Editora: Outras Palavras & Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-611-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 316
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Sinopse: Ver Parte I
“Entre
o engenheiro da Samarco que sugere o reforço na barragem em Mariana (MG) e a
exigência de rentabilidade da Billiton, da Vale, da Valepar e do Bradesco, a
relação de forças é radicalmente desigual. O que o gestor da Billiton na
Austrália, gigante que controla inúmeras mineradoras no mundo, sabe da Samarco
e do Rio Doce, onde eu brincava quando criança catando cascudos nas pedras?
Outro
exemplo. Sexto grupo farmacêutico do mundo, a GSK está pagando 3 bilhões de
dólares de multas por fraudes de diversos tipos em medicamentos. É uma empresa
tecnicamente muito competente nas suas dimensões propriamente produtivas, com
excelentes laboratórios e pesquisadores, que foram se multiplicando à medida em
que o grupo foi comprando empresas pelo mundo afora.
A
GSK vendeu Wellbutrin, um poderoso antidepressivo, como pílula de
emagrecimento, o que é criminoso. Vendeu Avandia, escondendo os resultados das
suas pesquisas que apontavam o aumento de riscos cardíacos provocados pelo
medicamento. Vendeu Paxil, um antidepressivo usado para jovens com tendências
ao suicídio que, na realidade, não tinha efeito mais pernicioso do que qualquer
placebo, com efeitos desastrosos. A condenação da empresa só aconteceu porque
quatro técnicos da GSK fizeram uma denúncia. Eles entendem de medicamentos,
enquanto a cúpula da empresa entende apenas de negócios. (Time, 2012)
Como
uma empresa especializada em saúde conseguiu manter uma imensa fraude em
diversos produtos e em grande escala, durante anos de sucessivas gestões?
Depois da condenação, das manifestações de indignação de usuários enganados e
dos artigos na mídia, as ações da empresa subiram, contrariamente ao que se esperaria
se a empresa fosse julgada pelas suas contribuições para a saúde. Com essas
fraudes, a GSK obteve lucros incomparavelmente superiores aos custos do acordo
judicial obtido em 2012, e os grandes investidores institucionais que detêm o
grosso das ações, reagiram positivamente. Em outros termos: o poder financeiro
no topo impõe ao grupo os seus critérios de rentabilidade. Critérios que são
replicados nos diversos níveis da pirâmide corporativa.
Na
publicidade da GSK, o que veremos são fotos de laboratórios com técnicos de
bata branca, quando não uma mãe com um bebê nos braços, com mensagem de
segurança e proteção. E como a publicidade faz viver a mídia, que se adapta e
pouco informa, o círculo se fecha. Em termos de justiça e do julgamento do
crime, a prática generalizada hoje é que os responsáveis não precisam
reconhecer a culpa, recorrendo-se ao chamado settlement, o acordo
judicial, neste caso 3 bilhões de dólares. Em 2015, assumiu um novo presidente
na GSK, por acaso antigo presidente do escandaloso Royal Bank of Scotland. Não
entende nada de farmácia, nem precisa. Não é este o negócio.
Com
o poder muito mais nas mãos dos gigantes financeiros do que nas mãos das
empresas produtoras, passou-se a exigir resultados de rentabilidade financeira.
Isso impossibilita as iniciativas no nível técnico, por parte das pessoas que
conhecem os processos produtivos da economia real e que poderiam preservar um
mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Gera-se um caos em
termos de coerência com os interesses de desenvolvimento econômico e social,
mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de assegurar um fluxo
maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia.
Criou-se
um grande distanciamento entre a empresa que efetivamente produz um alimento
por exemplo, e os diversos níveis de holdings a que ela pertence. Os
investidores institucionais como fundos de pensão e outros, que pouco se
interessam se existem ou não agrotóxicos ou antibióticos nos produtos vendidos,
acompanham apenas o rendimento do mix de ações da sua carteira de
aplicações. Com tal grau de concentração, hierarquização, burocratização e
gigantismo, os grupos econômicos ditos “sistemicamente significativos” são
simplesmente ingovernáveis em termos de assegurar a coerência das atividades
com os interesses da sociedade. Eles tropeçam de processo em processo judicial,
de crise em crise, tendo como único denominador comum de racionalidade a
maximização dos resultados financeiros. Na visão de Joseph Stiglitz,
trancaram-se em objetivos estreitos e de curto prazo, travando a economia.
