Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-322-6
Tradução: Rubens
Enderle
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 336
Sinopse: Ver Parte
I
“É espantoso com que frequência “a propriedade,
a religião, a família e a sociedade” são repetidas como um mantra ideológico para
proteger a ordem burguesa estabelecida.”
“Quando “observamos o processo de produção do ponto de vista do processo de
valorização”, percebemos que os “meios de produção converteram-se imediatamente
em meios para a sucção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega
os meios de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador”. Essa
mudança lógica e histórica ocupa o cerne de uma transformação radical na forma como
o modo de produção capitalista tem de ser entendido. “Em vez de serem consumidos
por ele como elementos materiais de sua atividade produtiva”, são os meios de produção
que “o consomem como fermento de seu próprio processo vital, e o processo vital
do capital não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo” (382).
Isso se segue do simples fato de que o valor dos meios de produção (o trabalho morto
congelado nas fábricas, nos fusos e nas máquinas) só pode ser preservado (para não
dizer aumentado na forma de mais-valor) pela absorção da oferta de trabalho vivo
sempre renovada. Para o “cérebro burguês”, a conclusão é que os trabalhadores existem
apenas para valorizar o capital por meio da aplicação de sua força de trabalho!
O capitalismo
abomina qualquer tipo de limite, precisamente porque a acumulação de dinheiro é,
em princípio, ilimitada. Por isso, o capitalismo se esforça constantemente para
transcender todos os limites (ambientais, sociais, políticos e geográficos) e transformá-los
em barreiras que possam ser transpostas ou contornadas. Isso dá um caráter definido
e especial ao modo de produção capitalista e impõe consequências históricas e geográficas
ao seu desenvolvimento.”
““Se, por exemplo, um capitalista individual barateia camisas por meio do
aumento da força produtiva do trabalho, isso de modo algum implica que ele tenha
em vista reduzir o valor da força de trabalho e, com isso, o tempo de trabalho necessário
pro tanto.” O capitalista individual, mesmo contribuindo “para aumentar a
taxa geral do mais-valor”, não age com base numa consciência de classe generalizada.
Marx adverte: “é preciso que as tendências gerais e necessárias do capital sejam
diferenciadas de suas formas de manifestação”. Essa formulação peculiar é sinal
de que algo especial está acontecendo (há cheiro de fetichismo no ar). O quê?
Não nos ocuparemos, por ora, do modo como as leis
imanentes da produção capitalista se manifestam no movimento externo dos capitais,
impondo-se como leis compulsórias da concorrência e apresentando-se à mente do capitalista
individual como a força motriz de suas ações. Porém, esclareçamos de antemão: a
análise científica da concorrência só é possível quando se apreende a natureza interna
do capital, do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes só é compreensível
para quem conhece seu movimento real, apesar de sensorialmente imperceptível. (390-1)
Temos
de pensar muito, crítica e cuidadosamente, sobre o que ele diz aqui. Sugeri que
deveríamos ficar atentos ao momento em que as leis coercitivas da concorrência aparecessem
na argumentação. Este é, sem dúvida, o momento a que me referi. Marx, porém, parece
querer diminuir a importância dessas leis, mesmo reconhecendo que não pode prescindir
delas. Em relação a esse ponto, posso oferecer apenas minha própria interpretação,
tendo plena consciência de que muitos discordarão de mim. Penso que há um paralelo
entre o modo como Marx analisa o papel das flutuações da oferta e da demanda e o
papel da concorrência. No caso da oferta e da demanda, Marx admite que tais condições
têm um papel vital na geração de variações de preço de uma mercadoria em particular,
mas, quando a oferta e a demanda estão em equilíbrio, diz ele, elas deixam de explicar
tudo. A explicação tem de vir de algo totalmente distinto, a saber, o tempo de trabalho
socialmente necessário, ou valor. Isso não significa que a oferta e a demanda sejam
irrelevantes – sem elas não poderia haver equilíbrio de preços. As relações de oferta
e demanda são um aspecto necessário do modo de produção capitalista, mas não suficiente.
