Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-273-1200-4
Tradução: Gilson Cesar Cardoso de Souza
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 224
Sinopse: Obra Aberta, A Estrutura Ausente, As Formas
do Conteúdo, Apocalípticos e Integrados,
Tratado Geral de Semiótica, O Signo de Três, Os Limites da Interpretação, Lector
in Fabula, O Super-Homem de Massa e seus
romances, ou seja, a reflexão crítica e a criação literária do filósofo, ensaísta
e teórico da comunicação de massa, do comunicólogo, semioticista, crítico, do romancista
– tudo tornou o nome de Umberto Eco referência obrigatória nos debates e na produção
cultural de nosso tempo. A eles somou-se, produto de sua experiência como professor
universitário e orientador de pesquisas, Como
se Faz uma Tese, cuja circulação em nossa tradução brasileira é um fato consagrado
no meio universitário. Nesta obra, ora publicada em edição revista, o autor extrai
e destila os elementos de sua vivência nos estudos acadêmicos em que relevam os
ensinamentos, as sugestões práticas “espertas”, no duplo sentido da palavra, do
observador arguto e do redator tarimbado na proposta e confecção de problemas que
se apresentam ao pesquisador às voltas com um projeto de trabalho ou tese acadêmica.
“Nas universidades desse tipo, a tese é sempre
de PhD, tese de doutorado, e constitui um trabalho original de pesquisa, com o qual
o candidato deve demonstrar ser um estudioso capaz de fazer avançar a disciplina
a que se dedica. E, com efeito, ela não é elaborada, como entre nós, aos 22 anos,
mas bem mais tarde, às vezes mesmo aos quarenta ou cinquenta anos (embora, é claro,
existam PhDs bastante jovens). Por que tanto tempo? Porque se trata efetivamente
de pesquisa original, onde é necessário conhecer a fundo o quanto foi dito sobre
o mesmo argumento pelos demais estudiosos. Sobretudo, é necessário “descobrir” algo
que ainda não foi dito por eles. Quando se fala em “descoberta”, em especial no
campo humanista, não cogitamos de invenções revolucionárias como a descoberta da
fissão do átomo, a teoria da relatividade ou uma vacina contra o câncer: podem ser
descobertas mais modestas, considerando-se resultado “científico” até mesmo uma
maneira nova de ler e entender um texto clássico, a identificação de um manuscrito
que lança nova luz sobre a biografia de um autor, uma reorganização e releitura
de estudos precedentes que conduzem à maturação e sistematização das ideias que
se encontravam dispersas em outros textos. Em qualquer caso, o estudioso deve produzir
um trabalho que, teoricamente, os outros estudiosos do ramo não deveriam ignorar,
porquanto diz algo de novo sobre o assunto (cf. 2.6.1)”
“Mas há também uma segunda maneira, que pode ajudar
o diretor de um organismo de turismo local em sua profissão mesmo que tenha elaborado
uma tese com o título: “De Fermo e Lucia a
os Noivos”. Com efeito, elaborar uma tese significa: (1) identificar um tema
preciso; (2) recolher documentação sobre ele; (3) pôr em ordem estes documentos;
(4) reexaminar em primeira mão o tema à luz da documentação recolhida; (5) dar forma
orgânica a todas as reflexões precedentes; (6) empenhar-se para que o leitor compreenda
o que se quis dizer e possa, se for o caso, recorrer à mesma documentação a fim
de retomar o tema por conta própria.
Fazer uma tese significa, pois, aprender a pôr
ordem nas próprias ideias e ordenar os dados: é uma experiência de trabalho metódico;
quer dizer, construir um “objeto” que, como princípio, possa também servir aos outros.