Um
fator muito importante da crise de responsabilidade é o ambiente fechado em que
vivem essas corporações. Elas estão muito presentes na mídia, mas por meio da
publicidade, que visa criar uma imagem positiva do grupo. Ao mesmo tempo, elas
travam qualquer iniciativa da mídia de divulgar o que acontece nas empresas. A
rigorosa proibição dos empregados de divulgarem o que se passa no interior do
grupo, inclusive depois de dele saírem; a justificativa do segredo sobre os
processos tecnológicos; a perseguição que sofrem os eventuais whistleblowers
– empregados que denunciam atividades prejudiciais aos consumidores ou ao
meio ambiente – tudo isso gera um ambiente fechado, sem nenhum controle externo
ou transparência. Neste ambiente, fica extremamente difícil as corporações se
sanearem internamente, reduzirem as burocracias, corrigirem as ilegalidades.
Não há governança corporativa decente sem transparência. A autorregulação é uma
ficção.
Esta
fratura da cadeia de responsabilidade muda profundamente o mundo dos negócios.
De certa maneira, numa empresa dos Ermírio de Moraes sabia-se quem era o
responsável. Hoje, enfrentamos um departamento jurídico, isto depois de
enfrentar o departamento de relações públicas. E descobrimos que há inúmeros
níveis hierárquicos e finalmente pouca corda para segurar e puxar. Tudo é
fluido. São gigantescos moluscos onde qualquer argumento penetra em meandros
intermináveis e se perde no sorriso de um funcionário que diz que não é sua
culpa. Na realidade, a culpa está diluída numa massa informe, o sistema. (...)
As
tensões e as guerras entre corporações são reais, por exemplo, pela conquista
de mercados ou domínio de tecnologias. Neste equilíbrio instável, o Estado
poderia ter espaço para introduzir mecanismos de contrapesos e regulação.
Porém, quando se trata de proteger o lucro, manter a opacidade, reduzir ou
anular impostos sobre lucros financeiros ou regular os paraísos fiscais, as
grandes corporações reagem como um corpo só através das instituições e
representações que veremos em seguida. Neste caso os Estados, fragmentados e
limitados na sua competência pelas fronteiras nacionais, não têm peso
suficiente para enfrentar a ofensiva, por mais nefasta que ela seja para o
desenvolvimento do país e as populações. Gigantes que geram o caos nas suas
atividades, que se unem e arreganham os dentes quando ameaçadas nos seus
privilégios, as corporações criaram simplesmente uma nova realidade política.”
“Estamos
acostumados a ler denúncias sobre os paraísos fiscais, mas só muito
recentemente começamos a nos dar conta do papel central que eles jogam na
economia mundial. Não se trata de “ilhas” no sentido econômico, mas de uma rede
sistêmica de territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo que
o conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das suas obrigações
fiscais, escondendo as origens dos recursos ou mascarando o seu destino.
Todos
os grandes grupos financeiros mundiais e os maiores grupos econômicos em geral
estão hoje dotados de filiais (ou matrizes) em paraísos fiscais. Este recurso
de extraterritorialidade (offshore) constitui uma dimensão de
praticamente todas as atividades econômicas dos gigantes corporativos, formando
um tipo de ampla câmara mundial de compensações, onde os diversos fluxos
financeiros entram na zona de segredo, de imposto zero ou equivalente e de
liberdade relativamente a qualquer controle efetivo. (...)
O
volume de recursos em paraísos fiscais passou a ser mais conhecido desde a
crise de 2008. Com a pressão das sucessivas reuniões do G20, e os trabalhos
técnicos do TJN (Tax Justice Network), do GFI (Global Financial Integrity), do
ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists) e do próprio The
Economist, além de vazamentos mais recentes sobre o Panamá, passamos a ter
ordens de grandeza: são cifras da ordem de 21 trilhões a 32 trilhões de dólares
em paraísos fiscais, para um PIB mundial de 73,5 trilhões (2013). O Brasil
participa com algo como 520 bilhões de dólares, equivalente a 27% do PIB
(estoque acumulado, não fluxo anual).”
“A
lógica da acumulação de capital mudou. Os recursos, que vêm em última instância
do nosso bolso (os custos financeiros estão nos preços e nos juros que
pagamos), não só não são reinvestidos produtivamente nas economias como sequer
pagam impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e da
injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmente econômicos, de lucro,
reinvestimento, geração de empregos, consumo e mais lucros – o ciclo de
reprodução do capital –, o sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo
improdutivo.”
