Editora: Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-649-9
Opinião: ★★☆☆☆
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 392
Sinopse: Ver Parte
I
Elementos
ultrapolíticos em torno do ódio e da divisão da sociedade entre os cidadãos
merecedores e os maus cidadãos já podiam ser vistos na indignação seletiva em
torno do Bolsa-Família e na xenofobia expressa contra a base eleitoral do PT no
Nordeste do Brasil.
Em
vez do antagonismo da classe trabalhadora em direção à classe dominante, a
versão ultrapolítica da polarização se baseia na despolitização do conflito
como está, e sua canalização em um conflito que pode ser colocado em um quadro
simples, moralista e dualista nos termos da classe dominante e do senso comum
prevalecente. Essa dinâmica tem contribuído para diversas falsas dicotomias ou
falsas polarizações.
Isso
equaliza alguns projetos similares como se fossem opostos (ex.: a visão de
gestão econômica de Dilma e a de Aécio), cria comparações maniqueístas (ex.:
todo apoiador do PT seria um apoiador da corrupção), e nega um terceiro campo
da esquerda radical que se opõe à esquerda moderada, à direita dominante, bem
como à extrema-direita, cujo protagonismo tem crescido na promoção do discurso
do ódio e do fascismo vinculado ao elogio a ditadura militar (incluindo seus
métodos, como a tortura), bem como o racismo, a homofobia e o sexismo.
A
extrema-direita promove a ideia de que são os “comunistas que estão dividindo o
país,” o que é perigoso no modo como culpa a esquerda como única responsável
pela situação ultrapolítica e despolitizada no sentido de que associa toda a
esquerda ao comunismo e o comunismo a uma doutrina que cria conflitos
artificiais onde não existem.
A
propagação dessa visão alimenta sentimentos e violência fanáticos, de uma forma
que é prejudicial para novas atividades politizadoras e que fortalece projetos
específicos da extrema-direita.
O
bolsonarismo surge como fenômeno a partir dessas crenças e se ergue como uma
força autoritária que tem, inclusive, o objetivo de criminalizar tanto
movimentos sociais quanto a própria discussão do comunismo, tomando-o por
terrorismo.331
Projetos
como esse apelam para os elementos já protofascistas de Junho de 2013, que
apesar de serem uma minoria, foram significativos por se apropriarem da crise
de representação e conseguiram crescer através da onda conservadora e ao
depositarem seus sentimentos em uma liderança polêmica, populista e cujo
discurso já se alinhava com essas tendências fascistas.
A
proeminência de pastores evangélicos como Silas Malafaia e Marco Feliciano
também é mais uma evidência do papel do fundamentalismo religioso na onda
conservadora e na polarização focada na eliminação do outro – aqui com
conotações religiosas que associam a esquerda com tudo que é “maligno” e
espalham boatos sobre um suposto satanismo de Marx, Lenin e qualquer outra
figura da esquerda.
Žižek
argumenta que a lógica de núcleo do fascismo é essencialmente ultrapolítica,
até porque o líder fascista é enxergado como um guerreiro ou general de guerra.332
A
identidade militar e o apoio a uma política militarista por parte de Bolsonaro
ajudam a complementar a imagem desejável do líder ultrapolítico e contribui
para sua ascensão política eleição em 2018.
Bolsonaro
polarizou não somente com a esquerda e o PT, mas até mesmo com a direita
tradicional, e parte de seu sucesso se relaciona com quão poderosa sua imagem
mitológica se tornou.
A
partir disso é necessário estabelecer que a polarização sobre a qual a
ultrapolítica se constrói é falsa em alguns sentidos: não somente esconde o
antagonismo material da realidade, mas também distorce noções de esquerda e
direita, e constrói heróis em cima de inimigos idealizados e customizados para
o herói.
De
certa forma, a ultrapolítica despolitiza porque cria um conflito fictício sobre
conflitos reais, mas no intuito de deslegitimar os conflitos reais. É fato que
o PT e Bolsonaro apresentam projetos distintos e se opõem como esquerda
moderada x extrema-direita.
