75) Aesthetics and Politics, pp. 211-213; The Ideologies of
Theory, Vol. 2, Minneapolis 1988, pp. 145-147.
(76) “The Ideology of the Text”, Salmagundi, Nº 31-32, Outono
1975-Inverno 1976, pp. 204-205; versão revista, The Ideologies of Theory,
Vol.1, pp. 17-18.
Um comentário:
Como pode ser observado, a edição é do português de Portugal.
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