“A visão que temos, em grande parte fruto dos comentários desinformados
ou interessados da imprensa econômica, é que as flutuações de preços das commodities
resultam das variações da oferta e da demanda. Ou seja, mecanismos de mercado.
Na realidade, não se pode imaginar que uma commodity com níveis tão
amplos e equilibrados de produção e consumo como o petróleo sofra variações
entre 17 e 148 dólares o barril em poucos anos, quando se trata sempre dos
mesmos 95-100 milhões barris diários, com variações mínimas. É um comércio que
lida com bens vitais para a economia mundial, mas cujos preços e fluxos
resultam essencialmente de mecanismos de especulação econômica e de poder
político.
O
estudo de Schneyer cita o comentário de Chris Hinde, editor do Mining
Journal de Londres: “A maior parte dos compradores de commodities no
mundo são tomadores de preços (price takers). As maiores empresas de trading
são formadoras de preços (price makers). Isto as coloca numa posição
tremenda [de poder]”.
O
fato é que um conjunto de produtos que constituem o “sangue” da economia, como
alimentos, minérios e energia, não são regulados nem por regras, nem por
mecanismos de mercado. E muito menos por qualquer sistema de planejamento que
pense os problemas de esgotamento de recursos ou de impactos ambientais. A
regulação formal, por leis, acordos e semelhantes, não se dá antes de tudo
porque se trata de um mercado mundial e não existe um governo mundial. Os
países individualmente não têm como enfrentar o processo. Quando a Argentina
quis restringir as exportações de grãos para priorizar a alimentação da própria
população, caiu o mundo em cima dela, como se a produção de alimentos não devesse
satisfazer prioritariamente as necessidades alimentares da população. (...)
A
oligopolização significa que, na prática, além das cinco operadoras principais,
poucas são as que têm importância sistêmica. Isto significa que estas
corporações têm como definir os preços e manipular a oferta de maneira
organizada. Chamam isto de “mercado” na imprensa, mas não se trata de mercado
no sentido econômico, de livre jogo de oferta e procura. Na ausência de
concorrência efetiva, os mecanismos de manipulação tornam-se prática corrente.
Um exemplo: em 2010, a Glencore controlava 55% do comércio mundial de zinco e
36% do comércio de cobre. Naquele ano, Vitol e Trafigura venderam 8,1 milhões
de barris de petróleo por dia, o equivalente às exportações de petróleo da
Arábia Saudita e da Venezuela juntas. (Schneyer, p.2) Para a população em
geral, inclusive a bem-informada, a impressão é de que as variações de preço
que atingem o nosso bolso são fruto de mecanismos imprevisíveis, e não de um
grupo de corporações que simplesmente vêm buscar o dinheiro no nosso bolso.
Quem vai culpar um mecanismo impessoal e anônimo?
Outro
vetor de deformação é o segredo. As empresas gozam de pouca visibilidade
mundial, apenas especialistas acompanham o que acontece neste pequeno clube. E
ninguém tem autoridade formal para exigir os dados neste espaço globalizado.
Dados necessários para dar visibilidade a práticas que seriam ilegais em
qualquer país que tenha regulação contra manipulação do mercado, inclusive no
Brasil. O resultado é a acumulação de imensas fortunas nas mãos de quem não
produziu riqueza nenhuma, mas cobra pedágio sobre todas as transações
significativas.”
“Controle da informação
Outro
eixo poderoso de captura do espaço político se dá por meio do controle
organizado da informação, construindo uma fábrica de consensos sobre a qual
Noam Chomsky nos trouxe análises preciosas.50
O alcance planetário dos meios de comunicação de massa e a expansão de gigantes
corporativos de produção de consensos permitiram, por exemplo, que se atrasasse
em décadas a compreensão popular do vínculo entre o fumo e o câncer, que se
travasse nos Estados Unidos a expansão do sistema público de saúde, que se vendesse
ao mundo a guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a
população iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição
em massa. A escala das mistificações é impressionante.
Ofensiva
semelhante em escala mundial, e em particular nos EUA, foi organizada para
vender ao mundo não a ausência da mudança climática – os dados são demasiado
fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”, adiando ou travando a
inevitável mudança da matriz energética.
