sexta-feira, 7 de maio de 2021

Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Parte II), de Roman Rosdolsky

Editora: EDUERJ / Contraponto

ISBN: 978-85-85910-42-6

Tradução: César Benjamin

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 624

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Sinopse: Ver Parte I


 

“Vimos a criação do dinheiro surgir da “contradição entre a natureza peculiar da mercadoria como produto e sua natureza geral como valor de troca”. Em contraposição aos economistas burgueses, que sô veem o dinheiro como “um expediente astuciosamente imaginado”, voltado para superar as dificuldades da troca simples, Marx deduz sua existência a partir da contradição fundamental “que engloba a existência da mercadoria como unidade imediata de valor de uso e valor de troca”. Mas, qual é o verdadeiro sentido desta contradição, e por que Marx lhe atribui tamanha importância? Será porque, como diz Bortkiewicz, ele tinha a “perversa” tendência de “projetar” sobre o capitalismo todas as contradições e antíteses imagináveis?34 Admitir isso seria fechar de antemão o caminho para compreender a teoria do valor elaborada por Marx. Longe de ser uma artificiosa construção “metafísica”, a mencionada contradição representa a forma mais geral que condensa as condições reais de existência e as tendências evolutivas da ordem social burguesa: é apenas outra expressão do fato de que, em uma sociedade de produtores privados atomizados, o trabalho do indivíduo não é (nem pode ser) diretamente social, mas deve provar-se como tal por sua própria negação, a negação de seu caráter original. Nesse modo de produção, embora a dependência recíproca (em todos os sentidos) dos produtores se converta em um fato, mesmo assim inexiste planificação social coerente,35 submetendo-se tudo à cega ação das forças do mercado. “O movimento geral de sua desordem é sua ordem.”36

Como se estabelece a coesão social em um modo de produção assim? Em primeira aproximação, parece tratar-se de um problema quantitativo. De uma forma ou de outra, toda sociedade deve satisfazer as necessidades vitais de seus integrantes. Ou seja, em qualquer sociedade é fundamental que as forças de trabalho de que ela dispõe não sejam dilapidadas em grande escala e não trilhem caminhos errados; todos os setores produtivos devem receber a quantidade de trabalho necessária, e em nenhum deles o trabalho deve ser realizado em condições abaixo da média. Porém, uma sociedade de produtores independentes de mercadorias, por causa de sua natureza anárquica, não tem nenhum meio prévio de regular essa distribuição. Ela só conhece uma forma de vinculação social, o mercado. Nessa sociedade, o produtor só conhece postfestum, “uma vez realizado o intercâmbio[...], se sua mercadoria realmente satisfaz uma necessidade social e se aplicou corretamente seu tempo de trabalho”.37 Só assim se verifica a quantidade de trabalho que a sociedade deve realizar, adaptando-se os rendimentos do trabalho às exigências da economia social geral. É a partir desse ponto que Hilferding, em O capital financeiro, interpreta o conceito de Marx de trabalho “abstrato”, “social em geral”, especialmente no sentido de trabalho “socialmente necessário”. Ele diz: “Na produção mercantil, o intercâmbio se baseia em um elemento objetivamente social, que domina a relação de troca: o tempo de trabalho socialmente necessário, incorporado aos objetos intercambiados.” E “só como expressão” do tempo de trabalho socialmente necessário eles “se tornam comensuráveis”.38

Na polêmica com Bailey e Ricardo, no terceiro tomo das Teorias, é onde melhor se pode compreender o caráter unilateral (e portanto insuficiente) dessa interpretação conceito marxiano do valor: “Para que as mercadorias possam ser medidas conforme a quantidade de trabalho nelas contida[...], os trabalhos de diversos tipos incorporados nas mercadorias devem ser reduzidos a trabalho uniforme simples [...]. No entanto, essa redução a trabalho médio simples não é a única determinação da qualidade desse trabalho, ao qual os valores das mercadorias são reduzidos. O fato de que a quantidade de trabalho contida em uma mercadoria seja a quantidade socialmente necessária para sua produção — o tempo de trabalho como trabalho necessário — é uma determinação que diz respeito apenas à magnitude do valor.39 Mas o trabalho que constitui a unidade dos valores não é só trabalho médio, igual e simples. O trabalho é trabalho do indivíduo particular, representado em um determinado produto. Porém, como valor, o produto deve ser a encarnação do trabalho social, e como tal deve ser diretamente transformável de um valor de uso em qualquer outro [...]. Logo, o trabalho particular deve apresentar-se imediatamente40 como seu contrário, como trabalho social [...].”41

Essa flagrante contradição só pode ser resolvida se os diferentes trabalhos particulares forem equiparados no intercâmbio, mediante a redução deles ao trabalho abstrato, geral, humano. “O trabalho do indivíduo, para resultar em valor de troca, deve poder expressar-se em um equivalente geral, ou seja, na representação do tempo de trabalho do indivíduo como tempo de trabalho geral[...].” Tornar-se-á social ao “assumir a forma de seu contrário imediato, a forma da generalidade abstrata”. Portanto, não se trata aqui da natureza social pura, mas sim do “modo específico como o trabalho que determina o valor de troca, que produz mercadorias, é trabalho social”.42

34. “A isso se acrescenta em Marx sua perversa tendência a projetar, à moda hegeliana, contradições lógicas para dentro dos próprios objetos. A formação dos preços, tal como ocorre no interior da economia capitalista, estaria em contradição com a lei do valor. Por que não? Se a ordem capitalista está recheada e atravessada por contradições de todo tipo... Marx não se sentia desconfortável ao colocar mais uma contradição na conta do capitalismo” (Ladislaus von Bortkiewicz, “Wertrechnung und Preisrechnung im Marxschen System”, em Archiv für Sozialwissenschaft und Politik, 1906, julho, p. 4).

35. Cf. Das Kapital, III, p. 937-938: “Na base da produção capitalista, o caráter social da produção aparece para a massa dos produtores diretos sob a forma de uma autoridade rigorosamente reguladora e de um mecanismo social que articula o processo de trabalho em uma hierarquia completa [...]. Mas, entre os detentores dessa autoridade — os próprios capitalistas, que só se enfrentam como possuidores de mercadorias — reina a mais completa anarquia, na qual a conexão social da produção só se impõe como irresistível lei natural à arbitrariedade individual.” O que ocorre, porém, no caso dos poderosos monopólios modernos? E as tendências “estatizantes” na economia atual? São aspectos que Marx não podia analisar, pois ainda não existiam em 1864-1865. Não são uma prova de que o capital superou, ou está a ponto de superar, a anarquia da produção? Os que dizem isso vão longe demais: um capitalismo que estivesse realmente em condições de eliminar a concorrência e a anarquia da produção eliminaria a si mesmo no mesmo processo. Esquecem que “a repulsão recíproca dos capitais” é parte do conceito de capital e que, portanto, “um capital universal, um capital que não tenha diante de si outros capitais com os quais deve interagir[...] é uma quimera” (Grundrisse, p. 324). Podemos ler em outra passagem dos Grundrisse: “A autonomização do mercado mundial [...] aumenta com o desenvolvimento das relações monetárias [...] e, vice-versa, a conexão e a dependência de todos na produção e no consumo se desenvolvem em paralelo à independência e à indiferença recíproca dos consumidores e dos produtores. Dado que essa contradição conduz à crise etc., tenta-se suprimir essa alienação na medida em que ela se desenvolve.”) Mas a verdadeira significação histórica dessas tentativas está em outro lugar: “Embora, sobre a base dada, todos esses procedimentos não suprimam a alienação, eles propiciam relações e ligações que carregam consigo a possibilidade de suprimir a velha situação”, ou seja, o capitalismo (ibid., p. 78-79).

