sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (Parte IV), de Sabrina Fernandes

Editora: Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-649-9

Opinião: ★★☆☆☆

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



 Falsas polarizações

Elementos ultrapolíticos em torno do ódio e da divisão da sociedade entre os cidadãos merecedores e os maus cidadãos já podiam ser vistos na indignação seletiva em torno do Bolsa-Família e na xenofobia expressa contra a base eleitoral do PT no Nordeste do Brasil.

Em vez do antagonismo da classe trabalhadora em direção à classe dominante, a versão ultrapolítica da polarização se baseia na despolitização do conflito como está, e sua canalização em um conflito que pode ser colocado em um quadro simples, moralista e dualista nos termos da classe dominante e do senso comum prevalecente. Essa dinâmica tem contribuído para diversas falsas dicotomias ou falsas polarizações.

Isso equaliza alguns projetos similares como se fossem opostos (ex.: a visão de gestão econômica de Dilma e a de Aécio), cria comparações maniqueístas (ex.: todo apoiador do PT seria um apoiador da corrupção), e nega um terceiro campo da esquerda radical que se opõe à esquerda moderada, à direita dominante, bem como à extrema-direita, cujo protagonismo tem crescido na promoção do discurso do ódio e do fascismo vinculado ao elogio a ditadura militar (incluindo seus métodos, como a tortura), bem como o racismo, a homofobia e o sexismo.

A extrema-direita promove a ideia de que são os “comunistas que estão dividindo o país,” o que é perigoso no modo como culpa a esquerda como única responsável pela situação ultrapolítica e despolitizada no sentido de que associa toda a esquerda ao comunismo e o comunismo a uma doutrina que cria conflitos artificiais onde não existem.

A propagação dessa visão alimenta sentimentos e violência fanáticos, de uma forma que é prejudicial para novas atividades politizadoras e que fortalece projetos específicos da extrema-direita.

O bolsonarismo surge como fenômeno a partir dessas crenças e se ergue como uma força autoritária que tem, inclusive, o objetivo de criminalizar tanto movimentos sociais quanto a própria discussão do comunismo, tomando-o por terrorismo.331

Projetos como esse apelam para os elementos já protofascistas de Junho de 2013, que apesar de serem uma minoria, foram significativos por se apropriarem da crise de representação e conseguiram crescer através da onda conservadora e ao depositarem seus sentimentos em uma liderança polêmica, populista e cujo discurso já se alinhava com essas tendências fascistas.

A proeminência de pastores evangélicos como Silas Malafaia e Marco Feliciano também é mais uma evidência do papel do fundamentalismo religioso na onda conservadora e na polarização focada na eliminação do outro – aqui com conotações religiosas que associam a esquerda com tudo que é “maligno” e espalham boatos sobre um suposto satanismo de Marx, Lenin e qualquer outra figura da esquerda.

Žižek argumenta que a lógica de núcleo do fascismo é essencialmente ultrapolítica, até porque o líder fascista é enxergado como um guerreiro ou general de guerra.332

A identidade militar e o apoio a uma política militarista por parte de Bolsonaro ajudam a complementar a imagem desejável do líder ultrapolítico e contribui para sua ascensão política eleição em 2018.

Bolsonaro polarizou não somente com a esquerda e o PT, mas até mesmo com a direita tradicional, e parte de seu sucesso se relaciona com quão poderosa sua imagem mitológica se tornou.

A partir disso é necessário estabelecer que a polarização sobre a qual a ultrapolítica se constrói é falsa em alguns sentidos: não somente esconde o antagonismo material da realidade, mas também distorce noções de esquerda e direita, e constrói heróis em cima de inimigos idealizados e customizados para o herói.

De certa forma, a ultrapolítica despolitiza porque cria um conflito fictício sobre conflitos reais, mas no intuito de deslegitimar os conflitos reais. É fato que o PT e Bolsonaro apresentam projetos distintos e se opõem como esquerda moderada x extrema-direita.

Todavia, o discurso promovido pela campanha de Bolsonaro não se estruturou por meio de projetos, e sim através de construções de narrativas em torno do PT e da esquerda em geral, buscando promover ódio e repúdio ao comunismo, associando a esquerda à corrupção e desvirtuando a situação econômica brasileira para atribuir todo elemento da crise econômica atual a seus adversários.

A associação do PT ao comunismo não somente é uma despolitização, mas torna clara quão falsa é a polarização construída pela ultrapolítica.

O PT, apesar de ter socialistas e comunistas em seu meio, não fez nenhum esforço rumo a esses horizontes no passado, e seu transformismo torna isso bastante evidente. Ademais, economicamente, há elementos da gestão petista que se assemelham muito com propostas da direita, na relação com a burguesia nacional e com a preocupação com fatores econômicos de mercado acima de propostas sociais.

A responsabilidade do PT na conjuntura econômica está muito mais atrelada à sua indisposição a diminuir a desigualdade por meios mais radicais e enfrentar os interesses empresariais, como elaborado por Laura Carvalho a respeito da gestão de Dilma, do que a um suposto excesso de esquerdismo.

Assim, Bolsonaro teve que despolitizar as explicações econômicas para culpabilizar o PT e sua “gestão comunista” por terem afundado o Brasil, por conta da roubalheira em nível de “trilhões”, para construir um Inimigo tão mítico como seu heroísmo. No mais, esse tipo de despolitização específico contribuiu para que Bolsonaro não tivesse que apresentar um plano econômico concreto para tirar o Brasil da crise.

De fato, a ultrapolítica oferece ao líder fascista inúmeras vantagens: da demonização de seu adversário como um inimigo mítico à atribuição de superpoderes ao líder, que aparecem como suficientes, fazendo o debate de projeto desnecessário.

Claro, no debate ultrapolítico de Bolsonaro, a corrupção ocupa um dos centros de conflito (os outros se estabelecem no punitivismo, no ufanismo e na exaltação do cidadão de bem).

O clamor anticorrupção em Junho abriu espaço para a pós-política, associando a corrupção a todo o sistema político e a toda a classe de representantes políticos.

A anticorrupção foi logo ressignificada pelo discurso de direita como antipetismo e, também, contribuiu para uma associação despolitizada com o comunismo e todas as coisas de esquerda como fontes de corrupção.

A corrupção é um inimigo adequado para a ultrapolítica, que, por figurar no imaginário social de forma bastante abstrata, pode ser interpretada de maneira diferente, apesar das tentativas de significar isso de maneiras reacionárias específicas.

O trabalho de associar o PT à corrupção, feito com a ajuda do próprio PT e do próprio histórico de militantes em escândalos de corrupção, facilita a associação e despolitiza o conflito do campo de projetos e antagonismos para o campo moral e subjetivo.

Como a conjuntura é despolitizada, o uso de termos ideológicos também se torna, de certo modo, sem sentido. O PT atrapalha a esquerda continuando a se promover como única esquerda viável.

Isso gerou tensões com a esquerda radical, mas principalmente com a centro-esquerda em 2018 – mediadas pela leitura em comum da conjuntura de enfrentamento a Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, a direita se apropria dessa promoção do PT como única esquerda e a utiliza para atribuir todos os problemas do PT à esquerda como um todo.

Isso ignora o atual estado de fragmentação da esquerda e cria uma armadilha difícil para a esquerda radical, na qual é odiada por sua associação com o PT de duas maneiras paradoxais e falsas: ou é odiada por ser esquerda demais (isto é: comunista/ameaça bolivariana) ou por não ter sido esquerda o suficiente (ou seja: O PT é um traidor da esquerda, portanto a esquerda também é traidora).

Isto é bastante notável durante os períodos eleitorais. Em 2014, Luciana Genro seria acusada pela direita de ajudar o PT até quando criticava o PT e Dilma Rousseff.

