Editora: Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-649-9
Opinião: ★★☆☆☆
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Páginas: 392
Sinopse: Ver Parte
I
“Se alguém tentasse fornecer uma explicação puramente estruturalista para
a fragmentação da esquerda brasileira, e os muitos desafios para mobilizar a
classe trabalhadora sob um projeto revolucionário, elementos importantes que
serão destacados ao longo desses capítulos seriam perdidos: politização e
despolitização, a constituição de multidões e movimentos sociais, os desafios
da construção de bases, a variedade de interesses partidários em contextos
institucionais ou não, melancolia política, dificuldade de síntese,
pós-política e ultrapolítica, a mobilização de afetos negativos e o desafio da
vontade coletiva.
Afinal,
tudo isso equivale à verdadeira práxis da esquerda e ao que deveria ser uma práxis
revolucionária do povo.
A
conquista da libertação depende de uma revolução, porque ela não consiste
simplesmente na negação do sistema atual, mas na negação da negação – uma
abolição no sentido hegeliano de suprassunção (aufheben), o que requer a
restauração do trabalho humano, das relações humanas e interação humana com a
natureza para a sua essência livre que fora pretendida ontologicamente.
Isso
é, evidentemente, contrário às reivindicações populistas de esquerda de mudar o
mundo sem tomar o poder ou, também, transições democráticas não
revolucionárias.45 Embora os aspectos que levam a uma
revolução possam surgir espontaneamente na luta diária contra a alienação, o
processo revolucionário requer organização e percepção teórica da segunda
negação.
Para
Kolakowski, isso é um conhecimento utópico.46 Já para
Marcuse, é a orientação da consciência prática pela consciência teórica porque
a primeira está frequentemente em contradição com o objetivo de uma existência
humana livre.47 E para Gramsci, trata-se da
unificação da dupla consciência e do aproveitamento da vontade coletiva.
Assim,
se o processo revolucionário requer o trabalho de um partido político,
intelectuais orgânicos ou o acompanhamento de impulsos proletários pelos
oprimidos, não há desacordo sobre a natureza dialética da relação entre teoria
e prática no desenvolvimento de uma prática revolucionária. A negação da
negação que gera a libertação do trabalho mercantilizado, da alienação e da
reificação48 é inerentemente dialética e pressupõe
uma atividade “prática-crítica”.49
A
práxis, entendida aqui não
simplesmente como prática dentro da dialética, mas como a unidade
dialética da teoria e prática no movimento da negação, é uma pré-condição
para o livre exercício das potencialidades humanas.
É
dentro da dialética que encontramos a negação da negação, que são dois estágios
diferentes do mesmo processo histórico encabeçado pela humanidade em direção à
liberdade e à restauração daquilo pautado como essência humana por Marx: emancipada
e criativa.50”
45 John Holloway, Change the World Without
Taking Power, vol. 0 (London: Pluto Press, 2002); Ernesto Laclau &
Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical
Democratic Politics, 2nd ed. (New York: Verso, 2001).
46 Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 70–71; 80.
47 Marcuse, One-Dimensional Man, 48; 100.
48 Reificar significa tornar algo abstrato em
algo mais concreto. Também é frequentemente usado no sentido de coisificar. No
debate empregado aqui, dentro do contexto marxista, a reificação consiste na
retirada dos elementos abstratos e subjetivos dos agentes políticos e da
política; ou seja, a reificação desempodera o agente e o coisifica de acordo
com o propósito da ordem hegemônica.
50 Marcuse, Reason and
Revolution: Hegel and the Rise of Social Theory; Marx, Economic
and Philosophic Manuscripts of 1844.
“O poder do capitalismo vem de sua capacidade de impedir o acesso a uma
visão histórica da existência e, por consequência, da agência da criação e da
subjetividade que diferenciam os humanos.
A
cognição da própria humanidade e as potencialidades históricas que se seguem
são um passo para se tornar consciente de como alguém é oprimido.