Assim, o tema da tese não importa tanto quanto
a experiência de trabalho que ela comporta. Quem soube documentar-se bem sobre
a dupla redação do romance de Manzoni, saberá depois recolher com método os dados
que lhe servirão no organismo turístico. O autor destas linhas já publicou uma dezena
de livros sobre vários assuntos, mas se logrou executar os últimos nove é porque
aproveitou sobretudo a experiência do primeiro, que era uma reelaboração de sua
tese de formatura. Sem aquele primeiro trabalho, não teria conseguido fazer os
demais. E, bem ou mal, estes refletem ainda a maneira com que aquele foi elaborado.
Com o tempo, tornamo-nos mais maduros, vamos conhecendo mais coisas, porém o modo
como trabalhamos o que sabemos sempre dependerá da maneira com que estudamos no
início muitas coisas que ignorávamos.
Enfim, elaborar uma tese é como exercitar a
memória. Temo-la boa quando velhos se a exercitarmos desde a meninice. E não importa
se a exercitamos decorando os nomes dos jogadores dos times da Divisão Especial,
os poemas de Carducci ou a série de imperadores romanos de Augusto e Rômulo Augusto.
Por certo, se o caso for aprimorar a memória, é melhor aprender coisas que nos interessam
ou nos sirvam: mas, por vezes, mesmo aprender coisas inúteis constitui bom exercício.
Analogamente, embora seja melhor fazer uma tese sobre um tema que nos agrade, ele
é secundário, com respeito ao método de trabalho e à experiência daí advinda.
Ainda mais: trabalhando-se bem, não existe tema
que seja verdadeiramente estúpido. Conclusões úteis podem ser extraídas de um tema
aparentemente remoto ou periférico. A tese de Marx não foi sobre economia política,
mas sobre dois filósofos gregos, Epicuro e Demócrito. E isso não foi um acidente
de trabalho. Marx foi talvez capaz de
analisar os problemas da história e da economia com a energia teórica que conhecemos exatamente porque aprendeu a pensar
sobre os seus filósofos gregos.
Diante de tantos estudantes que se iniciam com
uma tese ambiciosíssima sobre Marx e acabam num escritório das grandes empresas
capitalistas, é preciso rever os conceitos que se têm sobre utilidade, atualidade
e empenho dos temas de tese.”
“Pode acontecer que o candidato faça a tese sobre
um tema imposto pelo professor. Tais coisas devem ser evitadas.
Não estamos nos referindo, evidentemente, aos
casos em que o candidato busca o conselho do mestre. Aludimos antes ou àqueles em
que a culpa é do professor (ver 2.7., “Como evitar que o relator se aproveite de
você”), ou àqueles em que a culpa cabe ao candidato, privado de interesse e disposto
a fazer mal qualquer coisa para se ver livre dela o mais depressa possível.
Ocupar-nos-emos daquelas situações em que se presume
a existência de um candidato movido por certos interesses e um professor disposto
a interpretar suas exigências.
Nestes casos, as regras para a escolha do tema
são quatro:
1) Que o
tema responda aos interesses do candidato (ligado tanto ao tipo de exame quanto
às suas leituras, sua atitude política, cultural ou religiosa).
2) Que as
fontes de consulta sejam acessíveis, isto é, estejam ao alcance material do
candidato;
3) Que as
fontes de consulta sejam manejáveis, ou seja, estejam ao alcance cultural do
candidato;
4) Que o
quadro metodológico da pesquisa esteja ao alcance da experiência do candidato.
Assim expostas, estas quatro regras parecem banais
e resumíveis na norma “quem quer fazer uma tese deve fazer uma tese que esteja à
altura de fazer”. E, de fato, é exatamente assim, e sabe-se de teses dramaticamente
abortadas justo porque não se soube colocar o problema inicial em termos tão
óbvios.1”
1. 1. Poderemos acrescentar
uma quinta regra: que o professor seja adequado.
Com efeito, há candidatos que, por razões de simpatia ou preguiça, querem fazer
com o docente da matéria A uma tese que em verdade é da matéria B. O docente aceita
(por simpatia, vaidade ou desatenção) e depois não se vê à altura de seguir a tese.
“A primeira tentação do estudante é fazer uma tese que fale de muitas coisas.