James
Hoggan realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona essa indústria. A
articulação é poderosa, envolvendo os think tanks, instituições
conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise
Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser
Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e
evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for
Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. A
ExxonMobil e a Koch Industries são poderosos financiadores, esta última aliás
grande articuladora do Tea Party e da candidatura Trump. Sempre petróleo,
carvão, produtores de carros e de armas, muita finança, muitos republicanos e a
direita religiosa.51
Campanhas
deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia. No âmbito mundial, Rupert
Murdoch assumiu tranquilamente ter sido o responsável pela ascensão e suporte a
Margareth Thatcher nos anos 1980. Ele financiou um sistema de escutas
telefônicas em grande escala na Grã-Bretanha e ainda usa a Fox para sustentar
um clima de ódio de direita, sem receber mais que um tapinha nas mãos quando se
revelam as ilegalidades que pratica.
No
Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa três a quatro horas do
nosso dia e está presente nas salas de espera, nos meios de transporte, um
incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. Com controle da nossa
visão de mundo essencialmente por quatro grupos privados – os Marinho, Civita,
Frias e Mesquita – o próprio conceito de imprensa livre se torna surrealista.
Os impactos na Argentina, no Chile, na Venezuela e outros países são
impressionantes em termos de promoção das visões mais retrógradas e de geração
de clima de ódio social.
A
vinculação da dimensão midiática entre o poder e o sistema corporativo mundial
é em grande parte indireta, mas muito importante. As campanhas de publicidade
veiculadas empurram incessantemente comportamentos e atitudes centrados no
consumo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Isto amarra a mídia de
duas formas: primeiro, porque pode-se dar más notícias sobre o governo, mas
nunca sobre as empresas,mesmo quando entopem os alimentos de agrotóxicos,
deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem produtos associados com a
destruição da floresta amazônica.
Segundo,
como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a
apresentação de um mundo cor-de-rosa de um lado, e de crimes e perseguições
policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se
essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo
obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que
financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade
desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação,
o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo
articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento
democrático da sociedade.52 (p.217)”
50
Ver em particular o documentário Chomsky&Cia, legendado em
português, https://www.youtube.com/watch?v=IHSe9FRGpJU
51 James Hoggan – The Climate
Cover-up: the Cruzade to Deny Global Warming – ver http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/; sobre os financiadores, ver http://dowbor.org/2010/04/petroleira-dos-eua-deu-us-50-mi-a-ceticos-do-clima-6.html/; ver também o ver artigo de Jane Mayer The
Dark Money of the Koch Brothers, 2016, http://www.truth-out.org/news/item/35450-the-dark-money-of-the-koch-brothers-is-the-tip-of-a-fully-integrated-network
52 Ver o curto e excelente
comentário de George Monbiot, How Did We Get Into this Mess, no livro do
mesmo nome – Verso, London/New York, http://www.monbiot.com/2007/08/28/how-did-we-get-into-this-mess/
“A
dimensão política dos paraísos fiscais
Vimos
acima a dimensão absolutamente avassaladora que assumiram os paraísos fiscais,
manejando um estoque da ordem de um quarto a um terço de PIB mundial. Proporção
semelhante do nosso PIB, cerca de 520 bilhões de dólares, é a participação
estimada de capitais brasileiros. Interessa-nos aqui a dimensão política do
processo. Vimos no nosso caso, em 2016, o governo conceder vantagens e implorar
a grandes grupos para repatriarem os seus recursos, e se felicitou na mídia o
feito de ter conseguido que 46 bilhões de reais voltassem ao país, sobre um
total da ordem de 1.700 bilhões. Uma miséria.
Na
realidade a existência dos paraísos fiscais significa que qualquer decisão de
política fiscal e monetária tem de se submeter à realidade de que se as grandes
fortunas forem apertadas, têm a opção de simplesmente sumir do mapa do
Ministério da Fazenda, ao se colocarem ao abrigo do segredo offshore.
Mais importante ainda é o fato de que isso torna precário qualquer controle de
evasão fiscal, de fraude nas notas fiscais, de mecanismos como transfer
pricing, do próprio controle de quem é dono de que nos complexos sistemas
de propriedade cruzada com segmentos enrustidos nos paraísos.
