Editora: Outras Palavras & Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-611-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 316
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Sinopse: Ver Parte I
“O princípio do equilíbrio político a que estamos submetidos é simples: é
preciso manter “a confiança dos investidores”, ou seja, mantê-los gordos e bem
alimentados, sem o que se revoltam. Evidentemente não se trata de investidores,
no sentido estrito de investidores produtivos, mas sim de aplicadores
financeiros, que ganham pelo que rendem os papéis, sem comum proporção com o
que contribuem com a economia. Pelo contrário, ao extraírem mais do que
contribuem, geram um impacto líquido negativo sobre toda a economia. Vimos
antes a avaliação de Epstein e Montecino que de cada dólar que chega aos
intermediários financeiros, apenas 10 centavos retornam para investimento
produtivo. Não conheço nenhum dado que me permita avaliar a proporção
correspondente no Brasil. Ou seja, não temos elementos para avaliar o mais
importante, qual a produtividade do sistema financeiro do país. Mas estamos
aqui sempre sob a mesma lógica: rende mais aplicar em papéis do que produzir, e
a economia produtiva é simplesmente drenada.
A população
em geral é literalmente sugada do resultado dos seus esforços através de três
mecanismos convergentes. O mais tradicional resulta do fato da produtividade do
trabalhador aumentar sem que os salários aumentem de maneira correspondente.
Temos aqui a mais-valia extraída pela compressão da remuneração dos
trabalhadores. Na mesma linha se situa a redução ou não aumento dos salários
quando são comidos pela inflação.
Uma
segunda forma de reduzir o rendimento dos trabalhadores tem a ver com o salário
indireto: o acesso à escola pública, serviços de saúde, à seguridade social em
geral, às diversas formas de acesso aos bens e serviços de consumo coletivo.
Quando se ataca esta outra forma de rendimento, por exemplo, transformando os
impostos em pagamentos sobre a dívida pública, ou congelando a capacidade do
governo expandir políticas sociais, o resultado é outra frente de redução da
participação da maioria no produto social.
Uma
terceira forma de reduzir o direito da população de ter acesso aos bens e
serviços é por meio da elevação da taxa de juros tanto para pessoa física como
jurídica. Quando uma pessoa física é obrigada a pagar mais de 100% sobre um
produto vendido a prazo – desconforto evitado pelas pessoas ricas que têm como
pagar à vista – sua capacidade de compra foi dividida por dois: ficou mais
pobre. Quando uma pequena empresa é extorquida pelos juros bancários – coisa
que uma multinacional evita ao pegar empréstimos no exterior ou pela matriz,
com juros incomparavelmente menores – sua capacidade de investir e de produzir
é drasticamente reduzida.
Se
juntarmos os juros sobre a dívida pública que restringem o acesso da população
a bens públicos, com os juros que encarecem o consumo e travam o investimento,
temos aqui um fenômeno de apropriação indébita generalizado: a extração de uma
parte do excedente socialmente produzido por quem se limitou a controlar e
exigir o rendimento dos seus papéis.”
“Ainda
que se trate de bens físicos como minério de ferro ou soja, o fato é que no
plano internacional as variações são diretamente ligadas às atividades
financeiras modernas, como vimos no capítulo sobre commodities. Não há
razões significativas em termos de volumes de produção e de consumo mundial que
justifiquem as enormes variações de preços de commodities no mercado
internacional. Os volumes de produção e consumo de petróleo, por exemplo,
situam-se em torno de 95-100 milhões barris por dia, com muito poucas
alterações. Mas as movimentações diárias de trocas especulativas sobre o
petróleo ultrapassam três bilhões de barris, cerca de 30 vezes mais. São estas
movimentações especulativas que permitem entender que com um fluxo estável do
produto real que é petróleo oscile tanto em poucos meses.
O que
movimenta os preços neste caso não é a economia chinesa, ou uma decisão da
Arábia Saudita ou ainda a entrada do Irã de volta ao mercado, mas sim a
expectativa de ganhos especulativos dos traders, hoje 16 grupos que
controlam o comércio mundial de commodities . Estes grupos, concentrados
em Genebra, alimentam o chamado mercado de derivativos, que hoje é da ordem de
500 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 80 trilhões. Neste sistema
estão todos os grandes grupos financeiros mundiais, gerando imensa
instabilidade tanto para os países produtores como para os países consumidores.