Interessado por literatura, seu primeiro impulso é escrever algo como A Literatura
Hoje. Tendo de restringir o tema, escolherá A Literatura Italiana do Pós-guerra
aos Anos Sessenta.
Teses desse tipo são perigosíssimas. Estudiosos
bem mais velhos se sentem abalados diante de tais temas. Para quem tem vinte anos,
o desafio é impossível. Ou elaborará uma enfadonha resenha de nomes e opiniões correntes
ou dará à sua obra um corte original e se verá acusado de imperdoáveis omissões.
(...)
Com uma tese panorâmica sobre a literatura de
quatro décadas, o estudante se expõe a toda sorte de contestações possíveis. Poderá
o relator, ou um simples membro da banca, resistir à tentação de alardear seu conhecimento
de um autor menor não citado pelo estudante? Bastará que os membros da banca, consultando
o índice, descubram três omissões para que o estudante se torne alvo de uma rajada
de acusações que farão sua tese parecer um conglomerado de coisas dispersas. Se,
ao contrário, ele tiver trabalhado seriamente sobre um tema bastante preciso, estará
às voltas com um material ignorado pela maior parte dos juízes. (...)
Passando às faculdades científicas, damos um conselho
aplicável a todas as matérias: O tema Geologia, por exemplo, é muito amplo.
Vulcanologia como ramo daquela disciplina, é também bastante abrangente.
Os Vulcões do México poderiam ser tratados num exercício bom, porém um tanto
superficial. Limitando-se ainda mais o assunto, teríamos um estudo mais valioso:
A História do Popocatepetl (que um dos companheiros de Cortez deve ter escalado
em 1519 e que só teve uma erupção violenta em 1702). Tema mais restrito, que diz
respeito a um menor número de anos, seria O Nascimento e a Morte Aparente
do Paricutin (de 20 de fevereiro de 1943 a 4 de março de 1952)1.
Aconselharia o último tema. Mas desde que, a esse
ponto, o candidato diga tudo o que for possível sobre o maldito vulcão. Há algum
tempo, procurou-me um estudante que queria fazer sua tese sobre O Símbolo no
Pensamento Contemporâneo. Era uma tese impossível. Eu, pelo menos, não sabia
o que poderia ser “símbolo”: esse termo muda de significado conforme o autor, e
às vezes, em dois autores diferentes, pode querer dizer duas coisas absolutamente
opostas. Não se esqueça que, por símbolo, os lógicos formais ou os matemáticos
entendem expressões privadas de significado, e ocupar um lugar definido, uma
função precisa, num dado cálculo formalizado (como os a e b ou x
e y das fórmulas algébricas); enquanto outros autores entendem uma forma
cheia de significados ambíguos, como ocorre nos sonhos, que podem referir-se a uma
árvore, a um órgão sexual, ao desejo de prosperar etc. Como, pois, fazer uma tese
com semelhante título? Seria preciso analisar todas as acepções do símbolo na cultura
contemporânea, fazer uma lista que pusesse em evidência as afinidades e discrepâncias
dessas acepções, esmiuçar se sob as discrepâncias não existe um conceito unitário
fundamental, recorrente em cada autor e cada teoria, e se as diferenças não tornam
incompatíveis entre si as teorias em questão. Pois bem, nenhum filósofo, linguista
ou psicanalista contemporâneo conseguiu ainda fazer uma obra dessa envergadura de
modo satisfatório. Como poderá se sair melhor um estudante que mal começa a terçar
armas e que, por precoce que seja, não tem mais de seis ou sete anos de leitura
adulta nas costas? Poderia ele, ainda, fazer um discurso parcialmente inteligente,
mas estaríamos de novo no mesmo caso da literatura italiana de Contini. Ou
poderia propor uma teoria pessoal do símbolo, deixando de lado tudo quanto haviam
dito os demais autores: no parágrafo 2.2, todavia, diremos quão discutível é essa
escolha. Conversamos com o estudante em questão: seria o caso de elaborar uma tese