A concorrência entre capitalistas individuais no interior de dada linha de produção
de mercadorias desempenha um papel similar. Nesse exemplo, no entanto, ela redefine
a posição de equilíbrio – o preço médio ou valor da mercadoria – por meio de mudanças
no nível geral da produtividade naquela linha de produção de mercadorias. A concorrência,
tal como Marx a descreve aqui, é uma espécie de epifenômeno que ocorre na superfície
da sociedade, mas que, como a própria troca, tem algumas consequências mais profundas,
que não podem ser entendidas com referência à concorrência. Esta é a posição que
ele assume nos Grundrisse:
a competição não estabelece as leis de movimento do capitalismo,
mas é sua executora. Por essa razão, a concorrência
ilimitada não é o pressuposto para a verdade das leis econômicas, mas a consequência
– a forma de manifestação em que sua necessidade se realiza. [...] Por isso, a concorrência
não explica essas leis; ao contrário, as torna visíveis, mas não as produz.[a]
Vejamos
como tal processo se dá nesse exemplo. “Para que se compreenda a produção do mais-valor
relativo com base apenas nos resultados já obtidos, devemos proceder às seguintes
observações” (391). Lembramos que o valor de uma mercadoria é fixado pelo “tempo
de trabalho socialmente necessário [...] requerido para produzir um valor de uso
qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio
de destreza e intensidade do trabalho” (117). O que acontece se um capitalista individual
parte dessa média social e cria um sistema produtivo supereficiente, que, em vez
de produzir dez artigos em uma hora, produz vinte? Se um capitalista faz isso, enquanto
os outros continuam a produzir dez artigos por hora, então ele pode vender por um
preço social médio de dez, embora produzindo e vendendo vinte. “O valor individual
dessa mercadoria se encontra, agora, abaixo de seu valor social, isto é, ela custa
menos tempo de trabalho do que a grande quantidade do mesmo artigo produzida em
condições sociais médias” (391). O capitalista inovador ganha um lucro extra, um
mais-valor extra, ao vender por um preço social médio, embora sua produtividade
seja muito maior do que a média social. Essa diferença é crucial e gera uma forma
de mais-valor relativo para o capitalista individual. Nesse caso, não importa se
o capitalista está produzindo bens de primeira necessidade ou artigos de luxo. Mas
como esse capitalista vende os dez artigos extras que produziu em uma hora pelo
preço social médio antigo? Aqui entram em cena as leis da oferta e da demanda. E
a resposta é, provavelmente, que esses artigos não podem ser vendidos pelo preço
antigo. Logo, os preços têm de cair, o que faz com que os outros capitalistas tenham
um lucro menor. Isso provoca uma redistribuição do mais-valor daqueles que empregam
tecnologias inferiores para aqueles que empregam tecnologias superiores. Os que
trabalham com tecnologias inferiores têm um estímulo competitivo maior para adotar
a nova tecnologia. Uma vez que todos os capitalistas que atuam nessa linha de produção
adotem a nova tecnologia e produzam vinte artigos por hora, ocorre uma queda do
tempo de trabalho socialmente necessário incorporado nos artigos.
Essa forma
de mais-valor relativo apropriada pelo capitalista individual só dura enquanto ele
possuir uma tecnologia superior à dos outros capitalistas. Ela é efêmera.
Esse mais-valor adicional desaparece assim que o
novo modo de produção se universaliza e apaga-se a diferença entre o valor individual
das mercadorias barateadas e seu valor social. A mesma lei da determinação do valor
pelo tempo de trabalho, que se apresentou ao capitalista, juntamente com o novo
método de produção, sob a forma de que ele é obrigado a vender sua mercadoria abaixo
de seu valor social, força seus concorrentes, como lei compulsória da concorrência,
à aplicação do novo modo de produção. (393) (...)