Todavia,
o discurso promovido pela campanha de Bolsonaro não se estruturou por meio de
projetos, e sim através de construções de narrativas em torno do PT e da
esquerda em geral, buscando promover ódio e repúdio ao comunismo, associando a
esquerda à corrupção e desvirtuando a situação econômica brasileira para
atribuir todo elemento da crise econômica atual a seus adversários.
A
associação do PT ao comunismo não somente é uma despolitização, mas torna clara
quão falsa é a polarização construída pela ultrapolítica.
O
PT, apesar de ter socialistas e comunistas em seu meio, não fez nenhum esforço
rumo a esses horizontes no passado, e seu transformismo torna isso bastante
evidente. Ademais, economicamente, há elementos da gestão petista que se
assemelham muito com propostas da direita, na relação com a burguesia nacional
e com a preocupação com fatores econômicos de mercado acima de propostas
sociais.
A
responsabilidade do PT na conjuntura econômica está muito mais atrelada à sua
indisposição a diminuir a desigualdade por meios mais radicais e enfrentar os
interesses empresariais, como elaborado por Laura Carvalho a respeito da gestão
de Dilma, do que a um suposto excesso de esquerdismo.
Assim,
Bolsonaro teve que despolitizar as explicações econômicas para culpabilizar o
PT e sua “gestão comunista” por terem afundado o Brasil, por conta da
roubalheira em nível de “trilhões”, para construir um Inimigo tão mítico como
seu heroísmo. No mais, esse tipo de despolitização específico contribuiu para
que Bolsonaro não tivesse que apresentar um plano econômico concreto para tirar
o Brasil da crise.
De
fato, a ultrapolítica oferece ao líder fascista inúmeras vantagens: da demonização
de seu adversário como um inimigo mítico à atribuição de superpoderes ao líder,
que aparecem como suficientes, fazendo o debate de projeto desnecessário.
Claro,
no debate ultrapolítico de Bolsonaro, a corrupção ocupa um dos centros de
conflito (os outros se estabelecem no punitivismo, no ufanismo e na exaltação
do cidadão de bem).
O
clamor anticorrupção em Junho abriu espaço para a pós-política, associando a
corrupção a todo o sistema político e a toda a classe de representantes
políticos.
A
anticorrupção foi logo ressignificada pelo discurso de direita como antipetismo
e, também, contribuiu para uma associação despolitizada com o comunismo e todas
as coisas de esquerda como fontes de corrupção.
A
corrupção é um inimigo adequado para a ultrapolítica, que, por figurar no
imaginário social de forma bastante abstrata, pode ser interpretada de maneira
diferente, apesar das tentativas de significar isso de maneiras reacionárias
específicas.
O
trabalho de associar o PT à corrupção, feito com a ajuda do próprio PT e do
próprio histórico de militantes em escândalos de corrupção, facilita a
associação e despolitiza o conflito do campo de projetos e antagonismos para o
campo moral e subjetivo.
Como
a conjuntura é despolitizada, o uso de termos ideológicos também se torna, de
certo modo, sem sentido. O PT atrapalha a esquerda continuando a se promover
como única esquerda viável.
Isso
gerou tensões com a esquerda radical, mas principalmente com a centro-esquerda
em 2018 – mediadas pela leitura em comum da conjuntura de enfrentamento a
Bolsonaro.
Ao
mesmo tempo, a direita se apropria dessa promoção do PT como única esquerda e a
utiliza para atribuir todos os problemas do PT à esquerda como um todo.
Isso
ignora o atual estado de fragmentação da esquerda e cria uma armadilha difícil
para a esquerda radical, na qual é odiada por sua associação com o PT de duas
maneiras paradoxais e falsas: ou é odiada por ser esquerda demais (isto é:
comunista/ameaça bolivariana) ou por não ter sido esquerda o suficiente (ou
seja: O PT é um traidor da esquerda, portanto a esquerda também é traidora).
Isto
é bastante notável durante os períodos eleitorais. Em 2014, Luciana Genro seria
acusada pela direita de ajudar o PT até quando criticava o PT e Dilma Rousseff.