Essa associação tem sido prejudicial principalmente ao PSOL e ao MTST, enquanto o tamanho menor do PSTU, do PCB e de outras organizações os protegem de uma percepção de proximidade com o PT, mas ainda os expõem tanto ao sentimento antiesquerda como ao anticomunismo.

Nada disso ajuda na conexão com as massas, e faz da falsa polarização um processo de apagamento da esquerda radical como ator e coloca sua política fora do campo de possibilidades.”

331 Leandro Melito, “Eduardo Bolsonaro Apresenta Projeto Que Criminaliza Comunismo” Portal ebc, May 24, 2016.

332 Žižek, The Ticklish Subject, 193.

 

 

A saída para a esquerda consiste em construir multidões mais politizadas, o que, sem dúvida, requer esforços mais revigorados para a construção de bases, que também envolvem a conscientização, no sentido pedagógico crítico e na formação política.

Isso significa que a criação de frentes e alianças precisa envolver o acúmulo de forças na esquerda para a construção da base, em vez de simplesmente ter cada organização trazendo seus próprios militantes para as ruas para formar uma multidão maior, como tem sido com a maioria das pessoas envolvidas nas frentes até então.

Falta organicidade para além das convocatórias de atos e falta, talvez, um certo nível de autocompreensão da esquerda sobre suas próprias dinâmicas ao redor de tantas convocatórias deslocadas de um plano estratégico maior.”

 

 

Quanto mais burocratizado o PT se tornava e quanto mais se distanciava de ouvir as demandas da classe, mais recorria apenas a uma instrumentalização dessas demandas para reproduzir seu próprio poder político-partidário.

Isso significa que a base do PT e o povo em geral foram confrontados com uma redução da luta de esquerda para que o PT pudesse se manter no poder institucional e realizar ali algumas das demandas dessa base, embora podadas pela tática de conciliação de classes.

O fator acompanhante da despolitização, ainda em seus estágios iniciais, também contribuiu para isso, impedindo as pessoas de perceber as contingências sociais que levaram às suas próprias condições, confiando ao PT determinar quais conflitos deveriam ser abordados primeiro e quais deveriam ser enfraquecidos por causa da leitura de uma fraca correlação de forças na época.

Quanto mais essa instrumentalização do povo pelo PT contribuísse para uma consciência individual ossificada na base, concretizando-se na aceitação do discurso das limitações da luta social diante do status quo, mais fragmentada essa consciência se tornaria no nível coletivo.

Isso foi agravado quando o PT chegou ao governo federal, já que as melhorias no padrão de vida material da classe trabalhadora foram usadas como instrumentos para que o partido mantivesse consentimento sem politização, reduzindo o debate a questões micropolíticas de assistência social, consumo e individualidade como formas de inclusão em um sistema supostamente meritocrático.”

 

 

“A melancolia na esquerda radical, que ainda se apega aos ideais revolucionários, pode se manifestar como saudosismo, embora seja um fenômeno mais complexo e maior que ele.

Pelo contrário, é mais bem entendido como uma mistura de saudade e ansiedade que está frequentemente relacionada à dificuldade em criar sínteses definidas sobre símbolos históricos e/ou atores da esquerda.

Esse tipo de melancolia leva a esquerda a ansiar por tempos melhores e vitórias do passado, muitas vezes idealizando-os, romantizando-os e tirando-os de seu contexto de conflitos e derrotas.

Esse estado também leva a esquerda a enfatizar demasiadamente a relevância das experiências históricas para o avanço estratégico em arranjos conjunturais muito diferentes, ou a procurar ansiosamente por características redentoras em projetos fracassados ou atores traiçoeiros.

Também nutre uma experiência atormentada, na qual o que foi perdido não pode ser recuperado, e que o que está errado não foi consertado precisamente por causa desse objeto perdido.”

