Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-442-7
Tradução: Célia Neves e Alderico Toríbio
Opinião: ★★★★★
Páginas: 230
Sinopse: Ver Parte
I
“A passagem do homem como “preocupação” ao “homem
econômico” não constitui uma simples mudança de ponto de vista. O problema não
está no fato de que, no primeiro caso, o homem é visto como subjetividade que
nada sabe da objetividade das conexões sociais, ao passo que, no segundo caso,
este mesmo homem é examinado do ponto de vista das conexões objetivas
supra-individuais. O problema principal está noutro ponto. Com a aparente
mudança na argumentação e no ponto de vista muda-se também o próprio objeto da
análise e a realidade objetiva se
transforma em realidade objetiva, a realidade dos objetos. A physis se transforma em física, e da
natureza sobra a simples natura naturata.
Com o aparente deslocamento do ponto de vista, o homem é transformado em objeto, e considera a si mesmo no mesmo nível das
coisas e dos objetos. O mundo humano se transforma em mundo físico; e a ciência
do homem, em ciência do homem-objeto, isto é, a física social.19 A
simples mudança do ponto de vista que deveria revelar determinados aspectos da
realidade cria uma realidade diferente,
ou, mais precisamente, troca uma coisa por outra coisa, sem estar consciente da
troca. Nesta não se trata apenas do mero acesso metodológico à realidade; é que
no acesso ideológico se modifica a
realidade, ontologiza-se a metodologia. A economia vulgar é a ideologia do
mundo objetual. Ela não investiga suas conexões e leis internas; sistematiza as
representações que os agentes deste
mundo objetual, isto é, os homens reduzidos a objetos, têm de si próprios, do mundo
e da economia. A economia clássica se move do mesmo modo na realidade objetual,
mas não sistematiza as representações do mundo formuladas pelos agentes; ela
procura as leis internas desse mundo reificado. Se a reificação como mundo das
coisas e das relações humanas reificadas é a realidade, e a ciência a constata,
a descreve e lhe investiga a lei interna, em que ponto a própria ciência cai na
ilusão e na reificação? No fato de que neste mesmo mundo objetual ela não vê
apenas um determinado aspecto e uma etapa historicamente transitória da
realidade humana, mas a descreve como a
realidade humana natural.
Mediante aquilo que se apresenta como simples mudança de ponto de vista
operou-se uma substituição da realidade: a realidade
objetiva foi substituída pela realidade objetual.20 Desde que a
realidade social foi entendida como natureza em sentido físico e a ciência econômica
como física social, a realidade social se transformara de realidade objetiva em
realidade objetual, no mundo dos objetos.
A realidade que a economia clássica descreve
com base no próprio método não é
realidade objetiva. A economia clássica não descreve o mundo humano no seu
aspecto alienado e não mostra como as relações histórico-sociais dos homens são
mascaradas pela relação e pelo movimento das coisas; ela descreve a legalidade imanente deste mundo reificado como o mundo
autenticamente humano, porque não conhece nenhum outro mundo humano, a não ser
o mundo humano reificado.”
20: Petty, no Verbum sapienti, elabora um método graças ao qual é possível
calcular em dinheiro o valor dos homens; Melon, no ano de 1736, demonstra que
tudo pode ser reduzido a cálculo, inclusive as questões sutilmente morais.
“A razão dialética é um processo universal e
necessário, destinado a conhecer e a plasmar a realidade de modo a não deixar de fora
nada de si; portanto, é razão tanto da ciência e do pensamento como da
liberdade e da realidade humana. A não-razão da razão e, por conseguinte, a
limitação histórica da razão, consiste no fato de negar a negatividade. A
razoabilidade da razão consiste em pressupor e prever a negatividade como seu
próprio produto, de conceber a si mesma como uma continuada negatividade
histórica e em saber, portanto, por si mesma, que é sua tarefa propor e resolver os contrastes. A razão dialética não existe fora da realidade e tampouco concebe a
realidade fora de si mesma. Ela existe somente enquanto realiza a própria
razoabilidade, isto é, ela se cria como razão dialética só enquanto e na medida
em que cria uma realidade razoável no processo histórico. Pode-se reagrupar
as características fundamentais da razão dialética nos seguintes pontos
essenciais: 1) O historicismo da razão, em oposição à supra-historicidade da
razão racionalista. 2) Ao contrário do procedimento analítico contábil da razão
racionalista, que parte do simples para o complexo, que parte de pontos de
partida fixados de uma vez por todas para realizar a suma do saber humano, a
razão dialética parte dos fenômenos para a essência, da parte para o todo e
assim por diante; e concebe o progresso do conhecimento como processo dialético
da totalização, que inclui a eventualidade da revisão dos princípios
fundamentais. 3) A razão dialética não é apenas capacidade de pensar e de
conhecer racionalmente; é ao mesmo tempo o processo de formação racional da
realidade e, portanto, da liberdade. 4) A razão dialética é negatividade que
situa historicamente os graus de conhecimento já atingidos e a realização da
liberdade humana, e ultrapassa teórica e praticamente cada grau já atingido,
inserindo-o na totalidade evolutiva. Não confunde o relativo com o absoluto,
mas compreende e realiza a dialética
de relativo e absoluto no processo histórico.”
“A arte e o equivalente social
A investigação filosófica é coisa
completamente diferente do mero girar em círculo. Mas quem gira em círculo e
quem levanta questões filosóficas? O círculo na reflexão é um circuito de
questões em cujo âmbito o pensamento se move com a ingênua e inconsciente
convicção de que o circuito dos problemas é criação sua, própria. A
problemática está traçada, as questões foram programadas e a investigação se
ocupa da precisão dos conceitos. Mas quem traçou e determinou a problemática?
Quem traçou o círculo em que se encerrou a investigação?
Na discussão sobre o realismo e o
não-realismo as definições se tomam precisas, os conceitos são reformados,
algumas palavras são substituídas por outras, mas toda esta atividade se
desenvolve na base de um pressuposto tácito e não investigado. Discute-se qual
é a posição do artista face à realidade, quais os meios que o artista emprega
para representar a realidade, se esta ou aquela tendência reflete a realidade
de maneira adequada, verdadeira e artisticamente perfeita; mas sempre se
pressupõe tacitamente que a coisa mais evidente, a coisa mais notória e,
portanto, aquela que menos exige pesquisa e exame, é justamente a realidade.
Mas que é a realidade? Pode dar frutos a discussão a propósito do realismo ou
do não-realismo se só os conceitos relativos aos problemas secundários são
determinados com precisão, enquanto a questão fundamental fica sem solução? Uma
tal discussão não necessitará talvez de uma “revolução copernicana” que torne a
fazer pousar solidamente sobre a terra toda esta problemática, que agora é
revirada de pernas para o ar, revolução que, mediante a elucidação do problema
central, crie os pressupostos para a solução das questões ulteriores?
Toda concepção do realismo ou do não-realismo é baseada sobre uma
consciente ou inconsciente concepção da realidade. O que seja o realismo ou o não-realismo em arte depende sempre do que
é a realidade e de como se concebe a própria realidade. Portanto, a posição materialista da problemática começa
no momento em que se parte desta dependência como de um fundamento essencial.
