sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

As origens da pós-modernidade (Parte III), de Perry Anderson

Editora: Edições 70

ISBN: 978-972-44-1845-2

Tradução: Artur Morão

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 186

Sinopse: Ver Parte I

 


““(...) Mas se tal foi possível, foi também porque Jameson partilhava algo com Olson, que o distingue da linhagem intelectual de que descende. Num aspecto crucial, a sua obra afasta-se do teor geral do marxismo ocidental. Este era uma tradição cujos monumentos mais importantes estavam todos, de um ou de outro modo, secreta ou abertamente afectados por um profundo pessimismo histórico(104). Os seus temas mais originais e poderosos – a destruição da razão de Lukács, a guerra de posição de Gramsci, o anjo da catástrofe de Benjamin, o sujeito mutilado de Adorno, a violência da escassez de Sartre, a ubiquidade da ilusão de Althusser – não falavam de um futuro desafogado, mas de um presente implacável. As tonalidades variavam dentro de um âmbito comum, desde o estoico ao melancólico, do desencorajante ao apocalíptico. Os escritos de Jameson são de um timbre diferente. Embora os seus tópicos não tenham, decerto, servido de consolo à Esquerda, a abordagem que deles faz nunca foi cáustica ou depressiva. Pelo contrário, a magia do estilo de Jameson consiste em originar o que se poderia considerar impossível – um lúcido encantamento do mundo.

Os seus temas são tão graves como qualquer outro na tradição. Mas uma aura de assombro e de prazer – as oportunidades da felicidade numa época sufocante – nunca está longe da onda da mais ominosa reflexão. “Comover, instruir, deleitar”. Se uns quantos pensadores subversivos se aproximaram muito dos objectivos da arte, as razões são, sem dúvida, em parte contingentes. Jameson consegue evocar a experiência corporal de modo tão memorável como Sartre, mas a tonalidade emocional é, habitualmente, a oposta — mais próxima da euforia do que da náusea. Os prazeres do intelecto e da imaginação não são traduzidos com menos vivacidade do que os dos sentidos. O entusiasmo com que Jameson consegue dotar os objectos, os conceitos, as ficções é o mesmo(105). As fontes biográficas deste entusiasmo são uma coisa, as suas premissas filosóficas, outra. Por detrás deste consentimento no mundo habita o cunho profundamente hegeliano do marxismo de Jameson, assinalado por muitos críticos, que o preparou para enfrentar as adversidades da época e trabalhar no meio das suas confusões, com uma intrépida equanimidade muito peculiar. Categorias como optimismo ou pessimismo não têm lugar no pensamento de Hegel. A obra de Jameson não se pode descrever como optimista, no sentido em que da tradição marxista ocidental podemos dizer que era pessimista. A sua política foi sempre realista. “A História é o que fere, é o que recusa o desejo e estabelece limites inexoráveis à práxis individual ou colectiva” – sobretudo no “fracasso determinado de todas as revoluções que tiveram lugar na história humana”, até agora(106). Mas os anelos utópicos não são facilmente reprimidos e podem reacender-se dos modos menos previsíveis. Foi também esta característica — a persistência subterrânea da vontade de mudança que conferiu à obra de Jameson a sua força de atracção, para lá do recinto de um Ocidente fatigado.”

(104) Sobre este aspecto, ver Considerations on Western marxism, pp. 88-92.

(105) O exemplo mais refinado é talvez o seu ensaio sobre a Passion de Godard in The Geopolitical Aesthetic, Londres 1992, 158-185. O contraste com o tratamento que Adorno faz do mundo objectivado, mesmo no seu momento mais eloquente, é expressivo. Compare-se, acerca de um tópico muito similar, a passagem de Minima Moralia (p. 40) – aliás, muito bela – sobre a janela de caixilhos ou o trinco liso, e o batimento das portas de um automóvel ou do frigorífico, com o devaneio de Jameson sobre as levitações da garagem californiana em Signatures of the Visible (pp. 107-108).

(106) The Political Unconscious, p. 102.