 

 

“O medo e a ansiedade causados pela falta de síntese coletiva geram uma supervalorização de pequenas vitórias, na esperança de que elas superem as derrotas significativas ou passem a impressão de que a esquerda tem mais força.

O foco em uma política de performances é justificado como agitação, porém se enquadraria mais em uma técnica de publicidade, pois consiste menos em comunicar uma ideia concreta para a massa, como orientou Lenin, e muito mais em trabalhar com percepções midiáticas e discursivas da correlação de forças.

Muitas vezes, isso se traduz na preocupação com mostrar poder de convocatória em vez de construir poder de convocatória. Enquanto o primeiro pode ser trabalhado através de imagens e cálculos, o segundo depende de trabalho prévio, o mesmo que a esquerda radical encontra dificuldades para executar.

Ademais, como Lenin também postulava, a questão nunca foi de agitação ou propaganda, mas agitação e propaganda, e as ações de mobilização da esquerda através de significados comuns dependem da sua capacidade de difundir o trabalho teórico na classe trabalhadora.

Todavia, como mencionei anteriormente, um dos elementos da crise de práxis passa justamente pela contenção da teoria em círculos específicos na esquerda, sejam os intelectuais academicistas ou a vanguarda burocrática.

Esse panorama do foco na convocatória se apresentará conjuntamente na esquerda radical, mas também na moderada.”

 

 

“Baseada nessa relação, Jodi Dean escreve o seguinte sobre melancolia e gozo na esquerda, aqui pensando diretamente na esquerda melancólica descrita por Benjamin e que identificamos na esquerda moderada:

Agora se satisfaz com críticas e interpretações, pequenos projetos e ações locais, questões particulares e vitórias legislativas, arte, tecnologia, procedimentos e processos. Ela sublima o desejo revolucionário em pulsão democrática, em práticas repetitivas oferecidas como democracia (seja representativa, deliberativa ou radical). Tendo já concedido à inevitabilidade do capitalismo, ela abandona visivelmente “qualquer poder impressionante contra a grande burguesia”, para retornar à linguagem de Benjamin. Para tal esquerda, o gozo vem da sua retirada da responsabilidade, da sublimação de metas e responsabilidades em práticas segmentadas e fragmentadas da micropolítica, do autocuidado e da conscientização sobre problemas. Perpetuamente menosprezada, prejudicada e desfeita, esta esquerda permanece paralisada na repetição, incapaz de romper os circuitos de pulsão em que está presa, incapaz porque gosta deles.410

Essa descrição refere-se adequadamente à substituição de esforços revolucionários na micropolítica moderada e cotidiana, que, embora com importantes benefícios materiais para a base imediata envolvida, perde o potencial por falta de foco sistêmico e serve para manter o consentimento e a lealdade na base já estabelecida.

O pouco potencial para aumentar a base por meio da politização e do enfrentamento de desafios maiores é tolerado pelo conforto da base limitada, todavia leal, mas falha ao subestimar a volatilidade da base eleitoral.

Isso passou, por exemplo, em fortalecer micropolíticas de resiliência para o MST, como cooperativas e associações, que são importantes, mas que ocorreram em troca de políticas que poderiam ter fortalecido ainda mais o movimento, de políticas amplas de fomento à própria reforma agrária.

O mesmo pode ser dito sobre as escolhas corporativistas no setor sindical que podem favorecer uma categoria de trabalhadores em detrimento de uma luta mais ampla, que segmenta a classe trabalhadora e cria obstáculos à politização e à mobilização necessárias para promover a ação coletiva no nível de uma greve geral ou uma luta organizada pela redução da jornada de trabalho.

Ferida pela “inevitabilidade do capitalismo”, essa esquerda admite causas menores que melhorarão os padrões de vida da base, e um pouco além dela, mas sem perspectivas de transformação radical.

Falha por supor que essas garantias poderão ser defendidas pela permanência institucional da esquerda moderada no Estado, sendo que não pôde permanecer e tampouco conseguiu garantir essa seguridade durante sua permanência (ex.: o segundo mandato de Dilma e a agenda de austeridade).