Tampouco
é secundário que nesta era de expansão do crime organizado, em grande parte de
colarinho branco, a repressão torne-se pouco eficiente, enquanto o crime
financeiro passa a penetrar na própria máquina política e no Judiciário. Nos
tempos da pirataria, existiam ilhas no Caribe onde os piratas eram considerados
intocáveis, tendo portanto sempre uma garantia de refúgio, podendo inclusive
trocar e negociar os produtos dos roubos. Francamente, os paraísos fiscais de
hoje são pouco diferentes.
Mais
grave é que gigantes financeiros como o HSBC e outros desempenhem um papel
fundamental na gestão dos recursos da criminalidade, disponibilizando não só a
sua expertise de acobertamento como suas poderosas assessorias jurídicas. A
fluidez do dinheiro, hoje simples representação digital nos computadores,
dinheiro imaterial que pode ser transferido e redirecionado em segundos entre
diversas praças, torna a repressão cada vez mais precária. E o fato de o crime
navegar no espaço planetário enquanto o controle está limitado aos espaços
nacionais dificulta ainda mais o processo. A Interpol impressiona, mas apenas
impressiona.
A
redução da capacidade dos governos promoverem políticas monetárias e
financeiras adequadas para fomentar o desenvolvimento impacta todas as nações.
Isso gera a erosão da governança e a desmoralização da própria política e da
democracia. Esses recursos são hoje vitalmente necessários para financiar uma
reconversão tecnológica que nos permita de parar de destruir o planeta e
assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados, reduzindo a
desigualdade que atingiu níveis explosivos.”
“A
realidade é que a captura dos processos decisórios das empresas da economia
real pelo sistema financeiro se generalizou. A capacidade de resistência dos
tradicionais empresários produtivos não só é pequena, como desaparece quando a
sua maior rentabilidade vem não da linha de montagem, mas das aplicações
financeiras. Os governos passam, assim, a enfrentar resistências poderosas e
articuladas quando tentam fomentar a economia. Recuperar a “confiança” do
“mercado” não significa mais gerar melhores condições de produção, mas melhores
condições de rentabilidade das aplicações financeiras. A
produção, o emprego, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar das famílias
não estão no horizonte das decisões.”
“Será preciso lembrar que a ONU dispõe de 40 bilhões de dólares para todas
as suas atividades, enquanto cada um dos gigantes financeiros SIFIs que vimos
acima maneja em média 1,8 trilhão de dólares? O BIS, o FMI e o BM hoje,
francamente, apenas acompanham o que acontece. Publicam relatórios
interessantes, e por vezes surpreendentemente explícitos.
As
chamadas agências de avaliação de risco Standard&Poor, Moody’s e Fitch, que
concedem notas de confiabilidade a países e corporações, vendem nota melhor por
dinheiro. Simples assim. Moody’s, condenada, aceitou pagar 864 milhões de
dólares. Standad&Poor já pagou mais de 1 bilhão. Ninguém é preso, não
precisa reconhecer culpa. Tudo limpo. O dinheiro sai das empresas que
contribuem. Está nos preços que pagamos. Corrupção sistêmica, justiça cooptada
(dinheiro pago absolve a culpa). E nos dão lições de responsabilidade fiscal e
financeira.”
“Se há uma coisa que não falta no mundo são
recursos. O imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da
revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações
– desde a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas
públicas de saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas
empresas efetivamente produtoras de bens e serviços – que aproveitam. Pelo
contrário, ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas
nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que rende fortunas a quem nunca
produziu e consegue, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor
público como o setor produtivo privado, nos desviar radicalmente do
desenvolvimento sustentável, hoje vital para o mundo.
Quanto
à população de um país como o Brasil, que busca resgatar um pouco de soberania
na sua posição periférica, o que parece restar é um sentimento de impotência.
Perplexas e endividadas, as famílias vêm aparecer o seu ‘nome sujo’ na
Serasa-Experian – aliás uma multinacional – caso não respeitem as truncadas
regras do jogo. Na confusão das regras financeiras, contribuem para a
concentração de riqueza e de poder com os altos juros que pagam nos crediários
e nos bancos, com juros surrealistas da dívida pública, e pelas políticas ditas
de “austeridade”, que as privam dos seus direitos.
Estas
regras do jogo profundamente deformadas serão naturalmente apresentadas como
fruto de um processo democrático e legítimo, porque está escrito na
Constituição que todo poder emana do povo. Na prática, poderemos ter
democracia, conquanto a usemos a favor das elites. A construção de processos
democráticos de controle e a alocação de recursos constitui hoje um desafio
central. Boaventura de Souza Santos fala muito justamente na necessidade de
aprofundar a democracia. Mas, na realidade, precisamos mesmo é resgatá-la da
caricatura que se tornou.”
“A
expansão da dívida pública se generalizou pelo planeta, ao mesmo tempo que se
reduziam os impostos sobre as fortunas e as operações financeiras. Os Estados
Unidos têm hoje uma dívida da ordem de 15 trilhões de dólares. Como vimos, a
dívida pública no mundo atinge 50 trilhões de dólares. São estoques da dívida, que
rendem juros. Lembremos que o PIB mundial é da ordem de 80 trilhões de dólares,
cifra que representa o fluxo anual, mas ajuda para ter uma ordem de grandeza,
um ponto de referência. Lembremos ainda que o PIB do Brasil, sétima potência
econômica mundial, é da ordem de 1,7 trilhão de dólares.
As
operações financeiras, juros sobre dívidas e semelhantes, representam apenas
transferências, movimento de papéis, mudança de quem tem direito sobre bens e
serviços: “O nível do capital nacional em primeira aproximação não mudou.
Simplesmente, a sua repartição entre capital público e privado inverteu-se
totalmente” (p.294). Na realidade, “a dívida pública não constitui mais do que
um direito de uma parte do país (os que recebem os juros) sobre a outra parte
(os que pagam os impostos): portanto deve-se excluí-la do patrimônio nacional e
incluí-la somente no patrimônio privado”. (p.185)
Trata-se
de rentismo público (rentes publiques), que tem um impacto
particularmente desastroso quando um país enfrenta dificuldades, porque os
aplicadores em títulos públicos forçam os juros para cima, agravando a
situação, como se viu na própria Itália, na Grécia, Espanha e tantos outros
países. E evidentemente no Brasil.
O
Estado, neste sentido, transformou-se em mais um vetor do aumento do patrimônio
dos mais afortunados. “Existem duas formas principais de um Estado financiar os
seus gastos: pelo imposto, ou pela dívida. De maneira geral, o imposto é uma
solução infinitamente preferível, tanto em termos de justiça como de eficácia”.
(p.883)
Esta
opção pelo imposto é explicitada: “O imposto sobre o capital põe a carga nos
que detêm patrimônio elevado, enquanto as políticas de austeridade buscam em
geral poupá-los” (p.894). Dadas as relações de forças internacionais, a opção
geral que se viu, na Europa em particular, foi a da política de austeridade,
com restrições das aposentadorias e das políticas sociais, atingindo o elo mais
fraco tanto em termos econômicos como políticos. Não é secundário que a
prioridade do governo Trump seja excluir milhões de pobres americanos do acesso
aos serviços de saúde, liquidando o chamado “Obamacare”.
O caso
brasileiro é emblemático e poderia muito bem ilustrar as análises do
pesquisador francês. A maior apropriação privada de recursos públicos no
Brasil, além de legal, usa como justificação ética “o combate à inflação”:
trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem – mas a imensa maioria não sabe – a
Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos
do governo, gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada é uma
iniciativa dos governos nos anos 1990. A partir de 1996, passou-se a pagar
entre 25% e 30% sobre a dívida pública, para uma inflação da ordem de 10%. A
partir disto, os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema
formal e oficial de acesso aos nossos impostos. Isso permitiu ao governo
comprar, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos
grandes bancos situados no país, inclusive dos grupos financeiros
transnacionais. Assim, os governantes brasileiros organizaram a transferência
massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.
Veremos
este mecanismo em detalhe mais adiante, ao analisarmos a dinâmica particular
que este processo assumiu no Brasil. Para que fique clara a dimensão do
mecanismo, veja a explicação de Amir Khair, um dos melhores especialistas em
finanças do país: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira
vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado,
passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de
inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em
dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e
10,0% durante um ano”.67
Em
2015, cerca de 500 bilhões de reais (9% do PIB) foram tirados dos nossos
impostos e transferidos essencialmente para bancos e outros “investidores”. E
se trata, como se constatou na Grécia de maneira mais escandalosa, de um
processo cumulativo, pois grande parte dos juros que o Estado não consegue
pagar é transformada no aumento do estoque da dívida. Gera-se uma monumental
transferência de recursos públicos para rentistas. Além de nos custar muito
dinheiro, isso desobriga os bancos de realizar investimentos produtivos que
gerariam produto e emprego.
