sexta-feira, 14 de maio de 2021

Para entender O Capital: Livro I (Parte II), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-322-6

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 336

Sinopse: Ver Parte I



Retornaremos à ideia da circulação da força de trabalho pelo circuito M-D-M e à diferença entre ele e o circuito capitalista M-D-M + ΔM. Marx comenta:

O valor de uso que [o capitalista] recebe na troca mostra-se apenas na utilização efetiva, no processo de consumo da força de trabalho [...]. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor. O consumo da força de trabalho, assim como o consumo de qualquer outra mercadoria, completa-se fora do mercado ou da esfera da circulação. (250)

E, em seguida, a grande mudança de perspectiva:

Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business [entrada permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é produzido. O segredo da criação de mais-valor tem, enfim, de ser revelado. (250)

Marx conclui com uma acusação contra a constitucionalidade e a lei burguesas. Abandonar a esfera da circulação e da troca significa abandonar a esfera constitucionalmente erigida como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem”. O mercado “é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”.

Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por suas vontades livres. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. [...] Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral. (250-1)

A descrição profundamente irônica que Marx faz da forma-padrão da constitucionalidade liberal burguesa e da lei do mercado nos conduz à fase final da transição desse argumento:

Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai suas noções, seus conceitos e o padrão de medida com o qual ele julga a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta, agora, como capitalista e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela. (251)

Essas reflexões adicionais sobre os direitos burgueses, fazendo eco à dualidade da suposta liberdade do trabalhador, direcionam o argumento para a análise de um momento bem menos visível da produção que se dá em geral na fábrica.”

 

 

“De início, devemos considerar o processo de trabalho independentemente de qualquer forma social determinada” (255), diz ele, confirmando assim a posição assumida anteriormente de que o trabalho é “uma condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (120).

Contudo, não devemos interpretar essas afirmações em termos burgueses, familiares, que pressupõem uma clara separação entre “homem e natureza”, cultura e natureza, natural e artificial, mental e físico, e nos quais a história é concebida como uma luta titânica entre duas forças independentes: humanidade e natureza. Na visão de Marx, não existe separação no processo de trabalho. Este é inteiramente natural e, ao mesmo tempo, inteiramente humano. É construído dialeticamente como um momento do “metabolismo”, em que é impossível separar o natural do humano.

Mas no interior dessa concepção unitária do processo de trabalho, assim como no caso da mercadoria, identificamos de imediato uma dualidade. Segundo Marx, há “um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (255). Os seres humanos são agentes ativos em relação ao mundo que os rodeia. Assim,

[o homem] confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (255)

É nessa passagem que vemos mais claramente a formulação dialética de Marx da relação com a natureza. Não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nós mesmos. Inversamente, não podemos transformar a nós mesmos sem transformar o que se passa ao nosso redor. O caráter unitário dessa relação dialética, mesmo que implique uma “exteriorização” da natureza e uma “interiorização” do social, jamais pode ser eliminado. Tal dialética da transformação constante de si mesmo mediante a transformação do mundo, e vice-versa, é fundamental para entendermos a evolução das sociedades humanas, assim como a evolução da própria natureza. Mas esse processo não é exclusivo dos seres humanos – ele existe entre as formigas, entre os castores, entre todos os tipos de organismos. A história da vida na Terra é pródiga em interações dialéticas desse tipo.”

 

 

Em seus primeiros escritos, Marx deu grande ênfase à ideia de um “ser genérico” especificamente humano (apoiando-se talvez na antropologia kantiana e nas formulações antropológicas tardias de Feuerbach). Essa ideia é relegada a um segundo plano nas formulações d’O capital, mas vez ou outra tem uma influência furtiva, como nesse caso. O que torna nosso trabalho exclusivamente humano, então? Marx escreve:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente [isto é, mentalmente]. (256)

Essa é uma afirmação importante. Temos uma ideia, diz Marx, e a tornamos real. Portanto, há sempre um momento “ideal” (mental), um momento utópico, envolvido na atividade produtiva humana. Mais ainda, esse momento não é contingente: o homem “não se limita a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo”. A atividade é intencional. E a esse propósito, que “determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade”, ele tem de “subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado”. Ele precisa – nós precisamos – prestar muita atenção, e “tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio conteúdo e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos este último usufrui dele como jogo de suas próprias forças físicas e mentais” (256).

Há uma série de pontos nessas passagens cruciais que devem ser ressaltados – e elas são realmente cruciais. Para começar, não há dúvida de que Marx contesta as ideias de Fourier sobre o processo de trabalho. Fourier acreditava que o trabalho tinha de ser uma atividade prazerosa, de envolvimento erótico e apaixonado, ou então puramente lúdico. Marx diz que o trabalho não é nada disso. Uma enorme dose de esforço e disciplina é necessária para que o produto imaginado se torne real, para que um propósito consciente seja concretizado. Em segundo lugar, ele atribui um papel vital às concepções mentais, à ação consciente e intencional, o que contradiz um argumento muito frequentemente atribuído a ele, o de que as circunstâncias materiais determinam a consciência, e de que o modo como pensamos é ditado pelas circunstâncias materiais de nossa vida. O que Marx diz aqui é: não, há um momento em que o ideal (o mental) medeia efetivamente o que fazemos. O arquiteto – e acho que é importante tratá-lo aqui mais como uma metáfora do que como uma profissão – tem a capacidade de pensar o mundo e refazê-lo segundo essa imagem. (...)

A compreensão dialética do processo de trabalho como um momento metabólico implica que as ideias não podem surgir do nada. As ideias são, em certo sentido, inteiramente naturais (uma posição fundamentalmente contrária ao idealismo hegeliano). Assim, não há nada estranho em dizer que as ideias surgem da relação metabólica com a natureza material e têm a marca dessa origem. Nossas concepções mentais do mundo não são separadas de nossas experiências materiais, de nossas relações centrais com o mundo, e, portanto, não são independentes dessas relações. Contudo (e aqui o paralelo com o dinheiro e a mercadoria é instrutivo), há uma exteriorização inevitável de uma relação interna e, do mesmo modo que o mundo do dinheiro (sobretudo quando assume formas simbólicas) pode aparentar ser e “realmente é” oposto ao mundo das mercadorias e de seus valores de uso (ver a argumentação sobre o fetichismo), nossas concepções mentais transitam para uma relação externa com o mundo material que procuramos remodelar. Há, portanto, um movimento dialético, em que a imaginação voa livre e diz “Vou construir isto, em vez daquilo”, remodelando elementos materiais e usando as forças naturais (inclusive os músculos humanos) para produzir algo novo e diferente (por exemplo, o oleiro com seu torno). Certa abertura para as ideias e concepções mentais é captada pela formulação de Marx. E, assim como o sistema monetário pode sair dos trilhos e gerar crises, nossas concepções mentais (ou fixações ideológicas) também podem fazê-lo. De fato, essa é exatamente a posição que Marx assume em relação à visão burguesa do mundo, com suas fantasias com Robinson Crusoé e sua celebração de um individualismo possessivo fictício e de mercados de funcionamento perfeito. Do mesmo modo que em algum momento o sistema monetário é forçado a se recompor em relação ao mundo material do trabalho socialmente necessário, a concepção burguesa do mundo, ainda hoje tão presente entre nós, precisa dar lugar a uma configuração mais apropriada das concepções mentais, se quisermos enfrentar os crescentes problemas sociais e ambientais do capitalismo. A luta por concepções mentais apropriadas (tidas em geral como “meramente” superestruturais, embora Marx diga especificamente que esse é o reino em que os homens “tomam consciência” das questões e “as enfrentam”[a]) tem um papel importante nisso. Por que outra razão Marx se esforçaria tanto para escrever O capital? Por isso, esse momento em que Marx situa concepções mentais, consciência, intencionalidade e comprometimento não é de modo algum uma aberração em relação à dinâmica da evolução social e da transformação da natureza, e da natureza humana, por meio do trabalho. Ao contrário, ele é fundamental.

Marx também diz aqui que, para concluir um projeto (como construir uma casa), é necessário trabalho árduo e, uma vez que embarcamos num projeto, muitas vezes ficamos presos a seus limites. Se quisermos concluí-lo, temos de nos submeter a suas demandas, sujeitar nossas paixões e nós mesmos à intensidade de sua intenção. Sempre que escrevo um livro, por exemplo, começo com uma ideia que me parece brilhante e animadora, mas, quando o termino, sinto como se tivesse saído de uma prisão! Mas há aqui um significado muito mais amplo. No centro da sensibilidade crítica de Marx reside a ideia de que os seres humanos podem muito facilmente se tornar prisioneiros de seus próprios produtos e projetos, para não falar de suas falsas concepções de mundo. Essa sensibilidade crítica pode ser aplicada com a mesma crueldade tanto ao comunismo, ao socialismo e à Roma Antiga quanto ao capitalismo, mas é neste último que Marx a desenvolve com mais força e persuasão.

Há algo mais nessas passagens que as torna interessantes. A meu ver, Marx confere ao processo de trabalho um sentido não apenas de criatividade, mas também de nobreza. O argumento me parece profundamente romântico. Indiscutivelmente, Marx foi influenciado pelo Romantismo do início do século XIX. Seus primeiros escritos transpiram sentimentos e significados românticos. E, embora essa sensibilidade perca força, não é difícil notá-la em seus escritos maduros (ainda que conceitos como a alienação troquem o caráter profundamente agonístico que tinham nos Manuscritos econômico-filosóficos[b] por significados mais técnicos n’O capital ). Mas aqui ele diz sem meias-palavras que os seres humanos podem transformar radicalmente o mundo, de acordo com sua imaginação e com determinado propósito, e ter consciência do que estão fazendo. E que, com isso, têm o poder de transformar a si mesmos. Portanto, precisamos refletir sobre nossos propósitos, tomar consciência de como e quando intervimos no mundo, transformando a nós mesmos. Podemos e devemos nos apropriar com criatividade dessa possibilidade dialética. Não há, portanto, uma transformação neutra de uma natureza exterior a nós. O que fazemos “lá fora” tem muito a ver conosco “aqui dentro”. Marx nos faz refletir sobre o que essa dialética significa exatamente para nós, assim como para a natureza, da qual somos apenas uma parte: daí a abordagem universalista para compreendermos o processo de trabalho. Isso implica que a natureza humana não é algo dado, mas está em constante evolução.”

[a] “Tem início, então, uma época de revolução social. Com a alteração da base econômica revoluciona-se toda a enorme superestrutura com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais revolucionamentos, é preciso sempre distinguir entre o revolucionamento material das condições econômicas de produção, que pode ser constatado pelas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, numa palavra, ideológicas, nas quais os homens tomam consciência desse conflito e o enfrentam” (Karl Marx, Zur Kritik der Politischen Ökonomie, MEW, 7. ed., 1971, v. 13, p. 8 [ed. bras.: Contribuição à crítica da economia política, cit.]). (N. T.)

[b] São Paulo, Boitempo, 2004. (N. E.)

 

 

A forma da circulação pode ser assim descrita:

FT

D-M ..... PT ............M-D + ΔD

MP

Vejamos mais de perto os diferentes momentos desse processo. O capitalista tem de comprar meios de produção (MP): matérias-primas, maquinaria e itens semimanufaturados, todos produtos de trabalho passado (valores incorporados). E tem de pagar por essas mercadorias seu valor, de acordo com as regras da troca. Se ele precisar de um fuso, o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado nos fusos fixa esse valor. Se ele usar um fuso de ouro, então este não é socialmente necessário. Para que o processo de trabalho funcione, o capitalista tem de ter acesso adequado aos meios de produção no mercado. O que a compra de força de trabalho (FT) possibilita é a reanimação desses meios “mortos” de produção por meio do processo de trabalho (PT).

Durante o processo de trabalho, este passa constantemente da forma da inquietude à forma do ser, da forma de movimento para a de objetividade. Ao final de 1 hora, o movimento da fiação está expresso numa certa quantidade de fio, ou seja, numa determinada quantidade de trabalho, em 1 hora de trabalho, está objetivada no algodão. Dizemos hora de trabalho, isto é, dispêndio da força vital do fiandeiro durante 1 hora, pois o trabalho de fiação só tem validade aqui como dispêndio de força de trabalho, e não como trabalho específico de fiação. (266)

Em outras palavras, é trabalho abstrato que está sendo incorporado no ato de fiar, é valor que está sendo adicionado na forma de tempo de trabalho socialmente necessário incorporado no fio. O resultado é que “quantidades determinadas de produto, fixadas pela experiência, não representam agora mais do que quantidades determinadas de trabalho, massas determinadas de tempo de trabalho cristalizado”. Além disso, “durante o processo, isto é, durante a transformação do algodão em fio, é de extrema importância que não seja consumido mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário” (266).

Contudo, no fim da jornada de trabalho, se tudo correr bem, os capitalistas se veem magicamente de posse de mais-valor. O “capitalista fica perplexo”, escreve Marx com extrema ironia. O valor do produto não deveria ser “igual ao valor do capital adiantado”, uma simples adição de todos os valores dados inicialmente (267)? Dada a lei de equivalência nas trocas, de onde vem o mais-valor? “Mas o caminho para o inferno” – diz Marx com a mesma ironia – “é pavimentado com boas intenções” (268).

Os capitalistas procuram explicações virtuosas para o mais-valor. A primeira é a abstinência: eles se abstêm de consumir e investem o dinheiro que poupam. E não merecem uma recompensa por essa abstinência? Esse é um tema do longo debate sobre o papel da ética protestante no surgimento do capitalismo. A segunda explicação é que os capitalistas dão emprego ao povo. Se eles não investissem seu dinheiro, não haveria empregos. Pobres trabalhadores! Os capitalistas fazem um favor a eles investindo seu dinheiro. Os capitalistas não merecem um retorno por isso? Esse argumento é bastante difundido e, superficialmente, bastante convincente – não é verdade que o investimento cria empregos? Eu costumava discutir isso com minha mãe. Ela dizia: “É claro que precisamos de capitalistas!”. E eu: “Por quê? Por quê?”. E a resposta era: “Quem empregaria os trabalhadores se não tivéssemos capitalistas?”. Ela não conseguia conceber outros modos de empregar as pessoas. “Capitalistas são indispensáveis”, dizia ela, “e é muito importante tê-los ao nosso redor e tratá-los bem, porque, se eles não empregassem os trabalhadores, o mundo seria um lugar terrível. Veja o que aconteceu nos anos 1930!” A terceira explicação é que os capitalistas trabalham duro. Eles controlam o processo de produção, administram as coisas, investem seu próprio tempo de trabalho e assumem um mundo de riscos. Sim, de fato, muitos capitalistas trabalham, e muitos trabalham duro; mas, quando trabalham, pagam a si mesmos duas vezes mais, isto é, pagam a si mesmos a taxa de retorno sobre o capital que investiram e pagam a si mesmos como administradores. Remuneram a si mesmos como diretores executivos e compram mais ações de sua própria empresa.

Marx considera essas explicações subterfúgios e truques de ilusionismo:

Ele [o capitalista] nos rezou toda essa ladainha. Mas não dá por ela nem um tostão. Esses e outros subterfúgios e truques baratos ele deixa aos professores de economia política, que são pagos para isso. Já ele, ao contrário, é um homem prático, que nem sempre sabe o que diz quando se encontra fora de seu negócio, mas sabe muito bem o que faz dentro dele. (269)

Os capitalistas podem ser modestos e comedidos, e até exibir uma atitude benevolente em relação aos trabalhadores (numa tentativa desesperada de manter sua mão de obra em tempos difíceis, por exemplo). O argumento de Marx é que os capitalistas não poderiam sustentar o sistema apelando para a virtude, a moralidade ou a benevolência – o comportamento individual dos capitalistas, que varia da benevolência à mais pura cobiça, é irrelevante para aquilo que eles têm de fazer para ser capitalistas, isto é, buscar mais-valor. Além do mais, seu papel é definido, como diz Marx, pelas “leis coercitivas da concorrência”, que impelem todos os capitalistas a se comportar de modo similar, não importando se são pessoas boas ou notórios porcos capitalistas.

Segue-se daí a resposta ao problema da explicação do mais-valor. Paga-se o valor da força de trabalho, que é fixado, lembramos, pelo valor das mercadorias necessárias para reproduzir o trabalhador num dado padrão de vida. O trabalhador vende a força de trabalho, recebe o dinheiro e compra com ele aquela cesta de mercadorias necessárias para viver. Mas o trabalhador precisa de apenas um certo número de horas para reproduzir o equivalente do valor da força de trabalho. Portanto, os “custos diários de manutenção” da força de trabalho e sua criação diária de valor são coisas totalmente diferentes. “A primeira determina seu valor de troca, a segunda constitui seu valor de uso.” O trabalho, lembramos, está no circuito M-D-M, ao passo que o capital está no circuito D-M-D + ΔD.

O fato de que meia jornada de trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem em vista quando compra a força de trabalho [...]. Mas o que é decisivo é o valor de uso específico dessa mercadoria, o fato de ela ser fonte de valor, e de mais valor do que aquele que ela mesma possui. Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber da mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho [o trabalhador], como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. (270)

Há uma distinção crucial entre o que o trabalho recebe e o que o trabalho cria. O mais-valor resulta da diferença entre o valor que o trabalho incorpora nas mercadorias numa jornada de trabalho e o valor que o trabalhador recebe por entregar ao capitalista a força de trabalho como uma mercadoria. Em suma, paga-se aos trabalhadores o valor da força de trabalho, e ponto final. O capitalista os coloca para trabalhar de modo que não só reproduzam o valor de sua própria força de trabalho, mas também produzam o mais-valor. Para o capitalista, o valor de uso da força de trabalho está no fato de ela ser uma mercadoria que pode produzir valor e, consequentemente, mais-valor.”

 

 

“Neste ponto, temos de nos recordar da dualidade do projeto de Marx. O que ele pretende mostrar aqui é que, mesmo numa sociedade liberal perfeita, em que todas as regras da troca são estritamente obedecidas, os capitalistas têm um modo de extrair mais-valor dos trabalhadores. A utopia liberal, no fim das contas, revela-se não utópica, mas potencialmente distópica para os trabalhadores. Marx não está dizendo que a determinação do salário funciona efetivamente desse modo, mas que as teses da economia política liberal clássica (e isso se estende à nossa época neoliberal) são seriamente deformadas para favorecer o capital. O mundo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham é uma máscara, um disfarce para permitir a extração de mais-valor dos trabalhadores sem violar as leis da troca.”

 

 

Marx começa lembrando que há uma enorme diferença entre a teoria do valor-trabalho e o valor da força de trabalho. A teoria do valor-trabalho trata do modo como o tempo de trabalho socialmente necessário é incorporado nas mercadorias pelo trabalhador. Esse é o padrão de valor representado pela mercadoria-dinheiro e pelo dinheiro em geral. O valor da força de trabalho, por outro lado, é simplesmente o valor daquela mercadoria vendida no mercado como força de trabalho. Embora seja uma mercadoria como outra qualquer em certos aspectos, ela também tem algumas qualidades especiais, de caráter histórico e moral. Uma distinção falha entre o valor da força de trabalho e a teoria do valor-trabalho pode acarretar graves equívocos.

“Partimos do pressuposto”, diz Marx, “de que a força de trabalho é comprada e vendida pelo seu valor”, e de que seu valor, “como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção” (305). Este equivale ao tempo de trabalho consumido para produzir as mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador num dado padrão de vida. Marx supõe que esse valor seja fixo, apesar de sabermos (assim como ele) que está em constante mudança, dependendo do custo das mercadorias, do grau de civilização e das condições da luta de classes no país.

Os trabalhadores adicionam valor às mercadorias no processo de trabalho até criar o equivalente exato do valor de sua própria força de trabalho. Suponhamos, diz Marx, que isso ocorra depois de seis horas de trabalho. O mais-valor surge porque os trabalhadores trabalham além da quantidade de horas necessárias para reproduzir o valor equivalente de sua força de trabalho. Quantas horas extras eles têm de trabalhar? Isso depende da duração da jornada de trabalho. Essa duração não pode ser negociada no mercado como uma forma de troca de mercadorias, em que o equivalente é trocado pelo equivalente (como ocorre com os salários). Não é uma quantidade fixa, mas fluida. Pode variar de 6 a 10, 12 ou 14 horas, com um limite de 24 horas – o que é impossível, em virtude do “limite físico da força de trabalho” e do fato de que “o trabalhador precisa de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais [...]. A variação da jornada de trabalho se move, assim, no interior de limites físicos e sociais” (306).”

Marx imagina então uma discussão fictícia entre um capitalista e um trabalhador. O capitalista, como comprador da força de trabalho, diz que tem direito de usá-la pelo tempo que puder. Afinal, como capitalista, ele é “apenas capital personificado” (lembramos que Marx fala de papéis, não de pessoas). “Sua alma é a alma do capital”, e este “tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor”. O capital, diz Marx, “é trabalho morto, que, como um vampiro” – e nesse capítulo temos muitos vampiros e lobisomens, a léguas de distância dos modos usuais da teorização político-econômica –, “vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”. Se o trabalhador faz pausas ou diminui o ritmo de trabalho, “furta o capitalista [...]. O capitalista se apoia, portanto, na lei da troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador, ele busca tirar o maior proveito possível do valor de uso de sua mercadoria” (307-8).

Os trabalhadores, ao contrário das máquinas e de outras formas de capital constante, podem reagir. Sabem que têm essa propriedade chamada força de trabalho e é de seu interesse conservar esse valor para uso futuro. O capitalista não tem o direito de sugá-la diariamente, abreviando assim a vida laborativa dos trabalhadores. Diz o trabalhador:

“Isso fere nosso contrato e a lei da troca de mercadorias. Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. [...] Exijo a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor de minha mercadoria.” (308)

Note que tanto os trabalhadores quanto os capitalistas tomam suas posições de acordo com as leis da troca. Ao contrário do que esperaríamos de um pensador revolucionário, Marx não prega a abolição do sistema de salários, mas quer que ambos, trabalhadores e capitalistas, concordem em obedecer à lei fundamental da troca: equivalente por equivalente. A única coisa que importa é saber quanto de valor de uso (capacidade de incorporar valor nas mercadorias) o trabalhador cederá ao capitalista. Marx faz isso porque, como enfatizei, um dos objetivos principais d’O capital é desconstruir as proposições utópicas da economia política liberal clássica em seus próprios termos. “O capitalista exerce seus direitos como comprador quando tenta alongar ao máximo a jornada de trabalho.”

E o trabalhador faz valer seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a uma duração normal determinada. Tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como a luta em torno dos limites da jornada de trabalho – um luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista, e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalhadora. (309)

Assim, após 309 páginas, chegamos à ideia da luta de classes. Finalmente!

Há aqui uma série de questões que exigem esclarecimento. A aceitação, por ambos os lados, de uma noção de “direitos” é uma declaração de fato que diz respeito à hegemonia das noções burguesas de direitos. Marx, porém, mostra imediatamente que o problema da duração da jornada de trabalho não pode ser resolvido com um apelo a direitos e às leis e legalidades da troca (um argumento paralelo a seu ataque contra o conceito proudhoniano de justiça eterna). Questões desse tipo só podem ser resolvidas por meio da luta de classes, na qual a “força” decide entre “direitos iguais”. Essa descoberta tem ramificações no entendimento da política do capitalismo contemporâneo. Em tempos recentes, houve um aumento considerável de rights talk [conversas sobre direitos] e investiu-se uma quantidade enorme de energia na ideia de que a promoção de direitos humanos individuais é um caminho (se não o caminho) para moldar um sistema capitalista mais humano. O que Marx mostra aqui é que muitas questões importantes, postas em termos de direitos, não podem ser resolvidas se não forem reformuladas em termos de luta de classes. A Anistia Internacional, por exemplo, lida suficientemente bem com direitos políticos e civis, mas tem dificuldade para estender seus interesses à esfera dos direitos econômicos, porque não há como resolvê-los sem tomar partido, ou a favor do capital, ou a favor do trabalho. Percebemos aqui o cerne do argumento de Marx. Não há como julgar “imparcialmente” entre direitos iguais (ambos com a chancela da lei da troca). A única coisa que podemos fazer é lutar pelo nosso lado do argumento. Por isso, esse capítulo termina com uma observação bastante cética sobre um “pomposo catálogo dos ‘direitos humanos inalienáveis’” (374), em oposição ao que podemos conseguir com a luta de classes.

“Força”, nesse contexto, não significa necessariamente força física (embora esta seja necessária em certos casos). A ênfase desse capítulo recai antes na força política, na capacidade de mobilizar e construir alianças políticas e instituições (como sindicatos) para influenciar o aparelho estatal, que tem o poder de legislar a jornada de trabalho “normal”. Para Marx, há oportunidades que podem ser aproveitadas ou perdidas, dependendo das contingências da situação política e das relações de força que estão em jogo. A técnica aqui é similar àquela que foi apresentada com tanto brilhantismo em O 18 de brumário, em que Marx analisa como Luís Bonaparte chegou ao poder na esteira da fracassada Revolução de 1848 em Paris. O material apresentado nesse capítulo lança uma luz especial sobre a trajetória de Marx em busca de uma teoria do modo de produção capitalista, articulada com uma compreensão profunda dos processos de transformação histórica das formações sociais capitalistas efetivamente existentes. Os resultados da luta de classes não são determinados de antemão.

A introdução da luta de classes marca uma ruptura radical com os alicerces da teoria econômica clássica e contemporânea. Ela muda radicalmente a linguagem em que a economia é descrita e altera seu foco. Em cursos introdutórios de economia, é pouco provável que a duração da jornada de trabalho seja tratada como uma questão importante. Isso também não era discutido na economia política clássica. No entanto, a história foi palco de uma luta monumental e permanente em torno da duração da jornada de trabalho, da semana de trabalho, do ano de trabalho (férias pagas) e da vida de trabalho (a idade de aposentadoria), e essa luta perdura até hoje. Isso constitui claramente um aspecto fundamental da história capitalista e uma questão central no modo de produção capitalista. De que adiantam teorias econômicas que ignoram tal aspecto?

Em contrapartida, a teoria do valor de Marx conduz diretamente a essa questão central. Isso acontece porque o valor é tempo de trabalho socialmente necessário, o que significa que o tempo é essencial no capitalismo. Como diz o ditado, “tempo é dinheiro”! O controle do tempo, em particular do tempo alheio, tem de ser combatido coletivamente. Ele não pode ser comercializado. Portanto, a luta de classes tem de ocupar um lugar central na teoria político-econômica, assim como em todas as tentativas de compreender a evolução histórica e geográfica do capitalismo. É nesse ponto d’O capital que podemos começar a apreciar o “valor de uso” da teoria do valor-trabalho e do mais-valor. E, embora seja errado considerar esse argumento uma prova empírica do aparato teórico, ele certamente ilustra a utilidade da teoria para a realização de uma investigação teórica empiricamente esclarecida.”

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