Mas um capitalista comedido sabe que sempre pode
obter essa segunda forma efêmera de mais-valor relativo, contanto que tenha uma
tecnologia superior. Isso leva a alguns resultados interessantes. Suponhamos que
a nova tecnologia seja uma nova máquina. Marx afirmou que as máquinas, porque são
trabalho morto, não produzem valor. Mas o que acontece se você consegue um mais-valor
relativo extra por causa de uma nova máquina? Embora não sejam uma fonte de valor,
máquinas podem ser uma fonte de mais-valor relativo para o capitalista individual!
Assim que elas se generalizam, pode parecer que são uma fonte de mais-valor relativo
para a classe capitalista, por causa da diminuição provocada no valor da força de
trabalho. Isso gera um resultado peculiar: as máquinas não podem ser uma fonte de
valor, mas podem ser uma fonte de mais-valor.
Do modo como Marx expõe o argumento, vemos que
há um tremendo incentivo para que os capitalistas individuais adotem inovações tecnológicas.
Saio na frente, tenho um sistema de produção superior, mais eficiente do que o seu,
e durante três anos ganho mais-valor efêmero; então você me alcança, ou até me ultrapassa,
e consegue mais-valor efêmero durante três anos, e assim sucessivamente. Os capitalistas
estão todos à caça de mais-valor efêmero por meio de novas tecnologias. Decorre
daí o dinamismo tecnológico do capitalismo.
A maioria das teorias da mudança tecnológica trata
a inovação como uma espécie de deus ex machina, uma variável exógena, externa
ao sistema, que pode ser atribuída ao gênio inerente dos empresários ou simplesmente
à capacidade de inovação própria dos seres humanos. Mas Marx reluta em atribuir
algo tão crucial a uma potência externa. O que faz aqui é encontrar uma explicação
interna (endógena, como preferimos dizer) para o fato de o capitalismo ser tão incrivelmente
dinâmico do ponto de vista tecnológico. Ele também explica por que os capitalistas
sustentam a visão fetichista de que as máquinas são uma fonte de valor, e por que
todos nós estamos sujeitos à mesma concepção fetichista. Mas ele está convencido
de que as máquinas são uma fonte de mais-valor relativo, e não de valor. Como os
capitalistas estão interessados na massa de mais-valor, e como geralmente preferem
ganhar mais-valor relativo do que travar uma luta de classes pelo mais-valor absoluto,
a crença fetichista num “remédio tecnológico” como resposta a suas ambições é perfeitamente
compreensível. Temos até de fazer um grande esforço para nos livrar dessa crença.
Mas há
uma questão interessante que Marx não considera, embora faça alusão a ela em outro
lugar. Suponha que os trabalhadores vivam apenas de pão, e que o custo do pão caia
pela metade em razão de um aumento na produtividade. Suponha também que os capitalistas
cortem os salários em um quarto. Com isso, eles ganham a forma coletiva de mais-valor
relativo e aumentam a taxa geral de exploração. Ao mesmo tempo, porém, os trabalhadores
podem comprar mais pão e aumentam seu padrão de vida físico. A questão geral que
se coloca é: como os ganhos derivados do aumento da produtividade são distribuídos
entre as classes? Uma possibilidade, que Marx infelizmente não enfatiza, é que o
padrão de vida físico dos trabalhadores – medido pelos bens materiais (valores de
uso) que eles têm condições de adquirir – pode aumentar, ao mesmo tempo que aumenta
a taxa de exploração (mv/v). Esse é um ponto importante, porque uma das críticas
mais frequentes a Marx é que ele acredita numa taxa crescente de exploração. Como
isso é possível, perguntam os críticos? Se os trabalhadores (ao menos nos países
capitalistas avançados) têm carros e muitos outros bens de consumo, é óbvio que
a taxa de exploração não pode estar aumentando! Os trabalhadores não estão vivendo
em condições muito melhores? Parte da resposta é que é perfeitamente possível, nos
termos postulados pela teoria de Marx, que aumentos constantes no padrão de vida
do trabalhador sejam acompanhados de uma taxa de exploração crescente ou constante.