Essa
associação tem sido prejudicial principalmente ao PSOL e ao MTST, enquanto o
tamanho menor do PSTU, do PCB e de outras organizações os protegem de uma
percepção de proximidade com o PT, mas ainda os expõem tanto ao sentimento
antiesquerda como ao anticomunismo.
Nada
disso ajuda na conexão com as massas, e faz da falsa polarização um processo de
apagamento da esquerda radical como ator e coloca sua política fora do campo de
possibilidades.”
331 Leandro Melito, “Eduardo
Bolsonaro Apresenta Projeto Que Criminaliza Comunismo” Portal ebc, May
24, 2016.
332 Žižek, The Ticklish
Subject, 193.
“A saída para a esquerda consiste em construir multidões mais
politizadas, o que, sem dúvida, requer esforços mais revigorados para a
construção de bases, que também envolvem a conscientização, no sentido
pedagógico crítico e na formação política.
Isso
significa que a criação de frentes e alianças precisa envolver o acúmulo de
forças na esquerda para a construção da base, em vez de simplesmente ter cada
organização trazendo seus próprios militantes para as ruas para formar uma
multidão maior, como tem sido com a maioria das pessoas envolvidas nas frentes
até então.
Falta
organicidade para além das convocatórias de atos e falta, talvez, um certo
nível de autocompreensão da esquerda sobre suas próprias dinâmicas ao redor de
tantas convocatórias deslocadas de um plano estratégico maior.”
“Quanto mais burocratizado o PT se tornava e quanto mais se distanciava
de ouvir as demandas da classe, mais recorria apenas a uma instrumentalização
dessas demandas para reproduzir seu próprio poder político-partidário.
Isso
significa que a base do PT e o povo em geral foram confrontados com uma redução
da luta de esquerda para que o PT pudesse se manter no poder institucional e
realizar ali algumas das demandas dessa base, embora podadas pela tática de
conciliação de classes.
O
fator acompanhante da despolitização, ainda em seus estágios iniciais, também
contribuiu para isso, impedindo as pessoas de perceber as contingências sociais
que levaram às suas próprias condições, confiando ao PT determinar quais
conflitos deveriam ser abordados primeiro e quais deveriam ser enfraquecidos
por causa da leitura de uma fraca correlação de forças na época.
Quanto
mais essa instrumentalização do povo pelo PT contribuísse para uma consciência
individual ossificada na base, concretizando-se na aceitação do discurso das
limitações da luta social diante do status quo, mais fragmentada essa
consciência se tornaria no nível coletivo.
Isso
foi agravado quando o PT chegou ao governo federal, já que as melhorias no
padrão de vida material da classe trabalhadora foram usadas como instrumentos
para que o partido mantivesse consentimento sem politização, reduzindo o debate
a questões micropolíticas de assistência social, consumo e individualidade como
formas de inclusão em um sistema supostamente meritocrático.”
“A
melancolia na esquerda radical, que ainda se apega aos ideais revolucionários,
pode se manifestar como saudosismo, embora seja um fenômeno mais
complexo e maior que ele.
Pelo
contrário, é mais bem entendido como uma mistura de saudade e ansiedade que
está frequentemente relacionada à dificuldade em criar sínteses definidas sobre
símbolos históricos e/ou atores da esquerda.
Esse
tipo de melancolia leva a esquerda a ansiar por tempos melhores e vitórias do
passado, muitas vezes idealizando-os, romantizando-os e tirando-os de seu
contexto de conflitos e derrotas.
Esse
estado também leva a esquerda a enfatizar demasiadamente a relevância das
experiências históricas para o avanço estratégico em arranjos conjunturais
muito diferentes, ou a procurar ansiosamente por características redentoras em
projetos fracassados ou atores traiçoeiros.
Também
nutre uma experiência atormentada, na qual o que foi perdido não pode ser
recuperado, e que o que está errado não foi consertado precisamente por causa
desse objeto perdido.”