36. Karl Marx, Lohnarbeit und Kapital Ausg. Schriften, I, p. 75.

37. Rudolf Hilferding, Das Finanzkapital, primeira edição, p. 8.

38. Ibid., p. 3-4 e 6.

39. Isso foi desconsiderado por Ricardo e pela maior parte dos divulgadores da teoria de Marx.

40. “Exatamente por não ser possível essa representação imediata, deve-se produzir uma mediação”, ou seja, a formação do dinheiro.

41. Theorien, III, p. 132-133.

42. Zur Kritik, p. 25 e 27.

 

 

“Onde reside a fonte dessa curiosa inversão? Por que, na sociedade produtora de mercadorias, as relações dos homens entre si devem estar “sempre ligadas a coisas” e “aparecer como coisas”?66 Simplesmente porque, nessa sociedade, os produtores não podem relacionar-se com seu trabalho como um trabalho diretamente social, pois perderam o controle de suas próprias relações de produção. “O caráter social do trabalho aparece na existência monetária da mercadoria, e por conseguinte como algo situado fora da produção real [...].”67 “Se os objetos destinados ao uso se convertem em mercadorias, isso decorre do fato de que são produtos de trabalhos privados, realizados independentemente uns dos outros[...]. Como os produtores não entram em contato social até trocarem os produtos de seus trabalhos, os atributos especificamente sociais desses trabalhos privados só se manifestam nos marcos desse intercâmbio.” E se manifestam “como o que são: não como relações diretamente sociais estabelecidas pelas pessoas em seus trabalhos, mas, ao contrário, como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisais.68

Limitamo-nos aqui a passagens do primeiro tomo de O capital porque a análise da forma-valor, feita nessa obra, traz a prova de que, de fato, “o enigma do fetiche do dinheiro é apenas o enigma, agora visível e deslumbrante, do fetiche da mercadoria”.69 Isso não significa que a conhecida concepção de Marx sobre o “fetichismo da mercadoria” só se tenha originado em meados da década de 1860. Na realidade, ela já estava presente em seus primeiros trabalhos econômicos. Em um dos cadernos escritos em 1844, podemos ler: “A essência do dinheiro é, em primeiro lugar [...], que a atividade mediadora ou o movimento, o ato humano social mediante o qual se complementam reciprocamente os produtos dos homens, é alienado e se converte em atributo de um objeto material exterior ao homem, o dinheiro. Quando o próprio homem aliena essa atividade mediadora, passa a agir como homem que se perdeu, se desumanizou; a relação dos objetos, a operação humana com eles, converte-se na operação de um ente exterior ao homem e superior a ele. Por causa desses mediadores estranhos — no lugar de ser o próprio homem o mediador dos homens —, o homem considera sua vontade, sua atividade, sua relação com os demais, como uma força independente dele e dos outros. Sua escravidão atinge um ápice. Esse mediador converte-se então no verdadeiro deus, é a potência real que domina tudo.70 Seu culto converte-se em um fim em si. Separados desse mediador, os objetos perdem o valor. Ou seja, só possuem valor na medida em que o representam; originalmente, parecia que ele [o mediador] só tinha valor na medida em que os representava.”71

Em outra passagem: “Por que a propriedade privada deve desdobrar-se na direção do dinheiro? Porque o homem, na condição de ser social, deve avançar na direção do intercâmbio, e porque o intercâmbio — quando existe a propriedade privada — deve avançar na direção do valor. Com efeito, o movimento que intermedeia o intercâmbio entre os homens não é [...] uma relação humana, mas sim uma relação abstrata da propriedade privada com a propriedade privada; esta relação abstrata é o valor, cuja existência real como valor é o dinheiro. Posto que os homens que intercambiam não se comportam, uns diante dos outros, como homens, o objeto perde a significação de uma propriedade humana, pessoal.” Por isso, com o dinheiro “manifesta-se a dominação total do objeto alienado sobre o homem. O que era dominação da pessoa sobre a pessoa, agora é dominação universal da coisa sobre a pessoa, do produto sobre o produtor.72 No equivalente, no valor, já se encontrava a determinação da alienação da propriedade privada; o dinheiro é a existência sensorial e objetiva dessa alienação.”73

66. “O produto que ingressa no intercâmbio é uma mercadoria. Mas só é uma mercadoria pelo fato de que o objeto, o produto, se vincula a uma relação entre duas pessoas ou entidades comunitárias, à relação entre produtor e consumidor, que nesse caso já não estão juntos em uma mesma pessoa. Aqui, temos um exemplo imediato de um fato peculiar que percorre toda a economia e que causou séria confusão na cabeça dos economistas burgueses: a economia não trata, de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes; mas essas relações estão sempre ligadas a coisas e se manifestam pelas coisas. Marx descobriu a validade dessa conexão [...] para toda a economia, conseguindo assim simplificar e esclarecer os problemas mais difíceis” (F. Engels, Ausgewählte Schriften, I, p. 349).

67. Das Kapital, III, p. 562.

68. Ibid., I, p. 78.

69. Ibid., p. 99.

70. Cf. Grundrisse, p. 237, onde, de maneira totalmente hegeliana, se diz: “Este termo médio se apresenta sempre como a relação econômica acabada, pois sintetiza os opostos, e sempre se apresenta, por fim, como uma potência superior aos [termos] extremos; pois o movimento ou a relação que originalmente aparecem como intermediários entre os extremos levam, dialética e necessariamente, a que a mediação se apresente como mediação consigo mesma. Ela parece ser o Sujeito, e os extremos parecem ser apenas momentos seus. Ela suprime a condição de independência para colocar-se, por essa supressão, como a única coisa independente” (cf. também o eco desta passagem em O capital, I, p. 784.)

71. MEGA, III, p. 531. Cf. Grundrisse, p. 67-68: “O dinheiro é originalmente o representante de todos os valores; na prática, as coisas se invertem: todos os produtos e os trabalhos reais tornam-se representantes do dinheiro.”

72. No manuscrito inédito de Marx, podemos ler: “Retirai da coisa este poder social e este poder terá de ser entregue imediatamente à pessoa sobre a pessoa.” Grundrisse, p. 987 [ver Elementos ..., t. I, p. 483, nota 40]; cf. ibid., p. 75.

73. MEGA, III, p. 532 e 540 (cf: Die deutsche Ideologie, p. 417).

 

 

“A primeira dessas determinações formais do dinheiro — primeira porque surge diretamente do processo de formação do dinheiro — é sua função como medida do valor. “O dinheiro é um cristal que se forma espontaneamente no processo de intercâmbio, no qual se igualam os diversos produtos do trabalho, que assim se transformam de fato em mercadorias.

Ao longo da história, a expansão e o aprofundamento do intercâmbio desenvolvem a oposição, latente na natureza da mercadoria, entre valor de uso e valor. A necessidade de expressar essa oposição, para realizar o intercâmbio, exige que o valor mercantil ganhe uma forma autônoma. Ele não repousa nem se fixa até que alcance definitivamente essa forma pelo desdobramento da mercadoria em mercadoria e dinheiro.”5 Quando isso acontece, deixa de ser necessário que o valor de cada mercadoria se expresse — como ocorria no intercâmbio direto de produtos — por uma série interminável de equações de valor (a “forma desenvolvida do valor”, de Marx); uma só equação (x mercadoria A = y mercadoria dinheiro) basta para representar esse valor de maneira socialmente válida. “Uma vez que o dinheiro foi colocado como valor de troca separado e independente em relação às mercadorias”, estas “são colocadas como algo particular diante do dinheiro, que se contrapõe a elas como sujeito. [...] Pelo fato de terem sido equiparadas ao dinheiro, elas são colocadas novamente em relação umas com as outras, como exige o próprio conceito de valor de troca: estabelecem correspondências e comparações entre si, em proporções determinadas.” O dinheiro “é o material universal em que [as mercadorias] devem ser convertidas; elas devem ser douradas e prateadas para alcançar sua livre existência como valores de troca [...]. O valor de troca específico, a mercadoria, é expressa, subsumida, submetida ao valor de troca que se tornou autônomo, ou seja, o dinheiro.”6

Marx prossegue nos Grundrisse: “O valor de troca colocado sob a determinação do dinheiro é o preço. [...] No preço, o dinheiro se apresenta em primeiro lugar como a unidade de todos os valores de troca; em seguida, como unidade na qual esses valores são quantificados; por serem igualados ao dinheiro, eles podem expressar sua relação quantitativa recíproca.”7 Nesse caso, o dinheiro atua como denominador universal, como medida de valores, como “o material em que o valor das mercadorias se expressa socialmente”; é “a forma necessária de manifestação da medida de valor imanente às mercadorias: o tempo de trabalho”.8 Esta determinação resulta da lei geral do valor: como todas as mercadorias, inclusive o dinheiro, contêm trabalho humano objetivado, o valor de uma mercadoria cuja fabricação custou, digamos, um dia de trabalho se expressa em uma quantidade de ouro ou de prata que também contém um dia de trabalho. O processo de circulação cria a aparência de que só o dinheiro torna as mercadorias comensuráveis, quando na verdade ocorre o contrário: “Por serem todas as mercadorias, consideradas como valores, trabalho humano objetivado, e portanto comensuráveis entre si, seus valores podem ser medidos coletivamente em uma mesma mercadoria especial. Esta se converte em medida comum do valor, ou seja, dinheiro.”9 A medida do valor pressupõe que as mercadorias sejam valores; [essa medida] “só diz respeito à apresentação e à magnitude do valor [...], à transformação dos valores em preços”. Ela “pressupõe o valor”.10

Nos preços, as mercadorias só estão transformadas em dinheiro de modo ideal. O desdobramento da mercadoria em mercadoria e dinheiro, a formação do dinheiro, não significa que a mercadoria como tal tenha sido convertida em dinheiro, ou que graças à atribuição de um preço ela passa a participar do intercâmbio geral. “É sob a forma de valores de uso que as mercadorias ingressam no intercâmbio. Só quando são vendidas elas se convertem de fato no equivalente geral. A determinação de seu preço é sua transformação ideal no equivalente geral; é uma equiparação com o ouro, mas que ainda não foi realizada.”11 O preço aparece então “como uma relação externa dos valores de troca, ou mercadorias, com o dinheiro: do ponto de vista de sua substância social, a mercadoria é valor de troca, mas não é preço; esta condição não coincide imediatamente com ela, depende da mediação que se faz por meio de sua equiparação com o dinheiro; a mercadoria é valor de troca, mas tem um preço”.12

Retornamos pois ao problema — que começamos a analisar nos capítulos anteriores — da não-identidade entre preço e valor. À primeira vista, parece tratar-se de uma diferença de formas de expressão; na verdade, porém, “não é uma diferença nominal; ao contrário, nela estão concentradas todas as tormentas que ameaçam a mercadoria no processo real de circulação”.13 A mercadoria, por exemplo o ferro, tem “no preço uma aparência ideal de valor ou uma aparência representada em ouro”; mas, naturalmente, ela não pode “ser ao mesmo tempo ferro real e ouro também real Para fixar seu preço, basta representá-la em ouro.” No intercâmbio real, no entanto, deve-se “trocá-la por esse metal, para que ela preste ao seu possuidor o serviço de equivalente geral”. No intercâmbio real, o preço tanto pode expressar “a magnitude do valor da mercadoria, como [pode expressar] a maior ou menor quantidade de dinheiro pela qual ela pode ser vendida em determinada circunstância. Portanto, na própria forma do preço está implícita a possibilidade de uma incongruência quantitativa, de uma divergência, entre o preço e a magnitude do valor. Não se trata, de modo algum, de um defeito da forma. Ao contrário, isso é o que a torna adequada a um modo de produção cujas leis só podem se impor cegamente, através da compensação, na média, de irregularidades constantes.”14

