Editora: Edições 70
ISBN: 978-972-44-1845-2
Tradução: Artur Morão
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 186
Sinopse: Ver Parte
I
““(...) Mas se tal foi possível, foi também
porque Jameson partilhava algo com Olson, que o distingue da linhagem
intelectual de que descende. Num aspecto crucial, a sua obra afasta-se do teor
geral do marxismo ocidental. Este era uma tradição cujos monumentos mais
importantes estavam todos, de um ou de outro modo, secreta ou abertamente
afectados por um profundo pessimismo histórico(104). Os seus temas
mais originais e poderosos – a destruição da razão de Lukács, a guerra de
posição de Gramsci, o anjo da
catástrofe de Benjamin, o sujeito mutilado de Adorno, a violência da escassez de Sartre, a ubiquidade da ilusão de Althusser – não falavam de um futuro desafogado, mas de um presente implacável.
As tonalidades variavam dentro de um âmbito comum, desde o estoico ao
melancólico, do desencorajante ao apocalíptico. Os escritos de Jameson são de
um timbre diferente. Embora os seus tópicos não tenham, decerto, servido de
consolo à Esquerda, a abordagem que deles faz nunca foi cáustica ou depressiva.
Pelo contrário, a magia do estilo de Jameson consiste em originar o que se
poderia considerar impossível – um lúcido encantamento do mundo.
Os seus temas são tão graves como qualquer
outro na tradição. Mas uma aura de assombro e de prazer – as oportunidades da
felicidade numa época sufocante – nunca está longe da onda da mais ominosa
reflexão. “Comover, instruir, deleitar”. Se uns quantos pensadores subversivos
se aproximaram muito dos objectivos da arte, as razões são, sem dúvida, em
parte contingentes. Jameson consegue evocar a experiência corporal de modo tão
memorável como Sartre, mas a tonalidade emocional é, habitualmente, a oposta —
mais próxima da euforia do que da náusea. Os prazeres do intelecto e da
imaginação não são traduzidos com menos vivacidade do que os dos sentidos. O
entusiasmo com que Jameson consegue dotar os objectos, os conceitos, as ficções
é o mesmo(105). As fontes biográficas deste entusiasmo são uma
coisa, as suas premissas filosóficas, outra. Por detrás deste consentimento no
mundo habita o cunho profundamente hegeliano do marxismo de Jameson, assinalado
por muitos críticos, que o preparou para enfrentar as adversidades da época e
trabalhar no meio das suas confusões, com uma intrépida equanimidade muito
peculiar. Categorias como optimismo ou pessimismo não têm lugar no pensamento
de Hegel. A obra de Jameson não se pode descrever como optimista, no sentido em
que da tradição marxista ocidental podemos dizer que era pessimista. A sua
política foi sempre realista. “A História é o que fere, é o que recusa o desejo
e estabelece limites inexoráveis à práxis individual ou colectiva” – sobretudo
no “fracasso determinado de todas as revoluções que tiveram lugar na história
humana”, até agora(106). Mas os anelos utópicos não são facilmente
reprimidos e podem reacender-se dos modos menos previsíveis. Foi também esta
característica — a persistência subterrânea da vontade de mudança que conferiu
à obra de Jameson a sua força de atracção, para lá do recinto de um Ocidente
fatigado.”
(104) Sobre este aspecto, ver Considerations on Western marxism, pp.
88-92.
(105) O exemplo mais refinado é talvez o seu
ensaio sobre a Passion de Godard in The Geopolitical Aesthetic, Londres
1992, 158-185. O contraste com o tratamento que Adorno faz do mundo
objectivado, mesmo no seu momento mais eloquente, é expressivo. Compare-se,
acerca de um tópico muito similar, a passagem de Minima Moralia (p. 40) – aliás, muito bela – sobre a janela de
caixilhos ou o trinco liso, e o batimento das portas de um automóvel ou do
frigorífico, com o devaneio de Jameson sobre as levitações da garagem
californiana em Signatures of the Visible
(pp. 107-108).
(106) The Political Unconscious,
p. 102.