sobre o símbolo em Freud e Jung, abandonando todas as outras acepções e confrontando unicamente as
destes dois autores. Mas descobrimos que o estudante não sabia alemão (e sobre o
problema do conhecimento de línguas estrangeiras voltaremos a falar no parágrafo
2.5). Decidiu-se então que ele se limitaria ao termo O Conceito de Símbolo em
Peirce, Frye e Jung. A tese examinaria as diferenças entre três conceitos homônimos
em outros tantos autores, um filósofo, um crítico e um psicólogo; mostraria como,
em muitas análises sobre estes três autores, são cometidos inúmeros equívocos, pois
se atribui a um o significado usado por outro. Só no final, a título de conclusão
hipotética, o candidato procuraria extrair um resultado para mostrar se e quais
analogias existiam entre aqueles três conceitos homônimos, aludindo também a outros
autores de seu conhecimento, dos quais, por explícita limitação do tema, não queria
e não podia ocupar-se. Ninguém poderia dizer-lhe que não levara em conta o autor
k, porque a tese era sobre x, y
e z, nem que citara o autor j apenas
em tradução, pois se tratara de simples menção, para concluir, ao passo que a tese
pretendia estudar amplamente e no original unicamente os três autores citados no
título.
Eis aí como uma tese panorâmica, sem se tornar
rigorosamente monográfica, se reduzia a um meio termo, aceitável por todos.
Fique claro, ainda, que o termo “monográfico”
pode ter uma acepção mais vasta que a usada aqui. Uma monografia é a abordagem de
um só tema, como tal se opondo a uma “história de”, a um manual, a uma enciclopédia.
Daí ser também monográfico um tema como O Tema do “Mundo às Avessas” nos Escritores
Medievais. Muitos são os escritores analisados, mas apenas do ponto de vista
de um tema específico (isto é, da hipótese imaginária proposta a título de exemplo,
de paradoxo ou de fábula, de que os peixes voam, os pássaros nadam etc.). Se bem
executado, esse trabalho poderia dar uma ótima monografia. Mas, para tanto, é
preciso levar em conta todos os escritores que trataram o tema, em especial os menores,
aqueles de quem ninguém se lembra. Assim, tal tese se classificaria como monognírico-panorâmica
e seria dificílima: exigiria uma infinidade de leituras. Caso se pretendesse fazê-la
de qualquer modo, seria então forçoso restringir o campo: O Tema do “Mundo às
Avessas” nos Poetas Carolíngios. Um campo restringe-se quando se sabe o que
conservar e o que escoimar.
Claro está que é muito mais excitante fazer a
tese panorâmica, pois que antes de tudo parece aborrecido ocupar-se durante um,
dois ou três anos sempre do mesmo autor. Mas deve-se ter em mente que fazer uma
tese rigorosamente monográfica não significa perder de vista o panorama. Fazer uma
tese sobre a narrativa de Fenoglio significa ter presente o realismo italiano, não
deixar de ler Pavese ou Vittorini, bem como analisar escritores americanos lidos
e traduzidos por Fenoglio. Só explicamos e entendemos um autor quando o inserimos
num panorama. Mas uma coisa é usar um panorama como pano de fundo, e outra elaborar
um quadro panorâmico. Uma coisa é pintar o retrato de um cavalheiro sobre o fundo
de um campo cortado por um regato, e outra pintar campos, vales e regatos. Tem de
mudar a técnica, tem de mudar, em termos fotográficos, o foco. Partindo-se de um
único autor, o panorama pode augurar-se um tanto desfocado, incompleto ou de segunda
mão.
Em suma, recordemos este princípio fundamental:
quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha. Uma
tese monográfica é preferível a uma tese panorâmica. É melhor que a tese se assemelhe
a um ensaio do que a uma história ou a uma enciclopédia.”
1. C. W. Cooller e E. J. Robins. The Term
Paper: A manual·and Model. Stanford University Press. 4.ª ed., 1967, p. 3.