(Outra parte da resposta pode ser encontrada nos benefícios que uma parcela da classe
trabalhadora global tem com as práticas imperialistas de exploração da outra parcela,
mas não podemos usar esse argumento aqui.)
Digo que
é lamentável que Marx não tenha enfatizado esse ponto, em parte porque teria evitado
uma linha errônea e espúria de crítica teórica e histórica. Mas também porque nos
faria focar mais claramente o aspecto crucial da história da luta de classes: a
questão da distribuição dos benefícios obtidos com os ganhos de produtividade. No
caso dos Estados Unidos, uma parte dos ganhos obtidos com o aumento da produtividade
foi destinada aos trabalhadores a partir da Guerra Civil. Uma estratégia de barganha
tipicamente sindical colabora, de fato, para a obtenção de salários maiores como
recompensa por uma produtividade maior. Se os benefícios obtidos com o dinamismo
tecnológico são distribuídos, a oposição a esse dinamismo tecnológico torna-se impotente,
ainda que os capitalistas aumentem a taxa de exploração. É possível também que,
pelo fato de os trabalhadores terem enfim alcançado um bom padrão de vida, a oposição
política ao capitalismo em geral seja menos estridente, mesmo com uma taxa de exploração
crescente. O que é estranho no caso dos Estados Unidos é que os trabalhadores deixaram
de ganhar com o aumento da produtividade apenas nos últimos trinta anos. A classe
capitalista passou a se apropriar de quase todos os benefícios. Isso está no cerne
da contrarrevolução neoliberal e é o que a distingue do período keynesiano do Estado
de bem-estar social, quando os ganhos obtidos com o aumento da produtividade tendiam
a ser distribuídos mais equitativamente entre o capital e o trabalho. O resultado
foi, como está bem documentado, um tremendo aumento nos níveis de desigualdade social
em todos os países que adotaram políticas neoliberais. Isso tem a ver em parte com
o equilíbrio de forças entre as classes e a dinâmica da luta de classes, mas especificamente
nos Estados Unidos as importações mais baratas (e as práticas imperialistas) também
ajudaram a manter a ilusão dos trabalhadores de que talvez estivessem se beneficiando
com o imperialismo capitalista. Mas isso vai muito além daquilo que o texto de Marx
nos propõe. No entanto, acredito que seja útil estender os insights mais
importantes de Marx nessa direção.”
[a] Karl Marx, Grundrisse,
cit., p. 456. (N. E.)
“Os capitalistas amam a organização planejada da produção em suas fábricas,
mas abominam a ideia de qualquer tipo de planejamento social da produção na sociedade.
A acusação ideológica de que o planejamento é nocivo e, em particular, a crítica
dos capitalistas de que ele reformularia o mundo à imagem de suas terríveis fábricas
é reveladora. A condenação do planejamento não se confunde com o que acontece na
Toyota ou no Walmart. Empresas de sucesso empregam técnicas sofisticadas de gerenciamento
de qualidade total, análises de input-output, planejamento e design
de otimização, prevendo tudo até em seus mínimos detalhes. Para Marx, porém, uma
coisa é denunciar a hipocrisia dos capitalistas em relação ao planejamento no terreno
social e outra bem diferente é sugerir que suas técnicas indubitavelmente sofisticadas,
aplicadas para obtenção do mais-valor relativo, possam ser apropriadas para o planejamento
de uma sociedade socialista, cuja finalidade é o aumento do bem-estar material de
todos. Em suma, seria razoável transformar o mundo numa economia com planejamento
centralizado ou numa grande fábrica para chegar ao socialismo? Obviamente, haveria
problemas, se considerarmos a descrição que Marx faz das terríveis condições de
trabalho nas fábricas. Mas se o problema não está nas técnicas em si, mas no fato
de que são usadas para obter mais-valor relativo para o capitalista, e não para
produzir artigos voltados para a satisfação das necessidades de todos, então a defesa
de Lenin do sistema fordista de produção como um objetivo para a indústria soviética
torna-se mais compreensível.
Certamente,
o argumento de que o planejamento centralizado é impossível por causa do seu grau
de complexidade ou porque fere as relações de propriedade privada não convence;
basta pensar na complexidade envolvida em qualquer grande indústria que produza,
por exemplo, produtos eletrônicos e na despossessão do direito dos trabalhadores
aos frutos de seu próprio trabalho. As incríveis deficiências do sistema de mercado
(particularmente em relação ao meio ambiente) e a brutalidade periódica das leis
coercitivas da concorrência, além do crescente despotismo que essa coerção produz
nos locais de trabalho, são grandes argumentos a favor da superioridade da regulação
do mercado. E a ideia de que a inovação só é possível quando são assegurados os
direitos da propriedade individual e o domínio das leis da concorrência é certamente
inverossímil, tanto lógica quanto historicamente. Pois, a meu ver, o que mais impressiona
Marx aqui é a apropriação das forças produtivas do trabalho pelo capital. Ele insiste
em dizer à classe trabalhadora que essas forças de cooperação e divisão do trabalho
são suas forças produtivas e que o capital está se apropriando delas.
Por isso, a força produtiva que nasce da combinação
dos trabalhos aparece como força produtiva do capital. A manufatura propriamente
dita não só submete ao comando e à disciplina do capital o trabalhador antes independente,
como também cria uma estrutura hierárquica entre os próprios trabalhadores.
As implicações
para os trabalhadores são enormes.
Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração,
promovendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um
mundo de impulsos e capacidades produtivas, do mesmo modo como, nos Estados de La
Plata, um animal inteiro é abatido apenas para a retirada da pele ou do sebo. Não
só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos,
como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho
parcial, conferindo assim realidade à fábula absurda de Menênio Agripa[b], que representa um ser humano como mero fragmento de seu próprio corpo.
(434)
Assim,
o corpo político é configurado de modo tal que os trabalhadores são reduzidos a
fragmentos vivos de si mesmos. “Por sua própria natureza incapacitado” – e Marx
é irônico aqui – “para fazer algo autônomo, o trabalhador manufatureiro só desenvolve
atividade produtiva como elemento acessório da oficina do capitalista.” Infelizmente,
As potências intelectuais da produção, ampliando
sua escala, por um lado desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores parciais
perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira
do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção
como propriedade alheia e como poder que os domina.
O trabalho
intelectual torna-se uma função especializada, separando o trabalho mental daquele
manual e submetendo cada vez mais o primeiro ao controle do capital.
Esse processo de cisão começa na cooperação simples,
em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e
a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila
o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, ele se consuma na grande indústria,
que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a
servir ao capital. (435)
O resultado
disso é um “empobrecimento do trabalhador” e uma séria perda de “forças produtivas,
individuais”. As subjetividades políticas e intelectuais não permanecem imunes.
E aqui Marx cita Adam Smith, não necessariamente em tom de aprovação, mas como um
testemunho de algo que se torna, cada vez mais, uma matéria de fato:
“A mente da grande maioria dos homens”, diz A. Smith,
“desenvolve-se necessariamente a partir de e por meio de suas ocupações diárias.
Um homem que consome toda a sua vida na execução de umas poucas operações simples
[...] não tem nenhuma oportunidade de exercitar sua inteligência. [...] Ele se torna,
em geral, tão estúpido e ignorante quanto é possível a uma criatura humana.” E,
depois de descrever a estupidificação do trabalhador parcial, Smith prossegue: “A
uniformidade de sua vida estacionária também corrompe, naturalmente, a coragem de
sua mente. [...] Ela aniquila até mesmo a energia de seu corpo e o torna incapaz
de empregar sua força de modo vigoroso e duradouro, a não ser na operação detalhista
para a qual foi adestrado. Sua destreza em seu ofício particular parece, assim,
ter sido adquirida à custa de suas virtudes intelectuais, sociais e guerreiras.
