quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A era do capital improdutivo (Parte I), de Ladislau Dowbor

Editora: Outras Palavras & Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-611-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 316

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Sinopse: Como os bancos registram lucros bilionários em plena recessão e desemprego? Neste livro, Ladislau Dowbor investiga como a riqueza do mundo – minérios, petróleo, trabalho, alimentos –, produzida pelo trabalho, é capturada pelos bancos e seus intermediários financeiros. Com uma vasta pesquisa, Ladislau revela os mecanismos usados pelas corporações financeiras, com estruturas que muito se assemelham a governos, para exercer o poder político diretamente e influenciar as principais decisões dos poderes públicos. O resultado não poderia ser diferente: esterilizam a riqueza produzida pela sociedade para multiplicá-la somente em seu próprio benefício, por meio de investimentos financeiros que não criam novas tecnologias nem geram novos empregos. Ladislau demonstra por que o mercado considera positiva qualquer atividade que gere lucro – ainda que trave a economia e produza prejuízos sociais e ambientais – para enviar seus recursos, a salvo de impostos, a paraísos fiscais. O livro destrincha como a financeirização dilacera as economias no Brasil e mundo afora ao forçar os governos eleitos a cumprir agendas refutadas pelas urnas. Sobretudo quando desviam grande parte do orçamento público para o pagamento de juros da dívida, engordando ainda mais as forças do capital financeiro em detrimento de políticas públicas de saúde, educação, previdência.



A política sendo o que é, a tendência mais geral é buscarmos os culpados, sejam eles à direita ou à esquerda. A mídia, que hoje penetra em quase todos os domicílios do planeta, saberá navegar nos ódios que se geram. Confirmar preconceitos rende mais, em pontos de audiência, do que explicitar os problemas. Isso nos leva a personalizar os problemas em vez de compreender as dinâmicas. Um pouco de bom senso sugere a busca de melhor compreensão do que está dando errado e de regras do jogo que nos permitam fazer o planeta funcionar.

Antes de tudo, precisamos com bom senso restabelecer o cuidado com o mau senso na política. De forma geral, política tem mais a ver com emoções, esperanças e temores do que com racionalidade. Hitler era um psicopata? Muito mais importante é entender como os grandes grupos econômicos o apoiaram, como mais da metade dos médicos alemães aderiu ao partido nazista e como a população finalmente votou e o elegeu. A eleição de um Donald Trump me preocupa como preocupa democratas em todo o planeta. Mais preocupante do que o personagem, no entanto, é o fato de uma nação rica, com tantas universidades e cultura pujante como os Estados Unidos o eleger. E as pessoas terem sido sensíveis aos seus argumentos, que afinal não eram argumentos, mas expressões emocionais, inseguranças e ódios com os quais elas puderam se identificar.”

 

 

“A área econômica é, hoje, tão vinculada com a política – por sua vez profundamente enraizada nas nossas emoções, heranças familiares, ódios corporativos ou o que seja –, que a informação científica é frequentemente rejeitada em bloco por simples convicção de que se trata de informação inimiga. Este tratamento tribal da análise permite que nos Estados Unidos por exemplo, os democratas considerem o problema climático como real enquanto os republicanos consideram que é uma invenção sem fundamento. Os republicanos seriam menos científicos? Como pode a ciência ser filtrada desta maneira por emoções políticas e por identificações de clãs? A realidade é que é tão fácil considerar racional e científico aquilo que confirma os nossos preconceitos. Não somos naturalmente objetivos. E isso me preocupa.”

 

 

“A convergência das tensões geradas para o planeta tornou-se evidente. Não podemos mais nos congratular com o aumento da pesca quando estamos liquidando a vida nos mares, ou com o aumento da produção agrícola quando estamos liquidando os aquíferos e contaminando as reservas planetárias de água doce. Isto sem falar do aumento de produção de automóveis e da expansão de outras cadeias produtivas geradoras de aquecimento climático. É muito impressionante a World Wild Fund for Life (WWF) constatar em 2016 que entre 1970 e 2010, em apenas quarenta anos, destruímos 52% da fauna do planeta.

Mais impressionante ainda é o efeito climático dos gases de estufa ter sido demonstrado em 1859, enquanto a primeira discussão ampla desta ameaça ocorreu em Estocolmo em 1972. Levamos ainda 20 anos mais para apresentar uma primeira convenção sobre o clima em 1992 no Rio de Janeiro. Finalmente, a Conferência de Paris em 2015 decidiu que agora vamos realmente tomar providências. Faltará apenas convencer o novo presidente dos EUA. Curiosamente, pesquisas recentes mostram que a convicção dos americanos sobre a mudança climática não depende do seu nível de conhecimento científico, mas sim do partido ao qual pertencem. Aparentemente, é mais importante o sentimento de pertencer ao “nosso clube” ou à “nossa tribo” do que a pesquisa e as evidências científicas. A verdade é que as ameaças sistêmicas e de longo prazo, ainda que cientificamente comprovadas, ocupam pouco espaço na nossa consciência e nos embates cotidianos. E são ameaças claramente críticas.”

 

 

“Não há nenhuma razão objetiva para os dramas sociais que vive o mundo. Se arredondarmos o PIB mundial para 80 trilhões de dólares, chegamos a um produto per capita médio de 11 mil dólares. Isto representa 3.600 dólares por mês por família de quatro pessoas, cerca de 11 mil reais por mês. É o caso também no Brasil, que está exatamente na média mundial em termos de renda. Não há razão objetiva para a gigantesca miséria em que vivem bilhões de pessoas, a não ser justamente o fato de que “nenhum quadro de referência emergiu para guiar as políticas e as práticas”: o sistema está desgovernado, ou melhor, mal governado e não há perspectivas no horizonte.

Na realidade, a desigualdade atingiu níveis obscenos. Quando oito indivíduos são donos de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome, francamente, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental avançada. Essas oito famílias donas de fortuna produziram tudo isso? Ou simplesmente montaram um sistema de apropriação riqueza por meio de papéis? E como isto é possível? São donos de papéis financeiros que rendem.”

 

 

“A concentração de renda é absolutamente escandalosa e nos obriga a ver de frente tanto o problema ético, da injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas, como o problema econômico, porque excluímos pessoas que poderiam estar vivendo melhor, contribuindo de forma mais ampla com sua capacidade produtiva e, com sua demanda, dinamizando a economia. Não haverá tranquilidade no planeta enquanto a economia for organizada em função de 1/3 da população mundial. Até quando iremos culpar os próprios pobres pela sua pobreza, pretensa falta de esforço ou iniciativa, sugerindo indiretamente que a riqueza dos ricos resulta de dedicação e merecimento? A desigualdade é fruto de um sistema institucionalizado cuja dinâmica estrutural precisa ser revertida. Os ricos, por seu lado, têm uma impressionante propensão a achar que são ricos por excepcionais qualidades próprias. Não faltam discursos econômicos para louvar esta sabedoria.”

 

 

A desigualdade em termos de riqueza ou patrimônio tem sido amplamente divulgada, em particular depois da crise de 2008. Trata-se do patrimônio domiciliar líquido (net household wealth), que apresenta desigualdade radicalmente maior do que o acesso à renda. A lógica é simples: quem recebe salário médio ou baixo paga comida e transporte, quem tem alta renda compra casas para alugar, ações e outras aplicações financeiras que rendem. Isto leva a um processo de acumulação de fortuna, ainda mais quando passa de pai para filho, criando castas de ricos. Um exemplo simples ajuda a entender o processo de enriquecimento cumulativo: um bilionário que aplica um bilhão de dólares para render módicos 5% ao ano está aumentando a sua riqueza em 137 mil dólares por dia. Não dá para gastar em consumo esta massa de rendimentos. Reaplicados, os 137 mil irão gerar uma fortuna anda maior. É um fluxo permanente de direitos sobre a produção dos outros, recebido sem tirar as mãos no bolso.7

7 A falta de correspondência entre o esforço produtivo e a remuneração está no centro da preocupação do Relatório sobre Desenvolvimento Humano 2015 da ONU, que constata que “sem políticas adequadas, a desigualdade de oportunidades e de recompensas no mundo do trabalho pode gerar divisões, perpetuando as desigualdades na sociedade. “ A expressão “pode gerar divisões” faz parte da forma moderada como a ONU apresenta problemas críticos.

 

 

Os dados abaixo fazem parte da pesquisa do grupo financeiro suíço Crédit Suisse, instituição insuspeita de antipatia para com os ricos.

A Pirâmide da Riqueza Global

Fonte: James Davies, Rodrigo Lluberas e Anthony Shorrocks, Credit Suisse Global Wealth Databook 2016: https://goo.gl/NBgokb8


A leitura da pirâmide é simples. No topo, os adultos que têm mais de um milhão de dólares são 33 milhões de pessoas, o equivalente a 0,7% do total de adultos no planeta. Somando a riqueza de que dispõem, são 116,6 trilhões de dólares, o que representa 45,6% dos 256 trilhões da riqueza avaliada. É importante lembrar que as grandes fortunas desta parte de cima da pirâmide não são propriamente de produtores, mas de gente que lida com papéis financeiros, fluxos de informação ou intermediação de commodities. O topo da pirâmide é particularmente interessante e composto pelos chamados ultra ricos (ultra high net worth individuals). Se ampliarmos o 0,7% mais ricos para 1%, constatamos que este 1% tem mais riqueza do que os 99% restantes do planeta. Note que parte importante das grandes fortunas não aparece por estar em paraísos fiscais, como salienta James Henry, do Tax Justice Network.9

8 Link original: https://www.credit-suisse.com/us/en/about-us/research/research-institute/news-and-videos/articles/news-and-expertise/2016/11/en/the-global-wealth-report-2016.html

9 Crédit Suisse Global Wealth Report – 2016 – https://www.credit-suisse.com/us/en/about-us/research/research-institute/news-and-videos/articles/news-and-expertise/2016/11/en/the-global-wealth-report-2016.html; Com diferente metodologia, o WIDER (World Institute for Development Economics Research) da Universidade das Nações Unidas já vinha estudando a concentração de riqueza e concluiu que “no mundo, estima-se que os 2% mais ricos são donos de mais da metade da riqueza global total, e que esta elite reside quase exclusivamente na América do Norte, Europa Ocidental, e países ricos do Pacífico Asiático”. James B. Davies, Personal Wealth from a Global Perspective, 2008 – https://www.wider.unu.edu/publication/personal-wealth-global-perspective.

 

 

• Desde 2015, o 1% mais rico detinha mais riqueza que o resto do planeta.

• Atualmente, oito indivíduos detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo.

• Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – uma soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes.

• A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais rico aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais. (Oxfam, 2016, p.2).

A concentração de renda e de riqueza no planeta atingiu níveis absolutamente obscenos.10 A financeirização dos processos econômicos há décadas se alimenta da apropriação dos ganhos de produtividade, essencialmente possibilitados pela revolução tecnológica, de forma radicalmente desequilibrada. O mecanismo é descrito de maneira particularmente competente por Gar Alperovitz e Lew Daly, no pequeno livro Apropriação Indébita: Como os Ricos Estão Tomando a Nossa Herança Comum. Os autores lembram que se não fossem as tecnologias desenvolvidas durante e após a II Guerra Mundial, como o computador, o transistor e outras inovações, um Bill Gates ainda estaria brincando com tubos catódicos na sua garagem. Os avanços tecnológicos são planetários e da sociedade em geral, mas a apropriação é concentrada. Os autores desenvolvem o conceito de “renda não merecida”.11

Esta concentração não se deve apenas à especulação financeira, mas sua contribuição é dominante. Além disso, é absurdo desviar o capital das prioridades planetárias óbvias. Tentando entender as dimensões da crise de 2008, a publicação inglesa The Economist traz uma cifra impressionante sobre o excedente social, essencialmente gerado por avanços tecnológicos da área produtiva, mas apropriado pelo setor qualificado de “indústria de serviços financeiros”. “A indústria de serviços financeiros está condenada a sofrer uma horrível contração. Na América, a sua participação nos lucros corporativos totais subiu de 10%, no início dos anos 1980, para 40% no seu pico em 2007.”12

Gera-se uma clara clivagem entre os que trazem inovações tecnológicas e produzem bens e serviços socialmente úteis – os engenheiros do processo, digamos assim – e o sistema de intermediários financeiros que se apropriam do excedente e deformam a orientação do conjunto. Os engenheiros do processo criam importantes avanços tecnológicos, mas a sua utilização e comercialização pertencem a departamentos de finanças, de marketing e de assuntos jurídicos que dominam nas empresas, e acima deles os acionistas e grupos financeiros que os controlam. É um sistema que gerou um profundo desnível entre quem contribui produtivamente para a sociedade e quem é remunerado.