Enquanto
a utopia surge de nosso desejo de nos reafirmarmos como seres humanos, seu
desenvolvimento ocorre na luta contra a opressão, pois quanto mais as pessoas
sofrem, mais se tornam ansiosas por escapar, mesmo que a compreensão de como
fazê-lo possa ser afetada pela unidimensionalidade e pela despolitização.
Essa
compreensão não ocorrerá se a utopia retiver a qualidade estática de um sonho
esperançoso e enquanto seu conhecimento estiver separado de nossa atividade
prática e realidade.
Para
a utopia evoluir da maneira como argumenta Kolakowski, realizando o trabalho de
progresso social entre momentos de ilusão e desilusão,60 ela deve
ser a força motivadora por trás de uma práxis, cujo movimento dialético
contínuo entre o que é imaginado e experimentado, trazendo à utopia o status
de uma objetividade.
Isso
é diferente do tipo de pensamento utópico que Kolakowski criticou anos depois,
cuja visão da sociedade socialista, em termos de fraternidade e igualdade,
negava os processos de diferenciação e discordância que transparecem nas
relações humanas em favor de um conformismo agradável.61
Antes,
a utopia deve ser concebida como um desejo consciente de liberdade que
inclui dar passos em direção à sua realização,62 mesmo que o
resultado final seja continuamente desafiado por mudanças na interação humana.
Isso
quer dizer que, com o comunismo, a sociedade não passa a ser perfeita: enquanto
alguns problemas são resolvidos por meio de sínteses, outros surgem. O
movimento dialético é contínuo e característico da realidade social.
É
importante salientar que a ação para a realização é também uma questão de
consciência por causa da lógica dialética da libertação, onde “os escravos
devem estar livres para sua libertação antes que possam se tornar livres, e que
o fim deve ser operativo nos meios para alcançá-lo”.63
Tal
luta não pode ser feita por meio da imputação de um tipo específico de
conhecimento pseudorrevolucionário nas massas, em tentativas de simplesmente
dirigi-las, ou por consistentemente reafirmar que a revolução acontecerá por
ser a progressão natural da história.
Para
Freire, o confronto da opressão deve ocorrer em um contexto pedagógico. Ele
afirma que: “Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia
humanizadora, em que a liderança revolucionária, em vez de se sobrepor aos
oprimidos e continuar a mantê-los como quase ‘coisas’, com eles estabelece uma
relação dialógica permanente.”64
Essa
consciência é o princípio móvel de uma pedagogia política voltada para a
superação da despolitização e para a reprodução do status quo que ocorre
pelo senso comum, porque existe como algo que não é, e que está fora dele.65
No
entanto, a consciência por si só significaria não mais do que uma
transcendência idealista momentânea que não pode, por sua própria natureza, ser
revolucionária e transformar a concretude da opressão.
Marx
explica essa necessidade afirmando que, no caso das ideias comunistas,
elas podem ajudar a superar a ideia da propriedade privada, mas a atualidade
exige atividade comunista para substituir a propriedade privada real –
mesmo que a última enfrente desafios históricos, pois “o desenvolvimento que já
reconhecemos no pensamento como autotranscedente envolverá, na realidade,
um processo severo e prolongado”.66 Enquanto o
pensamento/consciência fornece os impulsos críticos na pedagogia
política/crítica como conscientização, a transformação da realidade se
alimenta da consciência crítica na práxis.”
60
Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 151.
61
Barbara Epstein, “The Rise, Decline and Possible Revival of Socialist
Humanism,” in 10th Annual Historical Materialism Conference (London,
2013), 36.
62
Georg Lukács, History
and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics (Cambridge,
Mass: mit Press, 1971), 315.
63
Marcuse, One-Dimensional Man, 41. Marcuse primeiro usa o termo
“pensamento” em 1941 (Razão e Revolução) e depois “consciência” em 1964
(O Homem Unidimensional) ao combiná-los com “prática” e “ação” em
contextos similares. Embora pudessem ser considerados conceitos diferentes de
acordo com o paradigma empregado, acredito que Marcuse os empregou quase como
sinônimos em suas contribuições.
64
Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 49th print (Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2005), 63.
65
Freire, 63.