É
muito mais simples aplicar em títulos: liquidez total, risco zero. Realizar
investimentos produtivos, financiando uma fábrica de sapatos, por exemplo,
envolve análise de projetos, acompanhamento, enfim, atividades que vão além de
aplicações financeiras. No mínimo, seria o que os intermediários deveriam
fazer: fomentar, irrigar as atividades econômicas, sobretudo porque estão
trabalhando com o dinheiro dos outros. Mas, tecnicamente, o que eles fazem é a
esterilização da poupança. Tiram o dinheiro do circuito econômico,
transferindo-o para a área financeira.
No
nosso caso, a justificação política é que se trata, ao manter juros elevados,
de proteger a população da inflação. Neste ponto, o argumento de Piketty coincide com o que Amir
Khair e outros têm repetido: “A inflação depende de
múltiplas outras forças, e nomeadamente da concorrência internacional sobre
preços e salários”. (p.905) Mas, para uma população escaldada com inflações
passadas, o argumento é poderoso, ainda que falso. Com um massacre midiático
impressionante, os juros altos aparecem como bons (nos protegem da inflação),
enquanto os impostos aparecem como negativos (inchaço da máquina pública e
semelhantes). Na prática, os mais afortunados que deveriam pagar os seus
impostos aplicam na dívida pública e fazem render o que deveriam devolver à
sociedade.
O
absurdo de se utilizar o pretexto da inflação para elevar a taxa de juros só
faz sentido quando temos uma inflação de demanda, ou seja, quando há muita
pressão de consumo sem que os produtores consigam aumentar a produção em ritmo
correspondente, gerando a chamada economia aquecida. Ao se elevar os juros, que
atraem recursos para aplicações financeiras em vez de consumo, a economia
‘esfria’. Naturalmente, no caso brasileiro, em que os empresários produtivos
não sabem o que fazer com os seus estoques parados, o argumento não faz nenhum
sentido. Não é argumento, é pretexto. A grande mídia e até economistas apoiarem
tal raciocínio é simplesmente vergonhoso.
As
análises que o livro de Piketty nos traz sobre problema da dívida pública
apontam ainda um outro problema: o caos financeiro gerado. Chipre é parte da
União Europeia, no entanto, ninguém tinha informações precisas sobre o tipo de
origem ou interesses dos detentores da sua dívida pública. De certa forma,
esses grupos são donos de parcelas do sistema público. Em Chipre, revelou-se
que são dominantemente oligarcas russos, e que desarticularam completamente as
tentativas do país de equilibrar as suas contas. E mais: de ponta a ponta em
seu trabalho, Piketty nos traz exemplos da ausência geral de transparência
sobre os estoques e fluxos financeiros. “Os países não dispõem nem de
transmissões automáticas de informações bancárias internacionais nem de
cadastro financeiro que lhes permita repartir de forma transparente e eficaz os
ganhos e os esforços.” (p.908)
O
sistema financeiro atua no planeta, os Estados atuam em espaços delimitados por
fronteiras nacionais. As próprias finanças públicas, como resultado, se vêm
jogadas na ciranda. A ideia mestra que sobressai é que a aplicação financeira,
o mover papéis, rende mais do que produzir. O resultado evidente é que o
dinheiro vai correr para onde rende mais, engordando as fortunas financeiras, e
travando as iniciativas que dinamizam a economia, como o consumo das famílias,
o investimento empresarial e os investimentos públicos nas áreas sociais e de infraestruturas.
O desequilíbrio entre quem produz e quem lucra torna o sistema inoperante, ou
no mínimo muito truncado, perdendo-se o imenso potencial de avanço que as
modernas tecnologias poderiam proporcionar. Enfrentar as finanças improdutivas
constitui hoje o principal vetor de resgate da produtividade sistêmica do
país.”
67
Amir Khair, O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2012; ver também A
Taxa Selic é o Veneno da Economia, http://criseoportunidade.wordpress.com/2014/04/09/a-taxa-selic-e-o-veneno-da-economia-entrevista-especial-com-amir-khair-abril-2014-2p/
Nenhum comentário:
Postar um comentário