O problema com a melancolia é que, embora a da esquerda radical difira na fonte e no raciocínio em relação à da esquerda moderada, seus sintomas podem ser semelhantes.

O histórico de derrotas enfrentadas pela esquerda radical, por causa da despolitização e da barreira que é o PT quando se trata de liderança, mobilização e organização (inclusive quando os governos do PT negociaram com movimentos de esquerda radicais de má-fé), aumenta a saudade de vitórias sistêmicas e locais.

A diferença é que vitórias locais e pequenas são mais atingíveis e ajudam a sustentar a base com a promessa de mais melhorias e um retorno para a sua luta diária.

Economias solidárias e cooperativas locais podem ser tão progressistas quanto às instituições de orçamento participativo em termos de capacitação da comunidade, melhoria de acesso e transparência sob democracia deliberativa e avanço social imediato para as partes envolvidas.

Além do fato delas servirem como pontes de resistência e solidariedade sob governos repressores, mas se transformadas em pilares de esquerda enquanto estratégias e não em táticas, essas soluções frequentemente contribuem ao fatalismo sobre a onipresença do sistema capitalista – e distraem dos desafios sistêmicos impostos às pessoas em geral, não apenas aos poucos organizados nos movimentos e partidos que promovem essas estratégias.”

410 Dean, The Communist Horizon, 174.

 

 

“Quanto à luta organizada da esquerda radical, é possível ver como pequenas vitórias são celebradas como se fossem grandes.

Às vezes, após uma ocupação do MTST, as famílias que ocupam o terreno seriam “convidadas” a sair sob a premissa de que o governo haveria assinado um acordo para expropriar o terreno para programas habitacionais.

No entanto, havia poucas garantias além de atas de negociação, e a viabilidade dos projetos ainda dependeria dos recursos liberados do Minha Casa Minha Vida.

Mesmo assim, para evitar o desânimo das famílias após as dificuldades da ocupação, era preferível entender a situação como uma vitória.

Enquanto há razão inclusive para a moral do movimento de projetar vitórias nesse sentido, o problema se estabelece quando essa lógica passa para outras ações da esquerda radical, especialmente aquelas com objetivos menos concretos e tangíveis. Isso é notável principalmente nos atos e manifestações.

Além do foco em performances como o fazer político, atos regulares convocados por frentes e lideranças ofereceriam a sensação de que a esquerda não estava parada e que agia contra os retrocessos, especialmente na fase Fora Temer, que durou, principalmente, entre o final de 2016 e o primeiro semestre de 2018.

Essa lógica se estabelece no fetiche do espetáculo da esquerda que, ciente de sua baixa capacidade de mobilização no último período, estabelece as ruas como campo de disputa com a direita, mas acaba substituindo o meio pelo fim.

Durante os atos do Fora Temer, era notável a fadiga de muitos militantes, que participavam das manifestações mais pela regularidade do que pela possibilidade de garantir vitórias concretas frente às políticas de Temer, quiçá realmente derrubá-lo.

Mesmo o momento em que a esquerda chegou mais perto de abalar as estruturas do governo Temer, entre a paralisação (Greve Geral) de abril de 2017 e o Ocupa Brasília, um mês depois, passou por disputas midiáticas quanto ao número de participantes para garantir a impressão de que a esquerda havia retomado sua capacidade de mobilização em massa.

Era evidente para lideranças veteranas da esquerda que não havia 250 mil pessoas no Ocupa Brasília, ainda mais para aqueles que conhecem bem o trajeto de manifestações no gramado da Esplanada dos Ministérios.

Mesmo assim, as notícias deveriam ser de grande vitória em números para compensar a derrota final de mais de quatro horas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, bombas de efeito moral e até disparos de armas de fogo efetuadas pela polícia naquela data.