“2.2
TESE HISTÓRICA OU TESE TEÓRICA
Essa alternativa só vale para algumas
matérias. Com efeito, em disciplinas como história da matemática, filologia
românica ou história da literatura alemã, uma tese só pode ser histórica. Em
outras, como composição arquitetônica, física do reator nuclear ou anatomia
comparada, fazem-se comumente teses teóricas ou experimentais. Mas há outras
disciplinas, como filosofia teorética, sociologia, antropologia cultural,
estética, filosofia do direito, pedagogia e direito internacional, onde é
possível fazer os dois tipos de tese.
Uma tese teórica é aquela que se propõe
atacar um problema abstrato, que pode já ter sido ou não objeto de outras
reflexões: natureza da vontade humana, o conceito de liberdade, a noção de
papel social, a existência de Deus, o código genético. Enumerados assim, estes
temas fazem imediatamente sorrir, pois se pensa naqueles tipos de abordagem a
que Gramsci chamava “breves acenos ao universo”. Insignes pensadores, contudo,
se debruçaram sobre esses temas. Mas, afora raras exceções, fizeram-no como
conclusão de um trabalho de meditação de várias décadas.
Nas mãos de um estudante com experiência
científica necessariamente limitada, tais temas podem dar origem a duas
soluções. A primeira (que é ainda a menos trágica) é fazer a tese definida (no
parágrafo anterior) como “panorâmica”. É tratado o conceito de papel social,
mas em diversos autores. E, a este respeito, valem as observações já feitas. A
segunda solução preocupa mais, porque o candidato presume poder resolver, no âmbito
de umas poucas páginas, o problema de Deus e da definição de liberdade. Minha
experiência me diz que os estudantes que escolhem temas do gênero acabam por
fazer teses brevíssimas, destituídas de apreciável organização interna, mais
próximas de um poema lírico que de um estudo científico. E, geralmente, quando
se objeta ao candidato que o discurso está demasiado personalizado, genérico,
informal, privado de verificações historiográficas e citações, ele responde que
não foi compreendido, que sua tese é muito mais inteligente que outros exercícios
de banal compilação. Isto pode ser verdade; contudo, ainda uma vez, a experiência
ensina que quase sempre essa resposta provém de um candidato com ideias
confusas, sem humildade científica nem capacidade de comunicação. O que se deve
entender por humildade científica (que não é uma virtude dos fracos, mas, ao
contrário, uma virtude das pessoas orgulhosas) será dito no parágrafo 4.2.4. É
certo que não se pode excluir que o candidato seja um gênio que, com apenas 22
anos, tenha compreendido tudo, e é evidente que estou admitindo essa hipótese
sem qualquer sombra de ironia. Sabe-se que quando um gênio desses surge na face
da Terra a humanidade não toma consciência dele de uma hora para outra; sua
obra é lida e digerida durante alguns anos antes que se descubra a sua
grandeza. Como pretender que uma banca ocupada em examinar não uma, mas
inúmeras teses, se aperceba imediatamente da magnitude desse corredor
solitário?
Mas suponhamos a hipótese de o estudante
estar cônscio de ter compreendido um problema capital: dado que nada provém do
nada, ele terá elaborado seus pensamentos sob a influência de outros autores.