 

 

“Schumpeter afirmou sempre que o capitalismo, enquanto sistema económico intrinsecamente amoral, impelido pela busca do lucro, factor de dissolução de todas as barreiras para o cálculo do mercado, dependia criticamente dos valores e maneiras pré-capitalistas – essencialmente nobiliários – para o manter como uma ordem social e política. Mas este “alicerce” aristocrático, como ele o denominou, era tipicamente reforçado por uma estrutura secundária de apoio, nos meios burgueses confiantes na dignidade moral da sua vocação peculiar: subjectivamente mais perto dos retratos traçados por Mann do que por Flaubert. Na época do Plano Marshall e da génese da Comunidade Europeia, este mundo ainda estava vivo. No campo político, figuras substanciais como Adenauer, De Gasperi, Monnet consubstanciavam esta persistência – a sua relação política com Churchill ou De Gaulle, grandes pelo seu passado senhorial, como que uma pós-imagem de um compacto original que, socialmente, já não era válida. Mas, como se viu, os dois esteios da antiga estrutura eram mais interdependentes do que outrora pareciam.

Pois, no espaço de mais vinte anos, também a burguesia – em sentido estrito, como classe detentora de autoconsciência e de moral — estava tudo menos extinta. Aqui e além, bolsas de uma posição burguesa tradicional podem ainda encontrar-se nas cidades provincianas da Europa e, porventura, em certas regiões da América do Norte, tipicamente preservadas pela piedade religiosa: redes familiares no Veneto ou nas terras bascas, notáveis conservadores no Bordelais, partes do Mittelstand alemão, e assim por diante. Mas, em geral, a burguesia, tal como Baudelaire ou Marx, Ibsen ou Rimbaud, Grosz ou Brecht e até Sartre ou O’ Hara — a conheceram, é coisa do passado. Em lugar desse sólido anfiteatro existe um aquário de formas flutuantes, evanescentes – os projectistas e os gestores, os auditores e porteiros, administradores e porteiros, administradores e especuladores do capital contemporâneo: funções de um universo monetário que já não conhece imutabilidades sociais ou identidades estáveis.

Nem a mobilidade intergeracional aumentou grandemente, se é que cresceu alguma coisa, nas sociedades mais ricas do mundo do pós-guerra. Estas permanecem tão objectivamente estratificadas como sempre. Mas os indicadores culturais e psicológicos de posição sofreram uma evolução cada vez maior entre aqueles que desfrutam da riqueza ou do poder. (...) De modo mais amplo, na esfera pública, a democratização das maneiras e a desinibição dos costumes avançaram em conjunto. Durante muito tempo, os sociólogos debateram o emburguesamento da classe operária no Ocidente — um termo não muito feliz para os processos em causa. Nos anos noventa, porém, o fenómeno mais marcante foi a geral conduta encanalhada das classes possidentes – por assim dizer: as princesas do estrelato e os presidentes sem espinha dorsal, camas para arrendamento na residência oficial e subornos para anúncios violentos, disneyficação dos protocolos e tarantinização das práticas, os cortejos ávidos da passagem subterrânea nocturna ou a tropa governamental. Em cenários como este reside grande parte do pano de fundo social do pós-moderno.”

 

 

“O modernismo foi fortalecido pela excitação do grande conjunto das novas invenções que transformaram a vida urbana nos primeiros anos do século – o paquete, a rádio, o cinema, o arranha-céus, o automóvel, o avião – e pela concepção abstracta da maquinofactura dinâmica que por detrás delas havia. Estas forneceram as imagens e o contexto a grande parte da arte mais original do período, e deram-lhe um sentido global da mudança rápida. O período de entre as guerras refinou e ampliou as tecnologias fulcrais da descolagem modernista com o advento do hidroavião, o descapotável, o som e a cor no ecrã, o helicóptero, mas não fizeram adições significativas à sua lista. O fascínio e a velocidade tornaram-se, mais do que antes, as notas dominantes no registo perceptivo. A experiência da Segunda Guerra Mundial é que, de repente, alterou toda esta Gestalt. O progresso científico assumiu agora, pela primeira vez, inegavelmente formas ameaçadoras, já que o constante aperfeiçoamento técnico suscitou instrumentos cada vez mais poderosos de destruição e morte, desembocando nas explosões nucleares demonstrativas. Chegara outro tipo infinitamente mais vasto de maquinaria, muito para lá do âmbito da experiência quotidiana, arrojando todavia sobre ela uma ominosa sombra.

Após estes vislumbres do apocalipse, a expansão do pós-guerra alterou a face do mecânico de maneiras mais próximas e totais. A produção bélica, acima de tudo – se é que não apenas – na América, transformou a inovação tecnológica num princípio permanente da produção industrial, mobilizando orçamentos de investigação e equipas de projectistas para a competição militar. Com a reconstrução em tempo de paz e a longa expansão a seguir à guerra, a produção em massa de bens em série integrou a mesma dinâmica. O resultado foi uma versão industrial da parábola do espiritual, enunciada por Weber: à medida que o fluxo do novo se tornou, na sua própria continuidade, uma corrente do mesmo, o carisma da técnica converteu-se em rotina e perdeu os seus poderes magnéticos para a arte. Também esta banalização reflectia em parte a ausência, no meio de uma incessante pletora de melhoramentos, de qualquer grupo decisivo de invenções comparáveis às da era antes da Primeira Guerra Mundial. Durante um período inteiro, de facto, a excitação do moderno decresceu tacitamente, sem grande alteração do seu campo visual original.

O desenvolvimento que tudo modificou foi a televisão. Esta constituiu o primeiro avanço tecnológico de importância universal na época do pós-guerra. Com ela, teve lugar um salto qualitativo no poder das comunicações de massa. A rádio demonstrara já, nos anos entre as guerras e na altura do conflito, ser um instrumento muito mais poderoso de absorção social do que a imprensa: não só em virtude das suas menores exigências de qualificação educacional, ou de maior imediatidade de recepção, mas sobretudo por causa do seu alcance temporal. A emissão ininterrupta suscitava potenciais ouvintes permanentes – públicos cujas horas para despertar e ouvir poderiam, no limite, ser as mesmas. Este efeito só era possível, naturalmente, por causa da dissociação entre a audição e a vista – o que significava que tantas actividades comer, trabalhar, viajar, ócio – pudessem ser levadas a cabo tendo por fundo a rádio. A capacidade que a televisão tinha de controlar a atenção das suas “audiências” era imensamente maior, porque elas não são apenas assim: o olhar é captado antes de o ouvido ser impressionado. O que o novo meio de comunicação trazia era uma combinação de poder nunca sonhado: a contínua disponibilidade da rádio com um equivalente do monopólio perceptual da imprensa — o que excluía outras formas de atenção pelo leitor. A saturação do imaginário é de outra ordem.

Comercializada, pela primeira vez na década de cinquenta, a televisão não alcançou um predomínio maior até ao princípio dos anos sessenta. Mas enquanto o seu ecrã foi apenas a preto e branco, o meio – fossem quais fossem as suas outras vantagens – reteve uma marca de inferioridade, como se ainda fosse tecnicamente um enteado dilatório do cinema. O verdadeiro momento da sua ascendência só aconteceu com a chegada da televisão a cores, que se tornou geral no Ocidente só no princípio da década de setenta, desencadeando uma crise na indústria cinematográfica, cujos efeitos de bilheteira ainda estão conosco. Se existe um ponto de viragem tecnológico do pós-moderno, reside aqui. Se compararmos a posição que ele criara na abertura do século, a diferença pode estabelecer-se de modo muito simples. Outrora, no júbilo ou na apreensão, o modernismo foi seduzido por imagens de maquinaria; agora, o pós-modernismo era a predisposição para uma maquinaria de imagens. Em si mesmos, o aparelho de televisão ou o terminal de computador, com o qual acabará por se misturar, são, de modo peculiar, objectos sem expressão – zonas nulas do interior doméstico ou burocrático, que não são propriamente inábeis como “condutores de energia psíquica”, mas tendem a neutralizá-la. Jameson expôs este facto com uma força característica: “Estas novas máquinas podem distinguir-se dos ícones futuristas mais antigos de dois modos entre si relacionados: são todas elas fontes mais de reprodução do que de “produção”, e já não são sólidos esculturais no espaço. A caixa de um computador dificilmente concretiza ou manifesta as suas energias peculiares do mesmo modo que o feitio de uma asa ou de um cachimbo recurvado”(113).

