quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A era do Capital Improdutivo (Parte III), de Ladislau Dowbor

Editora: Outras Palavras & Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-611-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 316

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Sinopse: Ver Parte I



O princípio do equilíbrio político a que estamos submetidos é simples: é preciso manter “a confiança dos investidores”, ou seja, mantê-los gordos e bem alimentados, sem o que se revoltam. Evidentemente não se trata de investidores, no sentido estrito de investidores produtivos, mas sim de aplicadores financeiros, que ganham pelo que rendem os papéis, sem comum proporção com o que contribuem com a economia. Pelo contrário, ao extraírem mais do que contribuem, geram um impacto líquido negativo sobre toda a economia. Vimos antes a avaliação de Epstein e Montecino que de cada dólar que chega aos intermediários financeiros, apenas 10 centavos retornam para investimento produtivo. Não conheço nenhum dado que me permita avaliar a proporção correspondente no Brasil. Ou seja, não temos elementos para avaliar o mais importante, qual a produtividade do sistema financeiro do país. Mas estamos aqui sempre sob a mesma lógica: rende mais aplicar em papéis do que produzir, e a economia produtiva é simplesmente drenada.

A população em geral é literalmente sugada do resultado dos seus esforços através de três mecanismos convergentes. O mais tradicional resulta do fato da produtividade do trabalhador aumentar sem que os salários aumentem de maneira correspondente. Temos aqui a mais-valia extraída pela compressão da remuneração dos trabalhadores. Na mesma linha se situa a redução ou não aumento dos salários quando são comidos pela inflação.

Uma segunda forma de reduzir o rendimento dos trabalhadores tem a ver com o salário indireto: o acesso à escola pública, serviços de saúde, à seguridade social em geral, às diversas formas de acesso aos bens e serviços de consumo coletivo. Quando se ataca esta outra forma de rendimento, por exemplo, transformando os impostos em pagamentos sobre a dívida pública, ou congelando a capacidade do governo expandir políticas sociais, o resultado é outra frente de redução da participação da maioria no produto social.

Uma terceira forma de reduzir o direito da população de ter acesso aos bens e serviços é por meio da elevação da taxa de juros tanto para pessoa física como jurídica. Quando uma pessoa física é obrigada a pagar mais de 100% sobre um produto vendido a prazo – desconforto evitado pelas pessoas ricas que têm como pagar à vista – sua capacidade de compra foi dividida por dois: ficou mais pobre. Quando uma pequena empresa é extorquida pelos juros bancários – coisa que uma multinacional evita ao pegar empréstimos no exterior ou pela matriz, com juros incomparavelmente menores – sua capacidade de investir e de produzir é drasticamente reduzida.

Se juntarmos os juros sobre a dívida pública que restringem o acesso da população a bens públicos, com os juros que encarecem o consumo e travam o investimento, temos aqui um fenômeno de apropriação indébita generalizado: a extração de uma parte do excedente socialmente produzido por quem se limitou a controlar e exigir o rendimento dos seus papéis.”

 

 

“Ainda que se trate de bens físicos como minério de ferro ou soja, o fato é que no plano internacional as variações são diretamente ligadas às atividades financeiras modernas, como vimos no capítulo sobre commodities. Não há razões significativas em termos de volumes de produção e de consumo mundial que justifiquem as enormes variações de preços de commodities no mercado internacional. Os volumes de produção e consumo de petróleo, por exemplo, situam-se em torno de 95-100 milhões barris por dia, com muito poucas alterações. Mas as movimentações diárias de trocas especulativas sobre o petróleo ultrapassam três bilhões de barris, cerca de 30 vezes mais. São estas movimentações especulativas que permitem entender que com um fluxo estável do produto real que é petróleo oscile tanto em poucos meses.