Como os preços só representam quantidades ideais de ouro, não é necessário dispor realmente de dinheiro para fixá-los. “A transformação ideal das mercadorias em dinheiro é prima facie independente e não limitada pela massa de dinheiro real. Não é necessário usar moedas ou notas nesse processo, assim como não é necessário aplicar um instrumento real de medida (por exemplo, uma régua de um metro) para expressar um comprimento qualquer em um múltiplo do metro. Se, por exemplo, toda a riqueza nacional da Inglaterra fosse estimada em dinheiro, ou seja, fosse expressa em termos de preço, todos sabem que não há dinheiro suficiente no mundo para ser oferecido em contrapartida a esse preço. Para este fim, o dinheiro é necessário apenas como categoria, como relação pensada.”15 (...) “Como medida, como elemento da fixação do preço [...], o dinheiro apresenta o seguinte fenômeno: (1) uma vez fixado o valor de troca de uma onça de ouro em relação a uma mercadoria qualquer, o dinheiro só é necessário como unidade imaginária; sua presença real é supérflua, sendo portanto ainda mais supérflua a quantidade disponível; (2) o dinheiro precisa existir apenas em forma ideal, sendo colocado como preço, na mercadoria, de maneira também ideal; mas, ao mesmo tempo, ele se apresenta como quantidade de uma substância natural que o representa, seja ouro, prata etc.; assumido como unidade, o dinheiro proporciona o termo de comparação, a unidade, a medida.”17 Vê-se que, para o dinheiro desempenhar a função de medida do valor, “sua substância material é essencial, embora sua presença, e mais precisamente sua quantidade — ou seja, o número de vezes em que está presente a porção de ouro ou de prata que serve de unidade — seja totalmente irrelevante nesta determinação, sendo usada em geral apenas como unidade imaginária [materialmente] não existente”.18

Isso confirma o que já sabíamos: só uma mercadoria real, um produto do trabalho, pode operar como medida do valor. “O dinheiro é um padrão só porque é tempo de trabalho materializado em uma determinada substância; por isso, ele mesmo é valor [...].”19 Não se deduz daí que ele sempre seja representado, necessariamente, pela mesma substância,20 nem que deva ter um “valor inalterável”; pode-se deduzir apenas que, “assim como na representação do valor de troca de qualquer mercadoria no valor de uso de outra mercadoria”, também na avaliação das mercadorias em ouro ou prata se pressupõe “que, em determinado momento, o ouro representa uma determinada quantidade de trabalho”. “Se cai ou sobe o valor de uma onça de ouro como consequência de uma alteração no tempo de trabalho exigido para a sua produção, [este valor] cai ou sobe uniformemente em relação a todas as outras mercadorias, representando por conseguinte, como antes, e perante todas elas, um tempo de trabalho de determinada magnitude. Os mesmos valores de troca são agora avaliados em quantidades maiores ou menores de ouro, mas avaliados em relação às suas magnitudes de valor, de modo que conservam a mesma relação recíproca de valor [...]. As diferentes quantidades de ouro em que se avaliam os valores de troca na medida em que o valor do ouro se altera não impedem que o ouro siga cumprindo a função de medida do valor, assim como o fato de que o valor da prata é 1/15 do valor do ouro não a impede de superá-lo nessa função.”21

5. Das Kapital, I, p. 92-93.

6. Grundrisse, p. 103 e 104-105.

7. Ibid., p. 104.

8. Das Kapital, I, p. 99,

9. Ibid. Cf. Zur Kritik, p. 65-66.

10. Theorien, III, p. 34.

11. Zur Kritik, p. 66.

12. Grundrisse, p. 105.

13. Zur Kritik, p. 67.

14. Das Kapital, p. 67.

15. Grundrisse, p. 106.

16. Ibid., p. 118.

17. Ibid., p. 121-122.

18. Ibid., p. 117-118.

19. Ibid., p. 676.

20. “Se todas elas [as mercadorias] tivessem seus valores medidos em prata, trigo ou cobre, sendo portanto representadas em preços-prata, trigo ou cobre, a prata, o trigo e o cobre se converteriam em medida dos valores e, desse modo, em equivalente geral” (Zur Kritik, p. 64).

21. Ibid., p. 65, Cf. Das Kapital, I, p. 104. Segundo Block (op. cit, p. 73), “as oscilações do valor [do ouro] que alcançam certa amplitude também impossibilitam que o dinheiro cumpra a função de medida do valor” (recordemos o marco-papel da inflação alemã da década de 1920). Isso não refuta a teoria de Marx sobre o dinheiro como medida de valores.

 

 

“A transformação do dinheiro em um ente autônomo aparece de forma mais clara em sua forma de tesouro.

Vimos que a circulação das mercadorias “derruba as barreiras temporais, locais e individuais ao intercâmbio de produtos. Como o faz? Na troca, ninguém pode desfazer-se de seu produto sem que simultaneamente outra pessoa se desfaça do seu. Mas, ao introduzir um distanciamento entre compra e venda, a circulação quebra a identidade imediata dos dois atos [vender o produto do próprio trabalho e comprar o produto do trabalho alheio].

Ninguém precisa comprar imediatamente — no mesmo local, no mesmo momento, da mesma pessoa — pelo simples fato de haver vendido.’’10

“A transformação do ouro em um ente autônomo, na condição de dinheiro, é [...] antes de tudo uma expressão evidente do desdobramento do processo de circulação, ou da metamorfose da mercadoria, em dois atos separados, indiferentes, que se realizam em paralelo.’’11·Pela cisão do ciclo M-D-M, torna-se possível que o vendedor da mercadoria isole intencionalmente o ato M-D, não o deixe prosseguir até D-M, para apoderar-se da forma-dinheiro da mercadoria. Neste caso, o dinheiro se imobiliza para converter-se em tesouro, e o vendedor de mercadorias se converte em entesourador.

Porém, devemos nos antecipar e assinalar desde logo que, embora o processo de entesouramento seja “comum a toda produção de mercadorias, ele só é um fim em si nas formas pré-capitalistas, ainda não desenvolvidas, dessa produção”.12 Pois, “quanto menos se desenvolveu o caráter do produto como mercadoria e menos o valor. de troca se apoderou da produção em toda sua amplitude e profundidade, tanto mais o dinheiro aparece como a riqueza propriamente dita, a forma geral da riqueza, em oposição à sua limitada expressão como valores de uso”.13 Daí a grande importância da formação de tesouros nas sociedades antigas, nas quais só os valores de uso excedentes se transformam em mercadorias e nas quais “a um modo de produção tradicional e orientado para conservar-se corresponde um conjunto de necessidades firmemente delimitado”.14 Nesse tipo de sociedade, o ouro e a prata são as formas adequadas de existência do excedente e, ao mesmo tempo, “a primeira forma na qual a riqueza se conserva como riqueza social abstrata”. Explica-se assim por que “a acumulação de todas as outras mercadorias é mais recente que a do ouro e da prata”. Isso se relaciona, em primeira instância, com as propriedades naturais dos metais nobres, com seu caráter durável. “A acumulação é [...] um processo que se desenvolve no tempo.” Todo valor de uso, como tal, “serve para ser consumido, ou seja, aniquilado”, e esse aniquilamento significa também o aniquilamento de seu valor de troca. “No dinheiro, ao contrário, sua substância, sua materialidade, é a forma na qual ele representa a riqueza.” Por isso, “se o dinheiro é mercadoria universal, se é reconhecido como tal em todos os lugares do espaço, também passa a sê-lo no tempo. Conserva-se como riqueza ao longo do tempo [...], é o tesouro que não pode ser roído pelas traças nem destruído pela ferrugem. Todas as mercadorias são dinheiro não durável; o dinheiro é a mercadoria durável.”15 Mas, em segundo lugar, “como valor de uso, a mercadoria satisfaz uma necessidade específica e constitui um elemento específico da riqueza material. O valor da mercadoria mede a magnitude de sua força de atração sobre os demais elementos que compõem essa riqueza material; mede, portanto, a riqueza social do seu possuidor. Aos olhos do possuidor de mercadorias simples, em sociedades atrasadas, o valor é inseparável de sua forma. Para ele, o aumento de sua reserva de ouro e de prata equivale a um aumento do valor. Sem dúvida, o valor dos metais preciosos varia, seja como consequência da alteração dele mesmo, seja porque o valor das mercadorias também varia. Mas isso não impede, de um lado, que 200 ouças de ouro sempre contenham mais valor que 100 onças, ou que 300 contenham mais valor que 200 etc., quem que, por outro lado, a forma metálica da moeda permaneça sendo o equivalente geral de todas as mercadorias, a encarnação social de todo trabalho humano.” 16

O entesouramento é típico das situações pré-capitalistas, mas ao mesmo tempo expressa tendências que, em última instância, impelem para a dissolução dessas condições primitivas e para o ocaso das comunidades que lhes correspondem.17 Pois “todas as formas da riqueza natural, antes que esta tenha sido substituída pelo valor de troca, supõem uma relação essencial do indivíduo com o objeto; o indivíduo, em um de seus aspectos, aparece objetivado na coisa, enquanto a posse da coisa aparece como um desenvolvimento de sua individualidade: a riqueza em ovelhas é o desenvolvimento do indivíduo como pastor; a riqueza em cereais, o desenvolvimento do indivíduo como agricultor etc. O dinheiro, ao contrário, como representante da riqueza universal,18 [...] como resultado puramente social, não supõe uma relação individual específica de seu possuidor. Sua posse não é o desenvolvimento de nenhum aspecto essencial da individualidade, [...] já que esta [relação] social existe ao mesmo tempo como um objeto sensível, externo, que cada um pode possuir mecanicamente e que pode, da mesma forma, perder. O vínculo [do dinheiro] com o indivíduo parece ser puramente acidental. Porém, este vínculo com uma coisa que não está conectada de nenhum modo com sua individualidade lhe confere, graças ao caráter dessa coisa, um domínio absoluto sobre a sociedade, sobre todo o mundo das fruições, dos trabalhos etc.” (Marx acrescenta: “É como se, por exemplo, encontrar uma pedra me proporcionasse, independentemente de minha individualidade, a posse de todas as ciências.”)19

“O poder social se converte assim em poder privado, pertencente a um indivíduo.”20 Mas aquilo que “se entrega em troca de tudo, e contra o que tudo se entrega, apresenta-se como o meio universal de corrupção e de prostituição”.21 Pois assim “como tudo é vendável por dinheiro, tudo também é comprável com dinheiro;[...] é o acaso que decide[...] que o indivíduo possa apropriar-se ou não de algo [...],já que isso depende do dinheiro que possui [...]. Não existe nada inalienável, já que, tudo é alienável por dinheiro. Não há nada sublime, sagrado etc., pois tudo é apropriável por dinheiro. Diante do dinheiro, não existem as ‘res sacrae e ‘religiosae’ que não podem estar ‘in nullius bonis’, ‘nec aestimationem recipere, nec obligari alienarique posse’, que estão isentas do “commercio hominum’ [as coisas sagradas e religiosas que não podem estar nas mãos de qualquer um, não podem ser avaliadas, empenhadas ou alienadas, que estão isentas do comércio humano]; [diante do dinheiro], como diante de Deus, todas são iguais.”22 Precisamente por isso, o dinheiro, em sua terceira determinação — na medida em que “ele mesmo não constitua a comunidade em torno de si”, como ocorre na sociedade burguesa — deve levar necessariamente à desintegração das comunidades antigas, fundadas no valor de uso.23

Isso se reforça porque o instinto de entesouramento é ilimitado, por natureza. “No ouro e na prata possuo a riqueza universal em sua forma pura; quanto mais acúmulo esses metais, tanto mais me aproprio da riqueza universal. O ouro e a prata são a riqueza universal, mas, em quantidades limitadas, eles só a representam em proporção também limitada, e portanto de maneira inadequada. O todo deve tender sempre a superar a si próprio.”24 Marx prossegue: “Portanto, o dinheiro não é somente um objeto, mas o objeto do desejo de enriquecimento. Este é essencialmente auri sacra fames [amaldiçoada fome de ouro]. O desejo de enriquecimento, como forma particular de apetite, diferente do desejo de obter uma riqueza particular — vestidos, armas, joias, mulheres, vinho etc. —, só é possível quando a riqueza universal, a riqueza como tal, é individualizada em um objeto particular, ou seja, quando o dinheiro é colocado em sua terceira determinação. Portanto, o dinheiro não é só o objeto; é, ao mesmo tempo, a fonte do desejo de enriquecimento [...]. Isso se sustenta porque multiplicar o valor de troca como tal converte-se em um fim em si.”25 “A metamorfose da mercadoria M-D [...] torna-se o objetivo, tendo em vista transformar a mercadoria, riqueza natural particular, em riqueza social universal. No lugar da troca de substância, é a troca de formas que se torna um fim em si. O valor de troca, que era mera forma, transforma-se no conteúdo do movimento.”26 Por isso, o culto ao dinheiro também tem “seu ascetismo, suas renúncias, seus sacrifícios: a frugalidade, a parcimônia, o desprezo pelos prazeres mundanos, temporais e fugazes, a busca do tesouro eterno. Daqui decorre a conexão do puritanismo inglês ou do protestantismo holandês com a atividade lucrativa.”27 Mas, se vamos até o fundo da questão, a figura aparentemente cômica do entesourador28 nos aparece sob outro enfoque, pois também nesse caso “a acumulação de dinheiro por meio do próprio dinheiro é a forma primitiva da produção pela própria produção, ou seja, o impulso das forças produtivas do trabalho social para ultrapassar os limites das necessidades tradicionais”.29 Precisamente por isso, “quanto menos desenvolvida esteja a produção de mercadorias[...] tanto mais importante será o entesouramento, que é a primeira forma na qual o valor de troca assume uma existência independente como dinheiro [...]”30

10. Das Kapital, I, p. 118.

11. Zur Kritik, p. 132.

12. Das Kapital, II, p. 70.

13. Ibid., III, p. 645-646.

14. Ibid., I, p. 136.

15. Grundrisse, p. 142.

16. Das Kapital, I, p. 138.

17. Marx fala nesse sentido do “efeito desagregador” do dinheiro (e do comércio) sobre as comunidades primitivas. Todavia, nos Grundrisse o “efeito desagregador do dinheiro” pode ser entendido como algo mais: o dinheiro é o meio “para dividir em incontáveis fragmentos a propriedade[...] e consumi-la pouco a pouco mediante o intercâmbio[...]. Se o dinheiro não existisse haveria uma série de objetos não intercambiáveis, não alienáveis” (Grundrisse, p. 754).

