terça-feira, 18 de maio de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte II), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 894

Sinopse: Ver Parte I




“Um homem que possui muito vinho e nenhum cereal negocia com outro homem, que possui muito cereal e nenhum vinho, e entre eles é trocado trigo, no valor de 50, por vinho, no mesmo valor de 50. Tal troca não constitui um aumento do valor de troca para nenhuma das partes, pois, antes da troca cada um deles já possuía um valor igual àquele que foi criado por meio dessa operação.15

O resultado não se altera em nada se o dinheiro é introduzido como meio de circulação entre as mercadorias, e se os atos de compra e venda são separados um do outro16. O valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado desta última17.

Considerado abstratamente, isto é, prescindindo das circunstâncias que não decorrem imediatamente das leis imanentes da circulação simples de mercadorias, o que ocorre na troca – além da substituição de um valor de uso por outro – não é mais do que uma metamorfose, uma mera mudança de forma da mercadoria. O mesmo valor, i.e., a mesma quantidade de trabalho social objetivado permanece nas mãos do mesmo possuidor de mercadorias, primeiramente como sua própria mercadoria, em seguida como dinheiro pelo qual ela foi trocada e, por fim, como mercadoria que ele compra com esse dinheiro. Essa mudança de forma não implica qualquer alteração na grandeza do valor, mas a mudança que o valor da mercadoria sofre nesse processo é limitada a uma mudança em sua forma-dinheiro. Ela existe, primeiramente, como preço da mercadoria à venda; em seguida, como uma quantia de dinheiro que, no entanto, já estava expressa no preço; por fim, como o preço de uma mercadoria equivalente. Essa mudança de forma implica, em si mesma, tão pouco uma alteração na grandeza do valor quanto a troca de uma nota de £5 por sovereigns, meio sovereign e xelins.

Assim, na medida em que a circulação da mercadoria opera tão somente uma mudança formal de seu valor, ela implica, quando o fenômeno ocorre livre de interferências, a troca de equivalentes. Mesmo a economia vulgar, que não sabe praticamente nada sobre o valor, reconhece, quando deseja considerar o fenômeno em sua pureza, que a oferta e a demanda são iguais, isto é, que seu efeito é nulo. Mas se no que diz respeito ao valor de uso tanto o comprador quanto o vendedor podem igualmente ganhar, o mesmo não ocorre quando se trata do valor de troca. Nesse caso, diz-se, antes: “Onde há igualdade, não há lucro”18. É verdade que as mercadorias podem ser vendidas por preços que não correspondem a seus valores, mas esse desvio tem de ser considerado como uma infração da lei da troca de mercadorias19. Em sua forma pura, ela é uma troca de equivalentes, não um meio para o aumento do valor20.

Por trás das tentativas de apresentar a circulação de mercadorias como fonte do mais-valor esconde-se, na maioria das vezes, um quiproquó, uma confusão de valor de uso com valor de troca. Por exemplo, diz Condillac:

“Não é verdade que na troca de mercadorias troca-se um valor igual por outro valor igual. Ao contrário. Cada um dos dois contratantes dá sempre um valor menor em troca de um valor maior [...]. Se valores iguais fossem trocados, não haveria ganho algum para nenhum dos contratantes, mas as duas partes obtêm um ganho, ou pelo menos deveriam obtê-lo. Por quê? O valor das coisas consiste meramente em sua relação com nossas necessidades. O que para um vale mais, para outro vale menos, e vice-versa [...]. Não colocamos à venda artigos que são indispensáveis para nosso próprio consumo [...]. Abrimos mão de uma coisa inútil para nós em troca de uma coisa que nos é necessária; queremos dar menos por mais [...]. É natural julgar que, na troca, dá-se um valor igual por outro valor igual, sempre que cada uma das coisas trocadas vale a mesma quantidade de ouro [...]. Mas outra consideração tem de entrar nesse cálculo; a questão é se cada uma das partes troca algo supérfluo por algo necessário.”21

Vê-se como Condillac não apenas confunde valor de uso com valor de troca, como, de modo verdadeiramente pueril, afirma que, numa sociedade em que a produção de mercadorias é bem desenvolvida, cada produtor produz seus próprios meios de subsistência e só põe em circulação o excedente sobre sua própria necessidade, o supérfluo22. Mesmo assim, o argumento de Condillac é frequentemente repetido por economistas modernos, principalmente quando se trata de mostrar que a forma desenvolvida da troca de mercadorias, o comércio, é produtora de mais-valor. “O comércio” – diz ele, por exemplo – “adiciona valor aos produtos, pois os mesmos produtos têm mais valor nas mãos do consumidor do que nas mãos do produtor, e, por isso, ele tem de ser considerado estritamente (strictly) um ato de produção.”23

Mas não se paga duas vezes pelas mercadorias, uma vez por seu valor de uso e outra vez por seu valor. E se o valor de uso da mercadoria é mais útil para o comprador do que para o vendedor, sua forma-dinheiro é mais útil para o vendedor do que para o comprador. Se assim não fosse, ele a venderia? Com a mesma razão, poder-se-ia dizer que o comprador realiza estritamente (strictly) um “ato de produção” quando, por exemplo, transforma as meias do mercador em dinheiro.

Se são trocadas mercadorias, ou mercadorias e dinheiro de mesmo valor de troca, portanto, equivalentes, é evidente que cada uma das partes não extrai da circulação mais valor do que nela lançou inicialmente. Não há, então, criação de mais-valor. Ocorre que, em sua forma pura, o processo de circulação de mercadorias exige a troca de equivalentes. Mas as coisas não se passam com tal pureza na realidade. (...)

“Portanto, a criação de mais-valor e, por conseguinte, a transformação de dinheiro em capital não pode ser explicada nem pelo fato de que uns vendem as mercadorias acima de seu valor, nem pelo fato de que outros as compram abaixo de seu valor26. (...)

O possuidor de mercadorias A pode ser esperto o suficiente para ludibriar seus colegas B ou C de um modo que estes não possam oferecer uma retaliação, apesar de terem toda a vontade de fazê-lo. A vende vinho a B pelo valor de £40 e, na troca, compra cereais pelo valor de £50. A transformou suas £40 em £50, menos dinheiro em mais dinheiro, e sua mercadoria em capital. Observemos a transação mais detalhadamente. Antes da troca, tínhamos vinho no valor de £40 nas mãos de A, e cereais no valor de £50 nas mãos de B, o que forma um total de £90. Após a troca, temos o mesmo valor total de £90. O valor em circulação não aumentou seu tamanho em nem um átomo, mas alterou-se sua distribuição entre A e B. O que aparece como mais-valor para um lado é menos-valor para o outro; o que aparece como “mais” para um, é “menos” para outro. A mesma mudança teria ocorrido se A, sem o eufemismo formal da troca, tivesse roubado diretamente £10 de B. Está claro que a soma do valor em circulação não pode ser aumentada por nenhuma mudança em sua distribuição, tão pouco quanto um judeu pode aumentar a quantidade de metal precioso num país ao vender um farthing da época da rainha Ana por um guinéub. A totalidade da classe capitalista de um país não pode se aproveitar de si mesma30. (...)

Portanto, o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela.

Temos, assim, um duplo resultado.

A transformação do dinheiro em capital tem de ser explicada com base nas leis imanentes da troca de mercadorias, de modo que a troca de equivalentes seja o ponto de partida37. Nosso possuidor de dinheiro, que ainda é apenas um capitalista em estado larval, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las pelo seu valor e, no entanto, no final do processo, retirar da circulação mais valor do que ele nela lançara inicialmente. Sua crisalidação [Schmetterlingsentfaltung] tem de se dar na esfera da circulação e não pode se dar na esfera da circulação. Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!d

15 Mercier de la Rivière, “L’ordre naturel et essentiel des sociétés politiques”, cit., p. 544.

16 “Que um desses dois valores seja dinheiro, ou que os dois sejam mercadorias comuns, é algo absolutamente indiferente”, ibidem, p. 543.

17 “Não são as partes contratantes que decidem sobre o valor; ele é decidido antes da convenção”, Le Trosne, De l’intérêt social, cit., p. 906.

18Dove è egualità non è lucro”, Galiani, Della moneta, cit., t. IV, p. 244.

19 “A troca se torna desavantajosa para uma das partes quando alguma circunstância estranha vem diminuir ou aumentar o preço; então, a igualdade é ferida, mas o ferimento procede dessa causa, e não da troca”, Le Trosne, De l’intérêt social, cit., p. 904.

20 “A troca é, por sua natureza, um contrato de igualdade firmado entre dois valores iguais. Ele não é, portanto, um meio de se enriquecer, porquanto se dá tanto quanto se recebe”, Le Trosne, “L’ordre naturel et essentiel des sociétés politiques”, cit., p. 903.

21 Condillac, Le commerce et le gouvernement (1776), em Daire e Molinari (orgs.), Mélanges d’économie politique (Paris, 1847), p. 267, 291.

22 Le Trosne responde muito corretamente a seu amigo Condillac: “Numa [...] sociedade formada não há nada que seja supérfluo”. Ao mesmo tempo, ele observa jocosamente que, “se as duas partes que realizam a troca recebem igualmente mais do que fornecem uma à outra, então ambas obtêm a mesma quantidade”. É pelo fato de Condillac não ter a mínima ideia da natureza do valor de troca que ele foi escolhido pelo sr. professor Wilhelm Roscher como a autoridade a fundamentar seus próprios conceitos infantis. Cf. a obra de Roscher, Die Grundlagen der Nationalökonomie (3. ed., 1858).

23 S. P. Newman, Elements of Polit. Econ. (Andover e Nova York, 1835), p. 175.

26 “Por isso, nenhum vendedor pode aumentar os preços de suas mercadorias sem que tenha igualmente de pagar mais caro pelas mercadorias dos outros vendedores; e, pela mesma razão, nenhum consumidor pode habitualmente comprar mais barato sem ter de abaixar o preço das coisas que ele mesmo vende”, Mercier de la Rivière, “L’ordre naturel et essentiel des sociétés politiques”, cit., p. 555.

b Antiga moeda inglesa de ouro, com valor de 1 libra-peso, o equivalente a 20 (mais tarde, 21) xelins. (N. T.)

30 Destutt de Tracy, embora – ou talvez devido a isso – fosse um membre de l’Institut, era de opinião contrária. Segundo ele, o lucro dos capitalistas provém do fato de eles “venderem tudo mais caro do que seu custo de produção. E para quem eles vendem? Primeiramente, uns para os outros”, Traité de la volonté et de ses effets, cit., p. 239. [Membre de l’Institut: referência ao Institute National des Sciences et Arts, fundado pela Convenção em 1795 em substituição às academias francesas. (N. T.)]

37 A partir da presente investigação, o leitor pode compreender que o que está em questão é o seguinte: a formação do capital tem de ser possível mesmo que o preço e o valor de uma mercadoria sejam iguais. Sua formação não pode ser atribuída a um desvio do preço em relação ao valor das mercadorias. Se o preço realmente difere do valor, é preciso, antes de tudo, reduzir o primeiro ao último, isto é, considerar a diferença como acidental a fim de poder observar em sua pureza o fenômeno da formação do capital sobre a base da troca de mercadorias, sem que essa observação seja perturbada por circunstâncias secundárias ao processo propriamente dito. Sabe-se, além disso, que essa redução não é de modo algum um mero procedimento científico. As constantes oscilações dos preços de mercado, suas altas e baixas, compensam umas às outras, anulam-se mutuamente e se reduzem a um preço médio, que funciona como seu regulador interno. Tal preço médio é a estrela-guia, por exemplo, do mercador ou do industrial em todo empreendimento que abrange um período de tempo mais longo. Ele sabe, assim, que, no longo prazo, as mercadorias não serão vendidas nem abaixo, nem acima, mas pelo seu preço médio. Se o pensamento desinteressado fosse seu interesse, ele teria de elaborar o problema da formação do capital do seguinte modo: como pode o capital surgir quando se considera que a regulação dos preços se dá por meio do preço médio, isto é, em última instância, pelo valor da mercadoria? Digo “em última instância” porque os preços médios não coincidem diretamente com os valores das mercadorias, ao contrário do que creem Smith, Ricardo etc.

d Referência a Hic Rhodus, hic salta [Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!], tradução latina de um trecho da fábula “O atleta fanfarrão”, de Esopo. Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 30, Marx emprega a citação modificada, em latim e em alemão (Hic Rhodus, hic salta! Hier ist die Rose, hier tanze! [Aqui está a rosa, dança agora!]), em alusão ao uso que Hegel faz da expressão no prefácio da Filosofia do direito. No caso presente, embora não se trate de uma referência a Hegel, o autor mantém a mesma forma empregada em O 18 de brumário. (N. T.)

 

 

“A mudança de valor do dinheiro destinado a se transformar em capital não pode ocorrer nesse mesmo dinheiro, pois em sua função como meio de compra e de pagamento ele realiza apenas o preço da mercadoria que ele compra ou pela qual ele paga, ao passo que, mantendo-se imóvel em sua própria forma, ele se petrifica como um valor que permanece sempre o mesmo38. Tampouco pode a mudança ter sua origem no segundo ato da circulação, a revenda da mercadoria, pois esse ato limita-se a transformar a mercadoria de sua forma natural em sua forma-dinheiro. A mudança tem, portanto, de ocorrer na mercadoria que é comprada no primeiro ato D-M, porém não em seu valor, pois equivalentes são trocados e a mercadoria é paga pelo seu valor pleno. Desse modo, a mudança só pode provir de seu valor de uso como tal, isto é, de seu consumo. Para poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação, uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho, ou força de trabalho.

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo.

No entanto, para que o possuidor de dinheiro encontre a força de trabalho como mercadoria no mercado, é preciso que diversas condições estejam dadas. A troca de mercadorias por si só não implica quaisquer outras relações de dependência além daquelas que resultam de sua própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é colocada à venda ou é vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa39. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mútua como iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de que um é comprador e o outro, vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente iguais. A continuidade dessa relação requer que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por um determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez por todas, vende a si mesmo, transforma-se de um homem livre num escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria. Como pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com sua força de trabalho como sua propriedade e, assim, como sua própria mercadoria, e isso ele só pode fazer na medida em que a coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente, oferecendo-a ao consumo por um período determinado, portanto, sem renunciar, no momento em que vende sua força de trabalho, a seus direitos de propriedade sobre ela40.

A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro encontre no mercado a força de trabalho como mercadoria é que seu possuidor, em vez de poder vender mercadorias em que seu trabalho se objetivou, tenha, antes, de oferecer como mercadoria à venda sua própria força de trabalho, que existe apenas em sua corporeidade viva. (...)

Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.

Por que razão esse trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação é algo que não interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o mercado é uma seção particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão tampouco tem interesse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara: a natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos, mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção social.

Também as categorias econômicas que consideramos anteriormente trazem consigo as marcas da história. Na existência do produto como mercadoria estão presentes determinadas condições históricas, e para se tornar mercadoria, o produto não pode ser produzido como meio imediato de subsistência para o próprio produtor. Se tivéssemos avançado em nossa investigação e posto a questão “sob que circunstâncias todos os produtos – ou apenas a maioria deles – assumem a forma da mercadoria?”, teríamos descoberto que isso só ocorre sobre a base de um modo de produção específico, o modo de produção capitalista. No entanto, tal investigação estaria distante da análise da mercadoria. A produção e a circulação de mercadorias podem ocorrer mesmo quando a maior parte dos produtos é destinada à satisfação das necessidades imediatas de seus próprios produtores, quando não é transformada em mercadoria e, portanto, quando o valor de troca ainda não dominou o processo de produção em toda sua extensão e profundidade. A apresentação do produto como mercadoria pressupõe uma divisão do trabalho tão desenvolvida na sociedade que a separação entre valor de uso e valor de troca, que tem início no escambo, já tem de estar realizada. No entanto, tal grau de desenvolvimento é comum às mais diversas e historicamente variadas formações econômicas da sociedade.

Por outro lado, se consideramos o dinheiro, vemos que ele pressupõe um estágio definido da troca de mercadorias. As formas específicas do dinheiro, seja como mero equivalente de mercadorias ou como meio de circulação, seja como meio de pagamento, tesouro ou dinheiro mundial, remetem, de acordo com a extensão e a preponderância relativa de uma ou outra função, a estágios muito distintos do processo social de produção. No entanto, uma circulação de mercadorias relativamente pouco desenvolvida é suficiente para a constituição de todas essas formas, diferentemente do que ocorre com o capital. Suas condições históricas de existência não estão de modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do dinheiro. Ele só surge quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial. O capital anuncia, portanto, desde seu primeiro surgimento, uma nova época no processo social de produção41.”

38 “Na forma do dinheiro [...] o capital não produz lucro nenhum”, Ricardo, Princ. of Pol. Econ., cit., p. 267.

39 Em enciclopédias sobre a Antiguidade clássica, encontramos a afirmação absurda de que, no mundo antigo, o capital estava plenamente desenvolvido, “carecendo apenas do trabalho livre e de um sistema de crédito”. Também o sr. Mommsen, em sua História de Roma, comete, a esse respeito, uma confusão atrás da outra.

40 Por essa razão, diferentes legislações fixam um teto máximo para o contrato de trabalho. Todos os códigos de nações em que a regra é o trabalho livre estabelecem regras para a rescisão do contrato. Em alguns países, especialmente no México (antes da Guerra Civil Americana, também nos territórios tomados do México, assim como nas províncias do Danúbio até a Revolução de Kusa), a escravatura se esconde sob a forma da peonage. Por meio de adiantamentos, que devem ser pagos com trabalho e que se acumulam de geração a geração, não apenas o trabalhador individual, mas também sua família, torna-se, de fato, a propriedade de outras pessoas e de suas famílias. Juárez aboliu a peonage. O assim chamado imperador Maximiliano a reinstituiu mediante um decreto, corretamente denunciado na Casa dos Representantes de Washington como decreto de reinstituição da escravatura no México. “Posso vender a outro, por um tempo limitado, minhas aptidões corporais e mentais e minhas possibilidades de atividade, pois estas, em consequência dessa restrição, conservam-se numa relação externa com minha totalidade e universalidade. Mas se vendesse a totalidade de meu tempo concreto de trabalho e de minha produção, eu converteria em propriedade de outrem aquilo mesmo que é substancial, isto é, minha atividade e efetividade universais, minha personalidade”, Hegel, Filosofia do direito, cit., p. 104, §67. [Revolução de Kusa – Em janeiro de 1859, Alexander Kusa foi eleito hospodar da Moldávia e, pouco depois, também da Valáquia. Com a unificação desses dois principados do Danúbio, que permanecera por um longo período sob o domínio do Império Otomano, foi criado um Estado romeno unitário. Kusa propôs-se o objetivo de realizar uma série de reformas burguesas-democráticas. Sua política encontrou, no entanto, a resistência dos proprietários fundiários e de uma parcela da burguesia. Em 1864, Kusa dissolveu a Assembleia Nacional, dominada pelos grandes proprietários e que rejeitara um projeto de reforma agrária proposto pelo governo. Uma constituição foi promulgada, o círculo de eleitores ampliado e o poder do governo fortalecido. A reforma agrária aprovada nessa nova situação política previa a abolição da servidão e a distribuição de terras devolutas aos trabalhadores. (N. E. A. MEW)]

41 O que caracteriza a época capitalista é, portanto, que a força de trabalho assume para o próprio trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence, razão pela qual seu trabalho assume a forma do trabalho assalariado. Por outro lado, apenas a partir desse momento universaliza-se a forma-mercadoria dos produtos do trabalho.

 

 

“Sabemos, agora, como é determinado o valor que o possuidor de dinheiro paga ao possuidor dessa mercadoria peculiar, a força de trabalho. O valor de uso que o possuidor de dinheiro recebe na troca mostra-se apenas na utilização efetiva, no processo de consumo da força de trabalho. O possuidor de dinheiro compra no mercado todas as coisas necessárias a esse processo, como matérias-primas etc., e por elas paga seu preço integral. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor. O consumo da força de trabalho, assim como o consumo de qualquer outra mercadoria, tem lugar fora do mercado ou da esfera da circulação. Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é produzido. O segredo da criação de mais-valor tem, enfim, de ser revelado.

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.

Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.”

 

 

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata, aqui, das primeiras formas instintivas, animalescas [tierartig], do trabalho. Um incomensurável intervalo de tempo separa o estágio em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho daquele em que o trabalho humano ainda não se desvencilhou de sua forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio conteúdo e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos este último usufrui dele como jogo de suas próprias forças físicas e mentais.

Os momentos simples do processo de trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios.”

 

 

“O processo de trabalho, como expusemos em seus momentos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim – a produção de valores de uso –, apropriação do elemento natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou melhor, comum a todas as suas formas sociais. Por isso, não tivemos necessidade de apresentar o trabalhador em sua relação com outros trabalhadores, e pudemos nos limitar ao homem e seu trabalho, de um lado, e à natureza e suas matérias, de outro. Assim como o sabor do trigo não nos diz nada sobre quem o plantou, tampouco esse processo nos revela sob quais condições ele se realiza, se sob o açoite brutal do feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista, se como produto das poucas jugerac de terra cultivadas por Cincinnatus ou da ação do selvagem que abate uma fera com uma pedra9.”

c Plural de jugerum, unidade de medida romana, equivalente a 25,29 acres. (N. T.)

9 É a partir desse fundamento extremamente lógico que o coronel Torrens descobre na pedra do selvagem a origem do capital. “Na primeira pedra que [o selvagem] arremessa contra a fera que ele persegue, no primeiro varapau que ele pega para arrancar o fruto que sua mão não consegue alcançar, vemos a apropriação de um artigo para o propósito da aquisição de outro e, assim, descobrimos a origem do capital”, R. Torrens, An Essay on the Production of Wealth (Londres, 1821), p. 70-1.

 

 

“O caminho para o inferno é pavimentado com boas intenções.”

 

 

“(...) Vejamos a questão mais de perto. O valor diário da força de trabalho é de 3 xelins porque nela própria está objetivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários à produção diária da força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho anterior, que está incorporado na força de trabalho, e o trabalho vivo que ela pode prestar, isto é, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas completamente distintas. A primeira determina seu valor de troca, a segunda constitui seu valor de uso. O fato de que meia jornada de trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem em vista quando compra a força de trabalho. Sua qualidade útil, sua capacidade de produzir fio ou botas, é apenas uma conditio sine qua non [condição indispensável], já que o trabalho, para criar valor, tem necessariamente de ser despendido de modo útil. Mas o que é decisivo é o valor de uso específico dessa mercadoria, o fato de ela ser fonte de valor, e de mais valor do que aquele que ela mesma possui. Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber dessa mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia de força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa força de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada. A circunstância na qual a manutenção diária da força de trabalho custa apenas meia jornada de trabalho, embora a força de trabalho possa atuar por uma jornada inteira, e, consequentemente, o valor que ela cria durante uma jornada seja o dobro de seu próprio valor diário – tal circunstância é, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustiça para com o vendedor.

Nosso capitalista previu esse estado de coisas, e o caso o faz rird. O trabalhador encontra na oficina os meios de produção necessários não para um processo de trabalho de 6, mas de 12 horas. Assim como 10 libras de algodão absorveram 6 horas de trabalho e se transformaram em 10 libras de fio, 20 libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20 libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho. Nas 20 libras de fio estão objetivadas, agora, 5 jornadas de trabalho, das quais 4 foram empregadas na produção do algodão e dos fusos e 1 foi absorvida pelo algodão durante o processo de fiação. A expressão em ouro das 5 jornadas de trabalho é 30 xelins ou £1 e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras de fio. A libra de fio continua a custar 1 xelim e 6 pence, mas a quantidade de valor das mercadorias lançadas no processo soma 27 xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto aumentou 1/9 sobre o valor adiantado em sua produção. Desse modo, 27 xelins transformaram-se em 30 xelins, criando um mais-valor de 3 xelins. No final das contas, o truque deu certo. O dinheiro converteu-se em capital.

Todas as condições do problema foram satisfeitas, sem que tenha ocorrido qualquer violação das leis da troca de mercadorias. Trocou-se equivalente por equivalente. Como comprador, o capitalista pagou o devido valor por cada mercadoria: algodão, fusos, força de trabalho. Em seguida, fez o mesmo que costuma fazer todo comprador de mercadorias: consumiu seu valor de uso. Do processo de consumo da força de trabalho, que é ao mesmo tempo processo de produção da mercadoria, resultou um produto de 20 libras de fio com um valor de 30 xelins. Agora, o capitalista retorna ao mercado, mas não para comprar, como antes, e sim para vender mercadoria. Ele vende a libra de fio por 1 xelim e 6 pence, nem um centavo acima ou abaixo de seu valor. E, no entanto, ele tira de circulação 3 xelins a mais do que a quantia que nela colocou. Esse ciclo inteiro, a transformação de seu dinheiro em capital, ocorre no interior da esfera da circulação e, ao mesmo tempo, fora dela. Ele é mediado pela circulação, porque é determinado pela compra da força de trabalho no mercado. Mas ocorre fora da circulação, pois esta apenas dá início ao processo de valorização, que tem lugar na esfera da produção. E assim está “tout pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles” [Tudo ocorre da melhor maneira ao melhor dos mundos possíveis]e.

Ao transformar o dinheiro em mercadorias, que servem de matérias para a criação de novos produtos ou como fatores do processo de trabalho, ao incorporar força viva de trabalho à sua objetividade morta, o capitalista transforma o valor – o trabalho passado, objetivado, morto – em capital, em valor que se autovaloriza, um monstro vivo que se põe a “trabalhar” como se seu corpo estivesse possuído de amorf.

Ora, se compararmos o processo de formação de valor com o processo de valorização, veremos que este último não é mais do que um processo de formação de valor que se estende para além de certo ponto. Se tal processo não ultrapassa o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simplesmente um processo de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna processo de valorização.

Se, além disso, compararmos o processo de formação de valor com o processo de trabalho, veremos que este último consiste no trabalho útil, que produz valores de uso. O movimento é, aqui, considerado qualitativamente, em sua especificidade, segundo sua finalidade e conteúdo. O mesmo processo de trabalho se apresenta, no processo de formação de valor, apenas sob seu aspecto quantitativo. Aqui, o que importa é apenas o tempo que o trabalho necessita para a sua operação, ou o período durante o qual a força de trabalho é despendida de modo útil. As mercadorias que tomam parte no processo também deixam de importar como fatores materiais, funcionalmente determinados, da força de trabalho que atua orientada para um fim. Elas importam tão somente como quantidades determinadas de trabalho objetivado. Se contido nos meios de produção ou adicionado pela força de trabalho, o trabalho só importa por sua medida temporal. Ele dura tantas horas, dias etc.

No entanto, o trabalho só importa na medida em que o tempo gasto na produção do valor de uso é socialmente necessário, o que implica diversos fatores. A força de trabalho tem de funcionar sob condições normais. Se a máquina de fiar é o meio de trabalho dominante na fiação, seria absurdo fornecer ao trabalhador uma roda de fiar. Ou, em vez de algodão de qualidade normal, fornecer-lhe um refugo de algodão, que a toda hora arrebenta. Em ambos os casos, seu trabalho ocuparia um tempo de trabalho maior do que o tempo socialmente necessário para a produção de 1 libra de fio, mas esse trabalho excedente não geraria valor ou dinheiro. Contudo, o caráter normal dos fatores objetivos de trabalho não depende do trabalhador, e sim do capitalista. Uma outra condição é o caráter normal da própria força de trabalho. No ramo de produção em que é empregada, ela tem de possuir o padrão médio de habilidade, eficiência e celeridade. Mas aqui supomos que nosso capitalista comprou força de trabalho de qualidade normal. Tal força tem de ser aplicada com a quantidade média de esforço e com o grau de intensidade socialmente usual, e o capitalista controla o trabalhador para que este não desperdice nenhum segundo de trabalho. Ele comprou a força de trabalho por um período determinado, e insiste em obter o que é seu. Não quer ser furtado. Por fim – e é para isso que esse mesmo senhor possui seu próprio code penal [código penal] –, é vedado qualquer consumo desnecessário de matéria-prima e meios de trabalho, pois material e meios de trabalho desperdiçados representam o dispêndio desnecessário de certa quantidade de trabalho objetivado, portanto, trabalho que não conta e não toma parte no produto do processo de formação de valor17.

Vê-se que a diferença, anteriormente obtida com a análise da mercadoria, entre o trabalho como valor de uso e o mesmo trabalho como criador de valor, apresenta-se, agora, como distinção dos diferentes aspectos do processo de produção.

O processo de produção, como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias.

Observamos, anteriormente, que para o processo de valorização é completamente indiferente se o trabalho apropriado pelo capitalista é trabalho social médio não qualificado ou trabalho complexo, dotado de um peso específico mais elevado. O trabalho que é considerado mais complexo e elevado do que o trabalho social médio é a exteriorização de uma força de trabalho com custos mais altos de formação, cuja produção custa mais tempo de trabalho e que, por essa razão, tem um valor mais elevado do que a força simples de trabalho. Como o valor dessa força é mais elevado, ela também se exterioriza num trabalho mais elevado, trabalho que cria, no mesmo período de tempo, valores proporcionalmente mais altos do que aqueles criados pelo trabalho inferior. Mas qualquer que seja a diferença de grau entre o trabalho de fiação e de joalheria, a porção de trabalho com a qual o trabalhador joalheiro apenas repõe o valor de sua própria força de trabalho não se diferencia em nada, em termos qualitativos, da porção adicional de trabalho com a qual ele cria mais-valor. Tal como antes, o mais-valor resulta apenas de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho: num caso, do processo de produção do fio, noutro, do processo de produção de joias18.

Por outro lado, em todo processo de formação de valor, o trabalho superior tem sempre de ser reduzido ao trabalho social médio; por exemplo, uma jornada de trabalho superior tem de ser reduzida a x jornadas de trabalho simples19. Poupa-se, com isso, uma operação supérflua e simplifica-se a análise, por meio do pressuposto de que o trabalhador empregado pelo capital realiza o trabalho social médio não qualificado.”

d Paráfrase das palavras de Fausto: “O caso me faz rir”, J. W. Goethe, “Quarto de estudos”, em Fausto. (N. T.)

e Aforismo do romance satírico de Voltaire, Cândido, ou o otimismo. (N. E. A. MEW)

f “Como se estivesse possuído de amor” – no original, “als hätt’es Lieb’im Leibe” (literalmente: “como se tivesse amor no corpo”). Citação de J. W. Goethe, Fausto, primeira parte, quadro VI, cena I, que aparece no contexto da reação de uma ratazana recém-envenenada. (N. T.)

17 Essa é uma das circunstâncias que encarecem a produção baseada na escravidão. Nesta, segundo a expressão certeira dos antigos, o trabalhador é um instrumentum vocale [ferramenta falante], distinto do animal (o instrumentum semivocale [ferramenta semifalante]) e da ferramenta morta (o instrumentum mutum [ferramenta muda]). Mas ele mesmo faz questão de deixar claro ao animal e à ferramenta que não é um deles, mas um homem. Ele alimenta em si mesmo a convicção de sua diferença em relação a eles, tratando-os com impiedade e arruinando-os con amore. É por isso que, nesse modo de produção, vale o princípio econômico de empregar apenas os instrumentos de trabalho mais rudes e pesados, porém difíceis de danificar justamente em virtude desse seu irremediável desajeitamento. Até o início da guerra civil, ainda se podiam encontrar, nos estados escravistas do Golfo do México, arados construídos segundo o modelo dos antigos arados chineses, que reviravam a terra como um porco ou uma toupeira, em vez de sulcá-la. Cf. J. E. Cairnes, The Slave Power (Londres, 1862), p. 46s. Em seu Seaboard Slave States [p. 46], relata Olmsted: “Deparei-me, aqui, com ferramentas que, entre nós, ninguém em sã consciência forneceria a seu trabalhador assalariado; e creio que o peso excessivo e o desajeitamento de tais ferramentas tornam o trabalho no mínimo dez vezes mais dificultoso do que com as ferramentas normalmente usadas entre nós. E estou certo de que, pela forma descuidada e desajeitada com que elas têm de ser usadas pelos escravos, não se poderia fornecer a eles, de modo economicamente proveitoso, nada mais leve ou menos rude, e que ferramentas tais como a que fornecemos constantemente a nossos trabalhadores e que nos são lucrativas não durariam um dia sequer numa lavoura da Virgínia – cuja terra é muito mais leve e livre de pedras do que a nossa. Do mesmo modo, quando pergunto por que as mulas substituem os cavalos em todas as fazendas, a primeira resposta que recebo, e de fato a mais convincente, é a de que os cavalos não são capazes de aguentar o tratamento que recebem constantemente dos negros; os cavalos são rapidamente estropiados e aleijados por eles, ao passo que as mulas aguentam os maus-tratos e podem ficar sem um ou dois repastos sem que isso lhes prejudique materialmente, e tampouco se resfriam ou adoecem quando descuidadas ou sobrecarregadas. Mas não preciso ir além da janela do quarto de onde escrevo para ver, a qualquer hora do dia, um tratamento do gado que, em quase qualquer fazenda do Norte, provocaria o imediato afastamento do empregado pelo fazendeiro”.

18 A diferença entre trabalho superior e inferior, trabalho “qualificado” e “não qualificado”, repousa, em parte, em meras ilusões ou, no mínimo, diferenças que há muito deixaram de ser reais e continuam a existir apenas em convenção tradicional, e, em parte, no desamparo de certas camadas da classe trabalhadora, que dispõem de menos condições do que as outras de se beneficiar do valor de sua força de trabalho. Circunstâncias acidentais desempenham nisso um papel tão grande que esses dois tipos de trabalho às vezes trocam de lugar. Onde, por exemplo, a substância física da classe trabalhadora está enfraquecida e relativamente esgotada, como é o caso em todos os países de produção capitalista desenvolvida, os trabalhos geralmente brutais, que exigem grande força muscular, passam a ser considerados superiores em comparação a formas de trabalho muito mais refinadas, que são, assim, rebaixadas ao grau de trabalho inferior. Por exemplo, o trabalho de um bricklayer (pedreiro) na Inglaterra ocupa um grau muito superior ao trabalho de um tecelão de damasco. Por outro lado, o trabalho de um fustian cutter (tosador de fustão), embora custe muito esforço físico e seja, além de tudo, extremamente insalubre, é considerado trabalho “simples”. E seria um erro pensar que o assim chamado “trabalho qualificado” ocupa um espaço quantitativamente mais significativo no trabalho nacional. Laing calcula que, na Inglaterra (e País de Gales), existam 11 milhões de pessoas ocupadas com trabalhos simples. Se dos 18 milhões de pessoas, que, à época de seu escrito, constituíam a população total, deduzirmos um milhão de aristocratas, um milhão e meio de miseráveis, vagabundos, criminosos, prostitutas etc., e uma classe média de 4.650.000, obteremos os 11 milhões mencionados. Ocorre que, nessa classe média, ele inclui pessoas que vivem da renda de pequenos investimentos, funcionários, escritores, artistas, professores etc., e, para chegar a esses 42/3 milhões, ele também inclui na parte trabalhadora da classe média, além dos banqueiros etc., aqueles “trabalhadores fabris” que recebem salários maiores! Também os bricklayers estão incluídos entre os “trabalhadores potencializados”, S. Laing, National Distress: Its Causes and Remedies (Londres, 1844), [p. 49-52 passim], “A grande classe, que não tem nada a oferecer em troca de comida a não ser o trabalho comum, forma a grande massa do povo”, James Mill, “Colony”, suplemento na Encyclopedia Britannica (1831).

19 “Onde se faz referência ao trabalho como uma medida de valor, está necessariamente implicado o trabalho de um tipo particular [...] podendo-se facilmente estabelecer a proporção em que outros trabalhos se encontram em relação a ele”, J. Cazenove, Outlines of Polit. Economy (Londres, 1832), p. 22-3.

 

 

“Vimos que o trabalhador, durante uma parte do processo de trabalho, produz apenas o valor de sua força de trabalho, isto é, o valor dos meios necessários à sua subsistência. Produzindo sob condições baseadas na divisão social do trabalho, ele produz seus meios de subsistência não diretamente, mas na forma de uma mercadoria particular, por exemplo, do fio, um valor igual ao valor de seus meios de subsistência, ou ao dinheiro com o qual ele os compra. A parte de sua jornada de trabalho que ele precisa para isso pode ser maior ou menor a depender do valor de seus meios de subsistência diários médios ou, o que é o mesmo, do tempo médio de trabalho diário requerido para sua produção. Se o valor de seus meios diários de subsistência representa em média 6 horas de trabalho objetivado, o trabalhador tem de trabalhar, em média, 6 horas diárias para produzi-los. Se não trabalhasse para o capitalista, mas para si mesmo, independentemente, ele continuaria a dedicar, mantendo-se iguais as demais circunstâncias, a mesma média diária de horas de sua jornada à produção do valor de sua força de trabalho e, desse modo, à obtenção dos meios de subsistência necessários à sua manutenção ou reprodução contínua. Mas como na parte de sua jornada de trabalho em que produz o valor diário da força de trabalho, digamos, 3 xelins, o trabalhador produz apenas um equivalente do valor já pago pelo capitalista28a – e, desse modo, apenas repõe, por meio do novo valor criado, o valor do capital variável adiantado –, essa produção de valor aparece como mera reprodução. Portanto, denomino “tempo de trabalho necessário” a parte da jornada de trabalho em que se dá essa reprodução, e “trabalho necessário” o trabalho despendido durante esse tempo29. Ele é necessário ao trabalhador, porquanto é independente da forma social de seu trabalho, e é necessário ao capital e seu mundo, porquanto a existência contínua do trabalhador forma sua base.

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador trabalha além dos limites do trabalho necessário, custa-lhe, de certo, trabalho, dispêndio de força de trabalho, porém não cria valor algum para o próprio trabalhador. Ele gera mais-valor, que, para o capitalista, tem todo o charme de uma criação a partir do nada. A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho excedente [Surplusarbeitszeit], e ao trabalho nela despendido denomino mais-trabalho [Mehrarbeit] (surplus labour). Do mesmo modo como, para a compreensão do valor em geral, é indispensável entendê-lo como mero coágulo de tempo de trabalho, como simples trabalho objetivado, é igualmente indispensável para a compreensão do mais-valor entendê-lo como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objetivado. O que diferencia as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato, do trabalhador30.

Como, por um lado, o valor do capital variável é igual ao valor da força de trabalho por ele comprada, e o valor dessa força de trabalho determina a parte necessária da jornada de trabalho, enquanto o mais-valor, por outro lado, é determinado pela parte excedente da jornada de trabalho, concluímos que o mais-valor está para o capital variável como o mais-trabalho está para o trabalho necessário, ou, em outras palavras, que a taxa de mais-valor m/v = (mais-trabalho)/(trabalho necessário). Ambas as proporções expressam a mesma relação de modo diferente, uma na forma de trabalho objetivado, a outra na forma de trabalho fluido.

A taxa de mais-valor é, assim, a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista30a.”

28 Do mesmo modo que os ingleses empregam os termos “rate of profits”, “rate of interest” etc. No Livro III desta obra, veremos que a taxa de lucro é fácil de ser compreendida quando se conhecem as leis do mais-valor. Do contrário, não se compreende ni l’un, ni l’autre [nem uma, nem outra].

28a Nota à terceira edição: O autor recorre, aqui, à linguagem econômica usual. Lembremos que, na p. 248-50, é demonstrado que, na realidade, é o trabalhador quem “adianta” ao capitalista, e não este ao trabalhador. (F. E.)

29 Até o momento, empregamos neste escrito o termo “tempo necessário de trabalho” para o tempo socialmente necessário à produção de uma mercadoria. A partir de agora, também o utilizamos para designar o tempo de trabalho necessário à produção desta mercadoria específica, a força de trabalho. O uso dos mesmos termini technici [termos técnicos] em sentidos diferentes é inconveniente, porém impossível de ser evitado em qualquer ciência. Compare, por exemplo, as áreas mais elevadas com as mais baixas da matemática.

30 Com uma genialidade digna de Gottsched, o sr. Wilhelm Tucídides Roscher descobre que, se por um lado a formação de mais-valor, ou mais-produção, e a acumulação que dela decorre, é atualmente devida à “abstinência” do capitalista, que por ela “cobra, por exemplo, juros”, por outro lado, “nos estágios mais baixos da civilização [...] são os mais fortes que obrigam os mais fracos a economizar”, Die Grundlagen der Nationalökonomie, cit., p. 82, 78. Economizar trabalho? Ou produtos supérfluos, que não existem? Além da ignorância, é o recuo apologético diante de uma análise devida do valor e do mais-valor, e o medo de chegar a resultados indesejáveis, que força autores como Roscher a apresentar como razões do surgimento do mais-valor as justificativas mais ou menos plausíveis que o próprio capitalista apresenta para sua apropriação do mais-valor. [“Genialidade digna de Gottsched”: referência irônica ao escritor e crítico literário alemão Johann Christoph Gottsched, que desempenhou um papel relativamente positivo na literatura, porém, ao mesmo tempo, deu mostras de uma extraordinária intolerância em relação a novas correntes literárias. Seu nome se tornou, por isso, sinônimo de arrogância e estupidez literárias. (N. E. A. MEW)] [Marx aplica a Wilhelm Roscher a alcunha irônica de Wilhelm Tucídides Roscher, porque este, no prefácio à primeira edição de seu livro Fundamentos da economia política, proclamara a si mesmo – com muita modéstia, diz Marx – como “o Tucídides da economia política”. Cf. Karl Marx, Teorias do mais-valor (Berlim, 1962), terceira parte, p. 499). (N. E. A. MEW)]

30a Nota à segunda edição: Embora seja a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho, a taxa de mais-valor não serve como expressão da grandeza absoluta da exploração. Por exemplo, se o trabalho necessário é = 5 horas e o mais-trabalho é = 5 horas, o grau de exploração é = 100%. A grandeza da exploração é medida aqui, em 5 horas. Se o trabalho necessário é = 6 horas e o mais-trabalho é = 6 horas, o grau de exploração continua a ser de 100%, enquanto a grandeza da exploração cresceu 20%, de 5 para 6 horas.

 

 

“O capitalista tem sua própria concepção sobre essa ultima thulea, o limite necessário da jornada de trabalho. Como capitalista, ele é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital. Mas o capital tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor, de absorver, com sua parte constante, que são os meios de produção, a maior quantidade possível de mais-trabalho37. O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga.”

a Termo usado nos mapas medievais para designar os limites do mundo conhecido. (N. T.)

37 “A tarefa do capitalista é obter, com o capital gasto, a maior quantidade possível de trabalho”, J. G. Courcelle-Seneuil, Traité théorique et pratique des entreprises industrielles (2. ed., Paris, 1857), p. 62.

 

 

“(...) Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. Podes muito bem ser um cidadão exemplar, até mesmo membro da Sociedade para a Abolição dos Maus-Tratos aos Animais, e viver em odor de santidade, mas o que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate um coração. O que ali parece ecoar é o batimento de meu próprio coração. Exijo a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor de minha mercadoria.”40

Vemos que, abstraindo de limites extremamente elásticos, a natureza da própria troca de mercadorias não impõe barreira alguma à jornada de trabalho e, portanto, nenhuma limitação ao mais-trabalho. O capitalista faz valer seus direitos como comprador quando tenta prolongar o máximo possível a jornada de trabalho e transformar, onde for possível, uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador faz valer seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a uma duração normal determinada. Tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como uma luta em torno dos limites da jornada de trabalho – uma luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista, e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalhadora.”

40 Durante a grande greve dos builders [trabalhadores da construção civil] de Londres em 1860-1861 para a redução da jornada de trabalho para 9 horas, o comitê de greve publicou um manifesto que continha, em certa medida, o mesmo conteúdo da defesa de nosso trabalhador. O manifesto alude, não sem ironia, ao fato de que o mais cúpido dos “building masters” [empresários da construção] – um certo sir M. Peto – vivia “em odor de santidade”. (Esse mesmo Peto, depois de 1867, teve o mesmo fim de... Strousberg!)

 

 

“O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que uma parte da sociedade detenha o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário a sua autoconservação um tempo de trabalho excedente a fim de produzir os meios de subsistência para o possuidor dos meios de produção41, seja esse proprietário o belo e bomc ateniense, o teocrata etrusco, o civis romanus [cidadão romano], o barão normando, o escravocrata americano, o boiardo valáquio, o landlord [senhor rural] moderno ou o capitalista42. No entanto, é evidente que em toda formação econômica da sociedade onde predomina não o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o mais-trabalho é limitado por um círculo mais amplo ou mais estreito de necessidades, mas nenhum carecimento descomedido de mais-trabalho surge do próprio caráter da produção. Razão pela qual, na Antiguidade, o sobretrabalho só é repudiado quando seu objetivo é obter o valor de troca em sua figura autônoma de dinheiro, na produção de ouro e prata. O trabalho forçado até a morte é, aqui, a forma oficial de sobretrabalho. Basta ler Diodoro Sículo43. Mas essas são exceções no mundo antigo. Assim que os povos, cuja produção ainda se move nas formas inferiores do trabalho escravo, da corveia etc., são arrastados pela produção capitalista e pelo mercado mundial, que faz da venda de seus produtos no exterior o seu principal interesse, os horrores bárbaros da escravidão, da servidão etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. Isso explica por que o trabalho dos negros nos estados sulistas da União Americana conservou certo caráter patriarcal, enquanto a produção ainda se voltava sobretudo às necessidades locais imediatas. Mas à medida que a exportação de algodão tornou-se o interesse vital daqueles estados, o sobretrabalho dos negros, e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho, converteu-se em fator de um sistema calculado e calculista. O objetivo já não era extrair deles uma certa quantidade de produtos úteis. O que importava, agora, era a produção do próprio mais-valor. Algo semelhante ocorreu com a corveia, por exemplo, nos Principados do Danúbio.”

41 “Na realidade, aqueles que trabalham [...] alimentam tanto os pensionários, chamados de ricos, como também a si mesmos”, Edmund Burke, Thoughts and Details on Scarcity, Originally Presented to the Rt. Hon. W. Pitt in the Month of November 1795, cit., p. 2-3.

c Designação do ideal grego de excelência na vida militar e civil. O termo é empregado por Marx no sentido estrito de “aristocrata”. (N. T.)

42 Com extrema ingenuidade, observa Niebuhr em sua História romana: “É evidente que obras como as etruscas, cujas ruínas tanto nos impressionam, pressupõem, em pequenos” (!) “Estados, a existência de senhores e servos”. Sismondi, com muito mais profundidade, disse que “as rendas de Bruxelas” pressupõem a existência de senhores do salário e servidores assalariados.

43 “É impossível vermos esses infelizes” (nas minas de ouro entre o Egito, a Etiópia e a Arábia) “que não podem sequer manter seus corpos limpos, nem cobrir sua nudez, sem nos compadecermos de seu destino lastimável. Pois lá não há indulgência ou compaixão pelo doente, pelo debilitado, pelo ancião, pela fraqueza feminina. Abaixo de açoite, todos são forçados a continuar a trabalhar até que a morte venha dar um fim a seus suplícios e padecimentos”, Diod. Sic., Historische Bibliothek, cit., livro 3, c. 13.

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