O
essencial para o nosso raciocínio aqui é que as soluções no curto e no médio
prazo, para a economia brasileira, concentram-se no mercado interno, no consumo
das famílias, nas atividades empresariais e nos investimentos públicos em
infraestruturas e políticas sociais. Com a instabilidade internacional gerada
por um caos financeiro que não consegue definir instrumentos de regulação, as
soluções para o Brasil aparecem essencialmente nas dinâmicas internas,
inclusive compensando com a expansão do mercado interno a fragilidade das
perspectivas internacionais. Não se trata de subestimar o impacto das nossas
perdas nas exportações como fator de travamento da economia, mas sim entender
que de longe a dinâmica principal está nas atividades voltadas para a demanda
interna. Uma melhora nos preços das nossas exportações ajuda, mas é sobremesa:
o eixo central está aqui dentro do país.”
“O
resultado é que a população se endivida muito para comprar pouco. A prestação
que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é
travado. Quando 58,3 milhões de adultos no Brasil estão com o nome sujo no
sistema de crédito, é o sistema que está deformado.88
O brasileiro trabalha muito, mas os resultados são desviados das atividades
produtivas para a chamada ciranda financeira, que não reinveste na economia
real. Não se pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. O principal motor da economia,
a demanda das famílias, é travado.
A
verdade é que Brasil tem no seu amplo mercado interno uma gigantesca
oportunidade de expansão. A eficácia deste processo sobre o andamento geral da
economia se evidenciou durante a fase de aumento de renda das famílias no
governo Lula, mas também foi evidente no impressionante avanço da Europa no
pós-guerra, e hoje na China. Em termos econômicos, é o que funciona. E o
crédito tem de se colocar a serviço da dinamização do consumo de massa.
Na
fase inicial da crise no Brasil, gerada em grande parte pelo próprio sistema
financeiro, tornou-se moda repetir que esse estímulo à economia se esgotou,
como se o pouco que a massa de pobres do país pôde avançar fosse um teto. Nada
como dar uma volta em bairro popular, ou consultar as estatísticas no Data
Popular, que estuda o nível de consumo do andar de baixo, para se dar conta da
idiotice que o argumento representa. A massa da população tem muito nível
quantitativo e qualitativo de consumo a atingir, tanto em termos de consumo “de
bolso” a partir da renda disponível, como do consumo coletivo com mais acesso à
educação, saúde e outros bens públicos de acesso universal.89”
88 Serviço de Proteção ao Crédito, SPC, janeiro de 2017 – http://dowbor.org/2017/01/inadimplencia-desacelera-em-2016-e-fecha-dezembro-com-583-milhoes-de-brasileiros-negativados-janeiro-2017-1p.html/
89 João Sicsú resume bem a evolução
do perfil de consumo: “O Brasil progrediu em termos de direitos econômicos,
isto é, ampliação do emprego, desconcentração da renda, melhoria real dos
salários, redução da pobreza extrema e democratização do consumo. É hora de
radicalizar o projeto de desenvolvimento ofertando serviços públicos de
qualidade nas áreas da saúde, educação, transportes e segurança social e de
vida.” João Sicsú – O Que É e o Que Produz o Ajuste Fiscal , 19
de maio, 2015
“Vejamos o quarto item da engrenagem: a taxa Selic, que incide sobre a
dívida pública. O mecanismo é simples. Em 1996, para compensar as perdas que os
bancos sofreram ao se quebrar a hiperinflação, o governo criou um mecanismo de
financiamento da dívida pública com taxas de juros elevadas. A minha poupança,
por exemplo, está no banco, mas rende muito pouco. O banco, por sua vez, aplica
este dinheiro em títulos da dívida pública que rendiam, na fase do governo de
FHC, em média 25% a 30%, chegando a um máximo de 46%. A justificativa era de se
tranquilizar “os mercados”, ou seja, os grandes intermediários financeiros,
nacionais ou internacionais. Ser “confiável” para a finança internacional e as
agências de classificação de risco tornou-se mais importante do que ser
confiável para a população.