O que movimenta os preços neste caso não é a economia chinesa, ou uma decisão da Arábia Saudita ou ainda a entrada do Irã de volta ao mercado, mas sim a expectativa de ganhos especulativos dos traders, hoje 16 grupos que controlam o comércio mundial de commodities . Estes grupos, concentrados em Genebra, alimentam o chamado mercado de derivativos, que hoje é da ordem de 500 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 80 trilhões. Neste sistema estão todos os grandes grupos financeiros mundiais, gerando imensa instabilidade tanto para os países produtores como para os países consumidores.

O essencial para o nosso raciocínio aqui é que as soluções no curto e no médio prazo, para a economia brasileira, concentram-se no mercado interno, no consumo das famílias, nas atividades empresariais e nos investimentos públicos em infraestruturas e políticas sociais. Com a instabilidade internacional gerada por um caos financeiro que não consegue definir instrumentos de regulação, as soluções para o Brasil aparecem essencialmente nas dinâmicas internas, inclusive compensando com a expansão do mercado interno a fragilidade das perspectivas internacionais. Não se trata de subestimar o impacto das nossas perdas nas exportações como fator de travamento da economia, mas sim entender que de longe a dinâmica principal está nas atividades voltadas para a demanda interna. Uma melhora nos preços das nossas exportações ajuda, mas é sobremesa: o eixo central está aqui dentro do país.”

 

 

“O resultado é que a população se endivida muito para comprar pouco. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado. Quando 58,3 milhões de adultos no Brasil estão com o nome sujo no sistema de crédito, é o sistema que está deformado.88 O brasileiro trabalha muito, mas os resultados são desviados das atividades produtivas para a chamada ciranda financeira, que não reinveste na economia real. Não se pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. O principal motor da economia, a demanda das famílias, é travado.

A verdade é que Brasil tem no seu amplo mercado interno uma gigantesca oportunidade de expansão. A eficácia deste processo sobre o andamento geral da economia se evidenciou durante a fase de aumento de renda das famílias no governo Lula, mas também foi evidente no impressionante avanço da Europa no pós-guerra, e hoje na China. Em termos econômicos, é o que funciona. E o crédito tem de se colocar a serviço da dinamização do consumo de massa.

Na fase inicial da crise no Brasil, gerada em grande parte pelo próprio sistema financeiro, tornou-se moda repetir que esse estímulo à economia se esgotou, como se o pouco que a massa de pobres do país pôde avançar fosse um teto. Nada como dar uma volta em bairro popular, ou consultar as estatísticas no Data Popular, que estuda o nível de consumo do andar de baixo, para se dar conta da idiotice que o argumento representa. A massa da população tem muito nível quantitativo e qualitativo de consumo a atingir, tanto em termos de consumo “de bolso” a partir da renda disponível, como do consumo coletivo com mais acesso à educação, saúde e outros bens públicos de acesso universal.89

88 Serviço de Proteção ao Crédito, SPC, janeiro de 2017 – http://dowbor.org/2017/01/inadimplencia-desacelera-em-2016-e-fecha-dezembro-com­-583-milhoes-de-brasileiros-negativados-janeiro-2017-1p.html/

89 João Sicsú resume bem a evolução do perfil de consumo: “O Brasil progrediu em termos de direitos econômicos, isto é, ampliação do emprego, desconcentração da renda, melhoria real dos salários, redução da pobreza extrema e democratização do consumo. É hora de radicalizar o projeto de desenvolvimento ofertando serviços públicos de qualidade nas áreas da saúde, educação, transportes e segurança social e de vida.” João Sicsú – O Que É e o Que Produz o Ajuste Fiscal , 19 de maio, 2015

 

 

Vejamos o quarto item da engrenagem: a taxa Selic, que incide sobre a dívida pública. O mecanismo é simples. Em 1996, para compensar as perdas que os bancos sofreram ao se quebrar a hiperinflação, o governo criou um mecanismo de financiamento da dívida pública com taxas de juros elevadas. A minha poupança, por exemplo, está no banco, mas rende muito pouco. O banco, por sua vez, aplica este dinheiro em títulos da dívida pública que rendiam, na fase do governo de FHC, em média 25% a 30%, chegando a um máximo de 46%. A justificativa era de se tranquilizar “os mercados”, ou seja, os grandes intermediários financeiros, nacionais ou internacionais. Ser “confiável” para a finança internacional e as agências de classificação de risco tornou-se mais importante do que ser confiável para a população.