A poesia não é uma realidade de ordem
inferior à economia: também ela é do mesmo modo realidade humana, embora de
gênero e de forma diversos, com tarefa e significado diferentes. A economia não
gera a poesia, nem direta nem indiretamente, nem imediata nem mediatamente: é o
homem que cria a economia e a poesia como produtos da práxis humana. A filosofia materialista não pode basear a poesia
sobre a economia, ou mascarar a economia – entendida como única realidade – sob
aparências várias menos reais e quase imaginárias, como a política, a filosofia
ou a arte; ela deve primeiramente investigar a origem da própria economia. Quem
parte da economia como de algo dado e não derivável ulteriormente como causa
mais profunda e originária, realidade única e autêntica que não admite
investigação ulterior, transforma a economia em resultado, em uma coisa, em um
fator histórico autônomo, e assim opera a fetichização da economia. O
materialismo dialético é uma filosofia radical porque não se detém nos produtos
humanos como numa verdade de última instância, mas penetra até as raízes da
realidade social, isto é, até o homem como sujeito objetivo, ao homem como ser
que cria a realidade social. Somente
sobre a base desta determinação materialista
do homem como sujeito objetivo – ou seja, como ser que, dos materiais da
natureza e em harmonia com as leis da natureza como pressuposto imprescindível,
cria uma nova realidade, uma
realidade social humana – podemos explicar
a economia como a estrutura fundamental da objetivação humana, como a ossatura
das relações humanas, como a característica elementar da objetivação humana,
como o fundamento econômico que determina a superestrutura. O primado da
economia não decorre de um superior grau de realidade de alguns produtos
humanos, mas do significado central da
práxis e do trabalho na criação da realidade humana. As considerações
renascentistas sobre o homem (e o renascimento revelou o homem e o mundo humano à época moderna) começam pelo
trabalho, concebendo-o em sentido amplo como criação e, portanto, como algo que
distingue o homem dos animais e pertence exclusivamente ao homem: Deus não
trabalha, apesar de criar, enquanto o homem cria e trabalha ao mesmo tempo. No
renascimento, a criação e o trabalho ainda estão unidos, porque o mundo humano
nasce na transparência, como a Vênus de Botticelli nasce de uma concha marinha
na natureza primaveril. A criação é algo de nobre e elevado. Entre o trabalho
como criação e os mais elevados
produtos do trabalho existe um vínculo direto: os produtos indicam o seu
criador, isto é, o homem, que se acha acima
deles, e expressam do homem não apenas o que ele já é e o que ele já alcançou,
mas também tudo o que ele ainda pode vir a ser. Os produtos não testemunham
apenas a atual capacidade criativa do homem, mas também e em especial as suas
infinitas potencialidades: “Tudo o que nos circunda é obra nossa, obra do
homem: as casas, os palácios, as cidades, os esplêndidos edifícios esparsos por
toda a terra. Mais parecem obra de anjos, contudo são obra dos homens... Quando
vemos tais maravilhas, compreendemos que podemos criar coisas melhores, mais
belas, mais graciosas e mais perfeitas do que as que criamos até hoje”.39
O capitalismo rompe este vínculo direto,
separa o trabalho da criação, os produtos dos produtores e transforma o
trabalho numa fadiga incriativa e extenuante. A criação começa além das
fronteiras do trabalho industrial. A criação é arte, enquanto o trabalho
industrial é ofício, é algo maquinal, repetitivo, e portanto algo pouco
apreciado e que se autodespreza. O homem – que durante a renascença ainda é
criador e sujeito – se rebaixa ao nível dos produtos e dos objetos, de uma
mesa, de uma ferramenta, de um martelo. Com a perda do domínio sobre o mundo
material criado, o homem perde também a realidade. A autêntica realidade é o
mundo objetivo das coisas e das relações humanas reificadas, diante das quais o
homem é uma fonte de erros, de subjetividade, de inexatidão, de arbítrio e por
isso é uma realidade imperfeita. No século XIX a mais sublime realidade já não
troveja nos céus sob o aspecto de um deus transcendente, que é uma imagem mistificada
do homem e da natureza; a realidade desce sobre a terra sob o manto da “economia”
transcendente, que é um produto material fetichizado pelo homem. A economia
transforma-se no fator econômico. Que é a realidade e como é criada? A
realidade é “economia” e todo o resto é sublimação ou mascaramento da “economia”.
Que é a economia? A “economia” é o fator econômico, isto é, uma parte do ser
social fetichizado, a qual – graças à atomização do homem na sociedade
capitalista – obteve não apenas a autonomia, mas também o predomínio sobre o
homem impotente porque esmigalhado, e sob esta aparência ou seja, deformada,
ela se apresentou à consciência dos ideólogos do século XIX e começou a incutir
terror como fator econômico, isto é, como causa originária da realidade social.
Na história das teorias sociais podem-se citar dezenas de nomes – aos quais
poderíamos acrescentar outros mais – para os quais a economia assume este
oculto caráter autônomo. São os ideólogos do “fator econômico”. Desejamos
insistir em que a filosofia materialista nada tem a ver com a “ideologia do
fator econômico”.
O marxismo não é um materialismo mecânico que
pretenda reduzir a consciência social, a filosofia e a arte a “condições
econômicas” e cuja atividade analítica se fundamente, por isso, no
desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a
dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a
partir do próprio fundamento materialmente econômico, ideias correspondentes e
todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições
dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio,
ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido.”
39: G. Manetti, De dignitate et excellentia hominis, Basiléia, 1532, págs. 129 e
seguintes. Ver também: E. Garin, Filosofi
italiani del quattrocento, Florença, 1942, págs. 238-242. Manetti
(1396-1459), no ardor da polêmica, esquece que tudo quanto é humano pode
degenerar mais exatamente nesta sua programática unilateralidade; o seu
confiante manifesto do humanismo faz o efeito de um feitiço encantador.
Cervantes, cem anos mais tarde, já não compartilha este otimismo e alcança uma
compreensão muito mais profunda da problemática humana.
“O homem não existe sem “condições” e só é
criatura social através das “condições”. O contraste entre o homem e as “condições”,
o antinomismo da consciência impotente e das onipotentes “condições”, consiste
no contraste entre as “condições” isoladas e o íntimo obscurecimento do homem
isolado. O ser social não coincide com a situação dada, nem com as condições,
nem com o fator econômico, os quais – considerados isoladamente – são aspectos
deformados deste mesmo ser. Em determinadas fases do desenvolvimento social o
ser do homem é transtornado, já que o aspecto objetivo de tal ser – sem o qual
o homem perde a própria humanidade e se transforma numa ilusão idealística – é separado
da subjetividade, da atividade, das potencialidades e possibilidades humanas.
Nesta transformação histórica o aspecto objetivo do homem se transforma em uma
objetividade alienada, em uma objetividade morta, desumana (as “condições” ou o
fator econômico) e a subjetividade humana se transforma em existência
subjetiva, miséria, necessidade, vazio, em uma possibilidade meramente
abstrata, no desejo.
O caráter social do homem, porém, não
consiste apenas em que ele sem o objeto não é nada; consiste antes de tudo em
que ele demonstra a própria realidade em uma atividade objetiva. Na produção e reprodução da vida social, isto
é, na criação de si mesmo como ser histórico-social, o homem produz:
1) os bens materiais, o mundo materialmente
sensível, cujo fundamento é o trabalho;
2) as relações e as instituições sociais, o
complexo das condições sociais;
3) e, sobre a base disto, as ideias, as
concepções, as emoções, as qualidades humanas e os sentidos humanos
correspondentes.
Sem o sujeito, estes produtos sociais do
homem ficam privados de sentido, enquanto o sujeito sem pressupostos materiais
e sem produtos objetivos é uma miragem vazia. A essência do homem é a unidade da objetividade e da subjetividade.