Para
pagar esses intermediários, o governo precisou aumentar os impostos, e a carga
tributária, conforme vimos, subiu de cinco pontos percentuais ainda nos anos
1990. Na fase atual, em 2016, com uma taxa de juros Selic de 13%, o governo
transfere uma grande parte dos nossos impostos para os bancos. É uma taxa menor
do que na fase FHC, mas incide sobre um estoque maior de dívida. O mecanismo é
simples. Eu que sou poupador, de um bolso, coloco a minha poupança no banco que
me remunera de maneira simbólica; e de outro bolso, tiro 13% para dar ao
governo, que os transfere para o banco. Em outros termos: pago ao banco, por
meio de meus impostos, para que ele lucre com o dinheiro de minha poupança. É
importante lembrar que os títulos da dívida pública pagam na faixa de 0,5% a 1%
ao ano na maioria dos países do mundo.
O
Brasil tem um PIB da ordem de 6 trilhões, o que significa que a cada vez que se
drena 60 bilhões das atividades produtivas para a especulação, é 1% do PIB que
se perde. Se o gasto com a dívida pública atinge 8,5% do PIB, como é o caso em
2015, são cerca de 500 bilhões de reais dos nossos impostos transferidos
essencialmente para os grupos financeiros. Com isso se esteriliza parte muito
significativa da capacidade do governo financiar infraestruturas e políticas
sociais.”
““Convém destacar que a carga tributária é muito regressiva no Brasil,
pois está concentrada em tributos indiretos e cumulativos que oneram mais os/as
trabalhadores/ as e os mais pobres, uma vez que mais da metade da arrecadação
provém de tributos que incidem sobre bens e serviços, havendo baixa tributação
sobre a renda e o patrimônio. Segundo informações extraídas da Pesquisa de
Orçamento Familiar (POF) de 2008/2009 pelo Ipea, estima-se que 10% das famílias
mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de
tributos, enquanto 10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em
tributos.” (Inesc, 2014, p.6) Lembremos ainda que os assalariados têm os seus
rendimentos declarados na fonte, enquanto o mundo corporativo e das grandes
fortunas tem à sua disposição a ajuda da própria máquina bancária, com
especialistas em evasão ou elisão fiscal, como se vê nos dados do HSBC
publicados no início de 2015.
O
descontrole é impressionante. Temos portanto o imenso estoque de recursos em
paraísos fiscais, equivalente a 28% do PIB (estoque, não fluxo anual); um fluxo
de evasão por meio de fraude em notas fiscais da ordem de 2% do PIB ao ano; uma
evasão fiscal geral estimada aqui de forma conservadora em 9,1% do PIB.
Acrescente-se o fato que a própria incidência da tributação é profundamente
deformada, centrada em impostos indiretos sobre o consumo com muita fragilidade
de tributação sobre lucros e dividendos. Inexiste o imposto sobre a fortuna, é
muito limitada a tributação sobre a herança, enquanto trabalhadores
assalariados têm o seu imposto retido na fonte. A combinação desses elementos
torna-se desastrosa para o funcionamento do sistema financeiro em geral,
deformando radicalmente um ponto de referência chave para qualquer raciocínio
econômico: a proporcionalidade entre quem enriquece e quanto, e a contribuição
para o crescimento econômico.
Não há
como evitar a constatação de que estamos literalmente recompensando parasitas. Não
se trata de deformações pontuais. Quando vemos como os juízes aumentam os seus
próprios já impressionantes salários, constatamos que se trata de uma cultura
de organização de nichos de privilégios que torna solidários entre si bancos,
deputados, desembargadores, gigantes da mídia e muitos grupos internacionais.
Em nome, evidentemente, do bem-estar da nação, cujo desenvolvimento
paralisaram.”