“Schumpeter afirmou sempre que o capitalismo,
enquanto sistema económico intrinsecamente amoral, impelido pela busca do
lucro, factor de dissolução de todas as barreiras para o cálculo do mercado,
dependia criticamente dos valores e maneiras pré-capitalistas – essencialmente
nobiliários – para o manter como uma ordem social e política. Mas este “alicerce”
aristocrático, como ele o denominou, era tipicamente reforçado por uma
estrutura secundária de apoio, nos meios burgueses confiantes na dignidade
moral da sua vocação peculiar: subjectivamente mais perto dos retratos traçados
por Mann do que por Flaubert. Na época do Plano Marshall e da génese da
Comunidade Europeia, este mundo ainda estava vivo. No campo político, figuras
substanciais como Adenauer, De Gasperi, Monnet consubstanciavam esta persistência
– a sua relação política com Churchill ou De Gaulle, grandes pelo seu passado
senhorial, como que uma pós-imagem de um compacto original que, socialmente, já
não era válida. Mas, como se viu, os dois esteios da antiga estrutura eram mais
interdependentes do que outrora pareciam.
Pois, no espaço de mais vinte anos, também a
burguesia – em sentido estrito, como classe detentora de autoconsciência e de
moral — estava tudo menos extinta. Aqui e além, bolsas de uma posição burguesa
tradicional podem ainda encontrar-se nas cidades provincianas da Europa e,
porventura, em certas regiões da América do Norte, tipicamente preservadas pela
piedade religiosa: redes familiares no Veneto ou nas terras bascas, notáveis
conservadores no Bordelais, partes do Mittelstand alemão, e assim por diante.
Mas, em geral, a burguesia, tal como Baudelaire ou Marx, Ibsen ou Rimbaud, Grosz
ou Brecht e até Sartre ou O’ Hara — a conheceram, é coisa do passado. Em lugar
desse sólido anfiteatro existe um aquário de formas flutuantes, evanescentes – os
projectistas e os gestores, os auditores e porteiros, administradores e
porteiros, administradores e especuladores do capital contemporâneo: funções de
um universo monetário que já não conhece imutabilidades sociais ou identidades
estáveis.
Nem a mobilidade intergeracional aumentou
grandemente, se é que cresceu alguma coisa, nas sociedades mais ricas do mundo
do pós-guerra. Estas permanecem tão objectivamente estratificadas como sempre.
Mas os indicadores culturais e psicológicos de posição sofreram uma evolução
cada vez maior entre aqueles que desfrutam da riqueza ou do poder. (...) De
modo mais amplo, na esfera pública, a democratização das maneiras e a
desinibição dos costumes avançaram em conjunto. Durante muito tempo, os
sociólogos debateram o emburguesamento da classe operária no Ocidente — um termo
não muito feliz para os processos em causa. Nos anos noventa, porém, o fenómeno
mais marcante foi a geral conduta encanalhada das classes possidentes – por
assim dizer: as princesas do estrelato e os presidentes sem espinha dorsal,
camas para arrendamento na residência oficial e subornos para anúncios
violentos, disneyficação dos protocolos e tarantinização das práticas, os
cortejos ávidos da passagem subterrânea nocturna ou a tropa governamental. Em
cenários como este reside grande parte do pano de fundo social do pós-moderno.”
“O modernismo foi fortalecido pela excitação do
grande conjunto das novas invenções que transformaram a vida urbana nos
primeiros anos do século – o paquete, a rádio, o cinema, o arranha-céus, o
automóvel, o avião – e pela concepção abstracta da maquinofactura dinâmica que por
detrás delas havia. Estas forneceram as imagens e o contexto a grande parte da
arte mais original do período, e deram-lhe um sentido global da mudança rápida.
O período de entre as guerras refinou e ampliou as tecnologias fulcrais da
descolagem modernista com o advento do hidroavião, o descapotável, o som e a
cor no ecrã, o helicóptero, mas não fizeram adições significativas à sua lista.
O fascínio e a velocidade tornaram-se, mais do que antes, as notas dominantes
no registo perceptivo. A experiência da Segunda Guerra Mundial é que, de
repente, alterou toda esta Gestalt. O
progresso científico assumiu agora, pela primeira vez, inegavelmente formas
ameaçadoras, já que o constante aperfeiçoamento técnico suscitou instrumentos
cada vez mais poderosos de destruição e morte, desembocando nas explosões
nucleares demonstrativas. Chegara outro tipo infinitamente mais vasto de
maquinaria, muito para lá do âmbito da experiência quotidiana, arrojando
todavia sobre ela uma ominosa sombra.