66
Marx em Fromm, Marx. Concept Man, 149, ênfase no original.
“Isso tem muito a ver com a estratégia política da esquerda. Lukács
afirma que a organização para a revolução já é uma forma de mediação na relação
dialética entre teoria e prática.73 A
educação do trabalhador deveria ter um propósito, o objetivo de se tornar uma
autoeducação em um marco libertador. O papel dos intelectuais é aproveitar sua
liberdade de pensamento para promover o desenvolvimento da consciência, pois é
sua responsabilidade levar a consciência teórica da classe trabalhadora a uma
postura crítica.74
Também
é importante que os intelectuais sigam os impulsos dos trabalhadores, pois sua
experiência com a exploração os torna os mais adequados para informar a direção
da mudança social.75 Isso sugere uma
relação solidária em que a liderança revolucionária pensa com a classe,
e não em torno da classe ou sobre a classe.76
Essa
solidariedade não apenas torna a relação entre a esquerda organizada – a
liderança e a base – mas também embaça essas categorias de modo que não se
percebe que se está em um quadro separado do outro.
No
geral, uma perspectiva pedagógica da organização política se opõe à relação
doutrinária por “detentores do conhecimento”, e estabelece o diálogo entre
atividade intelectual e atividade prática, mesmo que seja importante ter
indivíduos cuja função primária na sociedade seja intelectual ou organizacional.
Ela encarna a prática precisamente porque renuncia à separação entre teoria e
prática que sempre manteria a classe trabalhadora em posição de subserviência,
seja para o capitalista, seja para o líder partidário.
Práxis radical, práxis revolucionária
Minha
tarefa de promover o conceito de uma crise de práxis me leva a extrair algumas
diferenças entre três outras noções que são comumente mencionadas à esquerda,
embora de modo geral confuso. Isso se refere ao que é radical, ao que é
contra-hegemônico e ao que é revolucionário.
As
três noções pertencem à esquerda e à atividade da esquerda e, portanto, tendem
a ser usadas como sinônimos ou muito semelhantes entre si. Eu prefiro tratá-las
como um continuum determinado (e interrompido) de acordo com a natureza
organizativa e sua direção política comum (como embutida em um horizonte ou
utopia).
A
revolução é a marca de um tipo específico de utopia, então o que é
revolucionário requer também um tipo particular de esforço que é guiado pela
necessidade revolucionária.
O
que é contra-hegemônico77 é importante porque
pode causar danos efetivos contra o status quo; no entanto, somente a
contra-hegemonia não torna uma política radical. Vista como enfrentamentos
pontuais, o contra-hegemônico é facilmente desmontado na renovação hegemônica
da ordem, é colocado fora da necessidade revolucionária, ou seja, foram do continuum.
O
risco de reversão enfrentado devido à renovação hegemônica é mais forte (e
contrarrevolucionário).”
73 Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics, 299.
74 Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 171.
75 Dunayevskaya, Marxism and Freedom: From
1776 until Today, 287.
76 Freire, Pedagogia Do Oprimido, 145; 151.
77 O contra-hegemônico conecta o
radical e o revolucionário. Apesar de Gramsci ter sido o principal responsável
pela elaboração do conceito de hegemonia, ele não propôs a existência de uma
contra-hegemonia em seus próprios escritos. Acredito que isso se deva aos
limites temporais da contra-hegemonia, quando a hegemonia já está em constante
renovação. A resposta à hegemonia, portanto, deve ser uma nova hegemonia. A
contra-hegemonia, então, desempenha um papel temporário ao enfatizar a
importância da primeira negação e está bem estabelecida em contextos de
resistência.
“O sujeito da esquerda é a classe trabalhadora. O quanto uma organização
de esquerda incorpora e assume esse sujeito na centralidade de sua práxis vai
determinar sua posição como esquerda moderada ou radical.
E
por classe trabalhadora é importante qualificar que parto da premissa de que as
relações capitalistas de exploração, na apropriação da função humana básica do
trabalho em estados de alienação e reificação, informam também várias outras
formas de opressão – as quais estão embutidas nas relações de gênero, raciais e
coloniais, dentre outras, e que elas ainda tomam formas distintas e até mesmo
independentes em seu desenvolvimento.