Para pagar esses intermediários, o governo precisou aumentar os impostos, e a carga tributária, conforme vimos, subiu de cinco pontos percentuais ainda nos anos 1990. Na fase atual, em 2016, com uma taxa de juros Selic de 13%, o governo transfere uma grande parte dos nossos impostos para os bancos. É uma taxa menor do que na fase FHC, mas incide sobre um estoque maior de dívida. O mecanismo é simples. Eu que sou poupador, de um bolso, coloco a minha poupança no banco que me remunera de maneira simbólica; e de outro bolso, tiro 13% para dar ao governo, que os transfere para o banco. Em outros termos: pago ao banco, por meio de meus impostos, para que ele lucre com o dinheiro de minha poupança. É importante lembrar que os títulos da dívida pública pagam na faixa de 0,5% a 1% ao ano na maioria dos países do mundo.

O Brasil tem um PIB da ordem de 6 trilhões, o que significa que a cada vez que se drena 60 bilhões das atividades produtivas para a especulação, é 1% do PIB que se perde. Se o gasto com a dívida pública atinge 8,5% do PIB, como é o caso em 2015, são cerca de 500 bilhões de reais dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo financiar infraestruturas e políticas sociais.”

 

 

“Convém destacar que a carga tributária é muito regressiva no Brasil, pois está concentrada em tributos indiretos e cumulativos que oneram mais os/as trabalhadores/ as e os mais pobres, uma vez que mais da metade da arrecadação provém de tributos que incidem sobre bens e serviços, havendo baixa tributação sobre a renda e o patrimônio. Segundo informações extraídas da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2008/2009 pelo Ipea, estima-se que 10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto 10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em tributos.” (Inesc, 2014, p.6) Lembremos ainda que os assalariados têm os seus rendimentos declarados na fonte, enquanto o mundo corporativo e das grandes fortunas tem à sua disposição a ajuda da própria máquina bancária, com especialistas em evasão ou elisão fiscal, como se vê nos dados do HSBC publicados no início de 2015.

O descontrole é impressionante. Temos portanto o imenso estoque de recursos em paraísos fiscais, equivalente a 28% do PIB (estoque, não fluxo anual); um fluxo de evasão por meio de fraude em notas fiscais da ordem de 2% do PIB ao ano; uma evasão fiscal geral estimada aqui de forma conservadora em 9,1% do PIB. Acrescente-se o fato que a própria incidência da tributação é profundamente deformada, centrada em impostos indiretos sobre o consumo com muita fragilidade de tributação sobre lucros e dividendos. Inexiste o imposto sobre a fortuna, é muito limitada a tributação sobre a herança, enquanto trabalhadores assalariados têm o seu imposto retido na fonte. A combinação desses elementos torna-se desastrosa para o funcionamento do sistema financeiro em geral, deformando radicalmente um ponto de referência chave para qualquer raciocínio econômico: a proporcionalidade entre quem enriquece e quanto, e a contribuição para o crescimento econômico.

Não há como evitar a constatação de que estamos literalmente recompensando parasitas. Não se trata de deformações pontuais. Quando vemos como os juízes aumentam os seus próprios já impressionantes salários, constatamos que se trata de uma cultura de organização de nichos de privilégios que torna solidários entre si bancos, deputados, desembargadores, gigantes da mídia e muitos grupos internacionais. Em nome, evidentemente, do bem-estar da nação, cujo desenvolvimento paralisaram.”