Mas em toda sociedade industrial e civilizada é esse o estado a que necessariamente
tem de se degradar o pobre que trabalha (the labouring poor), isto é, a grande
massa do povo”. (436)
Marx parece
inclinado a aceitar, até certo ponto, a caracterização da situação apresentada por
Smith, e penso que é importante levantar a seguinte questão geral: em que medida
nosso emprego corrompe a coragem de nossa mente? Penso que o problema é generalizado,
não se restringe apenas aos operários. Jornalistas, personalidades da mídia, professores
universitários – todos temos esse problema (tenho experiência pessoal suficiente
nesse sentido). A relutância generalizada em protestar contra o militarismo, as
injustiças sociais e as repressões que nos rodeiam têm tanto a ver (e de forma ainda
mais insidiosa) com as mentalidades e subjetividades políticas que derivam de nosso
emprego quanto com a sofisticada organização da repressão burguesa. “Certo atrofiamento
espiritual e corporal é inseparável mesmo da divisão do trabalho em geral da sociedade”,
admite Marx, e resulta no que ele chama de “patologia industrial” (437). Mais uma
vez, pisamos em terreno perigoso. Seria correto tratar como patológica a classe
trabalhadora? No entanto, seria utópico supor que isso não tenha nenhum impacto
sobre a capacidade das pessoas de reagir, pensar. Quem já se organizou com pessoas
que têm dois empregos (oitenta horas por semana) conhece muito bem esse problema.
Trabalhadores nessas condições dispõem de pouco ou nenhum tempo para pensar (que
dirá ler) sobre muitas coisas a respeito das quais achamos que eles deveriam pensar,
dada sua posição de classe. Eles estão tão ocupados tentando juntar as duas pontas,
sustentar os filhos e dar conta das tarefas domésticas, que não sobra tempo para
nada além do trabalho. Smith levou o argumento ao extremo e chegou à infeliz conclusão
de que caberia a uma pequena elite a tarefa e o dever de pensar e organizar, mas
há algo na descrição de Marx que negamos para nosso próprio risco político.
A reorganização
da divisão do trabalho, tanto no interior do processo de trabalho como na sociedade
em seu conjunto, é a marca daquilo que Marx chama de “período manufatureiro” na
história capitalista. Mas esse sistema manufatureiro tem limites. “Ao mesmo tempo,
a manufatura nem podia se apossar da produção social em toda a sua extensão, nem
revolucioná-la em suas bases. Como obra de arte econômica” – e Marx admira isso
– “ela se erguia apoiada sobre o amplo do artesanato urbano e da indústria doméstica
rural. Sua própria base técnica estreita, tendo atingido certo grau de desenvolvimento,
entrou em contradição com as necessidades de produção que ela mesma criara” (442).
A pressão empurrava para além dessas barreiras. São as máquinas que “suprassumem
[aufheben] a atividade artesanal como princípio regulador da produção social.
Por um lado, portanto, é removido o motivo técnico da anexação vitalícia do trabalhador
a uma função parcial” (443).”
[b] Em 494 d.C. ocorreu o primeiro grande
conflito entre patrícios e plebeus em Roma. Segundo a lenda, o patrício Menênio
Agripa teria usado de uma parábola para convencer os plebeus a uma conciliação.
Segundo ele, a revolta dos plebeus se assemelhava a uma recusa dos membros do corpo
humano a permitir que o alimento chegasse ao estômago, o que tinha como consequência
que os próprios membros definhavam. A recusa dos plebeus a cumprir suas obrigações
levaria assim à ruína do Estado romano. (N. T.)