Ao juntarmos os dois gráficos – do New Scientist sobre os megatrends históricos na área ambiental e da pirâmide do relatório da Oxfam –, chegamos a uma conclusão bastante óbvia: estamos destruindo o planeta para o proveito de quando muito 1/3 da população mundial, e de forma muito particular para o proveito do 1%. Estes são os dados básicos que orientam as nossas ações futuras: inverter a marcha da destruição do planeta e inverter o processo cumulativo de geração da desigualdade. Para isso temos justamente de reorientar a alocação dos recursos financeiros.

A verdade é que sequer medimos a qualidade da alocação dos recursos. A nossa principal medida de progresso, o PIB, não mede nem o desastre ambiental nem o drama social. Não contabiliza o que se produz, nem a quem vai o produto, nem a redução do capital natural do planeta, além de contabilizar como positiva a poluição que exige grandes programas de recuperação. Na realidade, o PIB apresenta apenas a média nacional de intensidade de uso da máquina produtiva.13

Um sistema em que o eixo de motivação se limita ao lucro, sem precisar se envolver nos impactos ambientais e sociais, fica preso na sua própria lógica. Tem tudo a ganhar com a extração máxima de recursos naturais e a externalização de custos, e nada a ganhar produzindo para quem tem pouca capacidade aquisitiva. A motivação do lucro a curto prazo age tanto contra a sustentabilidade como contra o desenvolvimento inclusivo. A deformação é sistêmica. É o próprio conceito de governança corporativa que precisa ser repensado. As regras do jogo precisam mudar. Não se sustenta mais a crença de que se cada um buscar as suas vantagens individuais o resultado será o melhor possível. Não há como escapar da necessidade de resgatar a governança do sistema. E a janela de tempo que temos para fazê-lo é cada vez mais estreita.”

10 Há imensa literatura que já vinha alertando sobre o assunto. Uma excelente análise do agravamento destes números pode ser encontrada no relatório Report on the World Social Situation 2005:The Inequality Predicament, United Nations, New York 2005. O documento do Banco Mundial, The Next 4 Billion, que avalia em 4 bilhões as pessoas que estão “fora dos benefícios da globalização”, é igualmente interessante – IFC. The Next 4 Billion, Washington, 2007. Estamos falando de dois terços da população mundial. Desde o início da crise financeira em 2008, os números vêm se agravando, atingindo agora com força os próprios países ditos desenvolvidos, e em particular os Estados Unidos, gerando um clima amplo de frustração.

11 Gar Alperovitz e Lew Daly, Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum – Ed. Senac, São Paulo 2010. Veja resenha em http://dowbor.org/2010/11/apropriacao-indebita-como-os-ricos-estao-tomando-a-nossa-heranca-comum.html/

12 No original, “The financial-services industry is condemned to suffer a horrible contraction. In America the industry’s share of total corporate profits climbed from 10% in the early 1980s to 40% at its peak in 2007The Economist, A Special Report on the Future of Finance, 24 de janeiro, 2009, p. 20

13 Ver em particular o relatório de Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Jean Paul Fitoussi, Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, disponível em www.stiglitz-sen-fitoussi.fr O desastre ambiental da British Petroleum no Golfo do México elevou o PIB dos EUA, pelo volume de atividades exigidas para limpar o litoral e descontaminar uma grande região. O PIB mede a intensidade de uso de recursos, não a utilidade do que é feito. Veja minha nota técnica sobre esta contabilidade deformada em http://dowbor.org/2009/04/o-debate-sobre-o-pib-estamos-fazendo-a-conta-errada-abr-2.html/

 

 

“O ponto fundamental é que não é a falta de recursos financeiros que gera as dificuldades atuais, mas a sua apropriação por corporações financeiras que os usam para especular em vez de investir. O sistema financeiro passou a usar e drenar o sistema produtivo, em vez de dinamizá-lo. (...)