Transforma então sua tese teórica em tese historiográfica, isto é, deixa de
lado o problema do ser, a noção de liberdade ou o conceito de ação social, para
desenvolver lemas como O Problema do Ser no
Primeiro Heidegger, A Noção de
Liberdade em Kant ou O Conceito de
Ação Social em Parsons. Se tiver ideias originais, estas virão à tona
também no confronto com as ideias do autor tratado: muita coisa nova se pode
dizer sobre a liberdade estudando-se a maneira como outro a abordou. E, se
quiser, aquilo que deveria ser a tese teorética do candidato se tornará o
capítulo final de sua tese historiográfica. O resultado será que todos poderão
controlar o que ele disse, pois os conceitos (referidos a um pensador
precedente) que põe em jogo serão publicamente controláveis. É difícil mover-se
no vácuo e instituir um discurso ab
initio. Cumpre encontrar um ponto de apoio, principalmente para problemas
tão vagos como a noção de ser ou de liberdade. Mesmo para o gênio, e sobretudo
para ele, nada há de humilhante em partir de outro autor, pois isto não
significa fetichizá-lo, adorá-lo, ou reproduzir sem crítica as suas afirmações;
pode-se partir de um autor para demonstrar seus erros e limitações. A questão é
ter um ponto de apoio. Os medievais, com seu exagerado respeito pela autoridade
dos autores antigos, diziam que os modernos, embora ao seu lado fossem “anões”,
apoiando-se neles tornavam-se “anões em ombros de gigantes”, e, deste modo,
viam mais além do que seus predecessores.
Todas essas observações não são válidas para
matérias aplicadas e experimentais. Numa tese de psicologia a alternativa não é
entre O Problema da Percepção em Piaget e
O Problema da Percepção (ainda que algum
imprudente quisesse propor um tema tão genericamente perigoso). A alternativa
para a tese historiográfica é, antes, a tese experimental: A Percepção das Cores em um Grupo de Crianças Deficientes. Aqui, o discurso
muda, pois há o direito de enfrentar experimentalmente uma questão a fim de obter
um método de pesquisa e trabalhar em condições razoáveis de laboratório, com a
devida assistência. Mas um estudioso experimental imbuído de coragem não começa
a controlar a reação de seus temas sem antes haver executado pelo menos um
trabalho panorâmico (exame de estudos análogos já feitos), porquanto de outra
forma se arriscaria a descobrir a América, e demonstrar algo já amplamente
demonstrado ou a aplicar métodos que já se revelaram falíveis (embora possa constituir
objeto de pesquisa o novo controle de um método que ainda não tenha dado
resultados satisfatórios). Portanto, uma tese de caráter experimental não pode
ser feita com recursos inteiramente próprios, nem o método pode ser inventado.
Mais uma vez se deve partir do princípio de que, se for um anão inteligente, é
melhor subir aos ombros de um gigante qualquer, mesmo se for de altura modesta,
ou mesmo de outro anão. Haverá sempre ocasião de caminhar por si mesmo, mais
tarde.”
“Todavia, não é raro o caso do estudante que,
aconselhado pelo professor de literatura italiana a fazer sua tese sobre um
petrarquiano quinhentista ou sobre um árcade, prefira temas como Pavese,
Bassani, Sanguineti. Muitas vezes essa escolha nasce de uma autêntica vocação e
é difícil contestá-la. Outras provêm da falsa impressão de que um autor
contemporâneo é mais fácil e agradável.
Digamos desde já que o autor contemporâneo é sempre mais difícil. É certo que geralmente
existe uma bibliografia mais reduzida, os textos são de mais fácil acesso, a
primeira fase da documentação pode ser consultada à beira-mar com um bom
romance nas mãos, em vez de fechado numa biblioteca. Mas ou se faz uma tese
remendada, simplesmente repetindo o que disseram outros críticos e então não há
mais nada a dizer (e, se quisermos, podemos fazer uma tese ainda mais remendada
sobre um petrarquiano quinhentista), ou se faz algo de novo, e então
apercebemo-nos de que sobre o autor antigo existem pelo menos esquemas interpretativos
seguros aos quais podemos nos referir, enquanto para o autor moderno as opiniões
ainda são vagas e contraditórias, a nossa capacidade crítica é falseada pela
falta de perspectiva e tudo se torna extremamente difícil.
Não há dúvida que o autor antigo impõe uma
leitura mais fatigante, uma pesquisa bibliográfica mais atenta, mas os títulos
são menos dispersos e existem quadros bibliográficos já completos. Contudo, se
a tese for entendida como a ocasião para aprender a elaborar uma pesquisa, o
autor antigo coloca maiores obstáculos.