Por outro lado, resistentes em si à imagem, as máquinas vertem uma torrente de imagens, com cujo volume nenhuma arte pode competir. O ambiente técnico decisivo do pós-moderno é constituído por este “Niágara de verborreia visual”(114). Desde a década de setenta, a difusão de dispositivos de segunda ordem e de posicionamentos em tantas práticas estéticas só é compreensível nos termos desta realidade primária. A última, naturalmente, não é apenas uma onda de imagens, mas também – e acima de tudo — de mensagens. Marinetti ou Tatlin conseguiram extrair uma ideologia a partir do mecânico, mas a maioria das máquinas pouco dizia. Os novos aparelhos, em contrapartida, são máquinas de emoção perpétua, transmitindo discursos que são uma ideologia ubíqua, no sentido forte do termo. A atmosfera intelectual do pós-modernismo, mais como doxa do que como arte, vai buscar muitos dos seus impulsos à pressão desta esfera. De facto, o pós-moderno é também isto: um índice de mudança crítica na relação entre a tecnologia avançada e o imaginário popular.

Uma terceira coordenada da nova situação residia, naturalmente, nas mudanças políticas da época. O início da Guerra Fria, depois de 1947, congelara as fronteiras estratégicas e esfriara todas as esperanças surgidas na Europa. Na América, o movimento operário fora neutralizado e a esquerda perseguida. A estabilização do pós-guerra foi seguida pelo mais rápido período de crescimento internacional, na história do capitalismo. A ordem atlântica dos anos cinquenta, proclamando o fim da ideologia, confiava aparentemente o mundo político dos anos vinte e trinta a um passado remoto. O vento da revolução, em que as vanguardas outrora flutuaram, amainara. Tipicamente, foi neste período, quando a maioria das grandes experiências parecia terminada, que a noção de “modernismo” se tornou corrente como termo global, para demarcar um cânone de obras clássicas, às quais a crítica contemporânea lançava agora um olhar retrospectivo.

Todavia, a aparência externa de um fechamento total dos horizontes políticos no Ocidente foi ainda, durante um período inteiro, enganadora. Na Europa continental, os partidos comunistas de massa na França e na Itália — e na clandestinidade na Espanha, em Portugal e na Grécia — permaneceram irreconciliados com a ordem existente; por moderada que fosse a sua táctica, a sua existência peculiar actuava, por assim dizer, como “um dispositivo mnemónico, garantindo o lugar nas páginas da História” pelo reavivamento de aspirações mais radicais(115). Na URSS, a morte de Estaline desencadeou processos de reforma que, na era de Khrushchev, se moviam aparentemente para um modelo soviético menos repressivo e mais internacionalista – mais inclinado a ajudar do que a frustrar movimentos de insurreição no estrangeiro. No Terceiro Mundo, a descolonização estava a abalar baluartes importantes do domínio imperial, numa série de sublevações revolucionárias – Indochina, Egipto, Argélia, Cuba, Angola – que trouxeram a independência a áreas muito mais vastas. Na China, a burocracia instalada tornou-se o alvo de um movimento orquestrado por Mao, invocando os ideais da comuna de Paris.

Tal era o contexto, com a sua mescla de realidades e ilusões, para o súbito rastilho das energias revolucionárias explosivas entre a juventude instruída dos países capitalistas desenvolvidos – não só na França, na Alemanha ou na Itália, mas também nos Estados Unidos ou no Japão na década de sessenta. A onda da revolução estudantil foi rapidamente, embora de modo mais selectivo, seguida pela agitação laboral – foi sobretudo famosa a greve geral de Maio-Junho de 1968 em França, o Outono Quente da Itália em 1969 e as suas sequelas adiadas, as greves dos mineiros de 1973-74 na Inglaterra. Nesta grande turbulência, ecos do passado europeu (Fourier, Blanqui, Luxemburgo, para não falar do próprio Marx), o actual Terceiro Mundo (Guevara, Ho Chi Minh, Cabral) e o futuro comunista (a “revolução cultural” perspectivada por Lenine ou Mao) cruzaram-se para suscitar um fermento político que já se não via desde a década de vinte. Também nestes anos, elementos vitais da ordem moral tradicional, que regulavam as relações entre as gerações e os sexos, começaram a ruir. Ninguém traçou melhor do que Jameson a parábola desta época, no seu ensaio “Periodizando os Anos Sessenta”(116). De modo inteiramente natural, assistiu-se de novo ao atear, com viveza, das chamas da vanguarda.