Na base do trabalho, no trabalho e por meio
do trabalho o homem criou a si mesmo não apenas como ser pensante,
qualitativamente distinto dos outros animais de espécies superiores, mas também
como o único ser do universo, por nós conhecido, que é capaz de criar a
realidade. O homem é parte da natureza e é natureza ele próprio. Mas é ao mesmo
tempo um ser que na natureza, e sobre o fundamento do domínio da natureza –
tanto a “externa” como a própria – cria uma nova
realidade, que não é redutível à realidade natural. O mundo que o homem cria
como realidade humanosocial tem origem em condições independentes do homem e
sem elas é absolutamente inconcebível; não obstante, isso diante delas
apresenta uma qualidade diversa e é irredutível a elas. O homem se origina da
natureza, é uma parte da natureza e ao mesmo tempo ultrapassa a natureza;
comporta-se livremente com as próprias criações, procura destacar-se delas,
levanta o problema do seu significado e procura descobrir qual o seu próprio
lugar no universo. Não fica encerrado em si mesmo e no próprio mundo. Como cria
o mundo humano, a realidade social objetiva e tem a capacidade de superar uma
situação dada e determinadas condições e pressupostos, tem ainda condições para
compreender e explicar o mundo não-humano, o universo e a natureza. O acesso do
homem aos segredos da natureza é possível sobre o fundamento da criação da realidade humana. A técnica
moderna, os laboratórios experimentais, os ciclotrônios e os foguetes refutam a
opinião que o conhecimento da natureza se baseia na contemplação.
A práxis
humana se manifesta, além disso, também sob um outro aspecto: ela é o cenário
onde se opera a metamorfose do objetivo no subjetivo e do subjetivo no
objetivo, ela se transforma no centro ativo onde se realizam os intentos
humanos e onde se desvendam as leis da natureza. A práxis humana funde a causalidade com a finalidade. Mas se partimos
da práxis humana como da fundamental
realidade social, de novo descobrimos que também na consciência humana sobre o fundamento
da práxis e em uma unidade
indissolúvel, se formam duas funções essenciais: a consciência humana é ao mesmo
tempo registradora e projetadora, verificadora e planificadora: é
simultaneamente reflexo e projeto.
O caráter dialético da práxis imprime uma marca indelével em todas as criações humanas. Logo também sobre a arte. Uma catedral
da Idade Média não é apenas expressão e imagem do mundo feudal, é ao mesmo
tempo um elemento da estrutura daquele mundo. Não só reproduz artisticamente a
realidade da Idade Média, mas ao mesmo tempo também a produz artisticamente. Toda obra de arte apresenta um duplo caráter
em indissolúvel unidade: é expressão da realidade, mas ao mesmo tempo cria a
realidade, uma realidade que não existe fora da obra ou antes da obra, mas
precisamente apenas na obra.”
“Na grande arte a realidade se revela ao
homem. A arte, no sentido próprio da palavra, é ao mesmo tempo desmistificadora
e revolucionária, pois conduz o homem desde as representações e os preconceitos
sobre a realidade, até à própria realidade e à sua verdade. Na arte autêntica e
na autêntica filosofia revela-se a verdade da história: aqui a humanidade se
defronta com a sua própria realidade.42”
42: Podemos demonstrar com evidência essas
deduções gerais a propósito de uma das maiores obras de arte da primeira metade
do século XX, a Guernica de Picasso, a qual evidentemente não é nem uma
incompreensível deformação da realidade, nem uma experiência cubista “não-realista”.
“Partimos da ideia de que a investigação da
relação entre a arte e a realidade, e a concepção dela decorrente, do realismo
e do não-realismo, exigem necessariamente resposta à pergunta: que é a
realidade? De outro lado, justamente a análise da obra de arte nos leva a fazer
a pergunta que constitui o principal objeto das nossas considerações: o que é a
realidade humano-social e como se cria esta mesma realidade?
Se se considera a realidade social em relação
à obra de arte exclusivamente como as condições e as circunstâncias históricas
que determinaram ou condicionaram a origem da obra, a obra em si e a sua
qualidade artística tornam-se algo inumano. Se a obra é fixada apenas como obra
social, predominantemente ou exclusivamente na forma de objetividade reificada,
a subjetividade será concebida como algo associal, como um fato condicionado,
porém não criado nem constituído pela realidade social. Se se concebe a
realidade social em relação à obra de arte como condicionalidade do tempo, como
historicidade da situação dada ou como equivalente social, cai o monismo da
filosofia materialista e no seu lugar se introduz o dualismo da situação dada e
dos homens: a situação coloca as tarefas e os homens reagem a elas. Na
sociedade capitalista moderna o momento subjetivo da realidade social foi
separado do objetivo e os dois momentos se erguem um contra o outro como duas
substâncias independentes: como mera subjetividade, de um lado, e como
objetividade reificada, do outro. Daí se originam as mistificações: de um lado
o automatismo da situação dada; do outro, a psicologização e a passividade do
sujeito. A realidade social, porém, é infinitamente mais rica e mais concreta
do que a situação dada e as circunstâncias históricas, porque ela inclui em si mesma a práxis humana objetiva, a qual cria
tanto a situação como as circunstâncias. Estas constituem o aspecto coagulado
da realidade social. Assim que se separam da práxis humana, da atividade objetiva do homem, tornam-se algo
rígido e inanimado. A “teoria” e o “método” colocam esta rígida materialidade
em relação causal com o “espírito”, com a filosofia e a poesia. O resultado
disto é a vulgarização. O sociologismo reduz a realidade social a situação, às
circunstâncias, às condições históricas, que, assim deformadas, assumem o
aspecto da objetividade natural. A relação entre as “condições” e as “circunstâncias
históricas” assim entendidas, de um lado, e a filosofia e a arte, do outro, não
pode deixar de ser essencialmente
mecânica e exterior. O sociologismo iluminista esforça-se por eliminar tal
mecanicismo mediante uma complexa hierarquia de “termos mediadores” autênticos
ou construídos (a “economia” se acha “mediatamente” em contato com a arte), mas
faz obra de Sísifo. Para a filosofia materialista – que partiu da questão
revolucionária: como é criada a realidade
social? – a própria realidade social existe não apenas sob a forma de “objeto”,
de situação dada, de circunstâncias, mas sobretudo como atividade objetiva do
homem, que cria as situações como parte objetivizada da realidade social.
Para o sociologismo, cuja mais lacônica
definição consiste em substituir o ser social pela situação dada, a situação
muda e o sujeito humano reage ante ela. Reage como um conjunto imutável de
faculdades emocionais e espirituais, isto é, captando, conhecendo e
representando, artística ou cientificamente, a própria situação. A situação
muda, se desenvolve, e o sujeito humano marcha paralelamente a ela e a
fotografa. O homem torna-se um fotógrafo da situação. Tacitamente parte-se do
pressuposto de que no curso da história várias estruturas econômicas se
alternaram, tronos foram derrubados, revoluções triunfaram, mas a faculdade do
homem de “fotografar” o mundo continua sendo a mesma da Antiguidade até hoje.
O homem capta a realidade, e dela se apropria
“com todos os sentidos”, como afirmou Marx; mas estes sentidos, que reproduzem
a realidade para o homem, são eles próprios um produto histórico-social45.
O homem deve ter desenvolvido o sentido correspondente a fim de que os objetos,
os acontecimentos e os valores tenham um sentido para ele. Para o homem que não
tem os sentidos de tal modo desenvolvidos, os outros homens, as coisas e os
produtos carecem de um sentido real, são absurdos. O homem descobre o sentido das coisas porque ele se cria um sentido humano
para as coisas. Portanto, um homem com sentidos desenvolvidos possui um sentido
também para tudo quanto é humano, ao passo que um homem com sentidos não
desenvolvidos é fechado diante do mundo e o “percebe” não universal e
totalmente, com sensibilidade e intensidade, mas de modo unilateral e
superficial, apenas do ponto de vista do seu “próprio mundo”, que é uma fatia
unilateral e fetichizada da realidade.
Não criticamos o sociologismo por se voltar
para a situação dada, para as circunstâncias, para as condições a fim de explicar a cultura, mas por não
compreender o significado da situação
em si mesma, nem o significado da situação em
relação com a cultura. A situação por
fora da história, a situação sem sujeito, constitui não só uma configuração
petrificada e mistificada, mas ao mesmo tempo uma configuração destituída de sentido objetivo. Sob este aspecto as “condições”
carecem daquilo que é mais importante também do ponto de vista metodológico,
isto é, um significado objetivo próprio, e recebem,
ao invés, um sentido ilegítimo conforme as opiniões, os reflexos e a cultura do
cientista. A realidade social deixou de ser para a investigação aquilo que ela
é objetivamente, vale dizer, a totalidade concreta, e se cinde em dois todos
heterogêneos e independentes, que o “método” e a “teoria” se esforçam por
reunir; a cisão entre totalidade concreta e realidade social leva à seguinte
conclusão: de um lado petrifica-se a situação, enquanto, de outro lado,
petrificam-se o espírito, o psiquismo, o sujeito. A situação pode ser passiva;
em tal caso o espírito, o psiquismo como sujeito ativo, sob o aspecto do “impulso
vital”, a põe em movimento e lhe atribui um sentido. Ou então a situação é
ativa, toma-se ela própria sujeito, e o elemento psíquico ou a consciência não
tem outra função a não ser a de conhecer de modo exato ou mistificado a lei
científico-natural peculiar à própria situação.”
“Examinemos primeiramente o sentido e o
conteúdo da afirmação tantas vezes repetida de que a obra é socialmente
condicionada. A tese do condicionamento social diz antes de tudo que a
realidade social é algo que se acha fora
da obra. A obra é socialmente condicionada, mas exatamente por isto ela se transforma em algo não social, em algo
que não constitui a realidade social e que, portanto, não tem uma relação interna com a realidade social. O
condicionamento social da obra é, assim, algo que se pode estabelecer no curso
da análise da obra, como introdução geral ou como suplemento, posto em
evidência sem parênteses, mas que não entra na estrutura verdadeira e própria, não
lhe pertence nem, portanto, ao exame científico
verdadeiro e próprio da obra. Nesta relação de exterioridade recíproca degenera
tanto a realidade social como a obra: se a obra, como estrutura significativa sui generis não é incluída na
investigação e na análise da realidade social, a realidade social mesma se
transforma num mero esquema abstrato ou num condicionamento social geral: a
totalidade concreta vira falsa totalidade. Se a obra não é analisada como estrutura
significativa cuja concreticidade se funda em sua existência como momento da
realidade social, e se como única forma de “interligação” entre a obra e a
realidade social se admite o condicionamento social, então a obra se transforma
de estrutura significativa relativamente autônoma em estrutura absolutamente
autônoma: a totalidade concreta virou falsa totalidade. Na tese do
condicionamento social da obra se ocultam dois significados diversos. Primeiro:
o condicionamento social significa que a realidade social se acha – em relação
à obra – na posição do deus iluminístico que imprime o movimento, dando-lhe o
primeiro impulso, mas assim que a obra termina transforma-se num espectador que
contempla o desenvolvimento autônomo da sua criação e já não mais influencia os
seus destinos ulteriores. Segundo: o condicionamento social significa que a
obra é algo secundário, derivado, reflexo, que não possui uma verdade em si
mesma, mas apenas fora de si. Desde que a verdade da obra não se acha na
própria obra mas na situação objetiva, só aquele que conhece tal situação
compreende a verdade da obra de arte. A situação deve constituir aquela
realidade cujo reflexo é a obra. Mas a situação por si mesma não é realidade:
só é realidade na medida em que é concebida como realização, fixação e
desenvolvimento da práxis objetiva do
homem e da sua história. A verdade da obra (e a obra para nós é sempre uma “autêntica”
obra artística ou literária, ao contrário dos “documentos”) não consiste na situação
do momento, no condicionamento social nem na redução historicizante à situação
dada, mas na realidade histórico-social entendida como unidade de gênese e
reiteração, no desenvolvimento e na realização da relação de sujeito e objeto
como especificidade na existência humana.
O reconhecimento do caráter histórico da realidade social não equivale à
redução historicizante à situação dada.
Só agora chegamos ao ponto em que podemos
retomar o problema inicial: como e por que a obra sobrevive às condições
determinadas em que ela surge? Se a verdade da obra consiste na situação
determinada, a obra sobrevive apenas porque e enquanto é um testemunho da situação. A obra constitui
um testemunho do seu tempo num duplo sentido. Desde o primeiro olhar lançado
sobre a obra compreendemos em que época devemos situá-la e qual a sociedade que
nela imprimiu a sua marca. Em segundo lugar examinamos a obra com a intenção de
descobrir qual o testemunho que ela nos transmite do tempo e da situação. A
obra é entendida como documento. Para estar em condições de examinar a obra
como testemunho do seu tempo ou como espelho da situação contemporânea, devemos
antes de tudo conhecer a própria situação. Só nos baseando no confronto da
situação com a obra estaremos em condições de dizer se a própria obra constitui
um espelho fiel ou mentiroso da época, se nos oferece um testemunho falso ou
verídico do seu tempo. Mas toda
criação cultural cumpre a função de testemunho ou documento. Uma criação
cultural para a qual a humanidade se volte exclusivamente
como para um testemunho não é uma obra. A particularidade da obra consiste
exatamente no fato de que ela não é sobretudo – ou apenas – um testemunho do
seu tempo, mas no fato de que independentemente
do tempo e das condições dadas de que nasceu e das quais ela nos oferece também um testemunho – a obra é, ou
acaba sendo, um elemento constitutivo da existência da humanidade, da classe,
do povo. O seu caráter não é o fato de estar reduzida ao determinado, não é a “má
unicidade” e a irrepetibilidade, mas sim a autêntica historicidade, ou seja, a
capacidade de concretização e de sobrevivência.
A obra demonstra a própria vitalidade
sobrevivendo à situação e às condições em que surge. A obra vive enquanto tem
uma eficácia. Na eficácia da obra inclui-se o evento que se produz tanto com
aquele que desfruta da obra quanto com a obra mesma. O que ocorre com a obra é
expressão do que a obra é em si mesma. A ação da obra não se exerce no fato de
que ela é permeada pelos elementos que nela intervêm, mas é ao contrário a
expressão da íntima potência da própria obra, potência que se realiza no tempo.
Nesta concretização a obra assume significados dos quais nem sempre podemos
dizer com absoluta certeza que o autor os concebeu exatamente como se
apresentam. Durante a composição da obra o autor não pode prever todas as
variantes de significados e de interpretações a que a obra será submetida no
curso da sua ação. Neste sentido a obra é independente das intenções do autor.
Mas por outro lado são sempre aparentes a autonomia e o desvio da obra, das
intenções do autor: a obra é uma obra e vive como obra exatamente porque exige uma interpretação e cria vários significados. Sobre que se
fundamenta a possibilidade da
concretização da obra, isto é, em que consiste a possibilidade de que a obra
assuma no curso da sua “vida” várias aparências concretamente históricas?
Evidentemente na obra deve haver alguma
coisa que tome possível tal virtualidade. Existe uma determinada gama no
âmbito da qual as concretizações da obra são concebidas como concretizações da
obra em si: além dos limites daquele
âmbito, trata-se de falsificação, incompreensão ou interpretação subjetivista
da obra. Onde se situa o limite entre a autêntica e a não-autêntica
concretização da obra? Tal limite se acha dentro da obra ou fora dela? Por que
a obra, embora viva apenas nas suas
concretizações e por meio delas, sobrevive entretanto a cada uma das
concretizações e se liberta de todas elas, demonstrando desse modo delas ser
independente? A vida da obra diz respeito a alguma coisa que vive fora da obra
e a ultrapassa.”
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