Se, além disso, o estudante inclinar-se para
a crítica contemporânea, pode a tese constituir-se na derradeira oportunidade
de um confronto com a literatura do passado, para exercitar o próprio gosto e a
capacidade de leitura. Eis por que não se deve deixar escapar semelhante
oportunidade. Muitos dos grandes escritores contemporâneos, mesmo de vanguarda,
jamais fizeram teses sobre Montale ou Pound, mas sobre Dante ou Foscolo. Não
há, decerto, regras precisas, e um valente pesquisador pode levar a cabo uma
análise histórica ou estilística sobre um autor contemporâneo com a mesma
acuidade e exatidão filológica exigidas para um autor antigo.”
“Digamo-lo desde já: não mais de três anos e não menos de seis meses. Não mais de três anos
porque, se nesse prazo não se conseguiu circunscrever o tema e encontrar a
documentação necessária, uma destas três coisas terá acontecido:
1) escolhemos a tese errada, superior às
nossas forças;
2) somos do tipo incontentável, que deseja
dizer tudo, e continuamos a martelar a tese por vinte anos, ao passo que um
estudioso hábil deve ser capaz de ater-se a certos limites, embora modestos, e
dentro deles produzir algo de definitivo;
3) fomos vítimas da “neurose da tese”;
deixamo-la de lado, retomamo-la, sentimo-nos irrealizados, entramos num estado
de depressão, valemo-nos da tese como álibi para muitas covardias, não nos
formamos nunca.”
“Preciso escolher uma tese que não implique o
conhecimento de línguas que não sei ou que não estou disposto a aprender.
Muitas vezes escolhe-se uma tese ignorando os riscos que se vai correr.
Examinemos alguns elementos imprescindíveis:
1) Não se pode fazer uma tese sobre um autor
estrangeiro se este não for lido no original. A coisa parece evidente ao se
tratar de um poeta, mas muitos supõem que para uma tese sobre Kant, Freud ou Adam Smith tal precaução
é desnecessária. Mas não o é, e por duas razões: nem sempre se traduziram todas as obras daquele autor, e às vezes
o desconhecimento de um escrito menor compromete a compreensão de seu
pensamento ou de sua formação intelectual; em seguida, a maior parte da
bibliografia sobre determinado autor está escrita em sua própria língua, e, se
ele é traduzido, o mesmo pode não suceder a seus intérpretes; por fim, nem
sempre as traduções fazem justiça ao pensamento do autor, e fazer uma tese
significa exatamente redescobrir esse pensamento original lá onde as traduções
e divulgações de todo livro o falsearam; fazer uma tese significa ir além das fórmulas
popularizadas pelos manuais escolares, do tipo “Foscolo é clássico e Leopardi é
romântico”, ou “Platão é idealista e Aristóteles é
realista”, ou ainda “Pascal defende o coração e Descartes a
razão”.
2) Não se pode fazer uma tese sobre determinado
assunto se as obras mais importantes a seu respeito foram escritas numa língua
que ignoramos. Um estudante que soubesse bem o alemão e nada do francês não
estaria à altura, hoje, de discorrer sobre Nietzsche,
que, não obstante, escreveu em alemão, e isso porque, de dez anos para cá,
algumas das mais interessantes revalorizações de Nietzsche foram compostas em
língua francesa. O mesmo vale para Freud: seria difícil reler
o mestre vienense sem levar em conta o trabalho dos revisionistas americanos e
dos estruturalistas franceses.
3) Não se pode fazer uma tese sobre um autor ou
sobre um tema lendo apenas as obras escritas nas línguas que conhecemos.
(...)
Conclui-se,
pois, que antes de estabelecer o tema de uma tese é preciso dar uma olhada na
bibliografia existente e avaliar se não existem dificuldades linguísticas
significativas. (...)
Em todo caso, não se sabendo outras línguas e
na impossibilidade de aproveitar a preciosa ocasião da tese para aprendê-las, a
solução mais razoável é trabalhar sobre um tema especificamente pátrio, que não
remeta a literaturas estrangeiras, bastando o recurso a uns poucos textos já
traduzidos.”