É
isso que permite que uma mulher burguesa seja vítima de machismo, mas
estabelece que o combate ao patriarcado, tal como opera hoje, só é realmente
efetivo a partir do desmantelamento da estrutura capitalista que ajuda na
sustentação das estruturas patriarcais.82
Trata-se
de superar teorias que concebem sistemas separados, e fazê-lo principalmente
por compreender a análise de Marx, desde, principalmente, os Manuscritos
Econômico-Filosóficos de Paris, do capitalismo como desumanização e do
comunismo como a superação dessa lógica.”
“Falar em multidões é admitir que Junho de 2013 foi competitivo e tanto a
esquerda quanto a direita, em suas várias expressões, estavam em disputa para
capturá-lo e (des)politizá-lo para seus próprios projetos.
Essa
diversidade nos momentos de multidão, especialmente os aspectos despolitizados,
indica como Junho trouxe mais do que uma simples crise de representação à nossa
atenção.
A
visão inicial de Junho como uma espécie de “primavera brasileira” energizou a
esquerda radical, mas apenas momentaneamente. O marco inicial da crise de
representação exposta ali foi uma rejeição a partidos e posições ideológicas,
mesmo que as demandas por serviços públicos de qualidade fossem mais
naturalmente associadas com a esquerda.
Alguns
se referem ao fenômeno como antipolítica, mas eu não enxergo como uma rejeição
da política em si, até porque os debates políticos aqueceram desde então.
A
pós-política, modo de despolitização que descola a realidade material dos
projetos e conflitos políticos da sociedade sob a ideia de que é tudo uma
questão de gestão e de ética predominou por um tempo.
Como
a política, em seu sentido maior e gramsciano e orientado à emancipação,
deveria ser o domínio da esquerda, não é surpresa que a direita tenha se
beneficiado do desenvolvimento pós-político de Junho.
O
enfoque moralista sobre a corrupção é um exemplo desse fenômeno, já que foi
instrumentalizado de maneira ufanista e antiesquerda.”
“Uma esquerda fragmentada é mais vulnerável aos efeitos da renovação
hegemônica, o que no Brasil se expressou parcialmente, em Junho e no período
pós-Junho, através da violência estatal, da despolitização por meio de apelos à
ordem e à moralidade patriótica e pela criminalização ativa dos interesses
políticos.”
“Proponho que Junho seja visto como uma ruptura da inércia da política
promovida pela democracia representativa liberal, e também aceita por ela, e
petrificada até então, mas que não apresentou a resposta à crise e nem se
libertou do processo de despolitização que ainda está em curso.
Ao
contrário, Junho escancarou a crise de práxis com o acirramento de múltiplas
crises. O período que vivemos no Brasil pode ser caracterizado como um
interregno da crise de autoridade hegemônica. Neste interregno, encontramos
sintomas mórbidos de todos os tipos, sendo a crise de práxis a soma dos
sintomas da esquerda.”
“Uma crise de práxis está inevitavelmente ligada à crise de representação
destacada em Junho de 2013. A esquerda foi incapaz de conceber, com sucesso,
uma “vontade coletiva” orientada para um horizonte comum devido à fragmentação
das multidões e à sua própria fragmentação.
O
cenário de despolitização, pós-político e ultrapolítico, deu o tom da
complicada relação das multidões com as contradições da realidade material
brasileira.
Havia
ali um governo de centro-esquerda, liderado por um partido da esquerda
moderada, criticado pela esquerda radical e atacado pelas diversas facetas da
direita.
Esse
governo se sustentou não através da promoção de poder popular, mas fazendo o
jogo da democracia liberal e negociando com a elite brasileira com políticas
conciliatórias e redenção aos limites da visão da governabilidade.
Havia
desmobilização e havia despolitização. Por mais que seja fácil responsabilizar
apenas um autor ou outro, a análise de uma crise de práxis nos força a olhar
para o todo.