Vimos acima o dado do Crédit Suisse de que o 1% mais rico detém mais recursos do que os 99% restantes do planeta. São fortunas tão grandes que não podem ser transformadas em demanda, por mais consumo de luxo que se faça. Assim, são reaplicadas em outros produtos financeiros. E a realidade fundamental é que a aplicação financeira rende mais do que o investimento produtivo. O PIB mundial cresce num ritmo situado entre 1% e 2,5% segundo os anos. As aplicações financeiras rendem acima de 5%, e frequentemente muito mais. Gerou-se portanto uma dinâmica de transformação de capital produtivo em patrimônio financeiro: a economia real sugada pela financeirização planetária. (...)

Os recursos existem, mas a sua produtividade é esterilizada por um sistema generalizado de especulação que drena as capacidades de investir na economia real. Igualmente importante, os próprios recursos públicos, ou seja os nossos impostos, alimentam hoje esta máquina.

As ordens de grandeza são impressionantes. Para efeitos comparativos, lembremos que o imenso esforço global de se enfrentar a mudança climática, desenhado no acordo de Paris em 2015, estabeleceu o ambicioso objetivo de levantar 100 bilhões de dólares anuais para financiar as iniciativas do mundo em desenvolvimento que possam mitigar os impactos. Tal soma de recursos parece importante. No entanto, as pesquisas do Tax Justice Network e outros grupos, a partir da crise de 2008, mostram que só em recursos não declarados colocados em paraísos fiscais – portanto recursos que além de não serem investidos, sequer pagam os impostos devidos – temos entre 21 e 32 trilhões de dólares. The Economist arredonda para 20 trilhões e as cifras podem variar um pouco. O fato é que o que roda no mundo especulativo paralegal dos paraísos fiscais representa 200 vezes mais do que o ambicioso objetivo da cúpula mundial de Paris. E se compararmos o estoque de recursos em paraísos fiscais com o PIB mundial, da ordem de 80 trilhões de dólares, não há como não ver o desajuste entre os meios e os fins.”

 

 

“No seu relatório sobre a situação econômica mundial e perspectivas para 2017, a ONU constata que “o capital internacional permanece volátil, e se estima que os fluxos líquidos para países em desenvolvimento deverão permanecer negativos pelo menos durante 2017, o que ressalta os desafios do financiamento do desenvolvimento sustentável no longo prazo.” (p. VIII) Os “fluxos líquidos negativos” significam que os pobres estão financiando os ricos, ou seja, o sistema financeiro drena. Quando somos assaltados e nos roubam a carteira, em geral isto significa também um fluxo líquido negativo. A linguagem da ONU é imbatível.15

Mais importante ainda é que se trata de um sistema que sequer investe de maneira produtiva os recursos drenados: “O investimento produtivo regrediu nos últimos anos, com grande parte de dívida acumulada canalizada para o setor financeiro e ativos imobiliários, aumentando o risco de bolhas de ativos em vez de estimular a produtividade em geral.”(p.33) A mesma análise é apresentada para a dívida das corporações, “que não tem sido utilizada para financiar atividades produtivas, mas sim canalizada essencialmente para alguns poucos setores que apresentam, nos melhor dos casos, um impacto ambíguo sobre a produtividade de longo prazo e o investimento construtivo.”(p.89) Tal avaliação do principal relatório econômico da ONU ajuda a fundamentar o eixo do presente estudo: o sistema financeiro não só drena, como não financia a produção. O que nos interessa deixar claro aqui é que não é a falta de recursos que assola o mundo, e sim o seu uso descontrolado, ou controlado apenas por quem não tem interesse em torná-lo socialmente e economicamente útil.”

15 UN – World Economic Situation and Prospects 2017 – New York, 2017 http://www.un.org/en/development/desa/policy/wesp/

 

 

“Delineamos até aqui esse tipo de Triângulo das Bermudas constituído pelo drama ambiental, a tragédia social e o caos financeiro. Os nossos dilemas não são misteriosos. Estamos administrando o planeta para uma minoria, por meio de um modelo de produção e consumo que acaba com os nossos recursos naturais, transformando o binômio desigualdade/meio ambiente numa autêntica catástrofe em câmara lenta. Enquanto isto, os recursos necessários para financiar as políticas de equilíbrio estão girando na ciranda dos intermediários financeiros, nas mãos de algumas centenas de grupos que sequer conseguem administrar, com um mínimo de competência, as massas de dinheiro que controlam.

O desafio é reorientar os recursos para financiar as políticas sociais destinadas a gerar uma economia inclusiva e, também, financiar a reconversão dos processos de produção e de consumo que permitam reverter a destruição do meio ambiente. Falta convencer, naturalmente, o 1% que controla este universo financeiro, seja diretamente através dos bancos e outras instituições e, cada vez mais, de modo indireto por meio da apropriação dos processos políticos e das legislações. As pessoas não entendem o que é um bilionário. Realmente não é uma questão que faz parte do nosso cotidiano: o rendimento financeiro é de tal volume que se traduz apenas em pequena parte em consumo, mesmo de luxo. A maior parte dos rendimentos é reaplicada e a fortuna se transforma numa bola de neve, gerando os super-ricos, os que literalmente não sabem o que fazer com o seu dinheiro. Evidentemente não faltam assessores, contadores, instituições de aconselhamento para ajudá-los. Como, por exemplo, o próprio Crédit Suisse.

Um mecanismo importante resulta da diferença entre o comportamento econômico dos ricos e dos pobres, ou apenas remediados. Na verdade, quem ganha pouco compra roupa para os filhos, paga aluguel, gasta uma grande parte da sua renda em comida e transporte. Quem ganha pouco não compra belas casas, fazendas e iates, menos ainda faz aplicações financeiras de alto rendimento. O pobre gasta, o rico acumula. O gasto do pobre gera demanda e uma dinâmica econômica mais forte, enquanto a acumulação de papéis financeiros apenas drena a demanda e a capacidade de investimento produtivo. Em suma: sem processo redistributivo, aprofundam-se os dramas ambientais, sociais e econômicos. Não se trata apenas de justiça e de decência moral. Trata-se de bom senso quanto ao funcionamento do sistema.”

 

 

“Décadas a fio, temos acompanhado as notícias sobre grandes empresas comprando umas às outras, formando grupos cada vez maiores, em princípio para se tornarem mais competitivas no ambiente cada vez mais agressivo do mercado. Mas, naturalmente, o processo tem limites. Em geral, nas principais cadeias produtivas, a corrida termina quando sobram poucas empresas que, em vez de guerrear, descobrem que é mais conveniente se articular e trabalharem juntas, para o bem delas e dos seus acionistas. Não necessariamente, como é óbvio, para o bem da sociedade.”

 

 

“O impacto mundial da crise de 2008 favoreceu o lançamento de uma série de estudos sobre as dinâmicas corporativas. Estamos começando a compreender os mecanismos e a lógica de funcionamento dos gigantes corporativos e da nova configuração geopolítica e geoeconômica. A partir da pesquisa do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, conforme vimos antes, pode-se identificar os 147 grupos – 75% deles bancos – que controlam 40% do sistema corporativo mundial. Também temos uma visão mais clara sobre os traders, 16 grupos que controlam a quase totalidade do comércio de commodities no planeta, com raras exceções sediados na Suíça. Esses grupos são responsáveis pelas dramáticas variações de preços de produtos básicos de toda a economia mundial, como grãos, minerais metálicos e não metálicos, e energia – ou seja, o sangue da economia do planeta.

Lembremos ainda que os dados do Crédit Suisse para 2016 mostram que oito famílias detêm um patrimônio igual ao da metade mais pobre da população mundial, resultado direto dos mecanismos financeiros, e o 1% mais rico controla mais da metade da riqueza mundial, ou seja, 1% tem mais patrimônio que os 99% de comuns mortais. O poder extremamente concentrado dos grandes grupos corporativos, o poder do sistema financeiro no centro e a extrema concentração da riqueza no planeta pertencem a uma dinâmica articulada. Funciona sem dúvida para o 1%, de maneira como nunca antes na história. Mas não funciona para o planeta, nem no plano ambiental, nem no plano social, e muito menos no plano político. Pior, nem no plano econômico funciona.”

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