Quando eu indagava a lideranças sobre o porquê dos números serem incompatíveis com a realidade, as respostas eram de duas naturezas: uns diziam que era pela “agitação,” já outros repetiam que eu deveria estar enganada, pois os números eram realmente massivos.

Logo no começo do capítulo eu mencionei a ponte entre o estado melancólico e o desenvolvimento de delírios de inferioridade.

Esses delírios podem ser alimentados pelo fatalismo e pela inação, mas em períodos de mania dependem da crença na efetividade da ação incessante. Por não confrontar sua crise de práxis como o nível de autoexame necessário, a esquerda busca satisfazer seus anseios por hegemonia através de pequenas doses de hegemonia nas ruas, muitas vezes com convocatórias a esmo.

Quando essa hegemonia nas ruas se mostra nada hegemônica, com números nos poucos milhares, bastaria, então, aplicar uma embalagem engrandecida com discursos de balanço favoráveis.

Isso será visto no enquadramento de negociações fracassadas com o governo em torno de demandas imediatas como “prometedoras”, no elogio do potencial político e mobilizador de uma multidão mesmo que ela estivesse pequena ou pouco envolvida com as demandas – ou nos balanços pré-escritos de campanhas eleitorais como vitoriosos, “apesar da derrota eleitoral”.

Embora esses quadros possam cumprir uma função de encorajamento, também resultado contrário ao esperado, dando a impressão de que o nível atual e a qualidade dos esforços são suficientes para atrair multidões para as ruas e fazer parecer que o engajamento já é alto.

Há também outra razão para o foco em performances nas ruas e nas manifestações com carros de som, grandes balões, faixas e bandeiras e discursos apaixonados.

Num momento em que a esquerda não consegue se coordenar para formar sínteses entre suas conclusões do passado e seus projetos do futuro, ainda mais com debates confinados aos acadêmicos ou atropelados pelo sectarismo, as ruas apresentam um dos poucos espaços em que acordos mínimos resultam em algum tipo de ação.

A esquerda reconhece que precisa oferecer respostas para a conjuntura, mas com sua práxis falha, as manifestações oferecem visibilidade e coordenação pontual que respondem, pelo menos, à própria esquerda e sua ansiedade por vitórias.

No entanto, seria ideal se o processo de mobilização, tão necessário para atingir objetivos de uma política radical, fosse pensado de acordo com uma estratégia de ação.

Isso evitaria a banalização do ato e do sentido de tomar as ruas. Evitaria também a fadiga militante presente nas marchas do ponto A até o ponto B, nas quais se clama determinadas palavras de ordem sem saber se, após o ato, todos terminariam no bar ou em uma delegacia, após uma rodada de gás lacrimogêneo.”

 

 

“Quando se gasta mais energia e tempo lutando para ser a “vanguarda da vanguarda” do que para interpelar multidões distantes de si mesmas na classe trabalhadora, a esquerda radical se torna refém de suas próprias contradições – e acaba enfraquecendo esforços reais de politização, ligados à construção de bases e à ação orgânica na classe trabalhadora.

Embora Gramsci faça uma crítica a isso em termos de frações partidárias, sua análise pode ser considerada, nesse contexto, como uma crítica das frações de esquerda no geral: “Cada fração partidária acredita ter a receita infalível para deter o enfraquecimento do partido como um todo, e usa todos os meios para assumir a liderança ou pelo menos participar dela.”429

Essa crítica fornece um palpite interessante sobre por que, talvez, a fragmentação seja um problema tão amplamente reconhecido na esquerda radical, mas que nunca é realmente abordado com as ferramentas necessárias para resolvê-lo.

Em vez de compreender construção de unidade de forma complexa, evitando os simplismos que claramente se demonstram inaptos (como as reduções de unidade a coalizões eleitorais), parece haver um sentimento geral na esquerda, principalmente na radical, de que, através da autoconstrução e da disputa hegemônica, uma organização ou um seleto grupo de organizações crescerá para tal hegemonia a ponto de assumir a liderança desse campo.