18. Cf. nota 16 do capítulo 4.

19. Grundrisse, p. 133. Como se vê, Marx retoma sua crítica do dinheiro presente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Ali, comentando uma passagem do Fausto, de Goethe, ele diz: “O que posso pagar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o dono do dinheiro. Meu poder é, tão grande quanto o poder do dinheiro. [...] Portanto, o que sou e o que posso não está determinado por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mulher mais formosa. Logo, não sou feio, já que o efeito da fealdade, seu poder de dissuadir, foi aniquilado pelo dinheiro. Eu, segundo minha individualidade, sou paralítico, mas o dinheiro me dá 24 pés; logo, não sou paralítico. Sou um homem mau, desonesto, inescrupuloso, desalmado, mas como se prestam honras ao dinheiro, o mesmo se estende ao seu proprietário. O dinheiro é o bem supremo, e por isso quem o possui é bom. Além disso, o dinheiro me põe acima da condição de desonesto; pressupõe se que eu seja honesto. Sou um desalmado, mas se o dinheiro é a verdadeira alma de todas as coisas, como pode ser desalmado quem o possui? Com ele se podem comprar os homens de espírito, e o que constitui um poder sobre os homens de espírito não é ainda mais espiritual que os homens de espírito? Eu, que através do dinheiro posso conseguir tudo a que o coração humano aspira, por acaso não possuo todas as faculdades humanas? Acaso meu dinheiro não transforma todas as minhas incapacidades em seu contrário?” (MEGA, III, p. 147). Lembremos que Henry Ford, o magnata americano do automóvel, respondeu a uma· reprovação à sua ignorância dizendo que em cinco minutos podia conseguir pessoas que conhecessem qualquer coisa de que ele necessitasse (K. Sward, Legend of H. Ford, 1948, p. 105).

20. Das Kapital, I, p. 138.

21. Grundrisse, p. 895. Cf. também as numerosas passagens em que Marx e Engels tratam da “venalidade universal” relacionada à dependência do dinheiro.

22. Ibid., p. 723. Cf também Das Kapital, I, p. 137, onde Marx fala da “alquimia” da circulação monetária, à qual não resistem “nem sequer os ossos dos santos e outras res sacrosanctae, extra commercium hominum [coisas santas, excluídas do comércio humano] muito menos toscas”.

23. Podemos ler nos Grundrisse: “Entre os antigos, o valor de troca não era o nexns rerum [nexo das coisas]; ele só se apresenta assim entre os povos que se dedicavam ao comércio, os quais, no entanto, tinham só um carryng trade [comércio itinerante, que implica o transporte dos bens (N.T)] e não uma produção própria, que era secundária entre os fenícios, os cartagineses etc.

Eles podiam viver tão bem nos interstícios do mundo antigo quanto os judeus na Polônia ou na Idade Média. Mais ainda, esse mundo era precondição da existência desses povos comerciantes. Tais povos, por outro lado, perecem sistematicamente tão logo entram em conflitos mais sérios com comunidades antigas. Entre os romanos, os gregos etc., o dinheiro aparece primeiro em suas duas primeiras determinações, ou seja, como medida e como meio de circulação, em ambas em um grau não muito desenvolvido. Mas, tão logo se desenvolve seu comércio etc., ou como ocorreu entre os romanos, tão logo a conquista lhes garante dinheiro em grande quantidade — ou seja, em um certo nível de desenvolvimento econômico —, o dinheiro aparece necessariamente em sua terceira determinação, que se desenvolve tanto mais quanto mais [se aproxima] o ocaso da comunidade” (Grundrisse, p. 134).

24. Ibid., p. 872.

25. Ibid., p. 133-134, e Zur Kritik, p. 140.

26. Zur Kritik, p. 135.

27. Grundrisse, p. 143. Os sociólogos e economistas burgueses ampliaram depois o mesmo raciocínio, como se fosse coisa absolutamente nova.

28. Zur Kritik, p. 150.

29. Podemos ler nos Grundrisse: “O dinheiro como valor de troca individualizado, e portanto como encarnação da riqueza, foi objeto da busca dos alquimistas. Esta determinação marca o sistema mercantilista. A época que antecede o desenvolvimento da sociedade industrial moderna se inaugura com a sede universal de dinheiro, tanto por parte dos indivíduos como dos Estados. O desenvolvimento real das fontes de riqueza avança, por assim dizer, às suas costas, como meio para apoderar-se do representante da riqueza [...]. A corrida ao ouro, que conduz ao descobrimento de novas terras e à formação de novos Estados, e a expansão da massa de mercadorias que entram em circulação [criam] novas necessidades e integram regiões longínquas do mundo no processo do intercâmbio e do metabolismo material.” Neste sentido, o dinheiro era, em sua terceira determinação, “um duplo meio para ampliar a riqueza até sua universalização e para estender as dimensões da troca a toda a Terra; para criar a verdadeira universalidade do valor de troca, tanto em relação às coisas como em relação ao espaço” (Grundrisse, p. 136).

30. Zur Kritik, p. 142.

 

 

A investigação do papel do dinheiro no ciclo M-D-M demonstrou que o processo de intercâmbio é, ao mesmo tempo, processo de formação do dinheiro; a autonomização do meio de troca universal nasce “do processo de intercâmbio, do desenvolvimento das contradições contidas na mercadoria”. Como a imagem definitiva do dinheiro se afastou daquela que estava presente no estágio inicial da investigação! De modesto intermediário do processo de troca ele se converteu, inesperadamente, em um fator situado fora desse processo e independente dele. Originalmente, só representava as mercadorias; agora, ao contrário, as mercadorias é que se converteram em representantes do dinheiro. “Cada mercadoria particular, na medida em que é um valor de troca, tem um preço, expressa uma quantidade de dinheiro ainda em uma forma incompleta e imperfeita, já que ela deve ser colocada em circulação para ser realizada; por causa de seu caráter particular, ela pode ser realizada ou não, dependendo de circunstâncias acidentais.” Mas, enquanto não a consideramos como valor, mas sim em suas determinações naturais, ela “só é um momento da riqueza em virtude de sua relação com uma necessidade específica que satisfaz, e nessa relação ela expressa (a) apenas a riqueza na forma de valor de uso e (b) apenas um aspecto particular dessa riqueza”. Já o dinheiro é, de um lado, “a realidade adequada do valor de troca, [...] a própria riqueza universal concentrada em uma matéria particular, [...] individualizada em um objeto particular e tangível”;64 por outro lado, satisfaz “qualquer necessidade, enquanto possa ser trocado pelo objeto de qualquer necessidade”. Por isso, o dinheiro é não só a forma universal da riqueza social (“em oposição a todas as substâncias particulares em que ela consiste”) mas também, ao mesmo tempo, seu representante material: em sua forma metálica contém, “em estado latente, toda a riqueza material produzida no mundo das mercadorias”.65 “Como mediador da circulação, sofreu todo tipo de rebaixamento, foi cerceado e até degradado ao estado andrajoso, meramente simbólico, de papel. Como dinheiro, recupera sua soberania dourada. O serviçal se torna senhor. De simples coadjuvante, converte-se no deus das mercadorias.”66.”

64. Cf. nota 16 do capítulo 4.

65. Grundrisse, p. 131-132 e 140.

66. Zur Kritik, p. 121-122.

 

 

Smith supõe que, ‘nos começos da sociedade’, quando os homens ainda se enfrentam apenas como proprietários e trocadores de mercadorias, o valor destas é determinado pelo tempo de trabalho que contêm, mas isso deixa de ocorrer quando se formam o capital e a propriedade do solo. Isso significa [...] que a lei que vale para as mercadorias (consideradas como mercadorias) não vale para elas quando consideradas como capital ou produtos do capital, ou seja, quando se avança das mercadorias para o capital. Ora, o produto só assume plenamente a forma de mercadoria quando todo ele é transformado em valor de troca e seus, componentes também são mercadorias; ou seja, só se converte totalmente em mercadoria com o desenvolvimento da produção capitalista, tendo essa produção como base. Portanto, pretende-se que a lei da mercadoria exista em uma produção que não produz mercadorias (ou só o faz parcialmente) e que não exista na produção que se baseia na existência do produto como mercadoria. A lei, e a mercadoria como forma universal do produto, foi concebida a partir da produção capitalista, porém não vale precisamente para ela.”6 Em consequência, Torrens verifica “que na produção capitalista se produz uma inversão na lei do valor. Isso significa que a lei do valor, abstraída da produção capitalista, contradiz as manifestações do próprio capitalismo. O que põe no lugar? Absolutamente nada, salvo uma expressão verbal bruta, desprovida de ideias, do fenômeno que se deseja explicar.”7

Marx rechaça decididamente as ideias de Smith e de Torrens. Não situa a vigência da lei do valor em uma “época dourada” pré-capitalista. Tal como pensada pelos economistas burgueses, essa época é “uma completa ficção”, construída sobre a aparência da circulação capitalista das mercadorias e que “Adam Smith, da maneira tão própria ao século XVIII, situa no período pré-histórico e faz preceder a história”.8 Na realidade, a “produção primitiva” se baseava “em comunidades nas quais o intercâmbio privado era exceção, cumprindo um papel totalmente superficial e secundário. Com a dissolução histórica dessas comunidades, logo aparecem relações de dominação e de sujeição, relações de violência, que estão em flagrante contradição com a tranquila circulação de mercadorias e com as relações que lhe são correspondentes.”9 Contrariamente a essas tentativas de relegar a vigência da lei do valor-trabalho aos tempos “anteriores a Adão” — ao “paradise lost [paraíso perdido] da burguesia, quando os homens ainda não se enfrentavam como capitalistas, trabalhadores assalariados, latifundiários, arrendatários, banqueiros etc., mas sim como simples produtores e trocadores de mercadorias”10 —, Marx ressalta repetidamente duas coisas: o modo de produção capitalista “pressupõe circulação de mercadorias, e portanto circulação de dinheiro”;11 e a produção de mercadorias só pode ser “a forma normal e dominante da produção quando ocorre no âmbito da produção capitalista”. Por conseguinte, a produção de mercadorias “em sua forma universal e absoluta” é exatamente a produção capitalista de mercadorias.12 Pois “só então, quando se baseia no trabalho assalariado, a produção de mercadorias se impõe forçosamente à sociedade como um todo”,13 e só então também a lei do valor-trabalho pode sair da forma embrionária que mantinha em condições pré-capitalistas, convertendo-se em uma determinação que abrange toda a produção social e a regula.”

6. Theorien, III, p. 69. Schlesinger (op. cit., p. 119) refere-se a essa passagem quando fala das “obstinadas tentativas’’ de Marx “para conservar o ‘valor’ em um estágio no qual os produtos são trocados tendo como base os preços de produção, algo que não se pode sustentar a não ser mediante o uso de tautologias”. O verdadeiro sentido dessa passagem permaneceu incompreensível para ele.

7. Theorien, 111, p. 68.

8. Grundrisse, p. 74.

9. Ibid., p. 904.

10. Zur Kritik, p. 57.

11. Das Kapital III, p. 355.

12. Ibid., 11, p. 31 e 134. Cf. Theorien, III, p. 307: “[...] só baseada no capital a produção de mercadorias ou a produção dos bens como mercadorias se torna ampla e domina o caráter do próprio bem.”

13. Das Kapital, I, p. 616. Cf ibid., II, p. 111: “Na realidade, a produção capitalista é produção geral de mercadorias, mas só é isso — e é isso cada vez mais, ao se desenvolver — porque nela o próprio trabalho é mercadoria, porque o trabalhador vende o trabalho, ou melhor, o uso de sua força de trabalho [...].”

 

 

“(...) Assim como em O capital, também nos Grundrisse a primeira premissa da relação do capital é o fato de que o proprietário do dinheiro, o capitalista, pode trocar seu dinheiro “pela capacidade alheia de trabalho, transformada em mercadoria”.

O trabalhador, por sua vez, “dispõe de sua capacidade de trabalho como proprietário livre e a trata como mercadoria”; além disso, “já não dispõe de seu trabalho na forma de outra mercadoria, de trabalho objetivado. A única mercadoria que tem para colocar à venda é sua capacidade de trabalho, existente em seu próprio corpo vivo [...].” Mas, o fato — em geral, considerado um pressuposto do processo produtivo na sociedade burguesa — de que o capitalista “encontre no mercado de trabalho, no espaço da circulação, a capacidade de trabalho transformada em mercadoria [...] é o resultado de um largo processo histórico, é a síntese de muitas reviravoltas econômicas. Pressupõe o declínio de outros modos de produção [...] e um determinado desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social.”31

Marx observa: “Nesse ponto se percebe como a forma dialética da exposição só é correta quando conhece seus próprios limites.” Esses limites são fixados pela evolução histórica real “Do exame da circulação simples nós inferimos o conceito geral de capital, já que, nos marcos do modo burguês de produção, a própria circulação simples existe apenas como pressuposto do capital e o pressupõe. A inferência do conceito não faz do capital a encarnação de uma ideia eterna. A penas mostra o caminho pelo q uai, na realidade e apenas como uma forma necessária, ele tem de desembocar primeiro no trabalho que cria valor de troca, na produção fundada no valor de troca.”32 Portanto, o que à primeira vista pode parecer mera “dialética conceptual’’, na verdade reflete o fato de que a circulação mercantil simples — que só sob o domínio do capital se converte na forma geral que penetra em todo organismo econômico — constitui, nesse modo de produção, “uma esfera abstrata [...] que em virtude de suas próprias determinações se estabelece como momento, mera aparência de um processo mais profundo, situado por trás dela, que decorre dela e ao mesmo tempo a produz: o capital industrial”33

Marx destaca: “É essencial lembrar que o intercâmbio entre capital e trabalho [...] é apenas uma relação de dinheiro e mercadoria”, ou seja, uma relação situada na esfera da circulação simples. Pois o que ocorre na circulação “não é o intercâmbio entre dinheiro e trabalho, mas sim entre dinheiro e capacidade viva de trabalho”.34 Porém, o que impulsiona esse intercâmbio, sucessivamente, para mais além dos limites da circulação simples é o valor de uso específico do que foi intercambiado, o valor de uso da capacidade viva de trabalho.

Vimos que, na circulação simples, o conteúdo do valor de uso é indiferente, do ponto de vista econômico, pois “não afeta em nada a forma da relação”. Mas aqui, no intercâmbio entre capital e trabalho, “pelo contrário, o valor de uso do que é trocado pelo dinheiro define uma relação econômica especial”, sendo um “momento econômico essencial” desse intercâmbio.35 Na verdade, aqui têm lugar “dois processos diferentes — e até opostos — não só do ponto de vista formal, mas também qualitativo”: (1) o intercâmbio da capacidade de trabalho pelo salário (ato que cabe dentro da circulação simples) e (2) o uso da capacidade de trabalho pelo capitalista. “Como a capacidade de trabalho pertence à condição vital do próprio sujeito e só se manifesta como exteriorização vital deste [...], a apropriação do direito ao seu consumo coloca comprador e vendedor, durante o ato de uso, em uma relação diferente da que se estabelece no caso [de compra] do trabalho objetivado, que existe como objeto à margem do produtor,”36 Por isso, a diferença do segundo ato em relação ao primeiro — considerando-se como segundo ato o processo específico de apropriação do trabalho por parte do capital — é exatamente37 a diferença que separa o intercâmbio entre capital e trabalho, de um lado, e o intercâmbio no qual o dinheiro desempenha o papel de intermediário entre mercadorias, de outro. Entre capital e trabalho, o primeiro ato é um intercâmbio e pertence inteiramente ao processo habitual de circulação; o segundo é um processo qualitativamente diferente, e só por abuso38 pode ser considerado como um intercâmbio, seja de que tipo for. Contrapõe-se diretamente ao intercâmbio” de mercadorias; é uma “categoria essencialmente diferente”.39

Isso é tudo sobre a transformação da forma de circulação M-D-M na forma D-M-D. No curso dessa transformação, o dinheiro converteu-se em capital. “A perdurabilidade que o dinheiro tenta obter ao se comportar negativamente em relação à circulação, retirando-se dela, é alcançada pelo capital, que se conserva exatamente porque se entrega à circulação. O capital, como valor de troca que pressupõe a circulação, que está pressuposto nela e nela se conserva, adota alternadamente [a forma de] os dois momentos [M e D], contidos na circulação simples, mas não como nesta, na qual apenas se transita de uma das formas à outra. É, ao mesmo tempo, em cada uma das determinações, a relação com a oposta.”40 “Do ponto de vista do capital, o dinheiro e a mercadoria, assim como a própria circulação simples, só existem como momentos abstratos particulares de sua existência. O capital aparece neles constantemente, passando de uma forma a outra, na mesma medida em que desaparece.” Assim, “no capital, o dinheiro perdeu sua rigidez; de objeto tangível, passou a ser processo”.41 Ao mesmo tempo se opera uma profunda transformação em todo o modo de produção: antes, na etapa da circulação mercantil simples, a produção criadora de valores só tinha importância na medida em que as mercadorias que ingressavam na circulação deviam ser encarnações de tempo de trabalho social e, como tais, valores; “agora, a própria circulação retorna à atividade que cria e produz o valor de troca [...] como seu fundamento” (e, ao mesmo tempo, “como seu resultado”).42 Antes, uma produção “que só criava valores de troca como excedentes” era a premissa da circulação; agora, a produção de valores se converte na forma social decisiva, que domina todo o sistema de produção. Um processo histórico cuja expressão teórica é a categoria do “dinheiro como capital”.”

31. Ibid., p. 945. Cf. Das Kapital I, p. 177.

32. Grundrisse, p. 945-946.

33. Ibid., p. 922-923.

34. Ibid., p. 946.

35. Ibid., p. 185-186.

36. Marx acrescenta: “Isso não afeta a relação simples de intercâmbio [...]. Como valor de uso, a capacidade de trabalho só se realiza na atividade do próprio trabalho, mas exatamente do mesmo modo” que o valor de uso de uma garrafa de vinho “só se realiza no ato de beber vinho. O trabalho está tão pouco incluído no processo da circulação simples quanto o ato de beber” (Grundrisse, p. 946).

37. Em inglês no original: “exactly.

38. Em inglês no original: “by misuse”.

39. Grundrisse, p. 186.

40. Ibid., p. 938. “No capital se cria a perenidade do valor[...] na medida em que aquele se encarna nas mercadorias perecíveis, adota sua forma, embora as modifique; alterna entre sua forma perene no dinheiro e sua forma perecível nas mercadorias; a perenidade é colocada como a única coisa que ela pode ser: transitoriedade que transcorre, processo, vida. Mas, o capital só adquire essa característica sugando continuamente, como um vampiro, o trabalho vivo, substância que o anima” (ibid., p. 539). Cf. Das Kapital, 1; p. 241: “O capital é trabalho morto que, como um vampiro, só se reanima ao sugar trabalho vivo, e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga.”

41. Grundrisse, p. 937.

42. Ibid, p. 166-167. À primeira vista, aqui parece tratar-se de uma construção puramente hegeliana, pois “retornar ao fundamento” está entre as determinações essenciais da dialética de Hegel. Marx, porém, concebia de forma realista esse “retorno”, como se pode ver na seguinte Passagem dos Grundrisse: “Assim, na circulação [ou seja, na circulação mercantil simples] [...] se pressupunha uma produção que só conhecia o valor de troca sob a forma do supérfluo, do excedente por cima do valor de uso; mas retrocedeu a uma produção que só tinha lugar em relação à circulação, a uma produção que colocava o valor de troca na condição de objeto imediato. Este é um exemplo da regressão histórica que da circulação simples leva ao capital, ao valor de troca como forma dominante da produção” (ibid, p. 922).

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