“Um
estudo é científico quando responde aos seguintes requisitos:
1) O
estudo debruça-se sobre um objeto
reconhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos
outros. O termo “objeto” não tem necessariamente um significado físico. A
raiz quadrada também é um objeto, embora ninguém jamais a tenha visto. A classe
social é um objeto de estudo, ainda que algumas pessoas possam objetar que só
se conhecem indivíduos ou médias estatísticas e não classes propriamente ditas.
Mas, nesse sentido, nem a classe de todos os números inteiros superiores a
3725, de que um matemático pode muito bem se ocupar, teria realidade física.
Definir o objeto significa então definir as condições sob as quais podemos
falar, com base em certas regras que estabelecemos ou que outros estabeleceram
antes de nós. (...)
2)
O estudo deve dizer do objeto algo que
ainda não foi dito ou rever sob uma óptica diferente o que já se disse. Um
trabalho matematicamente exato visando demonstrar com métodos tradicionais o
teorema de Pitágoras não seria científico, uma vez que nada acrescentaria ao que
já sabemos. Tratar-se-ia, no máximo, de um bom trabalho de divulgação, como um manual
que ensinasse a construir uma casinha de cachorro usando madeira, pregos,
serrote e martelo. Como já dissemos em 1.1., mesmo uma tese de compilação pode ser cientificamente útil
na medida em que o compilador reuniu e relacionou de modo orgânico as opiniões
já expressas por outros sobre o mesmo tema. Da mesma maneira, um manual de
instruções sobre como fazer uma casinha de cachorro não constitui trabalho
científico, mas uma obra que confronte e discuta todos os métodos conhecidos para
construir o dito objeto já apresenta algumas modestas pretensões à cientificidade.
Apenas
uma coisa cumpre ter presente: um trabalho de compilação só tem utilidade
científica se ainda não existir nada de parecido naquele campo. Havendo já
obras comparativas sobre sistemas de construção de casinhas de cachorro, fazer
outra igual é pura perda de tempo, quando não plágio.
3)
O estudo deve ser útil aos demais. Um
artigo que apresente nova descoberta sobre o comportamento das partículas
elementares é útil. Um artigo que narre como foi descoberta uma carta inédita
de Leopardi e a transcreva na íntegra é útil. Um trabalho é científico se
(observados os requisitos 1 e 2) acrescentar algo ao que a comunidade já sabia,
e se todos os futuros trabalhos sobre o mesmo tema tiverem que levá-lo em
conta, ao menos em teoria. Naturalmente, a importância científica se mede pelo
grau de indispensabilidade que a contribuição estabelece. Há contribuições após
as quais os estudiosos, se não as tiverem em conta, nada poderão dizer de positivo.
E há outras que os estudiosos fariam bem em considerar, mas, se não o fizerem,
o mundo não se acabará. (...)
4) O estudo deve fornecer elementos para a
verificação e a contestação das hipóteses apresentadas e, portanto, para
uma continuidade pública. Esse é um requisito fundamental. Posso tentar
demonstrar que existem centauros no Peloponeso, mas para tanto devo: (a)
fornecer provas (pelo menos um osso da cauda, como se disse); (b) contar como
procedi para achar o fragmento; (c) informar como se deve fazer para achar
outros; (d) dizer, se possível, que tipo de osso (ou outro fragmento qualquer)
mandaria ao espaço minha hipótese, se fosse encontrado.
Desse
modo, não só forneci as provas para minha hipótese, mas procedi de maneira a
permitir que outros continuem a pesquisar, para contestá-la ou confirmá-la.
O
mesmo sucede com qualquer outro tema.”
“Já
dissemos que a experiência de pesquisa imposta por uma tese serve sempre para
nossa vida futura (profissional ou política, tanto faz), e não tanto pelo tema
escolhido quanto pela preparação que isso impõe, pela escola de rigor, pela capacidade
de organização do material que ela requer.”
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