A
crise de práxis mostra o conflito criado pelo fracasso da esquerda em unificar
a consciência teórica e prática não só da classe trabalhadora em si, mas também
dos militantes e líderes cujas funções organizadoras consistem em construir
consciência política.”
“A fragmentação da esquerda brasileira, sob disputas envoltas na
desmobilização e na despolitização de seu sujeito histórico, contribui para a
crise de autoridade (ou crise hegemônica) em que nos encontramos.
Todavia,
neste interregno, a fragmentação também aparece como manifestação de uma crise
de práxis da esquerda que engloba vários dos sintomas mórbidos que nos
esmorecem.
Os
sintomas mórbidos pertencem à análise do interregno feita por Antonio Gramsci.
A frase de Gramsci que abre este livro* está mais famosa a cada dia devido à
sua aplicabilidade para analisar crises de autoridade sob o capitalismo em todo
o mundo.
A
frase não nasce em isolamento, mas parte da análise de Gramsci sobre os
períodos de crise hegemônica e os sintomas mórbidos que sucedem. Daí vem o
conceito de interregno.
O
interregno significa, literalmente, o intervalo entre a morte de um rei e a
ascensão do novo monarca.
Ele
se estabelecia de acordo com a ordem e costumes de cada tempo e lugar: na maior
parte da Idade Média, na vigência da sucessão hereditária, o interregno marcava
o período no qual um rei falecia e seu primogênito ainda não possuía a idade
mínima para reinar; já na origem do termo, em Roma, onde os monarcas eram
nomeados, isso representava o intervalo entre a morte do rei e a eleição do seu
sucessor.
Para
a análise de Gramsci, a característica central diante das diferentes
circunstâncias de um interregno seria a instalação de uma crise de autoridade
durante o regime interino.
Não
somente o novo ainda não estava pronto para “nascer” como a instabilidade
gerada abria campo para tentativas de golpes internos e externos, guerras,
insurreições e rebeliões. O período do interregno é marcado principalmente pela
perda de consentimento.
Aqui
se faz necessário retomar Gramsci em sua contribuição mais básica, vista
anteriormente: é possível governar com a coerção, sendo isso uma dominação, mas
a hegemonia depende do consentimento, que é mais duradouro, estável e se
reproduz com facilidade no senso comum.
Quando
há perda de consentimento, há crise de hegemonia. Isso torna a analogia do
interregno palpável e bastante aplicável no cenário brasileiro.”
*:
“A crise consiste precisamente no
fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste
interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.”
“É a esse difícil cenário que a esquerda fragmentada brasileira necessita
responder. A crise de práxis é um impedimento devido ao seu peso de crise que
evidencia os sintomas mórbidos da esquerda: responsabilidade na despolitização
e na desmobilização, dificuldade em realizar autocrítica (como práxis),
fragmentação em números e projetos na lógica da cisão, o sectarismo na esquerda
radical, mas também a cooptação e a hegemonização acrítica da esquerda
moderada, o desafio de mobilizar uma democracia liberal em chamas para uma
democracia ampliada, melancolia, dentre outros.”
Não
nego a existência de um golpe em 2016, mas sou contrária às teses de que a conjuntura
sob a qual vivemos seria o golpe.
Argumento
que a conjuntura é de interregno, e que o golpe é apenas mais um sintoma
mórbido dessa conjuntura.
O
problema da tese de que estamos sob golpe é que confunde um atentado ao regime
político vigente com o estado do regime no momento em que se segue.
Em
2016, quando o golpe parlamentar retira Dilma Rousseff da presidência, a
conjuntura não muda. Alguns aspectos continuam os mesmos, outros se aprofundam.
As
mudanças sociais negativas promovidas pela agenda de Temer têm impacto
socioeconômico e material, mas também alteraram a perspectiva política.
Temer
não possuía legitimidade representativa para executar medidas de austeridade e,
mesmo assim, o fez. Isso demonstrou sinais de que a burguesia brasileira estava
disposta a tomar a institucionalidade de qualquer forma, para garantir seus
próprios ganhos.
Ameaças
democráticas não seriam problema, já que a principal preocupação da burguesia é
sua autorreprodução no curto prazo. Esse cenário se explica por meio de
Florestan Fernandes, o qual afirmava que nossa burguesia era vítima de sua
própria situação de classe justamente por não ter projeto nacional, apenas uma
visão imediatista de sua classe.141
Essa
característica se revela, portanto, na escolha do golpe parlamentar como na
opção por Jair Bolsonaro como candidato. Apesar de sua imprevisibilidade e
autoritarismo, Bolsonaro trazia duas vantagens para uma elite dependente como a
brasileira: trocava apoio pela submissão aos liberais em sua campanha, e traria
maior garantia de vitória por fazer parte de uma tendência global de viradas à
extrema-direita (em geral associada a métodos de despolitização e
desinformação, elaborados tais quais os vistos na campanha presidencial de
Donald Trump nos Estados Unidos).
Ao
contrário do que alguns membros da esquerda argumentaram após o impeachment,
não passamos a viver sob a “ditadura Temer”. A retirada de uma presidenta
eleita por meio de uma alegação técnica orquestrada pela direita no Brasil, com
o intuito de garantir ganhos para a burguesia através de um plano econômico de
austeridade e retirada de direitos, é grave e se enquadra, sim, como um
atentado a garantias da democracia liberal.
Mas
nem todo golpe resulta em uma ditadura. O que vimos, em termos de direitos
sociais sendo retirados, causou enorme dano, com destaque para a reforma
trabalhista e o congelamento de investimentos públicos por vinte anos.
Todavia,
os direitos políticos atenuados na Era Temer por força do Legislativo e do
Executivo já estavam em andamento sob o governo Dilma: seja através do
Congresso conservador eleito em 2014, seja com a criminalização de movimentos
sociais pela Lei Antiterrorismo sancionada pela própria presidenta antes de ser
removida do cargo.
Não
se trata de uma ditadura, mas da inauguração de um acelerado desmonte da
configuração democrática, como uma “desdemocratização” em curso.
Politicamente,
o golpe significou mais uma fratura na estrutura da democracia liberal
brasileira. A forma como pôde ser articulado foi possibilitada não somente pela
crise de representação democrática revelada em Junho, mas também pela
fragilidade inicial da democracia liberal (restrita, também na análise de
Florestan) estabelecida no Brasil a partir da década de 1980.
O
que se enxerga como uma deterioração das garantias e instituições democráticas
no Brasil não pode ser considerado um projeto iniciado no golpe, tampouco em
Junho de 2013, e sim um sintoma mórbido facilitado pela própria fraqueza da
ideia e da materialidade da democracia no Brasil.”
“Na Linguística, fala-se de significante, significado e signo – este
último formado pelos dois primeiros. O significante seria a forma, ou o
recipiente, que, ao carregar o significado, o conceito ou conteúdo, formaria um
signo.
Pela
normalização do status quo e da democracia liberal como horizonte (em
vez de transitória rumo a uma democracia ampliada), os significantes
necessários para carregar a ideia de uma democracia favorável ao poder popular
e à transformação da realidade se esvaziaram.
Com
isso, a própria noção de democracia deixou de atuar como um signo na sociedade,
algo de valor a ser preservado e promovido. Hoje temos significados
despolitizados de democracia (reduzida a uma mera alternância de poder ou ao
atropelamento de uma maioria social por uma maioria eleitoral) e de ditadura
(vista por alguns como desejável e necessária para retornar a “ordem” ao Brasil).
Os
significantes vazios fizeram do signo democrático algo descartável aos olhos
das pessoas. Isso ficou exposto com a crise de representação.
Todavia,
um processo de despolitização também se movimenta através de significados
despolitizados (como nos exemplos em parênteses acima) que podem ser empregados
de forma conveniente por diversos atores políticos.
A
onda conservadora que se estabelece com mais força de 2014 em diante é
responsável por identificar o esvaziamento desses significantes, preenchê-los
com significados contrários à realidade, e, a partir daí, promover e
instrumentalizar esses signos. Trata-se de um processo de organização da
direita (onda conservadora) que estabelece um ensaio (o golpe) rumo a um
projeto alvo de execução (o fascismo).
O
ciclo se estabelece quando a sociedade, e a esquerda, se acostumam com a
democracia liberal, mesmo quando não existem ameaças concretas do fascismo (ou
mesmo um autoritarismo de direita que dificulta o exercício da livre
organização da esquerda).
Daí,
surgem esvaziamentos de significantes que, por sua vez, favorecem uma
despolitização pela via da onda conservadora (que intencionalmente ofusca o
debate de classe e das opressões com ondas de pânico baseadas em questões
morais).
Se
essa onda consegue se estabelecer a ponto de tirar vantagem da despolitização
para desmerecer as garantias democráticas, temos o surgimento de forças
protofascistas que podem abrir alas para o fascismo em si (que, nos moldes
brasileiros e no século XXI, poderá ser classificado como neofascismo).”
“É preciso ousar para fugir do ciclo, rumo a uma democracia ampliada e
mesmo a uma democracia socialista. Trata-se, então, de levar a sério a crítica
que Florestan Fernandes fez às experiências socialistas passadas que flertaram
com o autoritarismo ou se submeteram a ele, tendo-o como marca de gestão (não
sendo necessário discutir agora as circunstâncias de cada uma delas).
Ele
também criticou como a democracia burguesa engole a esquerda que não constrói
para além de seus moldes:
é urgente que se faça isso com método,
organização e firmeza, para que a democracia a ser criada não devore o
socialismo, convertendo-se em um sucedâneo bem-comportado do aburguesamento da
socialdemocracia e da social-democratização do comunismo. carecemos com premência
da democracia. mas de uma democracia que não seja o túmulo do socialismo
proletário e dos sonhos de igualdade com liberdade e felicidade dos
trabalhadores e oprimidos.142
É
por isso mesmo que, ciente dessa radicalidade, o fascismo tem como um de seus
pilares não apenas ser antidemocrático, mas também anticomunista.
A
falha está em os socialistas e comunistas não compreenderem a democracia
liberal como modelo limitado de democracia a ser superado (aufheben), e
sim se acostumarem com ele, de modo a facilitar o ressurgimento fascista.”
142 Florestan Fernandes,
“Democracia e Socialismo,” Crítica Marxista 1, no. 3 (1996): 1–6.
“Essa dinâmica já aponta para a ingenuidade ou fraqueza do discurso de
conciliação de classes, pois, historicamente, é sabido que as elites permitem
uma negociação de seus interesses somente em períodos de estabilidade política
e econômica (especialmente sob crescimento econômico).
Qualquer
perspectiva contrária, como o discurso de mera negociação entre interesses da
classe trabalhadora e os dos grandes patrões, demonstra ser falha em períodos
de crise, como pode ser notado na tentativa de desmonte do Estado de bem-estar
social em países conhecidos por encampar valores da socialdemocracia em pleno
século XXI.
O
erro da conciliação está em supor que os trabalhadores e as elites têm
interesses apenas distintos, e, por serem simplesmente diferentes, seriam
passíveis de aceitar negociações em que todos pudessem ceder um pouco.
Na
verdade, os interesses dessas classes não são apenas distintos, mas
fundamentalmente antagônicos.
Mesmo
que, de imediato, pareça que o trabalhador tem interesse em manter seu emprego
e o patrão tem interesse em empregar para produzir, os termos ideais dessa
relação, da perspectiva de cada classe, se opõem e revelam que o antagonismo de
classe não é fruto de um discurso da esquerda que “pregaria a luta de classes”,
mas fruto da própria materialidade.”
“O rótulo de esquerda é, atualmente, negociado pelo PT, ora o partido o
usa a seu favor, ora se afasta dele, dependendo da agenda do dia. Quando
interessa, no diálogo com os trabalhadores, o PT é esquerda.
Quando
o diálogo é com os bancos, o PT também é esquerda, mas uma esquerda que eles
não devem temer. É essa a ambiguidade, e as contradições, que confunde os de fora
e incomoda os de dentro da esquerda.”
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