Após estes vislumbres do apocalipse, a
expansão do pós-guerra alterou a face do mecânico de maneiras mais próximas e
totais. A produção bélica, acima de tudo – se é que não apenas – na América,
transformou a inovação tecnológica num princípio permanente da produção
industrial, mobilizando orçamentos de investigação e equipas de projectistas para
a competição militar. Com a reconstrução em tempo de paz e a longa expansão a
seguir à guerra, a produção em massa de bens em série integrou a mesma
dinâmica. O resultado foi uma versão industrial da parábola do espiritual, enunciada
por Weber: à medida que o fluxo do novo se tornou, na sua própria continuidade,
uma corrente do mesmo, o carisma da técnica converteu-se em rotina e perdeu os seus
poderes magnéticos para a arte. Também esta banalização reflectia em parte a
ausência, no meio de uma incessante pletora de melhoramentos, de qualquer grupo
decisivo de invenções comparáveis às da era antes da Primeira Guerra Mundial.
Durante um período inteiro, de facto, a excitação do moderno decresceu
tacitamente, sem grande alteração do seu campo visual original.
O desenvolvimento que tudo modificou foi a
televisão. Esta constituiu o primeiro avanço tecnológico de importância
universal na época do pós-guerra. Com ela, teve lugar um salto qualitativo no
poder das comunicações de massa. A rádio demonstrara já, nos anos entre as
guerras e na altura do conflito, ser um instrumento muito mais poderoso de
absorção social do que a imprensa: não só em virtude das suas menores
exigências de qualificação educacional, ou de maior imediatidade de recepção,
mas sobretudo por causa do seu alcance temporal. A emissão ininterrupta
suscitava potenciais ouvintes permanentes – públicos cujas horas para despertar
e ouvir poderiam, no limite, ser as mesmas. Este efeito só era possível,
naturalmente, por causa da dissociação entre a audição e a vista – o que
significava que tantas actividades comer, trabalhar, viajar, ócio – pudessem
ser levadas a cabo tendo por fundo a rádio. A capacidade que a televisão tinha de
controlar a atenção das suas “audiências” era imensamente maior, porque elas
não são apenas assim: o olhar é captado antes de o ouvido ser impressionado. O
que o novo meio de comunicação trazia era uma combinação de poder nunca sonhado:
a contínua disponibilidade da rádio com um equivalente do monopólio perceptual
da imprensa — o que excluía outras formas de atenção pelo leitor. A saturação
do imaginário é de outra ordem.
Comercializada, pela primeira vez na década
de cinquenta, a televisão não alcançou um predomínio maior até ao princípio dos
anos sessenta. Mas enquanto o seu ecrã foi apenas a preto e branco, o meio – fossem
quais fossem as suas outras vantagens – reteve uma marca de inferioridade, como
se ainda fosse tecnicamente um enteado dilatório do cinema. O verdadeiro
momento da sua ascendência só aconteceu com a chegada da televisão a cores, que
se tornou geral no Ocidente só no princípio da década de setenta, desencadeando
uma crise na indústria cinematográfica, cujos efeitos de bilheteira ainda estão
conosco. Se existe um ponto de viragem tecnológico do pós-moderno, reside aqui.
Se compararmos a posição que ele criara na abertura do século, a diferença pode
estabelecer-se de modo muito simples. Outrora, no júbilo ou na apreensão, o
modernismo foi seduzido por imagens de maquinaria; agora, o pós-modernismo era
a predisposição para uma maquinaria de imagens. Em si mesmos, o aparelho de
televisão ou o terminal de computador, com o qual acabará por se misturar, são,
de modo peculiar, objectos sem expressão – zonas nulas do interior doméstico ou
burocrático, que não são propriamente inábeis como “condutores de energia
psíquica”, mas tendem a neutralizá-la. Jameson expôs este facto com uma força
característica: “Estas novas máquinas podem distinguir-se dos ícones futuristas
mais antigos de dois modos entre si relacionados: são todas elas fontes mais de
reprodução do que de “produção”, e já não são sólidos esculturais no espaço. A
caixa de um computador dificilmente concretiza ou manifesta as suas energias
peculiares do mesmo modo que o feitio de uma asa ou de um cachimbo recurvado”(113).