“No terceiro item, Marx considera três consequências do emprego da máquina
para o trabalhador. A maquinaria facilitou a “apropriação de forças de trabalho
subsidiárias pelo capital”, o “trabalho feminino e infantil”. De fato, as tecnologias
mecânicas destruíram a base técnica que existia no período artesanal. Tornou-se
muito mais fácil empregar mulheres e crianças sem qualificação técnica. Isso trouxe
uma série de consequências. Foi possível substituir o salário familiar pelo salário
individual. Este pôde ser reduzido enquanto salário familiar, com a entrada das
mulheres e das crianças no mercado de trabalho, pôde permanecer constante. Esse
foi um tema interessante e persistente na história do capitalismo. Nos Estados Unidos,
desde os anos 1970, os salários individuais caíram ou permaneceram praticamente
constantes em termos reais, mas os salários familiares tenderam a crescer à medida
que mais mulheres começavam a trabalhar. O que a classe capitalista ganha com isso
são dois trabalhadores pelo preço de um. O milagre econômico brasileiro nos anos
1960 foi igualmente dominado por uma diminuição catastrófica dos salários individuais
sob a ditadura militar, mas os salários familiares conseguiram se estabilizar por
causa não apenas do trabalho das mulheres, mas também das crianças (nessa época,
o trabalho infantil começou a ser empregado nas minas de ferro). Isso levou ao famoso
comentário do presidente Emílio Garrastazu Médici de que “a economia” (ele deveria
ter dito a classe capitalista) “vai bem, mas o povo vai mal”. Há muitas circunstâncias
históricas em que os capitalistas apelaram para essa solução para ganhar mais-valor.”
“O campo da ação social é configurado mais pela representação
na forma-dinheiro – salário – do que pelo valor da força de trabalho. Isso leva
imediatamente ao problema da máscara fetichista que esconde as relações sociais
sob o fermento da política representativa. Marx, no entanto, começa lembrando que
há uma enorme diferença entre “o valor do trabalho” (expressão empregada na economia
política clássica) e o “valor da força de trabalho”.
No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor
de dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último
vende é sua força de trabalho. Mal seu trabalho tem início efetivamente e a força
de trabalho já deixou de lhe pertencer, não podendo mais, portanto, ser vendida
por ele. O trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo
não tem valor algum.
Pensar
de outro modo é cair numa tautologia, isto é, falar do valor do valor.
Na expressão “valor do trabalho”, o conceito de valor
não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão
imaginária, como, por exemplo, valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem,
no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para as formas em
que se manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas frequentemente
se apresentem invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia
política. (607)
Em outras
palavras, o valor do trabalho é um conceito fetichista que disfarça a ideia do valor
da força de trabalho e, por conseguinte, evita a questão crucial de como a força
de trabalho se torna mercadoria.
A única
solução que a economia política clássica encontrou para o problema da fixação daquilo
que ela chamava incorretamente de valor do trabalho foi apelar para a doutrina da
oferta e da demanda. Essa doutrina aparece várias vezes n’O capital, mas
é aqui que Marx rechaça com mais ênfase seu valor explanatório. Mesmo a economia
política clássica
reconheceu que a variação na relação entre oferta
e demanda nada esclarece acerca do preço do trabalho, assim como de que qualquer
outra mercadoria, além de sua variação, isto é, a oscilação dos preços de mercado
abaixo ou acima de uma certa grandeza. Se oferta e demanda coincidem, cessa, mantendo-se
iguais as demais circunstâncias, a oscilação de preço. Mas, então, oferta e demanda
cessam também de explicar qualquer coisa. Quando oferta e demanda coincidem, o preço
do trabalho é determinado independentemente da relação entre demanda e oferta, quer
dizer, é seu preço natural, que, desse modo, tornou-se o objeto que realmente se
deveria analisar. (608)
Essa determinação
independente já foi definida por Marx na análise da compra e da venda de força de
trabalho. Esta é fixada pelo valor das mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador
em dado padrão de vida, em dada sociedade e em dada época. Continuar a falar do
valor do trabalho, em vez de do valor da força de trabalho, leva a todo tipo de
confusão.”
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