“O
medo e a ansiedade causados pela falta de síntese coletiva geram uma
supervalorização de pequenas vitórias, na esperança de que elas superem as
derrotas significativas ou passem a impressão de que a esquerda tem mais força.
O
foco em uma política de performances é justificado como agitação, porém se
enquadraria mais em uma técnica de publicidade, pois consiste menos em
comunicar uma ideia concreta para a massa, como orientou Lenin, e muito mais em
trabalhar com percepções midiáticas e discursivas da correlação de forças.
Muitas
vezes, isso se traduz na preocupação com mostrar poder de convocatória em vez
de construir poder de convocatória. Enquanto o primeiro pode ser trabalhado
através de imagens e cálculos, o segundo depende de trabalho prévio, o mesmo
que a esquerda radical encontra dificuldades para executar.
Ademais,
como Lenin também postulava, a questão nunca foi de agitação ou propaganda, mas
agitação e propaganda, e as ações de mobilização da esquerda através de
significados comuns dependem da sua capacidade de difundir o trabalho teórico
na classe trabalhadora.
Todavia,
como mencionei anteriormente, um dos elementos da crise de práxis passa
justamente pela contenção da teoria em círculos específicos na esquerda, sejam
os intelectuais academicistas ou a vanguarda burocrática.
Esse
panorama do foco na convocatória se apresentará conjuntamente na esquerda
radical, mas também na moderada.”
“Baseada
nessa relação, Jodi Dean escreve o seguinte sobre melancolia e gozo na
esquerda, aqui pensando diretamente na esquerda melancólica descrita por
Benjamin e que identificamos na esquerda moderada:
Agora se satisfaz com críticas e interpretações,
pequenos projetos e ações locais, questões particulares e vitórias
legislativas, arte, tecnologia, procedimentos e processos. Ela sublima o desejo
revolucionário em pulsão democrática, em práticas repetitivas oferecidas como
democracia (seja representativa, deliberativa ou radical). Tendo já concedido à
inevitabilidade do capitalismo, ela abandona visivelmente “qualquer poder
impressionante contra a grande burguesia”, para retornar à linguagem de
Benjamin. Para tal esquerda, o gozo vem da sua retirada da responsabilidade, da
sublimação de metas e responsabilidades em práticas segmentadas e fragmentadas
da micropolítica, do autocuidado e da conscientização sobre problemas.
Perpetuamente menosprezada, prejudicada e desfeita, esta esquerda permanece
paralisada na repetição, incapaz de romper os circuitos de pulsão em que está
presa, incapaz porque gosta deles.410
Essa
descrição refere-se adequadamente à substituição de esforços revolucionários na
micropolítica moderada e cotidiana, que, embora com importantes benefícios
materiais para a base imediata envolvida, perde o potencial por falta de foco
sistêmico e serve para manter o consentimento e a lealdade na base já
estabelecida.
O
pouco potencial para aumentar a base por meio da politização e do enfrentamento
de desafios maiores é tolerado pelo conforto da base limitada, todavia leal,
mas falha ao subestimar a volatilidade da base eleitoral.
Isso
passou, por exemplo, em fortalecer micropolíticas de resiliência para o MST,
como cooperativas e associações, que são importantes, mas que ocorreram em
troca de políticas que poderiam ter fortalecido ainda mais o movimento, de
políticas amplas de fomento à própria reforma agrária.
O
mesmo pode ser dito sobre as escolhas corporativistas no setor sindical que
podem favorecer uma categoria de trabalhadores em detrimento de uma luta mais
ampla, que segmenta a classe trabalhadora e cria obstáculos à politização e à
mobilização necessárias para promover a ação coletiva no nível de uma greve
geral ou uma luta organizada pela redução da jornada de trabalho.
Ferida
pela “inevitabilidade do capitalismo”, essa esquerda admite causas menores que
melhorarão os padrões de vida da base, e um pouco além dela, mas sem
perspectivas de transformação radical.
Falha
por supor que essas garantias poderão ser defendidas pela permanência
institucional da esquerda moderada no Estado, sendo que não pôde permanecer e
tampouco conseguiu garantir essa seguridade durante sua permanência (ex.: o
segundo mandato de Dilma e a agenda de austeridade).