Por outro lado, resistentes em si à imagem,
as máquinas vertem uma torrente de imagens, com cujo volume nenhuma arte pode
competir. O ambiente técnico decisivo do pós-moderno é constituído por este “Niágara
de verborreia visual”(114). Desde a década de setenta, a difusão de
dispositivos de segunda ordem e de posicionamentos em tantas práticas estéticas
só é compreensível nos termos desta realidade primária. A última, naturalmente,
não é apenas uma onda de imagens, mas também – e acima de tudo — de mensagens.
Marinetti ou Tatlin conseguiram extrair uma ideologia a partir do mecânico, mas
a maioria das máquinas pouco dizia. Os novos aparelhos, em contrapartida, são máquinas
de emoção perpétua, transmitindo discursos que são uma ideologia ubíqua, no
sentido forte do termo. A atmosfera intelectual do pós-modernismo, mais como
doxa do que como arte, vai buscar muitos dos seus impulsos à pressão desta
esfera. De facto, o pós-moderno é também isto: um índice de mudança crítica na
relação entre a tecnologia avançada e o imaginário popular.
Uma terceira coordenada da nova situação
residia, naturalmente, nas mudanças políticas da época. O início da Guerra Fria,
depois de 1947, congelara as fronteiras estratégicas e esfriara todas as
esperanças surgidas na Europa. Na América, o movimento operário fora
neutralizado e a esquerda perseguida. A estabilização do pós-guerra foi seguida
pelo mais rápido período de crescimento internacional, na história do capitalismo.
A ordem atlântica dos anos cinquenta, proclamando o fim da ideologia, confiava
aparentemente o mundo político dos anos vinte e trinta a um passado remoto. O
vento da revolução, em que as vanguardas outrora flutuaram, amainara.
Tipicamente, foi neste período, quando a maioria das grandes experiências
parecia terminada, que a noção de “modernismo” se tornou corrente como termo
global, para demarcar um cânone de obras clássicas, às quais a crítica contemporânea
lançava agora um olhar retrospectivo.
Todavia, a aparência externa de um fechamento
total dos horizontes políticos no Ocidente foi ainda, durante um período
inteiro, enganadora. Na Europa continental, os partidos comunistas de massa na
França e na Itália — e na clandestinidade na Espanha, em Portugal e na Grécia —
permaneceram irreconciliados com a ordem existente; por moderada que fosse a
sua táctica, a sua existência peculiar actuava, por assim dizer, como “um
dispositivo mnemónico, garantindo o lugar nas páginas da História” pelo
reavivamento de aspirações mais radicais(115). Na URSS, a morte de
Estaline desencadeou processos de reforma que, na era de Khrushchev, se moviam
aparentemente para um modelo soviético menos repressivo e mais
internacionalista – mais inclinado a ajudar do que a frustrar movimentos de
insurreição no estrangeiro. No Terceiro Mundo, a descolonização estava a abalar
baluartes importantes do domínio imperial, numa série de sublevações
revolucionárias – Indochina, Egipto, Argélia, Cuba, Angola – que trouxeram a
independência a áreas muito mais vastas. Na China, a burocracia instalada
tornou-se o alvo de um movimento orquestrado por Mao, invocando os ideais da comuna
de Paris.
Tal era o contexto, com a sua mescla de
realidades e ilusões, para o súbito rastilho das energias revolucionárias explosivas
entre a juventude instruída dos países capitalistas desenvolvidos – não só na
França, na Alemanha ou na Itália, mas também nos Estados Unidos ou no Japão na
década de sessenta. A onda da revolução estudantil foi rapidamente, embora de
modo mais selectivo, seguida pela agitação laboral – foi sobretudo famosa a
greve geral de Maio-Junho de 1968 em França, o Outono Quente da Itália em 1969
e as suas sequelas adiadas, as greves dos mineiros de 1973-74 na Inglaterra.
Nesta grande turbulência, ecos do passado europeu (Fourier, Blanqui,
Luxemburgo, para não falar do próprio Marx), o actual Terceiro Mundo (Guevara,
Ho Chi Minh, Cabral) e o futuro comunista (a “revolução cultural” perspectivada
por Lenine ou Mao) cruzaram-se para suscitar um fermento político que já se não
via desde a década de vinte. Também nestes anos, elementos vitais da ordem
moral tradicional, que regulavam as relações entre as gerações e os sexos,
começaram a ruir. Ninguém traçou melhor do que Jameson a parábola desta época,
no seu ensaio “Periodizando os Anos Sessenta”(116). De modo
inteiramente natural, assistiu-se de novo ao atear, com viveza, das chamas da
vanguarda.
Mas a conjuntura revelou-se como crítica. Ao
fim de alguns anos, todos os sinais estavam invertidos já que, um a um, os
sonhos políticos dos anos sessenta se haviam estiolado. A Revolta de Maio em
França foi virtualmente absorvida, sem deixar rasto na estagnação política da
década de setenta. A Primavera de Praga – a mais ousada de todas as
experiências de reforma no comunismo – foi esmagada pelos exércitos do Pacto de
Varsóvia. Na América Latina, formaram-se guerrilhas inspiradas ou orientadas
por Cuba. Na China, a Revolução Cultural semeou mais o terror do que a
libertação. Na União Soviética, instalou-se o longo declínio brezhnevita. No
Ocidente, aqui e além, persistia a agitação operária; mas, na segunda metade da
década, a onda de militância refluiu. Callinicos e Eagleton estão correctos ao
sublinhar que as fontes imediatas do pós-modernismo residem na experiência do fiasco.
Mas estas derrotas eram apenas um preâmbulo de reveses futuros mais decisivos.
Na década de oitenta, uma Direita vitoriosa
passou à ofensiva. No mundo anglo-saxónico, os regimes de Reagan e Tatcher,
após terem enfraquecido o movimento operário, reduziram a regulamentação e a
redistribuição. Alastrando desde a Inglaterra ao continente europeu, a
privatização do sector público, os cortes na despesa social e elevados níveis de
desemprego suscitaram uma nova norma de desenvolvimento neoliberal, que viria a
ser implementado pelos partidos da Esquerda não menos do que pela Direita. No
final da década, a missão desempenhada, no pós-guerra, pela socialdemocracia
na Europa Ocidental — o Estado-providência baseado no pleno emprego e no
provimento universal — fora, em grande parte, abandonada pela Internacional
Socialista. Na Europa de Leste e na União Soviética, o comunismo – incapaz de
competir economicamente no estrangeiro ou de se democratizar politicamente em
casa — foi de todo olvidado. No Terceiro Mundo, os Estados nascidos dos
movimentos de libertação nacional viram-se em toda a parte enredados em novas
formas de subordinação internacional, incapazes de se subtrair aos
constrangimentos dos mercados financeiros globais e das suas instituições de
supervisão.
O triunfo universal do capital significa mais
do que uma simples derrota para todas aquelas forças outrora contra ele organizadas,
embora também seja isso. O seu sentido mais profundo reside no cancelamento de
alternativas políticas. A modernidade, como observa Jameson, chega ao fim,
quando perde todo e qualquer antónimo. A possibilidade de outras ordens sociais
era um horizonte essencial do modernismo. Desvanecido este, entra para o seu
lugar algo como o pós-modernismo. Eis o momento tácito de verdade na construção
original de Lyotard. Como deveria, então, resumir-se a conjuntura do
pós-moderno? Poderia fazer-se uma comparação muito breve com o modernismo: o
pós-modernismo brotou da constelação de uma ordem governante déclassé, de uma tecnologia mediatizada
e de uma política monocrómica. Mas, naturalmente, também estas coordenadas eram
apenas dimensões de uma mais ampla mudança, que sobreveio com a década de
setenta.
O capitalismo, enquanto totalidade, ingressou
numa nova fase histórica, com o súbito esmorecimento da expansão no pós-guerra.
A causa subjacente do longo decrescimento, com as suas taxas de crescimento
muito mais baixas e índices mais elevados de desigualdade, foi a intensificação
da competição internacional, obrigando inexoravelmente a baixar as taxas de
lucro e, deste modo, as fontes de investimento, numa economia global já não
divisível em espaços nacionais relativamente protegidos. Foi este o rígido
significado da chegada do capitalismo multinacional, assinalada por Jameson. A
resposta do sistema à crise suscitou a configuração dos anos oitenta: a
diminuição do trabalho em regiões centrais, a subcontratação de fábricas para
lugares de salários baixos na periferia, a deslocação do investimento para os
serviços e as comunicações, aumento das despesas militares, a subida vertiginosa
no peso relativo da especulação financeira, à custa da produção inovadora.
Nestes ingredientes da recuperação de Reagan, todos os elementos deteriorados
do pós-moderno se acumulam: ostentação desenfreada do nouveau riche, governação com conselheiros ocultos, consenso omnívoro.
A euforia desta conjuntura é que gerou, com pontualidade, a primeira iluminação
efectiva do pós-modernismo. O ponto de viragem económico da presidência de
Reagan ocorreu a 12 de Agosto 1982, quando o mercado de acções americano
descolou – o início da largada frenética que pôs fim à recessão de Carter. Três
meses mais tarde, Jameson fazia uma comunicação no Whitney.”
(113) Signatures
of the Visible, Nova Iorque 1992, p. 61; igualmente Postmodernism, pp. 36-37.
(114) A expressão é de Robert Hughes: Nothing if Non Critical, Nova Iorque
1990, p. 14.
(115) Marxism
and Form, p, 273.
(116) The Ideologies of Theory,
Vol. 2, pp. 178-208.
“Na própria origem do termo, como vimos,
havia uma bifurcação. Quando De Onís cunhou o termo postmodernismo, contrastou-o com ultramodernismo, como duas reações
opostas ao modernismo hispânico, sucedendo uma à outra num breve espaço do
tempo. Cinquenta anos mais tarde, o pós-modernismo converteu-se num termo
geral, cujas conotações primárias continuam a estar próximas das indicadas por
De Onís, mas que também as excedem na direcção do outro polo da sua construção.
Para apreender esta complexidade exige-se outro par de prefixos – internos ao
pós-modernismo. Talvez o mais apropriado se possa ir buscar a um passado
revolucionário. Num famoso discurso, a 19 do Nivoso do Ano II, Robespierre fez
uma distinção entre forças “citra-revolucionárias” e “ultra-revolucionárias” na
França – isto é, moderadas, que pretendiam levar a República a retroceder das
firmes medidas necessárias para a salvar (Danton), e extremistas, que tentavam
fazê-la avançar para excessos que, decerto, a arruinariam (Hébert)(126).
Aqui, limpa da polémica local, está a díade que, de modo interessante, veicula
a polaridade no seio do pós-moderno.
O “citra” pode ver-se em todas aquelas
tendências que, rompendo com o modernismo avançado, tenderam a restaurar o
ornamental e o mais facilmente disponível; enquanto o “ultra” se pode
interpretar como aquelas que foram além do modernismo, na radicalização das
suas negações da inteligibilidade imediata ou da gratificação sensorial. Se o
contraste entre o popular e o conceptual-mínimo na galeria pós-moderna é
arquetípico, a mesma tensão se pode rastrear em todas as outras artes. (...)
Até que ponto se pode dizer algo de
comparável acerca do pós-modernismo? O fim da aristocracia, a evanescência da
burguesia, a erosão da confiança e da identidade da classe trabalhadora
alteraram, de maneira fundamental, os apoios e os alvos da prática artística.
Não é que os destinatários alternativos tenham, sem mais, desaparecido. Novos
polos de identificação antagónica emergiram no período pós-moderno: género,
raça, ecologia, orientação sexual, diversidade regional ou continental. Mas
estes, até agora, constituíram um conjunto mais fraco de antagonismos.
Warhol pode olhar-se como um caso muito
significativo. Num estudo simpático e engenhoso, Wollen situa a sua “teatralização
da vida quotidiana” como uma continuação do projecto vanguardista histórico de
levantar as barreiras entre arte e vida, imersas na clandestinidade, onde o seu
peso político transitou para a libertação homossexual. Mas há uma contradição
insuficiente entre esta herança e o fascínio final de Warhol perante o reaganismo
– a fase dos “retratos de sociedade e da TV por cabo”(129). Os
instintos subversivos foram, em última análise, vencidos por algo muito mais vasto.