 

 

Voltemos à dinâmica geral. A força propulsora das exportações está fragilizada por transformações que não estão no nosso controle. O que torna muito mais importante a dinâmica econômica interna. Neste plano, o principal motor, a demanda das famílias, foi travado pelos altos juros, com um endividamento brutal não pelo volume das compras e das dívidas, mas por juros que constituem agiotagem em qualquer definição que se busque. Lembremos que em fins de 2016 chegava a 58,3 milhões o número de adultos com nome sujo. Nenhum dos agiotas aparece com nome sujo. O terceiro motor, a produção e investimento empresarial, está travado por três razões: fragilidade da demanda, juros elevados, e a alternativa de ganhar dinheiro sem risco aplicando na dívida pública em vez de investir. E o quarto motor, o investimento público em políticas sociais e infraestruturas, foi travado pelo desvio de recursos para o serviço da dívida. Com um sistema tributário que não só não corrige como agrava o desequilíbrio, o conjunto torna-se disfuncional. Não há economia que funcione com esta articulação perversa de interesses.”

 

 

Não custa lembrar mais uma vez que o artigo 192º da nossa Constituição rezava que o sistema financeiro nacional seria “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade.” Esta parte inicial do artigo, que sobreviveu e que definiu a orientação geral e o princípio que deve reger o sistema financeiro, coloca simplesmente na ilegalidade o conjunto do sistema atual de agiotagem.”

 

 

As alternativas são bastante óbvias. Consistem em aprofundar a dinâmica estrutural que deu certo, reforça o modelo centrado no mercado interno, no consumo de massas e na inclusão produtiva, e retoma a redução das desigualdades gritantes que persistem. Em termos muito amplos, isto significa basear a dinâmica econômica do país na oportunidade que representa o imenso mercado interno de consumo individual e social. No plano político e social, isto representa um imenso esforço que permita criar um conjunto de regras do jogo mais justas, em particular pela reforma tributária e reorientação do sistema financeiro nacional. E no plano ambiental temos de voltar a lembrar que o país não pertence apenas à nossa geração. A retomada do desmatamento da Amazônia e a liberação da venda das terras para grupos internacionais constituem um crime contra o futuro.

O ataque que a partir de 2013 travou os nossos avanços não apresenta algum programa alternativo coerente. Pelo contrário, aprofunda os privilégios e a desigualdade. Enfrentamos uma aliança do sistema financeiro (nacional e internacional) com o oligopólio de mídia comercial, segmentos do Judiciário e grande parte do Legislativo. Aliás, o Poder Legislativo atual, eleito sobre a base do já inconstitucional financiamento corporativo das campanhas, é fruto de uma deformação profunda do sistema de representação.Temos uma bancada ruralista potente, mas também a bancada das montadoras, da grande mídia comercial, dos bancos – e ficamos à procura da representação dos interesses do cidadão e da nação. Aqui, e lamentavelmente em outros países também, é a própria democracia que está em xeque.

Não é o objetivo aqui avaliar as iniciativas do governo ilegítimo que assumiu no Brasil. Mas é bom lembrar como contraste o que vai ter de ser refeito. Recorro aqui ao útil e eloquente resumo que me mandou Roberto Malvezzi: “A maioria das propostas já conhecemos: desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) em favor da medicina privada; modificações draconianas para o povo na Previdência Social em favor da previdência privada; modificações dos tempos da revolução industrial na legislação trabalhista em favor do capital privado; entrega do pré-Sal; desmonte da educação pública – inclusive universidades – em favor da educação privada; entrega das terras públicas aos estrangeiros; repressão dos movimentos sociais; supressão de verbas para pesquisas científicas; crescimento da intolerância fascista; assim ao infinito. As políticas sociais ficarão apenas como marketing, não mais com a proposta da inclusão social. Fim dos 15 anos do desenvolvimento da política de Convivência com o Semiárido.” Por trás de cada uma dessas iniciativas de desmonte, interesses claramente identificados. Rapina generalizada.”