Mas a conjuntura revelou-se como crítica. Ao fim de alguns anos, todos os sinais estavam invertidos já que, um a um, os sonhos políticos dos anos sessenta se haviam estiolado. A Revolta de Maio em França foi virtualmente absorvida, sem deixar rasto na estagnação política da década de setenta. A Primavera de Praga – a mais ousada de todas as experiências de reforma no comunismo – foi esmagada pelos exércitos do Pacto de Varsóvia. Na América Latina, formaram-se guerrilhas inspiradas ou orientadas por Cuba. Na China, a Revolução Cultural semeou mais o terror do que a libertação. Na União Soviética, instalou-se o longo declínio brezhnevita. No Ocidente, aqui e além, persistia a agitação operária; mas, na segunda metade da década, a onda de militância refluiu. Callinicos e Eagleton estão correctos ao sublinhar que as fontes imediatas do pós-modernismo residem na experiência do fiasco. Mas estas derrotas eram apenas um preâmbulo de reveses futuros mais decisivos.

Na década de oitenta, uma Direita vitoriosa passou à ofensiva. No mundo anglo-saxónico, os regimes de Reagan e Tatcher, após terem enfraquecido o movimento operário, reduziram a regulamentação e a redistribuição. Alastrando desde a Inglaterra ao continente europeu, a privatização do sector público, os cortes na despesa social e elevados níveis de desemprego suscitaram uma nova norma de desenvolvimento neoliberal, que viria a ser implementado pelos partidos da Esquerda não menos do que pela Direita. No final da década, a missão desempenhada, no pós-guerra, pela socialdemocracia na Europa Ocidental — o Estado-providência baseado no pleno emprego e no provimento universal — fora, em grande parte, abandonada pela Internacional Socialista. Na Europa de Leste e na União Soviética, o comunismo – incapaz de competir economicamente no estrangeiro ou de se democratizar politicamente em casa — foi de todo olvidado. No Terceiro Mundo, os Estados nascidos dos movimentos de libertação nacional viram-se em toda a parte enredados em novas formas de subordinação internacional, incapazes de se subtrair aos constrangimentos dos mercados financeiros globais e das suas instituições de supervisão.

O triunfo universal do capital significa mais do que uma simples derrota para todas aquelas forças outrora contra ele organizadas, embora também seja isso. O seu sentido mais profundo reside no cancelamento de alternativas políticas. A modernidade, como observa Jameson, chega ao fim, quando perde todo e qualquer antónimo. A possibilidade de outras ordens sociais era um horizonte essencial do modernismo. Desvanecido este, entra para o seu lugar algo como o pós-modernismo. Eis o momento tácito de verdade na construção original de Lyotard. Como deveria, então, resumir-se a conjuntura do pós-moderno? Poderia fazer-se uma comparação muito breve com o modernismo: o pós-modernismo brotou da constelação de uma ordem governante déclassé, de uma tecnologia mediatizada e de uma política monocrómica. Mas, naturalmente, também estas coordenadas eram apenas dimensões de uma mais ampla mudança, que sobreveio com a década de setenta.