A reescrita competente que Wollen fez de toda a trajectória do modernismo
realça que, nas suas origens, havia uma circulação entre a cultura vulgar e a
alta cultura, entre a periferia e o centro, cujo resultado original foi muito mais
ofensivo e exuberante do que a estética funcionalista, mais tarde a ele
imposta, em nome de uma modernidade industrial integrada, enamorada do
americanismo e do fordismo. Mas, argumenta ele, persistiu sempre uma corrente subterrânea
heterodoxa da “diferença, do excesso, da hibridação e da polissemia” – visível,
de vez em quando, até em zelotas da pureza como Loos e Le Corbusier – que, com a
crise do fordismo, veio de novo à superfície, no jogo decorativo das formas
pós-modernas(130).
À primeira vista, isto assemelha-se a uma
história com um final feliz. Todavia, noutras passagens da narrativa de Wollen,
há indicações suficientes de novas formas de poder empresarial para sugerir um
veredicto mais ambíguo. O que se verifica, porém, é que o complexo
institucional e tecnológico a emergir da crise do fordismo não adquire, na sua
reconstrução, o mesmo peso proporcionado que a própria configuração fordista.
Menor é o pormenor, menos coesa será também a conclusão que ele permite. O
risco é, aqui, uma afirmação insuficiente da mudança ocorrida na situação das
artes, desde a década de setenta, onde as forças em acção na revivescência do
ornamental e do híbrido ainda não tinham sido libertadas a partir de baixo.
Outra maneira de apresentar as coisas seria perguntar até que ponto o título
apelativo de Raiding the Icebox é
inteiramente contemporâneo. A frase algo rústica de Warhol inscreve-se naquela “elegia
nostálgica” dos anos da adolescência vividos numa idade de ouro do americanismo
que, segundo Wollen, definiu a Pop Art como um todo. Que é que poderia ser mais
anos cinquenta do que o frigorífico? No meio desse baralhar casual, táctil, no
meio dos resquícios do passado e o nosso presente pós-moderno encontra-se uma barreira
electrónica. Hoje, percorrer o banco de imagens, navegar na Internet,
digitalizar a imagem seriam operações mais actuais – todas elas,
necessariamente, mediadas pelos oligopólios do espectáculo.
Esta transformação, a ubiquidade do
espectáculo, enquanto princípio organizador da indústria da cultura nas
condições contemporâneas, é que agora, acima de tudo, divide o campo artístico.
O hiato entre o formal e o social, tipicamente, reside aqui. O citra-moderno
pode, virtualmente, definir-se como aquilo que se ajusta ou recorre ao
espectacular; o ultra-moderno, como aquilo que procura a sua evitação ou recusa.
Não é possível separar o retorno do decorativo da pressão deste meio ambiente. “Vulgar”
e “superior” adquirem aqui um sentido diferente: já não denotam a distinção entre
popular e elite, mas antes entre o mercado e aqueles que o controlam. Não é
que, mais do que no moderno, exista uma correspondência simples entre a relação
de uma obra com a linha de demarcação e sua realização. A qualidade estética,
como sempre, continua a ser distinta da posição artística. Mas o que se pode
dizer, com plena certeza, é que no pós-moderno o citra predomina
inevitavelmente sobre o ultra. Pois o mercado cria o seu próprio fornecimento
numa escala muito para lá de quaisquer práticas que lhe possam oferecer
resistência. O espectáculo é, por definição, o que hipnotiza o máximo social.”
(125) The Return of the Real,
p. 206.
(126) Ver F.-A. Aulard, La Société des Jacobins. Recueil de documents, Vol. V, Paris 1895,
pp. 601-604. Nenhum historiador duvida que Danton e Hébert se inscrevem também
na Revolução.
(129) Raiding
the Icebox, pp. 158-161, 208. Para outra leitura atraente do primeiro
Wahrol, assinalando um declínio a partir de 1966, ver Thomas Crow, Modern
Art in the Common Culture, New Haven 1996, pp. 49-65:
um volume que contém porventura a melhor – esteticamente inclusiva, todavia
historicamente articulada – sinopse da original dialéctica do modernismo e da
cultura de massa nas artes visuais.
(130) Raiding
the Icebox, p, 206.
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