Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-322-6
Tradução: Rubens
Enderle
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 336
Sinopse: Ver Parte
I
“Retornaremos à ideia da circulação da força de trabalho pelo circuito M-D-M
e à diferença entre ele e o circuito capitalista M-D-M + ΔM. Marx comenta:
O valor de uso que [o capitalista] recebe na troca
mostra-se apenas na utilização efetiva, no processo de consumo da força de trabalho
[...]. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de
produção da mercadoria e do mais-valor. O consumo da força de trabalho, assim como
o consumo de qualquer outra mercadoria, completa-se fora do mercado ou da esfera
da circulação. (250)
E, em
seguida, a grande mudança de perspectiva:
Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo
se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de
dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja entrada
se lê: No admittance except on business [entrada permitida apenas para tratar
de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo,
o capital, é produzido. O segredo da criação de mais-valor tem, enfim, de ser revelado.
(250)
Marx conclui
com uma acusação contra a constitucionalidade e a lei burguesas. Abandonar a esfera
da circulação e da troca significa abandonar a esfera constitucionalmente erigida
como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem”. O mercado “é o reino exclusivo
da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”.
Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma
mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por suas vontades
livres. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. [...] Igualdade,
pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e
trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que
é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une
e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal,
de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo
mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia
preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa,
realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse
geral. (250-1)
A descrição
profundamente irônica que Marx faz da forma-padrão da constitucionalidade liberal
burguesa e da lei do mercado nos conduz à fase final da transição desse argumento:
Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples
ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai
suas noções, seus conceitos e o padrão de medida com o qual ele julga a sociedade
do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação,
ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais].
O antigo possuidor de dinheiro se apresenta, agora, como capitalista e o possuidor
de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância,
confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe
sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.
(251)
Essas
reflexões adicionais sobre os direitos burgueses, fazendo eco à dualidade da suposta
liberdade do trabalhador, direcionam o argumento para a análise de um momento bem
menos visível da produção que se dá em geral na fábrica.”
““De início, devemos considerar o processo de trabalho independentemente de
qualquer forma social determinada” (255), diz ele, confirmando assim a posição assumida
anteriormente de que o trabalho é “uma condição de existência do homem, independente
de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo
entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (120).
Contudo,
não devemos interpretar essas afirmações em termos burgueses, familiares, que pressupõem
uma clara separação entre “homem e natureza”, cultura e natureza, natural e artificial,
mental e físico, e nos quais a história é concebida como uma luta titânica entre
duas forças independentes: humanidade e natureza. Na visão de Marx, não existe separação
no processo de trabalho. Este é inteiramente natural e, ao mesmo tempo, inteiramente
humano. É construído dialeticamente como um momento do “metabolismo”, em que é impossível
separar o natural do humano.
Mas no
interior dessa concepção unitária do processo de trabalho, assim como no caso da
mercadoria, identificamos de imediato uma dualidade. Segundo Marx, há “um processo
entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (255). Os seres humanos
são agentes ativos em relação ao mundo que os rodeia. Assim,
[o homem] confronta com a matéria natural como com
uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural
de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre
a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo
tempo, sua própria natureza. (255)
É nessa
passagem que vemos mais claramente a formulação dialética de Marx da relação com
a natureza. Não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar
a nós mesmos. Inversamente, não podemos transformar a nós mesmos sem transformar
o que se passa ao nosso redor. O caráter unitário dessa relação dialética, mesmo
que implique uma “exteriorização” da natureza e uma “interiorização” do social,
jamais pode ser eliminado. Tal dialética da transformação constante de si mesmo
mediante a transformação do mundo, e vice-versa, é fundamental para entendermos
a evolução das sociedades humanas, assim como a evolução da própria natureza. Mas
esse processo não é exclusivo dos seres humanos – ele existe entre as formigas,
entre os castores, entre todos os tipos de organismos. A história da vida na Terra
é pródiga em interações dialéticas desse tipo.”
“Em seus primeiros escritos, Marx deu grande ênfase à ideia de um “ser genérico”
especificamente humano (apoiando-se talvez na antropologia kantiana e nas formulações
antropológicas tardias de Feuerbach). Essa ideia é relegada a um segundo plano nas
formulações d’O capital, mas vez ou outra tem uma influência furtiva, como
nesse caso. O que torna nosso trabalho exclusivamente humano, então? Marx escreve:
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão,
e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém,
o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que
o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final
do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação
do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente
[isto é, mentalmente]. (256)
Essa é
uma afirmação importante. Temos uma ideia, diz Marx, e a tornamos real. Portanto,
há sempre um momento “ideal” (mental), um momento utópico, envolvido na atividade
produtiva humana. Mais ainda, esse momento não é contingente: o homem “não se limita
a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo
tempo, seu objetivo”. A atividade é intencional. E a esse propósito, que “determina,
como lei, o tipo e o modo de sua atividade”, ele tem de “subordinar sua vontade.
E essa subordinação não é um ato isolado”. Ele precisa – nós precisamos – prestar
muita atenção, e “tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio conteúdo
e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos este último
usufrui dele como jogo de suas próprias forças físicas e mentais” (256).
Há uma
série de pontos nessas passagens cruciais que devem ser ressaltados – e elas são
realmente cruciais. Para começar, não há dúvida de que Marx contesta as ideias de
Fourier sobre o processo de trabalho. Fourier acreditava que o trabalho tinha de
ser uma atividade prazerosa, de envolvimento erótico e apaixonado, ou então puramente
lúdico. Marx diz que o trabalho não é nada disso. Uma enorme dose de esforço e disciplina
é necessária para que o produto imaginado se torne real, para que um propósito consciente
seja concretizado. Em segundo lugar, ele atribui um papel vital às concepções mentais,
à ação consciente e intencional, o que contradiz um argumento muito frequentemente
atribuído a ele, o de que as circunstâncias materiais determinam a consciência,
e de que o modo como pensamos é ditado pelas circunstâncias materiais de nossa vida.
O que Marx diz aqui é: não, há um momento em que o ideal (o mental) medeia efetivamente
o que fazemos. O arquiteto – e acho que é importante tratá-lo aqui mais como uma
metáfora do que como uma profissão – tem a capacidade de pensar o mundo e refazê-lo
segundo essa imagem. (...)
A compreensão
dialética do processo de trabalho como um momento metabólico implica que as ideias
não podem surgir do nada. As ideias são, em certo sentido, inteiramente naturais
(uma posição fundamentalmente contrária ao idealismo hegeliano). Assim, não há nada
estranho em dizer que as ideias surgem da relação metabólica com a natureza material
e têm a marca dessa origem. Nossas concepções mentais do mundo não são separadas
de nossas experiências materiais, de nossas relações centrais com o mundo, e, portanto,
não são independentes dessas relações. Contudo (e aqui o paralelo com o dinheiro
e a mercadoria é instrutivo), há uma exteriorização inevitável de uma relação interna
e, do mesmo modo que o mundo do dinheiro (sobretudo quando assume formas simbólicas)
pode aparentar ser e “realmente é” oposto ao mundo das mercadorias e de seus valores
de uso (ver a argumentação sobre o fetichismo), nossas concepções mentais transitam
para uma relação externa com o mundo material que procuramos remodelar. Há, portanto,
um movimento dialético, em que a imaginação voa livre e diz “Vou construir isto,
em vez daquilo”, remodelando elementos materiais e usando as forças naturais (inclusive
os músculos humanos) para produzir algo novo e diferente (por exemplo, o oleiro
com seu torno). Certa abertura para as ideias e concepções mentais é captada pela
formulação de Marx. E, assim como o sistema monetário pode sair dos trilhos e gerar
crises, nossas concepções mentais (ou fixações ideológicas) também podem fazê-lo.
De fato, essa é exatamente a posição que Marx assume em relação à visão burguesa
do mundo, com suas fantasias com Robinson Crusoé e sua celebração de um individualismo
possessivo fictício e de mercados de funcionamento perfeito. Do mesmo modo que em
algum momento o sistema monetário é forçado a se recompor em relação ao mundo material
do trabalho socialmente necessário, a concepção burguesa do mundo, ainda hoje tão
presente entre nós, precisa dar lugar a uma configuração mais apropriada das concepções
mentais, se quisermos enfrentar os crescentes problemas sociais e ambientais do
capitalismo. A luta por concepções mentais apropriadas (tidas em geral como “meramente”
superestruturais, embora Marx diga especificamente que esse é o reino em que os
homens “tomam consciência” das questões e “as enfrentam”[a]) tem um papel importante
nisso. Por que outra razão Marx se esforçaria tanto para escrever O capital?
Por isso, esse momento em que Marx situa concepções mentais, consciência, intencionalidade
e comprometimento não é de modo algum uma aberração em relação à dinâmica da evolução
social e da transformação da natureza, e da natureza humana, por meio do trabalho.
Ao contrário, ele é fundamental.
Marx também
diz aqui que, para concluir um projeto (como construir uma casa), é necessário trabalho
árduo e, uma vez que embarcamos num projeto, muitas vezes ficamos presos a seus
limites. Se quisermos concluí-lo, temos de nos submeter a suas demandas, sujeitar
nossas paixões e nós mesmos à intensidade de sua intenção. Sempre que escrevo um
livro, por exemplo, começo com uma ideia que me parece brilhante e animadora, mas,
quando o termino, sinto como se tivesse saído de uma prisão! Mas há aqui um significado
muito mais amplo. No centro da sensibilidade crítica de Marx reside a ideia de que
os seres humanos podem muito facilmente se tornar prisioneiros de seus próprios
produtos e projetos, para não falar de suas falsas concepções de mundo. Essa sensibilidade
crítica pode ser aplicada com a mesma crueldade tanto ao comunismo, ao socialismo
e à Roma Antiga quanto ao capitalismo, mas é neste último que Marx a desenvolve
com mais força e persuasão.
Há algo
mais nessas passagens que as torna interessantes. A meu ver, Marx confere ao processo
de trabalho um sentido não apenas de criatividade, mas também de nobreza. O argumento
me parece profundamente romântico. Indiscutivelmente, Marx foi influenciado pelo
Romantismo do início do século XIX. Seus primeiros escritos transpiram sentimentos
e significados românticos. E, embora essa sensibilidade perca força, não é difícil
notá-la em seus escritos maduros (ainda que conceitos como a alienação troquem o
caráter profundamente agonístico que tinham nos Manuscritos econômico-filosóficos[b] por significados mais técnicos n’O
capital ). Mas aqui ele diz sem meias-palavras que os seres humanos podem transformar
radicalmente o mundo, de acordo com sua imaginação e com determinado propósito,
e ter consciência do que estão fazendo. E que, com isso, têm o poder de transformar
a si mesmos. Portanto, precisamos refletir sobre nossos propósitos, tomar consciência
de como e quando intervimos no mundo, transformando a nós mesmos. Podemos e devemos
nos apropriar com criatividade dessa possibilidade dialética. Não há, portanto,
uma transformação neutra de uma natureza exterior a nós. O que fazemos “lá fora”
tem muito a ver conosco “aqui dentro”. Marx nos faz refletir sobre o que essa dialética
significa exatamente para nós, assim como para a natureza, da qual somos apenas
uma parte: daí a abordagem universalista para compreendermos o processo de trabalho.
Isso implica que a natureza humana não é algo dado, mas está em constante evolução.”
[a] “Tem início, então, uma época de
revolução social. Com a alteração da base econômica revoluciona-se toda a enorme
superestrutura com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais revolucionamentos,
é preciso sempre distinguir entre o revolucionamento material das condições econômicas
de produção, que pode ser constatado pelas ciências naturais, e as formas jurídicas,
políticas, numa palavra, ideológicas, nas quais os homens tomam consciência desse
conflito e o enfrentam” (Karl Marx, Zur Kritik der Politischen Ökonomie,
MEW, 7. ed., 1971, v. 13, p. 8 [ed. bras.: Contribuição
à crítica da economia política, cit.]). (N. T.)
[b] São Paulo, Boitempo, 2004. (N. E.)
“A forma da circulação pode ser assim descrita:
FT
D-M ..... PT ............M-D + ΔD
MP
Vejamos
mais de perto os diferentes momentos desse processo. O capitalista tem de comprar
meios de produção (MP): matérias-primas, maquinaria e itens semimanufaturados, todos
produtos de trabalho passado (valores incorporados). E tem de pagar por essas mercadorias
seu valor, de acordo com as regras da troca. Se ele precisar de um fuso, o tempo
de trabalho socialmente necessário incorporado nos fusos fixa esse valor. Se ele
usar um fuso de ouro, então este não é socialmente necessário. Para que o processo
de trabalho funcione, o capitalista tem de ter acesso adequado aos meios de produção
no mercado. O que a compra de força de trabalho (FT) possibilita é a reanimação
desses meios “mortos” de produção por meio do processo de trabalho (PT).
Durante o processo de trabalho, este passa constantemente
da forma da inquietude à forma do ser, da forma de movimento para a de objetividade.
Ao final de 1 hora, o movimento da fiação está expresso numa certa quantidade de
fio, ou seja, numa determinada quantidade de trabalho, em 1 hora de trabalho, está
objetivada no algodão. Dizemos hora de trabalho, isto é, dispêndio da força vital
do fiandeiro durante 1 hora, pois o trabalho de fiação só tem validade aqui como
dispêndio de força de trabalho, e não como trabalho específico de fiação. (266)
Em outras
palavras, é trabalho abstrato que está sendo incorporado no ato de fiar, é valor
que está sendo adicionado na forma de tempo de trabalho socialmente necessário incorporado
no fio. O resultado é que “quantidades determinadas de produto, fixadas pela experiência,
não representam agora mais do que quantidades determinadas de trabalho, massas determinadas
de tempo de trabalho cristalizado”. Além disso, “durante o processo, isto é, durante
a transformação do algodão em fio, é de extrema importância que não seja consumido
mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário” (266).
Contudo,
no fim da jornada de trabalho, se tudo correr bem, os capitalistas se veem magicamente
de posse de mais-valor. O “capitalista fica perplexo”, escreve Marx com extrema
ironia. O valor do produto não deveria ser “igual ao valor do capital adiantado”,
uma simples adição de todos os valores dados inicialmente (267)? Dada a lei de equivalência
nas trocas, de onde vem o mais-valor? “Mas o caminho para o inferno” – diz Marx
com a mesma ironia – “é pavimentado com boas intenções” (268).
Os capitalistas
procuram explicações virtuosas para o mais-valor. A primeira é a abstinência: eles
se abstêm de consumir e investem o dinheiro que poupam. E não merecem uma recompensa
por essa abstinência? Esse é um tema do longo debate sobre o papel da ética protestante
no surgimento do capitalismo. A segunda explicação é que os capitalistas dão emprego
ao povo. Se eles não investissem seu dinheiro, não haveria empregos. Pobres trabalhadores!
Os capitalistas fazem um favor a eles investindo seu dinheiro. Os capitalistas não
merecem um retorno por isso? Esse argumento é bastante difundido e, superficialmente,
bastante convincente – não é verdade que o investimento cria empregos? Eu costumava
discutir isso com minha mãe. Ela dizia: “É claro que precisamos de capitalistas!”.
E eu: “Por quê? Por quê?”. E a resposta era: “Quem empregaria os trabalhadores se
não tivéssemos capitalistas?”. Ela não conseguia conceber outros modos de empregar
as pessoas. “Capitalistas são indispensáveis”, dizia ela, “e é muito importante
tê-los ao nosso redor e tratá-los bem, porque, se eles não empregassem os trabalhadores,
o mundo seria um lugar terrível. Veja o que aconteceu nos anos 1930!” A terceira
explicação é que os capitalistas trabalham duro. Eles controlam o processo de produção,
administram as coisas, investem seu próprio tempo de trabalho e assumem um mundo
de riscos. Sim, de fato, muitos capitalistas trabalham, e muitos trabalham duro;
mas, quando trabalham, pagam a si mesmos duas vezes mais, isto é, pagam a si mesmos
a taxa de retorno sobre o capital que investiram e pagam a si mesmos como administradores.
Remuneram a si mesmos como diretores executivos e compram mais ações de sua própria
empresa.
Marx considera
essas explicações subterfúgios e truques de ilusionismo:
Ele [o capitalista] nos rezou toda essa ladainha.
Mas não dá por ela nem um tostão. Esses e outros subterfúgios e truques baratos
ele deixa aos professores de economia política, que são pagos para isso. Já ele,
ao contrário, é um homem prático, que nem sempre sabe o que diz quando se encontra
fora de seu negócio, mas sabe muito bem o que faz dentro dele. (269)
Os capitalistas
podem ser modestos e comedidos, e até exibir uma atitude benevolente em relação
aos trabalhadores (numa tentativa desesperada de manter sua mão de obra em tempos
difíceis, por exemplo). O argumento de Marx é que os capitalistas não poderiam sustentar
o sistema apelando para a virtude, a moralidade ou a benevolência – o comportamento
individual dos capitalistas, que varia da benevolência à mais pura cobiça, é irrelevante
para aquilo que eles têm de fazer para ser capitalistas, isto é, buscar mais-valor.
Além do mais, seu papel é definido, como diz Marx, pelas “leis coercitivas da concorrência”,
que impelem todos os capitalistas a se comportar de modo similar, não importando
se são pessoas boas ou notórios porcos capitalistas.
Segue-se
daí a resposta ao problema da explicação do mais-valor. Paga-se o valor da força
de trabalho, que é fixado, lembramos, pelo valor das mercadorias necessárias para
reproduzir o trabalhador num dado padrão de vida. O trabalhador vende a força de
trabalho, recebe o dinheiro e compra com ele aquela cesta de mercadorias necessárias
para viver. Mas o trabalhador precisa de apenas um certo número de horas para reproduzir
o equivalente do valor da força de trabalho. Portanto, os “custos diários de manutenção”
da força de trabalho e sua criação diária de valor são coisas totalmente diferentes.
“A primeira determina seu valor de troca, a segunda constitui seu valor de uso.”
O trabalho, lembramos, está no circuito M-D-M, ao passo que o capital está no circuito
D-M-D + ΔD.
O fato
de que meia jornada de trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por
24 horas de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força
de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas
distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem em vista quando compra
a força de trabalho [...]. Mas o que é decisivo é o valor de uso específico dessa
mercadoria, o fato de ela ser fonte de valor, e de mais valor do que aquele que
ela mesma possui. Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber da
mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias.
Na verdade, o vendedor da força de trabalho [o trabalhador], como o vendedor de
qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso.
(270)
Há uma
distinção crucial entre o que o trabalho recebe e o que o trabalho cria. O mais-valor
resulta da diferença entre o valor que o trabalho incorpora nas mercadorias numa
jornada de trabalho e o valor que o trabalhador recebe por entregar ao capitalista
a força de trabalho como uma mercadoria. Em suma, paga-se aos trabalhadores o valor
da força de trabalho, e ponto final. O capitalista os coloca para trabalhar de modo
que não só reproduzam o valor de sua própria força de trabalho, mas também produzam
o mais-valor. Para o capitalista, o valor de uso da força de trabalho está no fato
de ela ser uma mercadoria que pode produzir valor e, consequentemente, mais-valor.”
“Neste ponto, temos de nos recordar da dualidade
do projeto de Marx. O que ele pretende mostrar aqui é que, mesmo numa sociedade
liberal perfeita, em que todas as regras da troca são estritamente obedecidas, os
capitalistas têm um modo de extrair mais-valor dos trabalhadores. A utopia liberal,
no fim das contas, revela-se não utópica, mas potencialmente distópica para os trabalhadores.
Marx não está dizendo que a determinação do salário funciona efetivamente desse
modo, mas que as teses da economia política liberal clássica (e isso se estende
à nossa época neoliberal) são seriamente deformadas para favorecer o capital. O
mundo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham é uma máscara, um
disfarce para permitir a extração de mais-valor dos trabalhadores sem violar as
leis da troca.”
“Marx começa lembrando que há uma enorme diferença entre a teoria do valor-trabalho
e o valor da força de trabalho. A teoria do valor-trabalho trata do modo como o
tempo de trabalho socialmente necessário é incorporado nas mercadorias pelo trabalhador.
Esse é o padrão de valor representado pela mercadoria-dinheiro e pelo dinheiro em
geral. O valor da força de trabalho, por outro lado, é simplesmente o valor daquela
mercadoria vendida no mercado como força de trabalho. Embora seja uma mercadoria
como outra qualquer em certos aspectos, ela também tem algumas qualidades especiais,
de caráter histórico e moral. Uma distinção falha entre o valor da força de trabalho
e a teoria do valor-trabalho pode acarretar graves equívocos.
“Partimos
do pressuposto”, diz Marx, “de que a força de trabalho é comprada e vendida pelo
seu valor”, e de que seu valor, “como o de qualquer outra mercadoria, é determinado
pelo tempo de trabalho necessário à sua produção” (305). Este equivale ao tempo
de trabalho consumido para produzir as mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador
num dado padrão de vida. Marx supõe que esse valor seja fixo, apesar de sabermos
(assim como ele) que está em constante mudança, dependendo do custo das mercadorias,
do grau de civilização e das condições da luta de classes no país.
Os trabalhadores
adicionam valor às mercadorias no processo de trabalho até criar o equivalente exato
do valor de sua própria força de trabalho. Suponhamos, diz Marx, que isso ocorra
depois de seis horas de trabalho. O mais-valor surge porque os trabalhadores trabalham
além da quantidade de horas necessárias para reproduzir o valor equivalente de sua
força de trabalho. Quantas horas extras eles têm de trabalhar? Isso depende da duração
da jornada de trabalho. Essa duração não pode ser negociada no mercado como uma
forma de troca de mercadorias, em que o equivalente é trocado pelo equivalente (como
ocorre com os salários). Não é uma quantidade fixa, mas fluida. Pode variar de 6
a 10, 12 ou 14 horas, com um limite de 24 horas – o que é impossível, em virtude
do “limite físico da força de trabalho” e do fato de que “o trabalhador precisa
de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais [...]. A variação
da jornada de trabalho se move, assim, no interior de limites físicos e sociais”
(306).”
Marx imagina
então uma discussão fictícia entre um capitalista e um trabalhador. O capitalista,
como comprador da força de trabalho, diz que tem direito de usá-la pelo tempo que
puder. Afinal, como capitalista, ele é “apenas capital personificado” (lembramos
que Marx fala de papéis, não de pessoas). “Sua alma é a alma do capital”, e este
“tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor”.
O capital, diz Marx, “é trabalho morto, que, como um vampiro” – e nesse capítulo
temos muitos vampiros e lobisomens, a léguas de distância dos modos usuais da teorização
político-econômica –, “vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais
quanto mais trabalho vivo suga”. Se o trabalhador faz pausas ou diminui o ritmo
de trabalho, “furta o capitalista [...]. O capitalista se apoia, portanto, na lei
da troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador, ele busca tirar o maior
proveito possível do valor de uso de sua mercadoria” (307-8).
Os trabalhadores,
ao contrário das máquinas e de outras formas de capital constante, podem reagir.
Sabem que têm essa propriedade chamada força de trabalho e é de seu interesse conservar
esse valor para uso futuro. O capitalista não tem o direito de sugá-la diariamente,
abreviando assim a vida laborativa dos trabalhadores. Diz o trabalhador:
“Isso fere nosso contrato e a lei da troca de mercadorias.
Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum
apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. [...] Exijo
a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor
de minha mercadoria.” (308)
Note que
tanto os trabalhadores quanto os capitalistas tomam suas posições de acordo com
as leis da troca. Ao contrário do que esperaríamos de um pensador revolucionário,
Marx não prega a abolição do sistema de salários, mas quer que ambos, trabalhadores
e capitalistas, concordem em obedecer à lei fundamental da troca: equivalente por
equivalente. A única coisa que importa é saber quanto de valor de uso (capacidade
de incorporar valor nas mercadorias) o trabalhador cederá ao capitalista. Marx faz
isso porque, como enfatizei, um dos objetivos principais d’O capital é desconstruir
as proposições utópicas da economia política liberal clássica em seus próprios termos.
“O capitalista exerce seus direitos como comprador quando tenta alongar ao máximo
a jornada de trabalho.”
E o trabalhador faz valer seu direito como vendedor
quando quer limitar a jornada de trabalho a uma duração normal determinada. Tem-se
aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente
apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a
força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história
da produção capitalista, como a luta em torno dos limites da jornada de trabalho
– um luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista,
e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalhadora. (309)
Assim,
após 309 páginas, chegamos à ideia da luta de classes. Finalmente!
Há aqui
uma série de questões que exigem esclarecimento. A aceitação, por ambos os lados,
de uma noção de “direitos” é uma declaração de fato que diz respeito à hegemonia
das noções burguesas de direitos. Marx, porém, mostra imediatamente que o problema
da duração da jornada de trabalho não pode ser resolvido com um apelo a direitos
e às leis e legalidades da troca (um argumento paralelo a seu ataque contra o conceito
proudhoniano
de justiça eterna). Questões desse tipo só podem ser resolvidas por meio da luta
de classes, na qual a “força” decide entre “direitos iguais”. Essa descoberta tem
ramificações no entendimento da política do capitalismo contemporâneo. Em tempos
recentes, houve um aumento considerável de rights talk [conversas sobre direitos]
e investiu-se uma quantidade enorme de energia na ideia de que a promoção de direitos
humanos individuais é um caminho (se não o caminho) para moldar um sistema
capitalista mais humano. O que Marx mostra aqui é que muitas questões importantes,
postas em termos de direitos, não podem ser resolvidas se não forem reformuladas
em termos de luta de classes. A Anistia Internacional, por exemplo, lida suficientemente
bem com direitos políticos e civis, mas tem dificuldade para estender seus interesses
à esfera dos direitos econômicos, porque não há como resolvê-los sem tomar partido,
ou a favor do capital, ou a favor do trabalho. Percebemos aqui o cerne do argumento
de Marx. Não há como julgar “imparcialmente” entre direitos iguais (ambos com a
chancela da lei da troca). A única coisa que podemos fazer é lutar pelo nosso lado
do argumento. Por isso, esse capítulo termina com uma observação bastante cética
sobre um “pomposo catálogo dos ‘direitos humanos inalienáveis’” (374), em oposição
ao que podemos conseguir com a luta de classes.
“Força”,
nesse contexto, não significa necessariamente força física (embora esta seja necessária
em certos casos). A ênfase desse capítulo recai antes na força política, na capacidade
de mobilizar e construir alianças políticas e instituições (como sindicatos) para
influenciar o aparelho estatal, que tem o poder de legislar a jornada de trabalho
“normal”. Para Marx, há oportunidades que podem ser aproveitadas ou perdidas, dependendo
das contingências da situação política e das relações de força que estão em jogo.
A técnica aqui é similar àquela que foi apresentada com tanto brilhantismo em O
18 de brumário, em que Marx analisa como Luís Bonaparte chegou ao poder
na esteira da fracassada Revolução de 1848 em Paris. O material apresentado nesse
capítulo lança uma luz especial sobre a trajetória de Marx em busca de uma teoria
do modo de produção capitalista, articulada com uma compreensão profunda dos processos
de transformação histórica das formações sociais capitalistas efetivamente existentes.
Os resultados da luta de classes não são determinados de antemão.
A introdução
da luta de classes marca uma ruptura radical com os alicerces da teoria econômica
clássica e contemporânea. Ela muda radicalmente a linguagem em que a economia é
descrita e altera seu foco. Em cursos introdutórios de economia, é pouco provável
que a duração da jornada de trabalho seja tratada como uma questão importante. Isso
também não era discutido na economia política clássica. No entanto, a história foi
palco de uma luta monumental e permanente em torno da duração da jornada de trabalho,
da semana de trabalho, do ano de trabalho (férias pagas) e da vida de trabalho (a
idade de aposentadoria), e essa luta perdura até hoje. Isso constitui claramente
um aspecto fundamental da história capitalista e uma questão central no modo de
produção capitalista. De que adiantam teorias econômicas que ignoram tal aspecto?
Em contrapartida,
a teoria do valor de Marx conduz diretamente a essa questão central. Isso acontece
porque o valor é tempo de trabalho socialmente necessário, o que significa
que o tempo é essencial no capitalismo. Como diz o ditado, “tempo é dinheiro”! O
controle do tempo, em particular do tempo alheio, tem de ser combatido coletivamente.
Ele não pode ser comercializado. Portanto, a luta de classes tem de ocupar um lugar
central na teoria político-econômica, assim como em todas as tentativas de compreender
a evolução histórica e geográfica do capitalismo. É nesse ponto d’O capital
que podemos começar a apreciar o “valor de uso” da teoria do valor-trabalho e do
mais-valor. E, embora seja errado considerar esse argumento uma prova empírica do
aparato teórico, ele certamente ilustra a utilidade da teoria para a realização
de uma investigação teórica empiricamente esclarecida.”
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