O capitalismo, enquanto totalidade, ingressou numa nova fase histórica, com o súbito esmorecimento da expansão no pós-guerra. A causa subjacente do longo decrescimento, com as suas taxas de crescimento muito mais baixas e índices mais elevados de desigualdade, foi a intensificação da competição internacional, obrigando inexoravelmente a baixar as taxas de lucro e, deste modo, as fontes de investimento, numa economia global já não divisível em espaços nacionais relativamente protegidos. Foi este o rígido significado da chegada do capitalismo multinacional, assinalada por Jameson. A resposta do sistema à crise suscitou a configuração dos anos oitenta: a diminuição do trabalho em regiões centrais, a subcontratação de fábricas para lugares de salários baixos na periferia, a deslocação do investimento para os serviços e as comunicações, aumento das despesas militares, a subida vertiginosa no peso relativo da especulação financeira, à custa da produção inovadora. Nestes ingredientes da recuperação de Reagan, todos os elementos deteriorados do pós-moderno se acumulam: ostentação desenfreada do nouveau riche, governação com conselheiros ocultos, consenso omnívoro. A euforia desta conjuntura é que gerou, com pontualidade, a primeira iluminação efectiva do pós-modernismo. O ponto de viragem económico da presidência de Reagan ocorreu a 12 de Agosto 1982, quando o mercado de acções americano descolou – o início da largada frenética que pôs fim à recessão de Carter. Três meses mais tarde, Jameson fazia uma comunicação no Whitney.”

(113) Signatures of the Visible, Nova Iorque 1992, p. 61; igualmente Postmodernism, pp. 36-37.

(114) A expressão é de Robert Hughes: Nothing if Non Critical, Nova Iorque 1990, p. 14.

(115) Marxism and Form, p, 273.

(116) The Ideologies of Theory, Vol. 2, pp. 178-208.

 

 

“Na própria origem do termo, como vimos, havia uma bifurcação. Quando De Onís cunhou o termo postmodernismo, contrastou-o com ultramodernismo, como duas reações opostas ao modernismo hispânico, sucedendo uma à outra num breve espaço do tempo. Cinquenta anos mais tarde, o pós-modernismo converteu-se num termo geral, cujas conotações primárias continuam a estar próximas das indicadas por De Onís, mas que também as excedem na direcção do outro polo da sua construção. Para apreender esta complexidade exige-se outro par de prefixos – internos ao pós-modernismo. Talvez o mais apropriado se possa ir buscar a um passado revolucionário. Num famoso discurso, a 19 do Nivoso do Ano II, Robespierre fez uma distinção entre forças “citra-revolucionárias” e “ultra-revolucionárias” na França – isto é, moderadas, que pretendiam levar a República a retroceder das firmes medidas necessárias para a salvar (Danton), e extremistas, que tentavam fazê-la avançar para excessos que, decerto, a arruinariam (Hébert)(126). Aqui, limpa da polémica local, está a díade que, de modo interessante, veicula a polaridade no seio do pós-moderno.

O “citra” pode ver-se em todas aquelas tendências que, rompendo com o modernismo avançado, tenderam a restaurar o ornamental e o mais facilmente disponível; enquanto o “ultra” se pode interpretar como aquelas que foram além do modernismo, na radicalização das suas negações da inteligibilidade imediata ou da gratificação sensorial. Se o contraste entre o popular e o conceptual-mínimo na galeria pós-moderna é arquetípico, a mesma tensão se pode rastrear em todas as outras artes. (...)

Até que ponto se pode dizer algo de comparável acerca do pós-modernismo? O fim da aristocracia, a evanescência da burguesia, a erosão da confiança e da identidade da classe trabalhadora alteraram, de maneira fundamental, os apoios e os alvos da prática artística. Não é que os destinatários alternativos tenham, sem mais, desaparecido. Novos polos de identificação antagónica emergiram no período pós-moderno: género, raça, ecologia, orientação sexual, diversidade regional ou continental. Mas estes, até agora, constituíram um conjunto mais fraco de antagonismos.

Warhol pode olhar-se como um caso muito significativo. Num estudo simpático e engenhoso, Wollen situa a sua “teatralização da vida quotidiana” como uma continuação do projecto vanguardista histórico de levantar as barreiras entre arte e vida, imersas na clandestinidade, onde o seu peso político transitou para a libertação homossexual. Mas há uma contradição insuficiente entre esta herança e o fascínio final de Warhol perante o reaganismo – a fase dos “retratos de sociedade e da TV por cabo”(129). Os instintos subversivos foram, em última análise, vencidos por algo muito mais vasto. A reescrita competente que Wollen fez de toda a trajectória do modernismo realça que, nas suas origens, havia uma circulação entre a cultura vulgar e a alta cultura, entre a periferia e o centro, cujo resultado original foi muito mais ofensivo e exuberante do que a estética funcionalista, mais tarde a ele imposta, em nome de uma modernidade industrial integrada, enamorada do americanismo e do fordismo. Mas, argumenta ele, persistiu sempre uma corrente subterrânea heterodoxa da “diferença, do excesso, da hibridação e da polissemia” – visível, de vez em quando, até em zelotas da pureza como Loos e Le Corbusier – que, com a crise do fordismo, veio de novo à superfície, no jogo decorativo das formas pós-modernas(130).

À primeira vista, isto assemelha-se a uma história com um final feliz. Todavia, noutras passagens da narrativa de Wollen, há indicações suficientes de novas formas de poder empresarial para sugerir um veredicto mais ambíguo. O que se verifica, porém, é que o complexo institucional e tecnológico a emergir da crise do fordismo não adquire, na sua reconstrução, o mesmo peso proporcionado que a própria configuração fordista. Menor é o pormenor, menos coesa será também a conclusão que ele permite. O risco é, aqui, uma afirmação insuficiente da mudança ocorrida na situação das artes, desde a década de setenta, onde as forças em acção na revivescência do ornamental e do híbrido ainda não tinham sido libertadas a partir de baixo. Outra maneira de apresentar as coisas seria perguntar até que ponto o título apelativo de Raiding the Icebox é inteiramente contemporâneo. A frase algo rústica de Warhol inscreve-se naquela “elegia nostálgica” dos anos da adolescência vividos numa idade de ouro do americanismo que, segundo Wollen, definiu a Pop Art como um todo. Que é que poderia ser mais anos cinquenta do que o frigorífico? No meio desse baralhar casual, táctil, no meio dos resquícios do passado e o nosso presente pós-moderno encontra-se uma barreira electrónica. Hoje, percorrer o banco de imagens, navegar na Internet, digitalizar a imagem seriam operações mais actuais – todas elas, necessariamente, mediadas pelos oligopólios do espectáculo.

Esta transformação, a ubiquidade do espectáculo, enquanto princípio organizador da indústria da cultura nas condições contemporâneas, é que agora, acima de tudo, divide o campo artístico. O hiato entre o formal e o social, tipicamente, reside aqui. O citra-moderno pode, virtualmente, definir-se como aquilo que se ajusta ou recorre ao espectacular; o ultra-moderno, como aquilo que procura a sua evitação ou recusa. Não é possível separar o retorno do decorativo da pressão deste meio ambiente. “Vulgar” e “superior” adquirem aqui um sentido diferente: já não denotam a distinção entre popular e elite, mas antes entre o mercado e aqueles que o controlam. Não é que, mais do que no moderno, exista uma correspondência simples entre a relação de uma obra com a linha de demarcação e sua realização. A qualidade estética, como sempre, continua a ser distinta da posição artística. Mas o que se pode dizer, com plena certeza, é que no pós-moderno o citra predomina inevitavelmente sobre o ultra. Pois o mercado cria o seu próprio fornecimento numa escala muito para lá de quaisquer práticas que lhe possam oferecer resistência. O espectáculo é, por definição, o que hipnotiza o máximo social.”

(125) The Return of the Real, p. 206.

(126) Ver F.-A. Aulard, La Société des Jacobins. Recueil de documents, Vol. V, Paris 1895, pp. 601-604. Nenhum historiador duvida que Danton e Hébert se inscrevem também na Revolução.

(129) Raiding the Icebox, pp. 158-161, 208. Para outra leitura atraente do primeiro Wahrol, assinalando um declínio a partir de 1966, ver Thomas Crow, Modern Art in the Common Culture, New Haven 1996, pp. 49-65: um volume que contém porventura a melhor – esteticamente inclusiva, todavia historicamente articulada – sinopse da original dialéctica do modernismo e da cultura de massa nas artes visuais.

(130) Raiding the Icebox, p, 206.

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