 

 

Pela importância que adquiriu a intermediação financeira, é preciso dinamizar um conjunto de pesquisas sobre os fluxos financeiros internos, e disponibilizá-lo amplamente, de maneira a gerar uma transparência maior nesta área. Para criar a força política capaz de reduzir o grau de cartelização, reintroduzindo mecanismos de mercado e transformando o sistema de intermediação financeira, é preciso ter uma população informada. Uma das coisas mais impressionantes, nesta área vital para o desenvolvimento do país, é o profundo silêncio sobre o processo escandaloso de deformação da economia pelo sistema financeiro. Um silêncio não só da mídia mas também da academia e dos institutos de pesquisa. O fato de os grupos financeiros serem grandes anunciantes na mídia evidentemente não contribui para a transparência. E o fato de termos uma economia nacional cuja dinâmica financeira está profundamente entrelaçada com o sistema financeiro internacional tampouco ajuda.”

 

 

O fato novo e absolutamente escandaloso de oito famílias terem patrimônio maior do que a metade mais pobre da população mundial, e de 1% das famílias mais ricas terem mais patrimônio do que os demais 99% já não é do conhecimento apenas de minorias informadas, está se generalizando. Esta dimensão da luta permite articulações internacionais importantes. Faz parte desta aberração o fato de, por exemplo, o sistema financeiro ter passado de 10% para 42% do lucro das corporações, nos Estados Unidos em poucas décadas. E de o Brasil apresentar retrocesso econômico ao mesmo tempo em que explodem os lucros financeiros. O sistema que tomou conta dos nossos recursos não é apenas escandalosamente injusto, é economicamente inoperante.

Estamos destruindo o meio ambiente, a base natural sobre a qual a humanidade está condenada a sobreviver, esgotando os recursos, contaminando as águas, gerando caos climático, numa corrida desenfreada de produção e consumismo absurdo. Ao mesmo tempo, criou-se um precipício de desigualdades que só pode levar ao caos político, o que por sua vez trava as dinâmicas econômicas. Somos sistemicamente disfuncionais.

Uma constatação básica é que enquanto fazer aplicações financeiras, especular com mercados do futuro, praticar juros abusivos e outras práticas renderem mais do que realizar investimentos produtivos, o dinheiro tenderá a se dirigir para mais aplicações financeiras: o dinheiro atrai o dinheiro.

Uma implicação direta desta dinâmica é que enquanto os rendimentos financeiros forem mais elevados do que o aumento de produção que o acesso aos recursos financeiros permite, em termos líquidos o sistema financeiro terá impacto negativo sobre a economia. Torna-se um parasita dos processos produtivos. Para dar uma imagem simples, se o dinheiro emprestado para uma costureira comprar uma boa máquina de costura custa mais do que o aumento de produtividade correspondente, não é mais um processo de investimento, e sim de captura financeira. A costureira ficará tão presa no serviço da dívida quanto o camponês no sistema do ‘barracão’, em que se via sempre endividado no armazém da fazenda.

O caráter parasitário do sistema financeiro tem como único contrapeso possível a capacidade pública de controle e regulação, tanto limitando os juros como orientando o capital para investimentos produtivos e cobrando impostos sobre patrimônio financeiro improdutivo. A captura do poder político pelos gigantes financeiros, que se evidenciou em particular com a crise de 2008, e com as impressionantes transferências de recursos públicos para grupos privados, torna hoje a capacidade de regulação do estado particularmente precária. É a dimensão política da deformação econômica.

Um sistema que funcione tem de remunerar os agentes econômicos com um mínimo de compatibilidade entre a remuneração e os aportes. Aqui se constata que a remuneração vigente dos esforços se dá não de acordo com a contribuição produtiva, mas sim o grau de controle financeiro sobre os próprios sistemas produtivos, incluindo-se aí tanto os trabalhadores como empresas e governos. Isto afeta tanto o motor econômico que representa o consumo das famílias como o investimento empresarial e as políticas sociais e investimentos públicos dos governos. A lógica de remuneração que prevalece constitui uma aberração sistêmica.

Não é a falta de capacidade econômica que trava o progresso – falta de recursos no sentido amplo que envolve tanto os avanços tecnológicos e educacionais como os recursos financeiros – e sim a lógica do processo decisório, o tipo de capitalismo monofásico que considera positiva e legítima qualquer atividade que gere lucro, ainda que constitua um entrave em termos econômicos, sociais e ambientais.”

 

 

“A economia não é um sistema de leis naturais – visão que gerou esta estranha criatura que chamamos de ‘ciência econômica’, implicando que somos obrigados a seguir estas leis – e sim um sistema de regras do jogo negociadas e pactuadas na sociedade. Essas regras do jogo precisam ser revistas. Só temos este planeta, a população mundial aumenta em 80 milhões ao ano, e a própria visão de um “Ocidente” que se protege, se cerca de muros, tentando viver como num condomínio, clube dos ricos que usa o resto do mundo apenas como fonte de recursos, nos leva a um impasse. O resto do mundo está impaciente e se agita. Quando até o Fórum Econômico Mundial afirma que a desigualdade é o desafio principal, significa que as próprias elites estão sentindo o calor cada vez mais perto.”

 

 

Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o risco? Se é aceitável que os responsáveis de um banco central venham das empresas que precisam ser reguladas, e voltem para nelas encontrar emprego?

Uma das propostas mais evidentes da última crise financeira, e que encontramos mencionada em quase todo o espectro político, é a necessidade de reduzir a capacidade das corporações privadas ditarem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobre transações financeiras, de reduzir o poder da regulação do banco central, de autorizar os bancos a fazerem toda e qualquer operação, somada com o poder dos lobbies financeiros, tornam evidente a necessidade de resgatar o poder regulador do Estado. Para isto os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade e não por pessoas jurídicas, que constituem ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não tivermos controle sobre o financiamento das campanhas, prevalecerão os interesses econômicos de curto prazo e a corrupção, em vez de políticas que representem os interesses dos cidadãos. A captura do poder político precisa ser revertida.”

 

 

A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda é simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, a miséria é que trava as oportunidades.”

 

 

A Coréia do Sul abriu um financiamento de 36 bilhões de dólares para financiar transporte coletivo e alternativas energéticas, gerando com isto 960 mil empregos. O impacto positivo é ambiental pela redução de emissões, é anticíclico pela dinamização da demanda, é social pela redução do desemprego e pela renda gerada, é tecnológico pelas inovações que gera nos processos produtivos mais limpos. Tem inclusive um impacto raramente considerado, que é a redução do tempo vida que as pessoas desperdiçam no transporte. Trata-se aqui, evidentemente, de financiamento público, pois os bancos comerciais não teriam esta preocupação, nem esta visão sistêmica. Em última instância, os recursos devem ser tornados mais acessíveis quando os objetivos do seu uso são mais produtivos em termos sistêmicos, visando um desenvolvimento mais inclusivo e mais sustentável. A intermediação financeira é um meio, não é um fim. No caso brasileiro, gerou-se um sistema legalizado de agiotagem.”

 

 

A comunicação é uma das áreas que mais avançou em termos de peso relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica concentração internacional e nacional – e a sua crescente interação entre os dois níveis – gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos como símbolo de sucesso. O sistema circular permite que os custos sejam embutidos nos preços dos produtos que nos incitam a comprar, e ficamos envoltos em um carcarejo permanente de mensagens idiotas pagas do nosso bolso. Mais recentemente, a corporação utiliza este caminho para falar bem de si, para se apresentar como sustentável e, de forma mais ampla, como boa pessoa.

O espectro eletromagnético em que as mensagens navegam é público, e o acesso a uma informação inteligente e gratuita para todo o planeta é simplesmente viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que surgem por toda parte há como introduzir uma cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais. Os gigantes corporativos da comunicação estão gerando uma sociedade desinformada e insegura, fórmula segura para o caos político. A radical descentralização e democratização da mídia liberará os imensos potenciais regionais e locais de criatividade, invertendo a pasteurização generalizada que hoje predomina.”

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