“Voltemos à dinâmica geral. A força propulsora das exportações está
fragilizada por transformações que não estão no nosso controle. O que torna
muito mais importante a dinâmica econômica interna. Neste plano, o principal
motor, a demanda das famílias, foi travado pelos altos juros, com um
endividamento brutal não pelo volume das compras e das dívidas, mas por juros
que constituem agiotagem em qualquer definição que se busque. Lembremos que em
fins de 2016 chegava a 58,3 milhões o número de adultos com nome sujo. Nenhum
dos agiotas aparece com nome sujo. O terceiro motor, a produção e investimento
empresarial, está travado por três razões: fragilidade da demanda, juros
elevados, e a alternativa de ganhar dinheiro sem risco aplicando na dívida
pública em vez de investir. E o quarto motor, o investimento público em
políticas sociais e infraestruturas, foi travado pelo desvio de recursos para o
serviço da dívida. Com um sistema tributário que não só não corrige como agrava
o desequilíbrio, o conjunto torna-se disfuncional. Não há economia que funcione
com esta articulação perversa de interesses.”
“Não custa lembrar mais uma vez que o artigo 192º da nossa Constituição
rezava que o sistema financeiro nacional seria “estruturado de forma a promover
o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da
coletividade.” Esta parte inicial do artigo, que sobreviveu e que definiu a
orientação geral e o princípio que deve reger o sistema financeiro, coloca
simplesmente na ilegalidade o conjunto do sistema atual de agiotagem.”
“As alternativas são bastante óbvias. Consistem em aprofundar a dinâmica
estrutural que deu certo, reforça o modelo centrado no mercado interno, no
consumo de massas e na inclusão produtiva, e retoma a redução das desigualdades
gritantes que persistem. Em termos muito amplos, isto significa basear a
dinâmica econômica do país na oportunidade que representa o imenso mercado
interno de consumo individual e social. No plano político e social, isto
representa um imenso esforço que permita criar um conjunto de regras do jogo
mais justas, em particular pela reforma tributária e reorientação do sistema financeiro
nacional. E no plano ambiental temos de voltar a lembrar que o país não
pertence apenas à nossa geração. A retomada do desmatamento da Amazônia e a
liberação da venda das terras para grupos internacionais constituem um crime
contra o futuro.
O
ataque que a partir de 2013 travou os nossos avanços não apresenta algum
programa alternativo coerente. Pelo contrário, aprofunda os privilégios e a
desigualdade. Enfrentamos uma aliança do sistema financeiro (nacional e
internacional) com o oligopólio de mídia comercial, segmentos do Judiciário e
grande parte do Legislativo. Aliás, o Poder Legislativo atual, eleito sobre a
base do já inconstitucional financiamento corporativo das campanhas, é fruto de
uma deformação profunda do sistema de representação.Temos uma bancada ruralista
potente, mas também a bancada das montadoras, da grande mídia comercial, dos
bancos – e ficamos à procura da representação dos interesses do cidadão e da
nação. Aqui, e lamentavelmente em outros países também, é a própria democracia
que está em xeque.
Não é
o objetivo aqui avaliar as iniciativas do governo ilegítimo que assumiu no
Brasil. Mas é bom lembrar como contraste o que vai ter de ser refeito. Recorro
aqui ao útil e eloquente resumo que me mandou Roberto Malvezzi: “A maioria das
propostas já conhecemos: desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) em favor da
medicina privada; modificações draconianas para o povo na Previdência Social em
favor da previdência privada; modificações dos tempos da revolução industrial
na legislação trabalhista em favor do capital privado; entrega do pré-Sal;
desmonte da educação pública – inclusive universidades – em favor da educação
privada; entrega das terras públicas aos estrangeiros; repressão dos movimentos
sociais; supressão de verbas para pesquisas científicas; crescimento da
intolerância fascista; assim ao infinito. As políticas sociais ficarão apenas
como marketing, não mais com a proposta da inclusão social. Fim dos 15 anos do
desenvolvimento da política de Convivência com o Semiárido.” Por trás de cada
uma dessas iniciativas de desmonte, interesses claramente identificados. Rapina
generalizada.”
“Pela importância que adquiriu a intermediação financeira, é preciso
dinamizar um conjunto de pesquisas sobre os fluxos financeiros internos, e disponibilizá-lo
amplamente, de maneira a gerar uma transparência maior nesta área. Para criar a
força política capaz de reduzir o grau de cartelização, reintroduzindo
mecanismos de mercado e transformando o sistema de intermediação financeira, é
preciso ter uma população informada. Uma das coisas mais impressionantes, nesta
área vital para o desenvolvimento do país, é o profundo silêncio sobre o
processo escandaloso de deformação da economia pelo sistema financeiro. Um
silêncio não só da mídia mas também da academia e dos institutos de pesquisa. O
fato de os grupos financeiros serem grandes anunciantes na mídia evidentemente
não contribui para a transparência. E o fato de termos uma economia nacional
cuja dinâmica financeira está profundamente entrelaçada com o sistema
financeiro internacional tampouco ajuda.”
“O fato novo e absolutamente escandaloso de oito famílias terem patrimônio
maior do que a metade mais pobre da população mundial, e de 1% das famílias
mais ricas terem mais patrimônio do que os demais 99% já não é do conhecimento
apenas de minorias informadas, está se generalizando. Esta dimensão da luta
permite articulações internacionais importantes. Faz parte desta aberração o
fato de, por exemplo, o sistema financeiro ter passado de 10% para 42% do lucro
das corporações, nos Estados Unidos em poucas décadas. E de o Brasil apresentar
retrocesso econômico ao mesmo tempo em que explodem os lucros financeiros. O
sistema que tomou conta dos nossos recursos não é apenas escandalosamente
injusto, é economicamente inoperante.
Estamos
destruindo o meio ambiente, a base natural sobre a qual a humanidade está
condenada a sobreviver, esgotando os recursos, contaminando as águas, gerando
caos climático, numa corrida desenfreada de produção e consumismo absurdo. Ao
mesmo tempo, criou-se um precipício de desigualdades que só pode levar ao caos
político, o que por sua vez trava as dinâmicas econômicas. Somos sistemicamente
disfuncionais.
Uma
constatação básica é que enquanto fazer aplicações financeiras, especular com
mercados do futuro, praticar juros abusivos e outras práticas renderem mais do
que realizar investimentos produtivos, o dinheiro tenderá a se dirigir para
mais aplicações financeiras: o dinheiro atrai o dinheiro.
Uma
implicação direta desta dinâmica é que enquanto os rendimentos financeiros
forem mais elevados do que o aumento de produção que o acesso aos recursos
financeiros permite, em termos líquidos o sistema financeiro terá impacto
negativo sobre a economia. Torna-se um parasita dos processos produtivos. Para
dar uma imagem simples, se o dinheiro emprestado para uma costureira comprar
uma boa máquina de costura custa mais do que o aumento de produtividade
correspondente, não é mais um processo de investimento, e sim de captura
financeira. A costureira ficará tão presa no serviço da dívida quanto o
camponês no sistema do ‘barracão’, em que se via sempre endividado no armazém
da fazenda.
O
caráter parasitário do sistema financeiro tem como único contrapeso possível a
capacidade pública de controle e regulação, tanto limitando os juros como
orientando o capital para investimentos produtivos e cobrando impostos sobre
patrimônio financeiro improdutivo. A captura do poder político pelos gigantes
financeiros, que se evidenciou em particular com a crise de 2008, e com as
impressionantes transferências de recursos públicos para grupos privados, torna
hoje a capacidade de regulação do estado particularmente precária. É a dimensão
política da deformação econômica.
Um
sistema que funcione tem de remunerar os agentes econômicos com um mínimo de
compatibilidade entre a remuneração e os aportes. Aqui se constata que a
remuneração vigente dos esforços se dá não de acordo com a contribuição
produtiva, mas sim o grau de controle financeiro sobre os próprios sistemas
produtivos, incluindo-se aí tanto os trabalhadores como empresas e governos.
Isto afeta tanto o motor econômico que representa o consumo das famílias como o
investimento empresarial e as políticas sociais e investimentos públicos dos
governos. A lógica de remuneração que prevalece constitui uma aberração
sistêmica.
Não é
a falta de capacidade econômica que trava o progresso – falta de recursos no
sentido amplo que envolve tanto os avanços tecnológicos e educacionais como os
recursos financeiros – e sim a lógica do processo decisório, o tipo de
capitalismo monofásico que considera positiva e legítima qualquer atividade que
gere lucro, ainda que constitua um entrave em termos econômicos, sociais e
ambientais.”
“A
economia não é um sistema de leis naturais – visão que gerou esta estranha
criatura que chamamos de ‘ciência econômica’, implicando que somos obrigados a
seguir estas leis – e sim um sistema de regras do jogo negociadas e pactuadas
na sociedade. Essas regras do jogo precisam ser revistas. Só temos este planeta,
a população mundial aumenta em 80 milhões ao ano, e a própria visão de um
“Ocidente” que se protege, se cerca de muros, tentando viver como num
condomínio, clube dos ricos que usa o resto do mundo apenas como fonte de
recursos, nos leva a um impasse. O resto do mundo está impaciente e se agita.
Quando até o Fórum Econômico Mundial afirma que a desigualdade é o desafio
principal, significa que as próprias elites estão sentindo o calor cada vez
mais perto.”
“Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro
das corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam
risco são pagas por quem cria o risco? Se é aceitável que os responsáveis de um
banco central venham das empresas que precisam ser reguladas, e voltem para
nelas encontrar emprego?
Uma
das propostas mais evidentes da última crise financeira, e que encontramos
mencionada em quase todo o espectro político, é a necessidade de reduzir a
capacidade das corporações privadas ditarem as regras do jogo. A quantidade de
leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobre transações financeiras, de
reduzir o poder da regulação do banco central, de autorizar os bancos a fazerem
toda e qualquer operação, somada com o poder dos lobbies financeiros,
tornam evidente a necessidade de resgatar o poder regulador do Estado. Para
isto os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade e não por pessoas
jurídicas, que constituem ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não
tivermos controle sobre o financiamento das campanhas, prevalecerão os
interesses econômicos de curto prazo e a corrupção, em vez de políticas que
representem os interesses dos cidadãos. A captura do poder político precisa ser
revertida.”
“A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda é
simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, a miséria é que
trava as oportunidades.”
“A Coréia do Sul abriu um financiamento de 36 bilhões de dólares para
financiar transporte coletivo e alternativas energéticas, gerando com isto 960
mil empregos. O impacto positivo é ambiental pela redução de emissões, é
anticíclico pela dinamização da demanda, é social pela redução do desemprego e
pela renda gerada, é tecnológico pelas inovações que gera nos processos
produtivos mais limpos. Tem inclusive um impacto raramente considerado, que é a
redução do tempo vida que as pessoas desperdiçam no transporte. Trata-se aqui,
evidentemente, de financiamento público, pois os bancos comerciais não teriam
esta preocupação, nem esta visão sistêmica. Em última instância, os recursos
devem ser tornados mais acessíveis quando os objetivos do seu uso são mais
produtivos em termos sistêmicos, visando um desenvolvimento mais inclusivo e
mais sustentável. A intermediação financeira é um meio, não é um fim. No caso
brasileiro, gerou-se um sistema legalizado de agiotagem.”
“A comunicação é uma das áreas que mais avançou em termos de peso
relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de
mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade ostensiva
ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica concentração
internacional e nacional – e a sua crescente interação entre os dois níveis –
gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que
reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos como símbolo de
sucesso. O sistema circular permite que os custos sejam embutidos nos preços
dos produtos que nos incitam a comprar, e ficamos envoltos em um carcarejo
permanente de mensagens idiotas pagas do nosso bolso. Mais recentemente, a
corporação utiliza este caminho para falar bem de si, para se apresentar como
sustentável e, de forma mais ampla, como boa pessoa.
O
espectro eletromagnético em que as mensagens navegam é público, e o acesso a
uma informação inteligente e gratuita para todo o planeta é simplesmente
viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que
surgem por toda parte há como introduzir uma cultura nova, outras visões de
mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de
fundamentalismos religiosos ou comerciais. Os gigantes corporativos da
comunicação estão gerando uma sociedade desinformada e insegura, fórmula segura
para o caos político. A radical descentralização e democratização da mídia
liberará os imensos potenciais regionais e locais de criatividade, invertendo a
pasteurização generalizada que hoje predomina.”
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