O
problema com a melancolia é que, embora a da esquerda radical difira na fonte e
no raciocínio em relação à da esquerda moderada, seus sintomas podem ser
semelhantes.
O
histórico de derrotas enfrentadas pela esquerda radical, por causa da
despolitização e da barreira que é o PT quando se trata de liderança, mobilização
e organização (inclusive quando os governos do PT negociaram com movimentos de
esquerda radicais de má-fé), aumenta a saudade de vitórias sistêmicas e locais.
A
diferença é que vitórias locais e pequenas são mais atingíveis e ajudam a
sustentar a base com a promessa de mais melhorias e um retorno para a sua luta
diária.
Economias
solidárias e cooperativas locais podem ser tão progressistas quanto às
instituições de orçamento participativo em termos de capacitação da comunidade,
melhoria de acesso e transparência sob democracia deliberativa e avanço social
imediato para as partes envolvidas.
Além
do fato delas servirem como pontes de resistência e solidariedade sob governos
repressores, mas se transformadas em pilares de esquerda enquanto estratégias e
não em táticas, essas soluções frequentemente contribuem ao fatalismo sobre a
onipresença do sistema capitalista – e distraem dos desafios sistêmicos
impostos às pessoas em geral, não apenas aos poucos organizados nos movimentos
e partidos que promovem essas estratégias.”
410 Dean, The Communist
Horizon, 174.
“Quanto
à luta organizada da esquerda radical, é possível ver como pequenas vitórias
são celebradas como se fossem grandes.
Às
vezes, após uma ocupação do MTST, as famílias que ocupam o terreno seriam
“convidadas” a sair sob a premissa de que o governo haveria assinado um acordo
para expropriar o terreno para programas habitacionais.
No
entanto, havia poucas garantias além de atas de negociação, e a viabilidade dos
projetos ainda dependeria dos recursos liberados do Minha Casa Minha Vida.
Mesmo
assim, para evitar o desânimo das famílias após as dificuldades da ocupação,
era preferível entender a situação como uma vitória.
Enquanto
há razão inclusive para a moral do movimento de projetar vitórias nesse sentido,
o problema se estabelece quando essa lógica passa para outras ações da esquerda
radical, especialmente aquelas com objetivos menos concretos e tangíveis. Isso
é notável principalmente nos atos e manifestações.
Além
do foco em performances como o fazer político, atos regulares convocados por
frentes e lideranças ofereceriam a sensação de que a esquerda não estava parada
e que agia contra os retrocessos, especialmente na fase Fora Temer, que durou,
principalmente, entre o final de 2016 e o primeiro semestre de 2018.
Essa
lógica se estabelece no fetiche do espetáculo da esquerda que, ciente de sua
baixa capacidade de mobilização no último período, estabelece as ruas como
campo de disputa com a direita, mas acaba substituindo o meio pelo fim.
Durante
os atos do Fora Temer, era notável a fadiga de muitos militantes, que
participavam das manifestações mais pela regularidade do que pela possibilidade
de garantir vitórias concretas frente às políticas de Temer, quiçá realmente
derrubá-lo.
Mesmo
o momento em que a esquerda chegou mais perto de abalar as estruturas do
governo Temer, entre a paralisação (Greve Geral) de abril de 2017 e o Ocupa
Brasília, um mês depois, passou por disputas midiáticas quanto ao número de
participantes para garantir a impressão de que a esquerda havia retomado sua
capacidade de mobilização em massa.
Era
evidente para lideranças veteranas da esquerda que não havia 250 mil pessoas no
Ocupa Brasília, ainda mais para aqueles que conhecem bem o trajeto de
manifestações no gramado da Esplanada dos Ministérios.
Mesmo
assim, as notícias deveriam ser de grande vitória em números para compensar a
derrota final de mais de quatro horas de gás lacrimogêneo, balas de borracha,
bombas de efeito moral e até disparos de armas de fogo efetuadas pela polícia
naquela data.