É quase como se a unidade pudesse ser construída somente por fagocitose.

Isso também alude a um certo distanciamento da ação diária e da consciência da classe trabalhadora, que acaba priorizando a liderança sobre a construção da base que deve fomentar, alternar, responsabilizar e interpelar de volta essa liderança.

Às vezes, isso é feito com a crença pura de que a organização de alguém tem o caminho para a revolução e, em vez de construir coletivamente esse caminho, todos os outros devem se unir.

O erro está no fato de que construir uma vanguarda sem construir uma base é tentar tomar atalhos que acabarão por mostrar sua fraqueza, porque, como me apontou Edson Índio (Intersindical-Central), a verdadeira questão nessa conjuntura não é uma crise de direção, mas uma crise da base para a qual a direção não significa muito.430

Quando entrevistei Guilherme Boulos (MTST) em 2015, ele relatou enxergar uma necessidade infantil de autoafirmação em alguns setores da esquerda que está relacionada a esse desejo de parecer o mais revolucionário, o diferente, de modo que o efeito acaba sendo o contrário do apelo autoproclamatório: quanto mais uma organização tenta parecer diferente, em vez de buscar sínteses coletivas, mais  divisão haverá.431

O problema da autoproclamação não é somente o purismo e o vanguardismo expressos ali, mas também a negação dos fundamentos básicos da representação de esquerda em forma e conteúdo radicais.

A capacidade de liderar a classe está relacionada não ao fato de que o partido “se proclama seu órgão revolucionário”, mas ao fato de que “realmente” consegue, como parte da classe trabalhadora, ligar-se a ela e a todas as seções dessa classe, imprimindo nas massas um movimento na direção desejada e favorecida pelas condições objetivas.432

429 Gramsci, The Antonio Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, 262.

430 Fernandes, “Conjunto de Entrevistas de Campo (2014-2016)”.

431 Fernandes.

432 Gramsci, The Antonio Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, 159.

 

 

Repolitizar, entretanto, não é fácil.

Torna-se ainda mais complicado em um cenário de interregno em que não somente os significados foram esvaziados e os significantes preenchidos com despolitização, mas quando a própria verdade e as interpretações concretas da realidade entram em cheque.

A esquerda brasileira atual encontra o desafio de lidar com a própria fragmentação enquanto busca combater fake news e o contexto de pós-verdade, que não somente atrapalha a politização como questiona e deslegitima significados não autorizados pelos articuladores da pós-verdade.

A pós-verdade geralmente depende do contexto de uma era em  que a cultura política é definida não por fatos, mas por emoções, apelos e discussões manipuladas.

A pós-verdade se relaciona com as fake news, no sentido da perda de credibilidade da reportagem de fatos que gera ceticismo na população.

Esse ceticismo, então, é manipulado de acordo com os apelos emocionais que levam a pessoa a acreditar naquilo que ela já está preparada para acreditar ou que lhe é mais confortável diante do senso comum, seus medos e que aparenta ser resposta para seu desamparo (mesmo que não seja).

As mentiras passam a ser levadas a sério, não por mera desinformação, mas porque compactuam com a versão da realidade reafirmada pelos afetos centrais do senso comum.”

 

 

As atividades de solidariedade e construção diária ajudam a trazer sentido para a tarefa de organização da classe trabalhadora.

Sem elas, debates políticos nos partidos, mesas nas universidades, panfletos bem formatados ou não, discursos nos carros de som, listas de transmissão no WhatsApp e canais no YouTube podem até trazer a mensagem correta de politização, mas talvez não farão sentido.

Para uma construção ser realmente coletiva, é preciso que a esquerda enxergue a base a ser interpelada e organizada como ator político também, e não como apenas um corpo a ser acionado quando a conjuntura chama.

Se o objetivo é organizar de forma politizada, o primeiro passo é reconhecer a enorme tarefa que é restaurar a práxis com sentido.”

Nenhum comentário: