Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-322-6
Tradução: Rubens
Enderle
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 336
Sinopse: Fruto dos
mais de quarenta anos de cursos sobre O capital de Marx (livro I) lecionados
pelo geógrafo marxista David Harvey em universidades ao redor do mundo, Para
entender O capital é uma obra ao mesmo tempo sintética e densa, uma introdução
para a compreensão de O capital, que chega em momento oportuno, de uma renovação
do interesse pela análise das obras de Marx, em busca de um melhor entendimento
das origens da falência econômica e dos nossos problemas atuais.
Apesar de os últimos trinta anos, mais particularmente desde
a queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, não terem sido um período muito
favorável ou fértil para a economia política marxiana, este livro ajuda a abrir
a porta para que uma geração mais jovem, pouco familiarizada com esse pensamento,
explore por conta própria o legado de Marx.
‘O que vejo é que aqueles que hoje desejam ler Marx estão
muito mais interessados em engajamentos práticos; isso não significa que tenham
medo de abstrações, mas que consideram o academicismo tedioso e irrelevante. Há
muitos estudantes e ativistas que anseiam por uma forte base teórica para melhor
apreender, de modo a situar e contextualizar seus próprios interesses e seu agir
político’, diz Harvey na apresentação.
O economista Marcio Pochmann acerta ao comentar o livro no
texto de orelha: ‘O trabalho disciplinado, incansável e pertinente do consagrado
geógrafo David Harvey sobre o primeiro volume de O capital se torna, em sua
leitura fácil e esclarecedora, um guia para entender e desenvolver a necessária
contribuição da economia política de Karl Marx’. Para entender O capital
é para Harvey realmente um ‘guia’ (mais do que uma introdução ou interpretação),
que tem a pretensão de orientar uma primeira exploração da economia política de
Marx a todos que desejam trilhar esse caminho. O geógrafo britânico encoraja o encontro
pessoal do leitor com o texto de Marx para que, da luta direta com ele, possa começar
a formar uma compreensão própria do pensamento marxiano. Ele ainda defende que é
preciso deixar de lado preconceitos e um mundo de conotações, favoráveis ou não,
que acompanham termos como ‘marxismo’ e ‘marxista’, pois só assim o leitor poderá
captar o que Marx realmente tem a dizer.
Harvey também aconselha àqueles que tenham lido apenas excertos
ou resumos d’O capital – não importa quão estrategicamente escolhidos – ou
alguma exposição teórica das crenças políticas de Marx, a ler o livro como um texto
integral. ‘Lendo O capital como um todo, é quase certo que você chegará a
uma concepção bastante diferente do pensamento de Marx’, afirma.
O Livro I de O capital analisa o modo de produção capitalista
do ponto de vista da produção, não do mercado nem do comércio global, mas exclusivamente
da produção. Na época, Marx revelou uma grande compreensão daquilo que faz o capitalismo
crescer do modo como cresce. ‘Para Marx, um conhecimento novo surge do ato de tomar
blocos conceituais radicalmente diferentes, friccioná-los uns contra os outros e
fazer arder o fogo revolucionário. E é o que ele faz n’O capital: combina
tradições intelectuais divergentes para criar uma estrutura completamente nova e
revolucionária para o conhecimento’, conclui o professor.
“Uma das coisas curiosas do nosso sistema de ensino, a meu ver, é que, quanto
melhor for seu treinamento numa disciplina, menos habituado ao método dialético
você será. De fato, as crianças pequenas são muito dialéticas, veem tudo em movimento,
em contradição e transformação. Temos de fazer um esforço enorme para que elas deixem
de pensar dialeticamente. O que Marx pretende é recuperar o poder intuitivo do método
dialético, que permite compreender que tudo está em processo, tudo está em movimento.
Ele não fala simplesmente de trabalho, mas do processo de trabalho. O capital
não é uma coisa, mas um processo que só existe em movimento. Quando a circulação
cessa, o valor desaparece e o sistema começa a desmoronar. Veja o que aconteceu
depois do 11 de Setembro de 2001, em Nova York: tudo ficou paralisado. Os aviões
pararam de voar, as pontes e estradas foram fechadas. Três dias depois, percebeu-se
que o capitalismo desmoronaria se as coisas não voltassem a se movimentar. Então,
de repente, o prefeito Giuliani e o presidente Bush pediram que a população sacasse
seus cartões de crédito e fosse às compras, voltasse à Broadway, lotasse os restaurantes.
Bush chegou a aparecer num comercial da indústria aeroviária para encorajar os norte-americanos
a voltar a voar.
O capitalismo
não é nada se não estiver em movimento. Marx admira muito isso e não se cansa de
evocar o dinamismo transformador do capital. Por isso é tão estranho que seja caracterizado
com tanta frequência como um pensador estático, que reduz o capitalismo a uma configuração
estrutural. Não, o que Marx procura n’O capital é um aparato conceitual,
uma estrutura profunda que explique como o movimento se desenvolve concretamente
no interior de um modo de produção capitalista. Consequentemente, muitos de seus
conceitos são formulados mais como relações do que como princípios isolados;
eles se referem a uma atividade transformadora.
Assim,
conhecer e apreciar o método dialético d’O capital é essencial para compreender
Marx em seus próprios termos.”
“O valor é “trabalho humano abstrato [...] objetivado
[...] ou materializado” na mercadoria. Como esse valor pode ser medido? Em primeiro
lugar, isso claramente nos remete ao tempo de trabalho. Contudo, como observei ao
estabelecer a diferença entre trabalho concreto e abstrato, ele não pode ser o tempo
de trabalho efetivamente despendido na produção, pois, desse modo, “quanto mais
preguiçoso ou inábil for um homem, tanto maior o valor de sua mercadoria”. Portanto,
o “trabalho que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio
da mesma força de trabalho humana”. Para compreender o que significa esse “dispêndio
da mesma força de trabalho humana”, é preciso olhar para “a força de trabalho conjunta
da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias”. (117)
Falar
de “força de trabalho conjunta da sociedade” é invocar tacitamente um mercado mundial
que foi introduzido pelo modo de produção capitalista. Onde começa e onde termina
essa “sociedade”, isto é, o mundo da troca capitalista de mercadorias? Neste exato
momento, ela está presente na China, no México, no Japão, na Rússia, na África do
Sul – trata-se de um conjunto global de relações. A medida do valor é derivada desse
mundo inteiro de trabalho humano. Mas isso também valia, ainda que em menor escala,
para a época de Marx. No Manifesto
Comunista, há uma descrição brilhante daquilo que hoje chamamos de globalização:
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime
um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países [...] ela roubou
da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas
e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias,
cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias
que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das
regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país
mas em todas as partes do mundo. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas
pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação
os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do
antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio
universal e uma universal interdependência das nações.[a]
É nesse
terreno global dinâmico de relações de troca que o valor é determinado e redeterminado
continuamente. Marx escreveu num contexto histórico em que o mundo se abria muito
rapidamente para o mercado global pela navegação a vapor, pelas estradas de ferro
e pelo telégrafo. E ele entendeu muito bem que o valor não era determinado no nosso
quintal, ou mesmo no interior de uma economia nacional, mas surgia de um mundo inteiro
de troca de mercadorias. E aqui ele usa novamente o poder da abstração para chegar
à ideia de unidades de trabalho homogêneo, em que cada uma “é a mesma força de trabalho
humana que a outra, na medida em que possui o caráter de uma força de trabalho social
média e atua como tal força de trabalho social média”, como se essa redução à forma
de valor ocorresse efetivamente no comércio mundial.
Isso permite
que ele formule a definição crucial do valor como “tempo de trabalho socialmente
necessário”, que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob
as condições socialmente normais existentes e com o grau social médio de destreza
e intensidade do trabalho”. E conclui: “apenas a quantidade de trabalho socialmente
necessário ou o tempo socialmente necessário de trabalho para a produção de um valor
de uso pode determinar a sua grandeza de valor” (117).”
[a] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto
Comunista, cit., p. 43. (N. E.)
“O objetivo de Marx é explicar a origem da forma-dinheiro. Diz ele (mais uma
vez com a maior modéstia do mundo!):
Cabe, aqui, realizar o que jamais foi tentado pela
economia burguesa, a saber, provar a gênese dessa forma-dinheiro, portanto seguir
de perto o desenvolvimento da expressão de valor contida na relação de valor das
mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a ofuscante forma-dinheiro.
Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do dinheiro. (125)
Ele realiza
essa tarefa numa série de passos desajeitados, começando com uma simples situação
de escambo. Eu tenho uma mercadoria, você tem uma mercadoria. O valor relativo
da minha mercadoria será expresso em termos do valor (o trabalho incorporado) da
mercadoria que você possui. Assim, sua mercadoria será a medida de valor da minha
mercadoria. Invertendo a relação, minha mercadoria pode ser vista como o valor equivalente
da sua. Em situações simples de escambo, todo indivíduo que tenha uma mercadoria
possui algo com valor relativo e está à procura de seu equivalente em outra mercadoria.
Assim como existem tantas mercadorias quanto pessoas e trocas, existem tantos equivalentes
quanto mercadorias e trocas. O que Marx quer mostrar é que o ato de troca tem sempre
um caráter duplo – os polos das formas relativa e equivalente – no qual a mercadoria
equivalente figura “como incorporação de trabalho humano abstrato” (134). A oposição
entre valor de uso e valor, até aqui interiorizada na mercadoria, “é representada,
assim, por meio de uma oposição externa” entre uma mercadoria que é um valor de
uso e outra que representa seu valor na troca (137).
Num terreno
complexo de trocas como é o mercado, minha mercadoria tem inúmeros equivalentes
potenciais e, inversamente, todo mundo tem valores relativos numa relação potencial
com meu equivalente singular. Uma complexidade cada vez maior entre as relações
de troca produz uma “forma desdobrada” de valor que se converte numa “forma universal”
de valor (§ b, 138-41, e § c, 141-5). Esta se cristaliza, por fim, num “equivalente
universal”: uma mercadoria que desempenha o papel exclusivo de mercadoria-dinheiro
(§ d, 145-6). A mercadoria-dinheiro surge de um sistema de trocas, e não o precede,
de modo que a proliferação e a generalização das relações de troca são a condição
necessária, crucial, para a cristalização da forma-dinheiro.
Na época
de Marx, mercadorias como o ouro e a prata desempenhavam esse papel crucial, mas
em princípio ele poderia ser desempenhado por conchas de caurim, latas de atum ou
– como às vezes ocorre, em condições de guerra – cigarros, barras de chocolate etc.
Um sistema de mercado requer uma mercadoria-dinheiro de algum tipo para funcionar,
mas uma mercadoria-dinheiro só pode surgir com o advento da troca mercantil. O dinheiro
não foi imposto de fora, tampouco foi inventado por alguém que imaginou que seria
uma boa ideia ter uma forma-dinheiro. Mesmo formas simbólicas, diz Marx, têm de
ser entendidas nesse contexto.”
“A objetividade do valor
das mercadorias é diferente de Mistress Quickly[b], na medida em que não se sabe por onde agarrá-la. Exatamente ao contrário
da objetividade sensível e crua dos corpos das mercadorias, na objetividade de seu
valor não está contido um único átomo de matéria natural. Por isso, pode-se virar
e revirar uma mercadoria como se queira, e ela permanece inapreensível como coisa
de valor [Wertding]. Lembremo-nos, todavia, de que as mercadorias possuem
objetividade de valor apenas na medida em que são expressões da mesma unidade social,
do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso,
é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias.
(125)
Este é
um ponto absolutamente vital, que não podemos deixar de enfatizar: o valor é imaterial,
porém objetivo. Dada a suposta adesão de Marx a um materialismo rigoroso,
esse argumento é surpreendente, e devemos nos deter um pouco em seu significado.
O valor é uma relação social, e não podemos ver, tocar ou sentir diretamente as
relações sociais; no entanto, elas têm uma presença objetiva. É preciso, portanto,
examinar com cuidado essa relação social e sua expressão.
Marx propõe
a seguinte ideia: os valores, sendo imateriais, não podem existir sem um meio de
representação. É o advento do sistema monetário, da própria forma-dinheiro como
meio tangível de expressão, que faz do valor (como tempo de trabalho socialmente
necessário) o regulador das relações de troca. Mas a forma-dinheiro só se aproxima
do valor expresso – passo a passo, dado o argumento lógico – à medida que as relações
de troca de mercadorias se propagam. Portanto, não existe nenhuma entidade universal
externa chamada “valor” que, depois de muitos anos de luta, é finalmente expressa
por meio da troca monetária. O que existe é uma relação interna e recíproca entre
o advento da forma-dinheiro e as formas-valores. O surgimento da troca de mercadorias
faz com que o tempo de trabalho socialmente necessário se torne a força norteadora
no interior do modo de produção capitalista. Desse modo, o valor como tempo de trabalho
socialmente necessário é algo historicamente específico ao modo de produção capitalista.
Ele surge apenas numa situação em que o mercado cumpre a tarefa que se exige dele.
Da análise
de Marx resultam duas conclusões e uma questão importante. A primeira conclusão
é que as relações de troca, longe de ser epifenômenos que expressam a estrutura
profunda do valor, existem numa relação dialética com os valores, de modo que estes
dependem daquelas, tanto quanto aquelas dependem destes. A segunda conclusão confirma
o status imaterial (fantasmagórico), porém objetivo, do conceito de valor. Todas
as tentativas de medir diretamente o valor estão condenadas ao fracasso. A questão
diz respeito ao grau de confiabilidade e precisão da representação monetária do
valor ou, em outras palavras, a como a relação entre imaterialidade (valor) e objetividade
(tal como capturada pela representação monetária do valor) desdobra-se na realidade.
Marx trata
desse problema numa série de passos. Comenta: “Somente a expressão de equivalência
de diferentes tipos de mercadoria evidencia o caráter específico do trabalho criador
de valor, ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo
que lhes é comum: o trabalho humano em geral” (65). Aqui encontramos uma resposta
parcial à questão sobre como ocorre a redução de trabalho humano especializado e
complexo a trabalho humano simples. Mas ele prossegue: “A força humana de trabalho
em estado fluido” – e é impressionante a frequência com que Marx invoca o conceito
de fluidez n’O capital – “ou trabalho humano, cria valor, mas não é, ela
própria, valor. Ela se torna valor em estado cristalizado, em forma objetiva” (128).
Portanto, é preciso estabelecer uma distinção entre o processo de trabalho e a coisa
que é produzida. Essa ideia de uma relação entre processos e coisas, juntamente
com a ideia de fluidez, é importante na análise de Marx. Quanto mais as invoca,
mais se distancia da dialética como lógica formal e se aproxima de uma dialética
como filosofia do processo histórico. O trabalho humano é um processo tangível,
mas no fim desse processo chegamos a esta coisa – uma mercadoria – que “coagula”
ou “cristaliza” valor. Embora seja o processo efetivo o que importa, a coisa
é que tem valor, a coisa é que possui qualidades objetivas. Assim: “Para
expressar o valor do linho como geleia de trabalho humano, ela tem de ser expressa
como uma ‘objetividade’ materialmente distinta do próprio linho e simultaneamente
comum ao linho e a outras mercadorias” (128).
O problema
é: como é representado o valor, essa “objetividade materialmente distinta do próprio
linho”? A resposta está na forma da mercadoria-dinheiro. Mas, observa ele, há algumas
peculiaridades nessa relação entre o valor e sua expressão na forma-dinheiro. “A
primeira peculiaridade que se sobressai na consideração da forma equivalente”, diz
Marx, é que um valor de uso particular “se torna a forma de manifestação de seu
contrário, do valor”, e isso “esconde em si uma relação social” (133-4).
[b] Personagem do drama histórico Henrique
IV, de Shakespeare. Marx usa a forma alemã do nome, Wittib
Hurtig. (N. T.)
“Considero o conceito de fetichismo fundamental tanto para a economia política
como para o argumento de Marx em seu conjunto. De fato, ele se une indissoluvelmente
a ambos.
A análise
é feita em dois passos. Primeiro, ele identifica como o fetichismo surge e opera
como um aspecto fundamental e inevitável da vida político-econômica sob o capitalismo.
Em seguida, analisa como esse fetichismo é enganosamente representado no pensamento
burguês, em geral, e na economia política clássica, em particular.
A mercadoria,
diz ele para começar, é “plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”:
“O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste [...] simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres
objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais
a essas coisas” (146-7). O problema é que “a forma-mercadoria e a relação de valor
dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente
nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais que dela resultam”.
Nossa experiência sensível da mercadoria como valor de uso não tem nada a ver com
seu valor. As mercadorias são, portanto, “coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais”.
O resultado é que uma “relação social determinada entre os próprios homens [...]
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. E é essa
condição que define o “fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo
são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias”
(147-8).
Isso acontece,
diz ele, porque “os produtores só travam contato social mediante a troca de seus
produtos do trabalho”, de modo que “os caracteres especificamente sociais de seus
trabalhos privados aparecem apenas no âmbito” da troca mercantil. Em outras palavras,
eles não sabem nem podem saber qual é o valor de sua mercadoria antes de levá-la
ao mercado e efetivar sua troca. “A estes últimos [os produtores], as relações sociais
entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são.” Note especialmente
este trecho: aparecem como aquilo que elas são, “isto é, não como relações
diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações
reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas” (148).
O que
está em questão aqui? Digamos que você vá ao supermercado para comprar alface. Para
comprá-la, tem de desembolsar certa quantia de dinheiro. A relação material entre
o dinheiro e a alface expressa uma relação social, porque o preço – o “quanto” –
é socialmente determinado, é uma representação monetária do valor. O que está por
trás dessa troca mercantil de coisas é uma relação entre você, o consumidor, e os
produtores diretos, aqueles que trabalharam para produzir a alface. Para comprar
a alface, você não precisa conhecer o trabalho daqueles que incorporaram valor a
ela; contudo, em sistemas altamente complexos de troca, é impossível conhecer
a atividade dos trabalhadores, e é isso que torna o fetichismo inevitável no mercado
mundial. O resultado é que nossa relação social com as atividades laborais dos outros
é dissimulada em relações entre coisas. No supermercado, por exemplo, você não tem
como saber se a alface foi produzida por trabalhadores satisfeitos, miseráveis,
escravos, assalariados ou autônomos. A alface é muda, por assim dizer, no que diz
respeito a como foi produzida e a quem a produziu. (...)
Esse fetichismo
é uma condição inevitável do modo de produção capitalista, e tem diversas implicações.
Por exemplo:
[os homens] não relacionam entre si seus produtos
do trabalho como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais
de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos
de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes
trabalhos como trabalho humano. (149)
Vemos
mais uma vez que os valores surgem de processos de troca, mesmo quando as relações
de troca convergem progressivamente para expressar o valor como tempo de trabalho
socialmente necessário.
[Os produtores] não sabem disso, mas o fazem. Por
isso, na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo
produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar
o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois
a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto
a linguagem. (149)
A relação
dialética entre a formação e o intercâmbio do valor e as qualidades imateriais e
fantasmagóricas do valor como uma relação social não poderia ser mais bem retratada.
Mas como
essa dialética pode ser reproduzida no pensamento? Segundo Marx, muitos economistas
políticos entenderam (e ainda entendem) isso como errado, porque veem os preços
nos supermercados e acham que isso é tudo, e que essa é a única evidência material
de que precisam para construir suas teorias. Eles simplesmente examinam a relação
entre oferta e demanda e as variações de preço associadas a ela. Outros, mais atentos,
chegam à “descoberta científica tardia de que os produtos do trabalho, como valores,
são meras expressões materiais do trabalho humano despendido em sua produção”. Isso
“fez época na história do desenvolvimento da humanidade” (149). A economia política
clássica convergiu pouco a pouco para uma ideia de valor por trás das flutuações
do mercado (frequentemente denominadas “preços naturais”) e reconheceu que o trabalho
humano tem a ver com isso.
Mas a
economia política clássica não conseguiu captar o hiato entre a imaterialidade dos
valores como tempo de trabalho socialmente necessário “cristalizado” e sua representação
como dinheiro; portanto, também não conseguiu entender o papel que a proliferação
da troca tem na consolidação da forma-valor como algo historicamente específico
ao capitalismo. Supôs que os valores eram uma verdade evidente e universal e não
viu que
o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa
apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam constantemente,
independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca.
Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas,
sob cujo controle eles se encontram, em vez de eles as controlarem. (150)
É assim
que Marx começa a atacar a concepção liberal de liberdade. A liberdade do mercado
não é liberdade, é uma ilusão fetichista. No capitalismo, os indivíduos se rendem
à disciplina de forças abstratas (como a mão invisível do mercado, criada em grande
parte por Adam Smith), que efetivamente governam suas relações e escolhas. Posso
fabricar uma coisa bonita e levá-la ao mercado, mas, se eu não conseguir trocá-la,
ela não terá nenhum valor. Consequentemente, não terei dinheiro suficiente para
comprar as mercadorias de que preciso para viver. As forças do mercado, que ninguém
controla individualmente, regulam todos nós. E uma das coisas que Marx pretende
fazer n’O capital é falar desse poder regulador que ocorre mesmo “nas relações
de troca contingentes e sempre oscilantes de seus produtos”. As flutuações de oferta
e demanda geram flutuações de preço em torno de uma norma, mas não podem explicar
por que um par de sapatos é trocado, em média, por quatro camisas. No interior de
toda a confusão do mercado, “o tempo de trabalho socialmente necessário para sua
produção [da mercadoria] se impõe com a força de uma lei natural reguladora, tal
como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém”
(150). Esse paralelo entre a gravidade e o valor é interessante: ambos são relações,
e não coisas, e ambos têm de ser conceituados como imateriais, porém objetivos.
Isso conduz
Marx diretamente à crítica da evolução dos modos burgueses de pensamento em relação
à propagação das relações de troca e do advento da forma-dinheiro:
A reflexão sobre as formas da vida humana e, assim,
também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento
real. [...] Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação
da grandeza do valor, e somente a expressão monetária comum das mercadorias conduziu
à fixação de seu caráter de valor. Porém, é justamente essa forma acabada – a forma-dinheiro
– do mundo das mercadorias que vela materialmente, em vez de revelar, o caráter
social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores
privados. (150) (...)
Uma olhada
nessa história mostra as limitações das supostas verdades universais da teoria burguesa.
“Saltemos, então, da iluminada ilha de Robinson para a sombria Idade Média europeia.”
Se esta é sombria, suas relações sociais são, ao contrário, bastante claras. Sob
o sistema da corveia, diz Marx, “cada servo sabe que o que ele despende a serviço
de seu senhor é uma quantidade determinada de sua força pessoal de trabalho”; os
vassalos tinham consciência de que “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos
aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em
relações sociais entre coisas, entre produtos de trabalho” (152). O mesmo vale para
a dinâmica rural e patriarcal de uma família camponesa: as relações sociais são
transparentes, e podemos ver quem está fazendo o que e para quem.
Tais comparações
históricas, juntamente com a análise do fetichismo, permitem-nos vislumbrar a natureza
contingente, portanto não universal, das verdades estabelecidas pela economia política
burguesa. “Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e
a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias
desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção”
(151). Podemos até imaginar as relações sociais organizadas como “uma associação
de homens livres”, isto é, um mundo socialista no qual “as relações sociais dos
homens com seus trabalhos e seus produtos do trabalho permanecem [...] transparentemente
simples, tanto na produção quanto na distribuição” (153). Ao falar da ideia de associação,
Marx ecoa muito do pensamento socialista utópico francês dos anos 1830 e 1840 (em
particular Proudhon,
embora Marx não reconheça isso). Sua esperança é que possamos ir além do fetichismo
das mercadorias e tentar estabelecer, por meio de formas associativas, um modo de
relação diferente. Se isso é viável ou não é uma questão fundamental que qualquer
leitor de Marx tem de considerar; mas esse é um dos raros momentos n’O capital
em que temos um vislumbre da visão de Marx de um futuro socialista.”
“A missão de Marx n’O capital, porém, é conceber uma ciência para além
do fetichismo imediato, sem negar sua realidade. Ele lançou as bases para isso na
crítica da economia política burguesa. Também mostrou a que ponto somos governados
pelas forças abstratas do mercado naquilo que fazemos e como estamos constantemente
ameaçados de ser governados por construtos fetichistas, que nos impedem de ver o
que está acontecendo. Até que ponto você pode dizer que vive numa sociedade livre,
caracterizada pela verdadeira liberdade individual? As ilusões de uma ordem liberal
utópica, na visão de Marx, têm de ser desmascaradas como aquilo que são: uma réplica
daquele fetichismo que perverte as relações sociais entre pessoas, transformando-as
em relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas.”
“A mercadoria-dinheiro interioriza uma dualidade, pois tanto
é mercadoria – no sentido ordinário de ser um produto do trabalho – quanto
“adquire um valor de uso formal, que deriva de suas funções sociais específicas”.
Nessa função social formal, “a forma-dinheiro é apenas o reflexo, concentrado numa
única mercadoria, das relações de todas as outras mercadorias” (164).
Além disso,
é perfeitamente possível substituir a mercadoria-dinheiro “por simples signos de
si mesmo” para cumprir esse papel. Mas essa capacidade de substituição não causa
surpresa, já que “cada mercadoria seria um signo, uma vez que, como valor, ela é
tão somente um invólucro reificado do trabalho humano nela despendido” (165). Marx
acena aqui com a possibilidade de incorporar diretamente em sua análise muitos aspectos
daquilo que atualmente costumamos chamar de “economia simbólica”. Ele não tenta
fazer isso, porque, sem dúvida, exigiria mudanças no modo de apresentação, mas é
importante notar que os aspectos simbólicos do modo de funcionamento do capitalismo
não são alheios a seu argumento. Aqueles que afirmam que o capitalismo é diferente
hoje, devido ao grau de preponderância que o capital e a economia simbólicos passaram
a exercer, e que, em consequência disso, o capitalismo teria mudado de foco, deveriam
perceber que as coisas não são necessariamente assim.
O perigo
está em tratar essas qualidades simbólicas – que são muito importantes – como se
fossem puramente imaginárias ou como produtos arbitrários da reflexão dos homens.
O que Marx sugere é que mesmo a mercadoria-dinheiro não pode realizar seu valor
específico sem a troca com todas as outras mercadorias como equivalentes, ainda
que, para isso, finja ser o equivalente universal de todas as outras mercadorias.
“A dificuldade”, diz ele, “não está em compreender que dinheiro é mercadoria, mas
em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro” (186): “Uma
mercadoria não parece se tornar dinheiro porque as outras mercadorias expressam
nela seu valor universalmente, mas, ao contrário, estas é que parecem expressar
nela seus valores universalmente pelo fato de ela ser dinheiro” (187, grifos meus).
Em outras
palavras, uma vez que exista dinheiro, as mercadorias encontram um meio de medir
seu próprio valor simplesmente agindo como se o ouro, tal como surge “das entranhas
da terra”, fosse “a encarnação imediata de todo trabalho humano”. Essa, diz ele,
é a “mágica do dinheiro” que tem de ser desvendada. “O enigma do fetiche do dinheiro
não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível
e ofusca a visão” (167).
Mas há
outra questão vital nesse capítulo. Com a “mágica” e o “fetiche” do dinheiro firmemente
estabelecidos,
o comportamento meramente atomístico dos homens em
seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada de suas relações
de produção, independentes de seu controle e de sua ação individual consciente,
manifestam-se, de início, no fato de que os produtos de seu trabalho assumem universalmente
a forma da mercadoria. (167)
Isso se
parece muito com a visão de Adam Smith de um mercado de funcionamento perfeito,
cuja mão invisível guia as decisões individuais. Ninguém está no comando, e cada
um tem de agir de acordo com o que Marx chama mais tarde de “leis coercitivas da
competição” (446).
No mundo
ideal de Smith, o Estado criaria o arcabouço institucional para o funcionamento
perfeito dos mercados e da propriedade privada e a riqueza do Estado e o bem-estar
dos cidadãos cresceriam rapidamente, à medida que a iniciativa individual e o empreendedorismo,
guiados pela mão invisível do mercado, produzissem resultados que beneficiassem
a todos. Nesse mundo, segundo acredita Smith, as intenções e as motivações dos indivíduos
(que variam desde a ganância até a missão social) não importam, pois a mão invisível
do mercado se encarregaria de tudo.
Esse capítulo
apresenta-nos uma charada. De um lado, Marx dedica uma nota de rodapé para condenar
o fato de Proudhon aceitar as noções burguesas de direitos e legalidade, alegando
que isso não contribui em nada para a construção de uma alternativa revolucionária.
No entanto, no próprio texto do capítulo, Marx parece aceitar a teoria liberal da
propriedade, a reciprocidade e a equivalência da troca mercantil não coercitiva
entre indivíduos jurídicos e até mesmo a mão invisível do mercado tal como proposta
por Adam Smith. Como resolver essa contradição aparente? Creio que a resposta é
bastante simples, mas a pergunta tem ramificações importantes sobre o modo como
leremos o restante d’O capital.
Marx está
engajado numa crítica da economia política liberal clássica. Por isso, acredita
que é necessário aceitar as teses do liberalismo (e, por extensão, as do neoliberalismo)
para mostrar que os economistas políticos clássicos estavam profundamente equivocados
em seus próprios termos. Assim, mais do que dizer que os mercados de funcionamento
perfeito e a mão invisível não podem ser construídos e que o mercado é sempre distorcido
pelo poder político, ele aceita a visão liberal utópica de mercados perfeitos e
mão invisível para mostrar que eles jamais produzirão um resultado benéfico, mas,
ao contrário, tornarão a classe capitalista inconcebivelmente rica e empobrecerão
os trabalhadores e o restante da população na mesma proporção.
Isso se
traduz numa hipótese sobre o capitalismo realmente existente: quanto mais estruturado
e organizado segundo essa visão utópica liberal e neoliberal é esse capitalismo,
maiores são as desigualdades de classe. E é desnecessário dizer que há evidências
suficientes para apoiar a visão de que a retórica do livre mercado e do livre-comércio
e seus supostos benefícios universais, à qual fomos submetidos nos últimos trinta
anos, produziu exatamente o resultado esperado por Marx: uma concentração maciça
de riqueza e de poder numa ponta da escala social, concomitante ao empobrecimento
crescente de todos os demais. Mas, para prová-lo, Marx tem de aceitar as bases institucionais
do utopismo liberal, e é precisamente isso que ele faz nesse capítulo.”
“O que Marx conseguiu com seu modo de análise
foi construir um caminho convincente de entendimento do nexo frágil e problemático
entre o valor (o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado nas mercadorias)
e as formas com que o sistema monetário representa esse valor. Ele revela não só
o que é fictício e imaginário nessas representações e em suas consequentes contradições,
mas também que o modo de produção capitalista não pode funcionar sem esses elementos
ideais. Não podemos eliminar o fetichismo, como ele mesmo observou, e estamos condenados
a viver num mundo às avessas, de relações materiais entre pessoas e de relações
sociais entre coisas.”
“Marx afirma que só podemos entender corretamente
a história se olharmos retrospectivamente do ponto em que nos encontramos hoje.”
“O dinheiro pode ser usado para fazer circular as mercadorias, para medir
o valor, para armazenar riqueza, e assim por diante. O capital, no entanto, é dinheiro
usado de modo determinado. Não apenas o processo D-M-D é uma inversão do processo
M-D-M, mas, como Marx observou no capítulo anterior, “o dinheiro não se apresenta
como meio de circulação, como mera forma evanescente e mediadora do metabolismo,
mas como a encarnação individual do trabalho social, existência autônoma do valor
de troca, mercadoria absoluta” (211). A representação do valor (dinheiro), em outras
palavras, torna-se o escopo e o objetivo da circulação. Esse processo de circulação,
no entanto, “seria absurdo e vazio se a intenção fosse realizar, percorrendo seu
ciclo inteiro, a troca de um mesmo valor em dinheiro pelo mesmo valor em dinheiro,
ou seja, £100 por £100” (224). A troca de valores iguais é perfeitamente correta
com respeito a valores de uso, portanto o que importa é a qualidade. Mas a única
razão lógica para entrar na circulação D-M-D, como vimos no capítulo 3, é ter mais
valor no final do que no começo. Depois de certo esforço, Marx chega à conclusão
bastante óbvia:
Assim, o processo D-M-D não deve seu conteúdo a nenhuma
diferença qualitativa de seus extremos, pois ambos são dinheiro, mas apenas à sua
distinção quantitativa. Ao final do processo, mais dinheiro é tirado de circulação
do que nela fora lançado inicialmente. O algodão comprado por £100 é revendido por
100 + £10, ou por £110. A forma completa desse processo é, portanto, D-M-D’, onde
D’ = D + ΔD, isto é, à quantia de dinheiro inicialmente adiantada mais um incremento.
Esse incremento, ou excedente sobre o valor original, chamo de mais-valor (surplus
value). (227)
Com isso,
chegamos pela primeira vez ao conceito de mais-valor, que, evidentemente, é fundamental
para toda a análise marxiana.
O que
acontece é que “o valor originalmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se
na circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa grandeza
um mais-valor, ou se valoriza. E esse movimento o transforma em capital” (227).
Aqui, finalmente, está a definição de “capital”. Para Marx, o capital não é uma
coisa, mas um processo – mais especificamente, um processo de circulação
de valores. Tais valores são incorporados em diferentes coisas em vários pontos
do processo: inicialmente, como dinheiro e, em seguida, como mercadoria, antes de
retornar à forma-dinheiro.
Ora, essa
definição do capital como processo é de extrema importância. Ela marca um distanciamento
radical em relação à definição que encontraremos na economia política clássica,
em que o capital era tradicionalmente entendido como um estoque de recursos (máquinas,
dinheiro etc.), assim como em relação à definição predominante na ciência econômica
convencional, na qual o capital é visto como uma coisa, um “fator de produção”.
Na prática, a ciência econômica convencional tem uma grande dificuldade em medir
(valorar) o fator de produção que é capital. Assim, eles simplesmente o rotulam
de K e o inserem em suas equações. Mas, na realidade, se você pergunta “o que é
K e como obtemos uma medida dele?”, a questão está longe de ser simples. Os economistas
lançam mão de todos os tipos de medidas, mas não conseguem chegar a um consenso
sobre o que o capital realmente “é”. Ele existe, com efeito, na forma de dinheiro,
mas também existe como máquinas, fábricas e meios de produção; e como atribuir um
valor monetário independente aos meios de produção, independente do valor das mercadorias
que eles ajudam a produzir? Como ficou evidenciado na assim chamada controvérsia
sobre o capital no início dos anos 1970, toda a teoria econômica contemporânea corre
o perigoso risco de estar fundada numa tautologia: o valor monetário de K na forma
física de riqueza é determinado por aquilo que ele deveria explicar, a saber, o
valor das mercadorias produzidas[1] (186-7).
Uma vez
mais, Marx vê o capital como um processo. Eu poderia fazer capital agora mesmo,
bastando tirar dinheiro do meu bolso e colocá-lo em circulação para fazer mais dinheiro.
Ou eu poderia tirar capital de circulação simplesmente resolvendo recolocar o dinheiro
no meu bolso. Segue-se, então, que nem todo dinheiro é capital. O capital é dinheiro
usado de uma certa maneira. A definição de capital não pode ser divorciada da escolha
humana de lançar o dinheiro-poder nesse modo de circulação. Mas isso coloca todo
um conjunto de problemas. Antes de tudo, há a questão de quanto incremento o capital
pode render. Lembremo-nos que uma das descobertas no capítulo sobre o dinheiro foi
que a acumulação de dinheiro-poder é potencialmente ilimitada; Marx a repete aqui
(210-1, 230-1). Seu significado pleno, no entanto, só será desenvolvido mais tarde
(particularmente nos capítulos 21 e 22).
Diz Marx:
“como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista.
Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro”
(229). Disso se segue que “o valor de uso jamais pode ser considerado a finalidade
imediata do capitalista”. Quer dizer, o capitalista produz valores de uso apenas
para ganhar valor de troca. Na verdade, o capitalista não se preocupa sobre qual
ou que tipo de valor de uso é produzido; poderia ser qualquer tipo de valor de uso,
contanto que ele permita ao capitalista obter o mais-valor. A finalidade do capitalista
é, o que não surpreende, o “incessante movimento da obtenção de ganho” (229). Isso
parece o enredo de Eugênia Grandet, de Balzac[d]!
Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça
apaixonada ao valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador
é apenas um capitalista louco, o capitalista é o entesourador racional. O aumento
incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando seu
dinheiro fora da circulação, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente,
recoloca o dinheiro constantemente em circulação. (229)
Portanto,
o capital é valor em movimento. Mas é valor em movimento que se manifesta em diferentes
formas. “Ora, se tomarmos as formas particulares de manifestação” – note a repetição
desta frase – “que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no decorrer
de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é
mercadoria” (169). Agora Marx explicita a definição processual do capital:
Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito
de um processo em que ele, ao mesmo tempo que assume constantemente a forma do dinheiro
e da mercadoria, modifica sua própria grandeza, distanciando-se de si mesmo como
valor original ao se tornar mais-valor, ao valorizar a si mesmo. Pois o movimento
em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto,
autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor.
Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro. (230) (...)
Nesse exemplo, as qualidades “ocultas” do capital
e sua capacidade aparentemente mágica de pôr “ovos de ouro” existem apenas no reino
da aparência. Mas não é difícil ver por que esse construto fetichista poderia ser
tomado como real – o sistema de produção capitalista depende exatamente dessa ficção.
Você já se perguntou de onde vem o crescimento? Tendemos a supor que essa expansão
simplesmente pertence à natureza do dinheiro. (...) Mas parece que o dinheiro que
você tem guardado no banco cresce de acordo com a taxa de juro. Marx quer saber
o que está por trás desse fetiche. Esse é o mistério que tem de ser solucionado.
Segundo ele, há um momento nesse processo de circulação
ao qual sempre retornamos e que, por essa razão, parece ser mais importante que
os outros. Esse é o momento do dinheiro: D-D. Por quê? Porque o dinheiro é a representação
universal e a medida definitiva do valor. Portanto, é apenas no momento do dinheiro
– o momento da universalidade capitalista – que podemos perceber onde estamos em
relação ao valor e ao mais-valor. É difícil perceber isso apenas olhando para a
particularidade das mercadorias. O dinheiro “constitui, por isso, o ponto de partida
e de chegada de todo processo de valorização”. No exemplo de Marx, a conclusão do
processo, que começou com um investimento de 100 libras, resulta em 110 libras:
“O capitalista sabe que toda mercadoria, por mais miserável que seja sua aparência
ou por pior que seja seu cheiro, é dinheiro, não só em sua fé, mas também na realidade;
que ela é, internamente, um judeu circuncidado e, além disso, um meio milagroso
de se fazer mais dinheiro a partir do dinheiro”. (...)
Retornando
ao texto, encontramos Marx ainda às voltas com a aparência fetichista:
Se na circulação simples o valor das mercadorias
atinge no máximo uma forma independente em relação a seus valores de uso, aqui ele
se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e
para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas. E mais ainda.
Em vez de representar relações de mercadorias, ele agora entra, por assim dizer,
numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si
mesmo como mais-valor, tal como Deus Pai se diferencia de si mesmo como Deus Filho
[...]. O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como
tal, capital. (230-1)
O próximo
passo na definição fundamental de capital é: valor em processo, dinheiro em processo.
E isso é muito diferente de capital como estoque fixo de recursos ou fator de produção.
(Mas é Marx, e não os economistas, que é criticado por suas formulações supostamente
estáticas e “estruturais”!) O capital “sai da circulação, volta a entrar nela, conserva-se
e multiplica-se em seu percurso, sai da circulação aumentado e começa o mesmo circuito
novamente” (231). O poderoso sentido do fluxo é palpável. Capital é processo, e
ponto final.
Marx retorna brevemente aos capitais comercial
e usurário (seu ponto de partida histórico, mais do que lógico). Embora o que realmente
lhe importa seja o capital industrial, ele tem de reconhecer que existem estas duas
outras formas de circulação: o capital comercial (comprar barato para vender mais
caro) e o capital a juros, por meio dos quais também se pode realizar uma aparente
autoexpansão do valor. Vemos, assim, diferentes possibilidades: o capital industrial,
o capital comercial e o capital a juros, todos na forma de circulação D-M-D + ΔD.
Tal forma de circulação, conclui ele, “é a fórmula geral do capital tal como ele
aparece imediatamente na esfera da circulação”. É essa forma de circulação que temos
de analisar em detalhes para desmistificar suas qualidades “ocultas”.”
[1] Marx cita a mesma definição tautológica
do capital apresentada na teoria da circulação de J. B. Say.
[d] Em A comédia humana (3. ed.,
Rio de Janeiro, Globo, 1955), v. 5. (N. E.)
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