Quando
eu indagava a lideranças sobre o porquê dos números serem incompatíveis com a
realidade, as respostas eram de duas naturezas: uns diziam que era pela
“agitação,” já outros repetiam que eu deveria estar enganada, pois os números eram
realmente massivos.
Logo
no começo do capítulo eu mencionei a ponte entre o estado melancólico e o
desenvolvimento de delírios de inferioridade.
Esses
delírios podem ser alimentados pelo fatalismo e pela inação, mas em períodos de
mania dependem da crença na efetividade da ação incessante. Por não confrontar
sua crise de práxis como o nível de autoexame necessário, a esquerda busca
satisfazer seus anseios por hegemonia através de pequenas doses de hegemonia
nas ruas, muitas vezes com convocatórias a esmo.
Quando
essa hegemonia nas ruas se mostra nada hegemônica, com números nos poucos
milhares, bastaria, então, aplicar uma embalagem engrandecida com discursos de
balanço favoráveis.
Isso
será visto no enquadramento de negociações fracassadas com o governo em torno
de demandas imediatas como “prometedoras”, no elogio do potencial político e
mobilizador de uma multidão mesmo que ela estivesse pequena ou pouco envolvida
com as demandas – ou nos balanços pré-escritos de campanhas eleitorais como
vitoriosos, “apesar da derrota eleitoral”.
Embora
esses quadros possam cumprir uma função de encorajamento, também resultado
contrário ao esperado, dando a impressão de que o nível atual e a qualidade dos
esforços são suficientes para atrair multidões para as ruas e fazer parecer que
o engajamento já é alto.
Há
também outra razão para o foco em performances nas ruas e nas manifestações com
carros de som, grandes balões, faixas e bandeiras e discursos apaixonados.
Num
momento em que a esquerda não consegue se coordenar para formar sínteses entre
suas conclusões do passado e seus projetos do futuro, ainda mais com debates
confinados aos acadêmicos ou atropelados pelo sectarismo, as ruas apresentam um
dos poucos espaços em que acordos mínimos resultam em algum tipo de ação.
A
esquerda reconhece que precisa oferecer respostas para a conjuntura, mas com
sua práxis falha, as manifestações oferecem visibilidade e coordenação pontual
que respondem, pelo menos, à própria esquerda e sua ansiedade por vitórias.
No
entanto, seria ideal se o processo de mobilização, tão necessário para atingir
objetivos de uma política radical, fosse pensado de acordo com uma estratégia
de ação.
Isso
evitaria a banalização do ato e do sentido de tomar as ruas. Evitaria também a
fadiga militante presente nas marchas do ponto A até o ponto B, nas quais se
clama determinadas palavras de ordem sem saber se, após o ato, todos
terminariam no bar ou em uma delegacia, após uma rodada de gás lacrimogêneo.”
“Quando
se gasta mais energia e tempo lutando para ser a “vanguarda da vanguarda” do
que para interpelar multidões distantes de si mesmas na classe trabalhadora, a
esquerda radical se torna refém de suas próprias contradições – e acaba
enfraquecendo esforços reais de politização, ligados à construção de bases e à
ação orgânica na classe trabalhadora.
Embora
Gramsci faça uma crítica a isso em termos de frações partidárias, sua análise
pode ser considerada, nesse contexto, como uma crítica das frações de esquerda
no geral: “Cada fração partidária acredita ter a receita infalível para deter o
enfraquecimento do partido como um todo, e usa todos os meios para assumir a
liderança ou pelo menos participar dela.”429
Essa
crítica fornece um palpite interessante sobre por que, talvez, a fragmentação
seja um problema tão amplamente reconhecido na esquerda radical, mas que nunca
é realmente abordado com as ferramentas necessárias para resolvê-lo.
Em
vez de compreender construção de unidade de forma complexa, evitando os
simplismos que claramente se demonstram inaptos (como as reduções de unidade a
coalizões eleitorais), parece haver um sentimento geral na esquerda,
principalmente na radical, de que, através da autoconstrução e da disputa
hegemônica, uma organização ou um seleto grupo de organizações crescerá para
tal hegemonia a ponto de assumir a liderança desse campo.
É
quase como se a unidade pudesse ser construída somente por fagocitose.
Isso
também alude a um certo distanciamento da ação diária e da consciência da
classe trabalhadora, que acaba priorizando a liderança sobre a construção da
base que deve fomentar, alternar, responsabilizar e interpelar de volta essa
liderança.
Às
vezes, isso é feito com a crença pura de que a organização de alguém tem o
caminho para a revolução e, em vez de construir coletivamente esse caminho,
todos os outros devem se unir.
O
erro está no fato de que construir uma vanguarda sem construir uma base é
tentar tomar atalhos que acabarão por mostrar sua fraqueza, porque, como me
apontou Edson Índio (Intersindical-Central), a verdadeira questão nessa
conjuntura não é uma crise de direção, mas uma crise da base para a qual a
direção não significa muito.430
Quando
entrevistei Guilherme Boulos (MTST) em 2015, ele relatou enxergar uma
necessidade infantil de autoafirmação em alguns setores da esquerda que está
relacionada a esse desejo de parecer o mais revolucionário, o diferente, de
modo que o efeito acaba sendo o contrário do apelo autoproclamatório: quanto
mais uma organização tenta parecer diferente, em vez de buscar sínteses
coletivas, mais divisão haverá.431
O
problema da autoproclamação não é somente o purismo e o vanguardismo expressos
ali, mas também a negação dos fundamentos básicos da representação de esquerda
em forma e conteúdo radicais.
A
capacidade de liderar a classe está relacionada não ao fato de que o partido
“se proclama seu órgão revolucionário”, mas ao fato de que “realmente”
consegue, como parte da classe trabalhadora, ligar-se a ela e a todas as seções
dessa classe, imprimindo nas massas um movimento na direção desejada e favorecida
pelas condições objetivas.432”
429 Gramsci, The Antonio
Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, 262.
430 Fernandes, “Conjunto de
Entrevistas de Campo (2014-2016)”.
431 Fernandes.
432 Gramsci, The Antonio
Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, 159.
“Repolitizar, entretanto, não é fácil.
Torna-se
ainda mais complicado em um cenário de interregno em que não somente os
significados foram esvaziados e os significantes preenchidos com despolitização,
mas quando a própria verdade e as interpretações concretas da realidade entram
em cheque.
A
esquerda brasileira atual encontra o desafio de lidar com a própria
fragmentação enquanto busca combater fake news e o contexto de
pós-verdade, que não somente atrapalha a politização como questiona e
deslegitima significados não autorizados pelos articuladores da pós-verdade.
A
pós-verdade geralmente depende do contexto de uma era em que a cultura política é definida não por
fatos, mas por emoções, apelos e discussões manipuladas.
A
pós-verdade se relaciona com as fake news, no sentido da perda de
credibilidade da reportagem de fatos que gera ceticismo na população.
Esse
ceticismo, então, é manipulado de acordo com os apelos emocionais que levam a
pessoa a acreditar naquilo que ela já está preparada para acreditar ou que lhe
é mais confortável diante do senso comum, seus medos e que aparenta ser
resposta para seu desamparo (mesmo que não seja).
As
mentiras passam a ser levadas a sério, não por mera desinformação, mas porque
compactuam com a versão da realidade reafirmada pelos afetos centrais do senso
comum.”
“As atividades de solidariedade e construção diária ajudam a trazer
sentido para a tarefa de organização da classe trabalhadora.
Sem
elas, debates políticos nos partidos, mesas nas universidades, panfletos bem
formatados ou não, discursos nos carros de som, listas de transmissão no
WhatsApp e canais no YouTube podem até trazer a mensagem correta de
politização, mas talvez não farão sentido.
Para
uma construção ser realmente coletiva, é preciso que a esquerda enxergue a base
a ser interpelada e organizada como ator político também, e não como apenas um
corpo a ser acionado quando a conjuntura chama.
Se
o objetivo é organizar de forma politizada, o primeiro passo é reconhecer a
enorme tarefa que é restaurar a práxis com sentido.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário