sexta-feira, 7 de maio de 2021

Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Parte III), de Roman Rosdolsky

Editora: EDUERJ / Contraponto

ISBN: 978-85-85910-42-6

Tradução: César Benjamin

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 624

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Sinopse: Ver Parte I



“Do ponto de vista social, a classe operária[...] é um acessório do capital, assim como o instrumento inanimado de trabalho [...]. O escravo romano estava preso por correntes ao seu proprietário; o assalariado também está preso, porém por fios invisíveis. A constante troca de patrão individual e a fletia juris [ficção jurídica] do contrato mantêm de pé a aparência de que o assalariado é independente.” (Karl Marx, Das Kapital I, p. 601-602)”

 

 

“No que diz respeito ao montante desse equivalente, ao valor da força de trabalho, é claro que ele não pode ser determinado “pela forma como o comprador usa sua mercadoria, mas sim pela quantidade de trabalho materializado nela”.12 (“O valor de uso de uma coisa não diz respeito ao vendedor como tal, mas só ao comprador. A qualidade que tem o salitre de poder ser utilizado para fazer pólvora não determina o preço do salitre; este preço depende dos seus custos de produção [...].”)13 Assim, “para o trabalhador, o trabalho só tem valor de uso quando é valor de troca, e não quando produz valores de troca”.14 Esse valor de troca é determinado pelos custos de produção da força de trabalho, isto é, do próprio trabalhador. A mercadoria, que este oferece, “existe apenas como capacidade de seu corpo”; por isso, o valor de sua força de trabalho se mede pela quantidade de trabalho necessária para manter o trabalhador vivo e reproduzi-lo como trabalhador. Essa quantidade “determina em geral [...] a soma de dinheiro que o trabalhador recebe no intercâmbio”15.

Assim como em qualquer intercâmbio de mercadorias, o intercâmbio que envolve força de trabalho e capital também é intermediado pelo dinheiro. “Quando o trabalhador recebe em forma de dinheiro, ou seja, de riqueza universal, está imerso — pelo menos aparentemente — na troca capitalista de equivalentes, como ocorre com qualquer outro participante do intercâmbio.” Tal igualdade é só “uma aparência, e uma aparência enganosa”. Na verdade, ela é abolida pelo fato de que o capital “apropriou-se, sem intercâmbio, de uma parte do seu tempo de trabalho, e isso ocorreu graças à forma do intercâmbio”. O trabalhador se defronta com o capitalista “em uma relação econômica diferente, exterior à do intercâmbio[...]. Esta aparência existe como ilusão por parte do trabalhador, compartilhada em certa medida pela outra parte, e isso também modifica essencialmente essa relação, quando comparada à que se estabelece em outros modos de produção social.”16

Isso não é tudo. “Como o trabalhador troca sua força de trabalho pela forma universal da riqueza [o dinheiro], ele passa a ter acesso ao usufruto da riqueza universal, até o limite de seu equivalente (um limite quantitativo, que se transforma em qualitativo, como em todo intercâmbio).” Como regra geral, este limite é muito estreito. Mesmo assim, o trabalhador “não está ligado a objetos específicos, nem a um modo específico de satisfação” de suas necessidades.17 “A esfera de sua fruição não está limitada18 qualitativamente, mas só quantitativamente.” Também isso “o diferencia do escravo, do servo da gleba etc.”19

O intercâmbio entre a força de trabalho e o capital permanece no âmbito da circulação mercantil simples porque, para o trabalhador, o objetivo desse intercâmbio não é o valor como tal, mas sim a satisfação de suas necessidades imediatas. “Recebe dinheiro, é certo, mas como moeda, como meio que suprime a si próprio e desaparece. O que permuta, pois, não é o valor de troca, não é a riqueza, mas sim meios de subsistência, bens necessários para manter sua vida, para satisfazer suas necessidades físicas, sociais etc.20 Observando o ciclo M-D-M, vimos que o dinheiro pode ser retirado da circulação e entesourado. Ora, teoricamente, também o trabalhador estaria em condições de economizar uma parte do dinheiro que ganha, para conservá-lo como forma universal da riqueza e então “enriquecer”. Mas isso só é passivei “se ele sacrifica a satisfação substancial de suas necessidades à forma da riqueza; se, mediante a abstinência, apertando o cinto, aceita retirar da circulação, para seu consumo, menos bens do que entrega a ela”. Ou então, “se abre mão, ainda mais, do tempo de descanso [e] renova com maior rapidez o ato de intercâmbio” de sua força de trabalho, “ou o torna mais estafante, mediante maior presteza”.

Por isso, Marx ironiza, fazem-se aos trabalhadores tantos sermões sobre a “presteza”. “Deve praticar a abstinência aquele que realiza o intercâmbio para obter meios de subsistência, e não aquele que visa enriquecer.”21 ‘‘Nenhum economista negará que, se os trabalhadores em geral, ou seja, como trabalhadores — o que venha a fazer o trabalhador individual, separando-se de seu genus [gênero], só pode existir como exceção, não como regra, já que não está compreendido na determinação da própria relação —, [...] cumprissem essas demandas (além do enorme prejuízo que causariam ao consumo em geral) [...], eles usariam meios que negariam o próprio fim desejado [...]. Se todos, ou a maioria, trabalhassem com presteza máxima (na medida em que a indústria moderna deixe a presteza a critério dos trabalhadores, o que não ocorre nos setores produtivos mais importantes e desenvolvidos), eles não aumentariam o valor de sua própria mercadoria, mas apenas a quantidade ofertada; [...] os salários não tardariam a ser reduzidos até o nível correspondente.”22 Por isso, o que os trabalhadores podem conseguir com suas poupanças é, no melhor dos casos, uma distribuição mais racional de seus gastos, de modo que “na velhice, ou em casos de doença ou crises etc., eles não dependam dos sanatórios, do Estado, da mendicância (em uma palavra, que vegetem às custas de seus próprios bolsos, que sejam um encargo para a própria classe trabalhadora, e não para os capitalistas)”. Esta é também “a verdadeira reivindicação dos capitalistas. Durante a fase de bons negócios, os trabalhadores devem economizar o suficiente para conseguir sobreviver na fase ruim, suportar o período de escassez de trabalho23 ou de rebaixamento de salários.” Devem facilitar ao capital a superação das crises e velar para que “os capitalistas obtenham grandes juros com suas economias ou que o Estado as absorva”. “Em qualquer caso, terão economizado para o capital, e não para si mesmos.”24

Através de sua poupança, o trabalhador assalariado em geral não consegue enriquecer nem se elevar acima da condição de sua classe, pois, no intercâmbio com o capital, ele “está imerso em uma relação de circulação simples”. Como equivalente de sua força de trabalho, “ele não recebe riqueza, mas apenas meios de subsistência, valores de uso para o consumo direto.[...] Na circulação da mercadoria, se o ponto de partida da troca é o valor de uso, o ponto de chegada é necessariamente a mercadoria”, a qual, “tendo completado seu percurso, é consumida como objeto da necessidade”. Nesse processo, o dinheiro desempenha apenas o papel de meio de troca, de “mediação evanescente”.25 Para que o dinheiro economizado pelo trabalhador “não permaneça sob a forma de mero produto da circulação”, cedo ou tarde “deve converter-se em capital, ou seja, comprar trabalho”; logo, “o antagonismo, que deveria ser abolido em um ponto, restaura-se em outro”. Portanto, se o trabalhador entrasse no intercâmbio não para obter “valores de uso, meios de subsistência, satisfação das necessidades diretas, [...] então o trabalho se defrontaria com o capital não como trabalho, não como não-capital, mas sim como capital. Mas, o capital não pode defrontar o capital. Deve ter diante de si o trabalho, pois, por definição, o capital só é capital como não-trabalho, imerso em uma relação antagônica. Caso contrário, o próprio conceito de capital, e a relação que ele estabelece, seriam destruídos.”26

No intercâmbio mercantil simples, o vendedor não pode reivindicar nada sobre o usufruto da mercadoria que alienou. O mesmo ocorre com o trabalhador assalariado. “Assim como Esaú cedeu seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas, ele cede sua força criadora” pelo preço de sua capacidade de trabalho. Para ele, como diz Cherbuliez, discípulo de Sismondi, o intercâmbio com o capital equivale a “renunciar a todos os frutos do trabalho”.27 “O que parece ser um resultado paradoxal está contido na própria premissa.” No modo de produção capitalista, o trabalhador só dispõe de sua capacidade de trabalho, que coincide com sua personalidade; todos os meios para a objetivação de seu trabalho pertencem ao capital. Por isso, a força produtiva de seu trabalho tampouco pode beneficiá-lo, mas sim ao capital. “O trabalhador permuta o próprio trabalho como valor de troca simples, determinado por um processo anterior, permuta o trabalho como se fosse trabalho objetivado; [...] o capital recebe o trabalho como trabalho vivo, força produtiva, atividade que incrementa a riqueza. É claro que o trabalhador não pode enriquecer através desse intercâmbio. [...] É mais provável que empobreça, [...] já que sua força criadora, a força de seu trabalho, se torna uma força do capital, potência alheia que se opõe a ele. Aliena o trabalho como força produtiva da riqueza; o capital se apropria dele como tal.”28 “Nesse intercâmbio já está inscrita a separação entre trabalho e propriedade do produto do trabalho, entre trabalho e riqueza.”29

12. Ibid., p. 193 e 368-369. Cf. Theorien, III, p. 110.

13. Grundrisse, p. 213.

14. Ibid., p. 214.

15. Ibid., p. 193-194. Para maiores detalhes da teoria de Marx sobre o salário, ver o Apêndice à Parte III.

16. Ibid., p. 194-195, 368 e 566.

17. Marx prossegue dizendo que, dessa maneira, se torna possível “a participação do trabalhador em fruições superiores, até mesmo espirituais — a agitação a favor de seus interesses, a assinatura de periódicos, a frequência a conferências, a educação dos filhos, a formação de seus gostos etc., sua participação na civilização, o que o distingue do escravo[...]” (ibid., p. 197-198).

18. No original, “excluída”.

19. Ibid., p. 194. Marx acrescenta: o fato de que a esfera de suas fruições só esteja restringida do ponto de vista quantitativo concede aos trabalhadores modernos, “também como consumidores, [...] uma importância completamente diferente da que tinham, por exemplo, na Antiguidade e na Idade Média, ou têm na Ásia [...]” (ibid., p. 194).

20. Ibid., p. 195. Como o leitor poderá constatar, nunca ocorreu a Marx limitar o valor da força de trabalho ao “mínimo essencial” do ponto de vista físico.

21. Ibid., p. 195-196. Continuando, Marx diz: “Todos os economistas modernos responsáveis abandonaram o erro de que os capitalistas teriam ‘praticado a abstinência — conseguindo por isso tornar-se capitalistas —, uma interpretação que só teve sentido nos tempos longínquos em que o capital se constituiu a partir das relações feudais etc.” Nisso, o autor de O capital parece ter sido muito otimista.

22. Ibid., p. 196-197.

23. Em inglês no original: “short time”.

24. Ibid., p. 196-198. Marx acrescenta: além disso, “cada capitalista, certamente, exige que seus trabalhadores economizem, mas só os seus, porque se contrapõem a ele como trabalhadores; evita exigir o mesmo ao restante dos trabalhadores, que se contrapõem a ele como consumidores. In spite [apesar] de todas as frases ‘piedosas’, recorre a todos os meios para estimulá-los a consumir, colocando em suas mercadorias novos atrativos, criando neles novas necessidades etc. Este aspecto da relação entre capital e trabalho constitui um elemento fundamental da civilização; nele se baseia a justificativa histórica e o poder atual do capital” (ibid., p. 198). Cf. o artigo “Salário”, de Marx (1847): “A finalidade, pelo menos no sentido estritamente econômico, dos fundos de poupança deve ser a de que os trabalhadores, mediante sua própria precaução e sensatez, equilibrem os períodos bons e maus de trabalho, distribuindo seus salários ao longo do ciclo que o movimento da indústria percorre. Nunca devem gastar mais que o mínimo, o necessário para viver. [...] Porém, vimos que as oscilações do salário atingem o trabalhador. Sem a subida momentânea do salário para um patamar acima do mínimo, ele ficaria excluído de todos os progressos da produção, da riqueza, da civilização, ou seja, de toda possibilidade de emancipação. Seria transformado em uma máquina burguesa de calcular, a mesquinharia seria convertida em sistema e a miséria passaria a ter um caráter estacionário e conservador” (Kleine ökonomische Schriften, p. 235).

25. Grundrisse, p. 198 e 202-203.

26. Ibid., p. 199.

27. Ibid., p. 214-215.

28. Também o admitem os economistas burgueses, observa Marx em outra passagem, ao considerar o salário como improdutivo. “Para eles, ser produtivo significa, of course [é claro], produtivo de riqueza. Como o salário é o produto do intercâmbio entre o trabalhador e o capital[...], esses economistas concluem que o trabalhador, nesse intercâmbio, não produz nenhuma riqueza: nem para o capitalista (para quem o pagamento de dinheiro por um valor de uso — pagamento que, nesta relação, constitui a única função do capital — significa uma cessão, e não uma criação, de riqueza, motivo pelo qual procura pagar a menor quantia possível) nem para o trabalhador (pois o salário só lhe proporciona, em maior ou menor grau, meios de subsistência, satisfação de necessidades individuais, mas nunca a forma universal da riqueza, nunca riqueza). Não pode proporcioná-la, já que o conteúdo da mercadoria que [o trabalhador] vende não pode se furtar as leis gerais da circulação, [isto é:] através do valor que ele coloca em circulação, obter, com a mediação da moeda, um equivalente em outro valor de uso, que ele consome. Uma operação desse tipo, of course, nunca pode enriquecer seu executante. Ao fim do processo, ele é conduzido de volta ao ponto em que estava no início” (ibid., p. 201-202).

29. Ibid, p. 214.

 

 

Assim como os modos anteriores de exploração, também o modo dominado pelo capital se baseia no mais-trabalho do produtor direto. A relação capitalista, assim como a servidão ou a escravidão, não seria possível se o trabalho humano gerasse apenas o necessário para sustentar a vida dos produtores diretos. “Se todo o trabalho de um país”, escrevia um autor inglês em 1821, “garantisse apenas o sustento da população, não haveria mais-trabalho, e consequentemente nada que se pudesse acumular como capital.”6 Qualquer exploração, qualquer dominação de classe pressupõem condições naturais relativamente favoráveis e uma produtividade mínima do trabalho humano. Nesse sentido, “pode-se dizer que a mais-valia etc. se baseia em uma lei natural, na produtividade do trabalho humano em seu intercâmbio com a natureza”.7 Do fato de que todo mais-trabalho pressupõe um mais-produto não se deve concluir que a possibilidade do mais-produto crie automaticamente o mais-trabalho. Para isso, devem-se estabelecer relações que façam o produtor trabalhar além do tempo necessário, Mane cita uma carta, reproduzida em novembro de 1857 no Times, de Londres, em que um proprietário de terras nas Antilhas se queixava dos chamados quashees (negros livres da Jamaica).8 Ele descreveu “com grande indignação moral:’ como os quashees, em vez de engajarem-se como trabalhadores assalariados nas plantações de cana-de-açúcar, “contentam-se em produzir o estritamente necessário para seu próprio consumo e, excetuando-se esse ‘valor de uso’, consideram o ócio como a atividade mais importante; não dão a menor importância ao açúcar e ao capital fixo investido nas plantações;9 sorriem com sarcasmo e ironia, nas barbas do proprietário10 ameaçado pela falência; aproveitam até o cristianismo que lhes foi ensinado para legitimar sua, malícia e indolência”. Tais negros “deixaram de ser escravos, não para se transformar em trabalhadores assalariados, mas sim em camponeses autossuficientes”11 que trabalham para consumir o estritamente necessário.12 O capital, como tal, não existe para eles, já que a riqueza autónoma, colocada em sua forma geral, supõe o trabalho forçado direto, como ocorria na escravidão ou na servidão, ou o trabalho forçado mediado, o trabalho assalariado.” “Ao trabalho forçado direto”, Marx acrescenta, “a riqueza não se contrapõe como capital, mas como relação de dominação [...]; [nessa relação], a riqueza só tem valor como fruição, não como riqueza em si mesma; essa relação [ao contrário da relação capitalista] não cria a indústria geral”, a laboriosidade.13 (...)

Há dois métodos fundamentais para aumentar o mais-trabalho. O primeiro é o prolongamento da duração do processo laborativo, ou jornada de trabalho. O outro — sendo fixa a duração da jornada — é o aumento da produtividade, ou a intensificação do rendimento do trabalho.19 No primeiro caso, obtém-se o mais-trabalho estendendo-se o tempo total de trabalho dos produtores; no segundo, abreviando-se o tempo de trabalho necessário. Por isso, Marx chama o primeiro de mais-trabalho absoluto e o segundo, de mais-trabalho relativo. A base da primeira forma “é a fertilidade natural do solo, da natureza’’;20 a da segunda “é o desenvolvimento da produtividade social do trabalho”.21 Em consequência, a primeira forma do mais-trabalho é não só a base da segunda, mas também é muitíssimo mais antiga. É tão velha quanto a exploração do homem pelo homem, e pode ser considerada uma forma de exploração comum a todas as sociedades de classes.22

6. Da publicação anônima The Source and Remedy of the National Difficulties, deduced from Principies of Political Economy, citada nos Grundrisse, p. 301. Cf. também Theorien, III, p. 248.

7. Theorien, III, p. 326. Nas obras econômicas de Marx encontram-se várias passagens que ilustram o problema da “base natural da mais-valia” a partir de aspectos diversos. AB mais importantes são: Theorien, I, p. 18-19 e 122-123; Theorien, II, p. 8 e 408-409; Theorien, III, p. 325 e 442; Grundrisse, p. 230-232 e 534-535; Das Kapital, I, p. 536-537 e 540-541; Das Kapital, III, p. 684-685 e 845-846.

8. A abolição da escravatura na colônia britânica da Jamaica ocorreu em 1833. Sobre isso, ver uma descrição “objetiva” — ou seja, que toma o partido dos fazendeiros — no livro History of the British West Indies, de Sir Alan Burns, 1954, p. 525ss.

9. Em inglês no original: “plantations”.

10. Em inglês no original: “planter’’.

11. Em inglês no original: “self-sustaining peasants”.

12. O fazendeiro das Índias Ocidentais exagerava enormemente em suas cartas. Na realidade, a enorme maioria dos quashees não tinha terras próprias nas quais pudesse satisfazer “seu precário consumo”. Por isso, eram obrigados a trabalhar em troca.de salários de fome nas plantações de seus antigos patrões. Sua situação era tão desesperada que os negros da Jamaica se revoltaram em outubro de 1865, sendo sufocados pelo governo inglês com a maior crueldade. Um eco desse episódio se encontra na troca de cartas entre Marx e Engels, em Briefwechsel, III, p. 352, 254, 355-356 e 474. Nesse contexto, cabe recordar que, na própria Inglaterra, os ex-proprietários de escravos da Jamaica encontraram seu mais apaixonado porta-voz na pessoa de um célebre “romântico anticapitalista”, Thomas Carlyle, Em seu texto Occasional Discourse on Negro Slavery, Carlyle escreveu o seguinte: “Quando um negro, trabalhando cerca de meia hora diária (esta é a estimativa) pode conseguir, com ajuda do sol e do solo, tantas abóboras quantas lhe sejam suficientes, é provável que reaja à ideia de trabalhar mais intensamente. A oferta e a demanda que, segundo diz a ciência, devem agir sobre ele desmoronam diante de um homem assim. Nessas regiões despovoadas ou semipovoadas, o sol se oferece gratuitamente, e o solo fértil quase gratuitamente; meia hora por dia dedicada a eles produzirá abóboras, que são sua ‘demanda’. O negro afortunado liquida rapidamente suas contas com a oferta e a demanda; o branco menos afortunado o faz mais lentamente, nessas regiões tropicais. Ele mesmo não pode trabalhar; e seu vizinho negro, rico em abóboras, não tem pressa em ajudá-lo. Afundado até as orelhas em abóboras, bebendo sucos açucarados, pode escutar a ‘demanda’ do branco menos afortunado e ocupar seu próprio tempo para satisfazê-la. Pagamentos maiores, meu senhor; maiores ainda, pois sua safra não pode esperar; maiores ainda, até que não haja safra alguma capaz de cobrir tais pagamentos!” Mais adiante, Carlyle completou: “Se os quashees não ajudam honradamente, produzindo açúcar, canela e outros nobres produtos das ilhas das índias Ocidentais, para o benefício de toda a humanidade, então digo que tampouco os Poderes [ou seja, Deus, do qual Carlyle se coloca aqui como intérprete] permitirão aos quashees seguir cultivando abóboras para seu próprio benefício. [...] Os deuses querem que, junto com as abóboras, se cultivem espécies e produtos valiosos nas Índias Ocidentais. Foi isso que declararam, ao fazerem as índias Ocidentais: desejam que homens laboriosos e viris ocupem suas índias Ocidentais, e não um gado bípede indolente, mesmo ‘feliz’ com suas abóboras abundantes.” Prossegue o laudator temporis acti Carlyle, dirigindo-se aos negros: “Vós não sois ‘escravos’ agora, nem quero fazê-los retornar a essa condição, se isso puder ser evitado. Mas, decididamente, tereis de servir àqueles que nasceram mais sábios que vós, nasceram como vossos senhores; tereis de servir aos brancos, se é que eles nasceram mais sábios que vós — e quem pode duvidar que isso é verdade? Que haveis de depender deles, meus escuros amigos negros, é e sempre foi a lei do mundo, para vós e para todos os homens; os mais tolos servem aos mais sábios. E só a aflição, a inutilidade e o desencanto acometerão a todos, até que todos se conformem [...]. Digo que não será possível o bem-estar — e, no limite, nenhum ‘estar’ — para vós nem para nós se a lei do Céu não se cumprir. Se ‘escravo’ significa essencialmente ‘aquele que serve arrendado por toda a vida’ — por toda a vida, mediante um contrato de longa vigência e não facilmente anulável —, me pergunto se, em todas as questões humanas, o ‘contrato de longa vigência’ não é precisamente o contrato desejável, uma vez encontrados seus justos termos. Serviçais arrendados pela vida inteira, uma vez tudo feito em termos justos — e não pretendo que tenha sido feito assim no passado — parecem-me preferíveis a serviçais arrendados por um mês, ou por um contrato anulável em um dia. Um serviçal mal situado, condenado a ser nômade, entre ele e seu senhor dificilmente pode surgir uma boa relação.” Citado segundo o livro do norte-americano J. Bigelow, Jamaica in 1850: or, the Effects of Sixteen Years of Freedorn on a Slave Colony, Nova York, 1851, p. 118-119. Sobre a evolução posterior de Carlyle, ver Das Kapital, I, p. 265, nota 90.

13. Grundrisse, p. 231-232.

20. Assim, a possibilidade de mais-trabalho depende, antes de tudo, da produtividade natural do trabalho agrícola. Aí está, segundo Marx, o núcleo de verdade da teoria dos fisiocratas (ibid., p. III, p. 835-836).

21. Theorien, III, p. 442.

22. Essa forma de mais-trabalho desempenhou um papel da maior importância nos sistemas da escravidão e da servidão da gleba. Em troca, nas condições pré-capitalistas, o mais-trabalho relativo só se manifesta esporadicamente. Assim, por exemplo, os latifundiários do Centro e do Leste da Europa que produziam para exportação nos séculos XVII a XIX tentaram, às vezes, impor a seus servos um “trabalho medido” (para o qual existia a expressão austroboêmia “gemessene Robot’; cf. o despacho real de Maria Teresa e José II que proibia essa “Massrobot”). Essas tentativas fracassaram especialmente em virtude do caráter primitivo da técnica agrícola da época. Isso já foi assinalado por Richard Jones em seu Essay on the Distribution of Wealth and on the Sources of Taxation (1831, p. 37-38). A esse respeito, podemos ler nas Theorien: “Jones expõe o seguinte: nas prestações pessoais, a renda só podia aumentar se o trabalho dos servos fosse feito de forma mais hábil e eficaz (mais-valia relativa) — o que, no entanto, enfrentava o obstáculo da incapacidade do latifundiário de fomentar a ciência da agricultura — ou se a quantidade de trabalho exigido fosse aumentada” (Theorien, III, p. 391-392).”

 

 

Depreendem-se daí duas coisas. A primeira: “A mais-valia criada em um ponto demanda a criação de mais-valia em outro ponto, para que haja intercâmbio. [...] Logo, uma condição necessária à produção baseada no capital é a produção de uma esfera da circulação constantemente ampliada, seja porque essa esfera se amplie diretamente, seja porque se criem, dentro dela, mais pontos de produção.[...] Assim como o capital tem a tendência permanente de criar mais-trabalho, também tem a tendência complementar de criar mais pontos de intercâmbio; ou seja, do ponto de vista da mais-valia ou do mais-trabalho absolutos, tem a tendência de produzir mais mais-trabalho como complemento de si mesmo; no fundo,27 trata-se da tendência de a produção baseada no capital dilatar-se.”28 Por isso, “todo e qualquer limite se apresenta [ao capital] como uma barreira a ultrapassar”. Ele busca “submeter todos os momentos da produção ao intercâmbio e abolir a produção de valores de uso diretos, que não entram no processo de intercâmbio. Assim, a produção baseada no capital tende a ocupar o lugar dos modos de produção anteriores a ele.” O comércio aparece ‘‘como pressuposto e momento essencial que engloba a própria produção”, e “a tendência de criar o mercado mundial [está] dada diretamente no próprio conceito de capital”.29

Podemos ler, ademais, nos Grundrisse: para impulsionar a produção de mais-valia relativa, baseada na multiplicação e desenvolvimento das forças produtivas, o capital precisa “ampliar, dentro da circulação, a esfera do consumo, assim como ampliou antes a esfera da produção”. Por isso, o modo de produção capitalista requer: “Primeiro: ampliação quantitativa do consumo existente; segundo: difusão das ‘velhas’ necessidades por espaços mais amplos; terceiro: produção de novas necessidades, com descoberta e criação de novos valores de uso.” Em outras palavras, “o mais-trabalho não deve gerar mero excedente quantitativo; as diferenças qualitativas do trabalho devem aumentar, se diversificar e se multiplicar continuamente. Graças, por exemplo, à duplicação da capacidade produtiva, basta empregar agora um capital de 50 onde antes era necessário um de 100, de modo que ficam livres um capital de 50 e o trabalho necessário correspondente a ele; é preciso criar um novo setor de produção, qualitativamente diferente, para o capital e o trabalho liberados, um setor que produza e satisfaça uma nova necessidade.30 O valor da velha indústria será conservado, criando-se um fundo para uma nova, na qual a relação entre capital e trabalho31 seja recriada em uma forma também nova. Daí decorrem a tendência à exploração da natureza inteira, para descobrir novas propriedades úteis das coisas; o intercâmbio universal dos produtos de todos os climas e países; novas elaborações (artificiais) dos objetos naturais para encontrar novos valores de uso [...], o que exige o máximo desenvolvimento das ciências naturais; a identificação, a criação e a satisfação de novas necessidades procedentes da própria sociedade; o cultivo de todas as propriedades do homem social e a produção deste como um indivíduo portador de múltiplas necessidades, ou seja, cheio de qualidades e relações as mais diversas. Logo, a produção baseada no capital precisa produzir o indivíduo social o mais pleno e universal possível (pois, para aproveitá-lo de modo multifacetado, é necessário que seja capaz de fruir, que tenha um alto grau de cultura).”32

Marx prossegue: “Assim como a produção baseada no capital cria, de um lado, a laboriosidade universal, [...] de outro, cria um sistema de exploração geral das propriedades naturais e humanas, um sistema de utilidade geral,33 utilizando tanto a ciência como todas as propriedades físicas e espirituais; nada parece ser mais elevado, nem justificado em si mesmo, fora dessa esfera da produção social e da troca. Assim, o capital cria a sociedade burguesa e um regime de apropriação universal, pelos membros da sociedade, tanto da natureza como das relações sociais. Daí decorre a grande influência civilizatória do capital;34 sua produção de uma sociedade perante a qual todas as anteriores aparecem como desenvolvimentos meramente locais da humanidade e como uma idolatria da natureza. Pela primeira vez, a natureza é convertida em um objeto para o homem, em coisa útil, apenas; deixa de ser reconhecida como um poder para si; até mesmo o conhecimento teórico de suas leis autônomas torna-se pura astúcia,35 voltada para submeter a natureza às necessidades humanas, como objeto de consumo ou meio de produção. Seguindo essa tendência que lhe é inerente, o capital também passa por cima das barreiras e preconceitos nacionais, assim como sobre a divinização da natureza; liquida a satisfação tradicional das necessidades existentes, muito limitadas, e a reprodução do velho modo de vida. Opera destrutivamente contra tudo isso, é constantemente revolucionário, derruba as barreiras que dificultam o desenvolvimento das forças produtivas, a ampliação das necessidades, a diversidade da produção e a exploração e intercâmbio das forças naturais e espirituais.”36

Isso é tudo sobre as tendências “expansionista” e “civilizatória” do capital, que resultam de uma mesma tendência fundamental: o incremento da mais-valia absoluta e relativa.”

27. Em francês no original: “au found”.

28. Também em outras passagens dos Grundrisse, Marx fala, nesse sentido, de uma “tendência à propagação do capital” (Grundrisse, p. 440-441 e 657). Em O capital essa “tendência à propagação” aparece na p. 536 do primeiro tomo. Cf. Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals (1921), p. 445: “O capitalismo é a primeira forma econômica com capacidade de desenvolver-se mundialmente, uma forma que tende a propagar-se pela Terra e a deslocar todas as demais formas econômicas, pois não tolera nenhuma outra junto dela.” Também Hilferding falava na p. 289 de Das Finanzkapital da “força de propagação dos cartéis”.

29. Grundrisse, p. 311.

30. Recordemos aqui as necessidades recém-criadas, em termos de massa, de automóveis, geladeiras, televisores etc.

31. Em inglês no original: “and labour’’.

32. Grundrisse, p. 312-313.

33. Marx refere-se aqui à “teoria da utilidade” desenvolvida pelos filósofos e economistas dos séculos XVII e XVIII. Ver seu esboço de desenvolvimento da teoria da utilidade em Die deutsche Ideologie, p. 431-437, assim como a nota 63 nas p. 640-641 do primeiro tomo de Das Kapital.

34. Em inglês no original: “Hence the great civilising influence of capital.

35. Marx volta a usar aqui um conceito hegeliano. Lukács escreveu: “Sabe-se que a filosofia da história de Hegel, em sua fase tardia, tem a ‘astúcia da razão’ como seu principal conceito. Traduzida em linguagem coloquial, esta expressão significa o seguinte: embora os homens façam eles mesmos sua história, tendo como verdadeiro motor dos acontecimentos sociais suas paixões e seus impulsos individuais e egoístas, da totalidade dessas paixões surge algo diferente do que desejam e aspiram os homens que agem; esse ‘algo diferente’ não é casual; nele se manifesta a razão da história, o ‘espírito’, segundo a expressão de Hegel” (Der junge Hegel, p. 452).

36. Grundrisse, p. 313. Cf. a conhecida descrição dessa tendência do capitalismo no Manifesto do Partido Comunista (Ausg. Schriften, I, p. 26-27).

 

 

O modo de produção especificamente capitalista se baseia, antes de mais nada, no desenvolvimento das potências sociais do trabalho. Mas o capital só consegue colocar essas potências a seu serviço porque, desde o início, é uma força coletiva; como tal, “não se depara com o trabalho isolado, mas sim o trabalho combinado”.9 Pois a finalidade da produção capitalista não é a produção de valores de uso, mas sim de valores de troca ou, mais exatamente, de mais-valia. O mais-trabalho “deve ser, desde o início, suficientemente grande, para que uma parte dele possa ser novamente usado como capital”; ou seja, o capital deve estar em condições “de pôr em movimento simultâneo uma certa quantidade de capacidade viva de trabalho”.10 Nesse sentido, a acumulação e a concentração de forças de trabalho, o “agrupamento de muitos em torno de um capital”, estão contidos no conceito de capital (não como a acumulação e a concentração do capital “acabado”,11 que aparecem como “oposição à pluralidade de capitais”, a qual pressupõe a esfera da concorrência).12

Nos primórdios da produção capitalista, o capital só coordena os trabalhadores formalmente, pois essa coordenação “se restringe ao produto do trabalho, e não ao próprio trabalho”. Consiste simplesmente em que “o capital contrata diversos tecelões e fiandeiros manuais, autônomos e dispersos em suas próprias moradias [...]. O modo de produção propriamente dito ainda não está sob controle do capital, mas existe previamente a ele. Esses trabalhadores dispersos compartilham apenas a relação de cada um com o capital[...]. Em vez de permutar com muitos, permutam com um único capitalista[...]. O trabalho cooperativo só existe em si, já que todos trabalham para o capital — que, por conseguinte, ocupa a posição central — sem que trabalhem juntos [de fato].”13 Aqui, a concentração ainda se limita a uma concentração dos intercâmbios pelo capital. Logo essa etapa é superada; chega-se a uma situação em que o capital já não emprega os trabalhadores do jeito em que os encontrou, mas os faz cooperar em uma empresa. “O capital se apresenta agora como ação coletiva dos trabalhadores, [...] como vínculo que os mantém juntos e, por isso, cria essa ação”, provocando ao mesmo tempo “a total separação dos trabalhadores em relação às condições da produção” e sua dependência absoluta em relação ao capital.14

No princípio será uma cooperação simples, na forma da atividade de um “número de trabalhadores relativamente grande, no mesmo momento e no mesmo espaço [...], para produzir o mesmo tipo de mercadorias, sob o comando do mesmo capitalista”; quanto ao modo de produzir, uma empresa desse tipo “só se distingue da indústria artesanal de corporações pelo maior número de trabalhadores que o mesmo capital utiliza”.15 Mas o capital não pode limitar-se à mera cooperação dos trabalhadores. Deve ir mais além.

É certo que qualquer produção em maior escala pressupõe uma cooperação desse tipo, e neste sentido a cooperação simples segue sendo a “forma fundamental da produção capitalista”. Mas seria historicamente errôneo considerá-la uma época particular e “estável” do modo de produção capitalista.16 Ao evoluir, a empresa capitalista primitiva logo se vê obrigada a “utilizar de outra maneira a concentração dos trabalhadores no mesmo lugar e a simultaneidade de seus trabalhos”, por exemplo dividindo o trabalho total em determinadas operações parciais e entregando cada uma dessas operações a um grupo específico de trabalhadores. Surge assim a típica manufatura capitalista, como modo de produção industrial. Ela modifica a divisão do trabalho fabril: o que importa não é principalmente a qualidade do produto, como ocorria no artesanato, mas sim a produção em série, por “tratar-se de valor de troca e mais-valia”.

Por isso, a manufatura — primeira forma histórica da produção capitalista — aparece primeiro ali “onde se produz em massa para a exportação, para o mercado externo”, ou seja, em cidades mercantis e costeiras, cuja produção industrial “está orientada naturalmente, por assim dizer, para o valor de troca”. Fora desses grandes entrepostos, a manufatura “não se apodera desde logo da chamada indústria urbana, mas sim da indústria camponesa suplementar — fiação, tecelagem —, trabalhos que requerem menor grau de habilidade profissional e menor formação técnica”; ou então “de setores de produção como as fábricas de vidro, metal, serralherias etc., que desde o princípio demandam maior concentração de força de trabalho [...] e de meios de trabalho etc.”, e que por isso “não podem organizar-se no sistema de corporações”.17

Por mais que a manufatura capitalista primitiva aspire a produzir mais-valia relativa por meio da cooperação e da divisão do trabalho, as leis que a regem não são de modo algum idênticas “às da grande indústria”.18 Apesar de todo o desenvolvimento da divisão do trabalho, seu fundamento permanece sendo a habilidade artesanal e seu “mecanismo específico [...] [é] o trabalhador coletivo formado pela combinação de muitos trabalhadores parciais”.19 Como regra geral, “o trabalho necessário ainda absorve grande parte do tempo de trabalho disponível, e o mais-trabalho de cada trabalhador permanece relativamente pequeno”. Isso é compensado pelo fato de que, na manufatura, “a taxa de lucro é maior; nela, o capital se acumula com mais rapidez, em relação à sua quantidade”20 já existente, do que na grande indústria”. “Por outro lado, essa maior taxa de lucro na manufatura decorre do emprego simultâneo de muitos trabalhadores.” Por isso, o mais-trabalho absoluto predomina na manufatura e nela imprime sua marca.21

Só a indústria moderna, baseada na maquinaria, pode superar essa barreira. Ao contrário da manufatura, na grande indústria a contínua revolução do modo de produzir não se baseia na força de trabalho, mas sim nos meios de trabalho.22 Isso modifica profundamente a relação original entre o trabalhador e esses meios. No lugar do ofício dominado pelo trabalhador aparece agora um “monstro vivo” que “materializa o pensamento científico e passa a exercer, de fato, o papel de coordenação”, dominando todo o processo; a partir daí, o trabalhador individual passa a existir “como apêndice vivo e isolado”.23 Ao contrário da ferramenta simples, a máquina — mais ainda, a maquinaria como sistema automático — “sob nenhum ponto de vista aparece como meio de trabalho do trabalhador individual. Sua differentia specifica não é, como no caso do meio de trabalho, a de transmitir ao objeto a atividade do trabalhador. A atividade se organiza agora de outra maneira: o que se transmite à matéria-prima é o trabalho, ou ação, da própria máquina, à qual [o trabalhador] vigia e impede que se danifique. É diferente do caso do instrumento que o trabalhador manipula e anima, como a uma parte de seu próprio corpo, com sua destreza e atividade, e cujo manejo depende de sua virtuosidade. Dona da habilidade e da força,24 a máquina toma o lugar do trabalhador, ela mesma é a virtuose, possui alma própria, encarnada nas leis da mecânica que agem nela [...]. A atividade do trabalhador, reduzida a uma mera atividade abstrata,25 passa a ser totalmente determinada e regulada pelo movimento da maquinaria, e não o contrário. [...] O processo de produção deixa de ser processo de trabalho, no sentido de ser controlado pelo trabalho como unidade dominante. O trabalho só se apresenta nele como órgão consciente, disperso sob a forma de diversos trabalhadores vivos, presentes em muitos pontos do sistema mecânico; subsumido no conjunto da maquinaria, é apenas um elo de um sistema cuja unidade não está mais localizada nos trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (ativa) [...], diante da qual a força de valorização da capacidade laborativa individual desaparece como algo infinitamente pequeno. [...] O pleno desenvolvimento do capital só ocorre [...] quando o meio de trabalho [...] se apresenta diante do trabalho, no processo de produção, sob a forma de máquinas; então, o processo de produção deixa de estar subordinado à habilidade direta do trabalhador e aparece como aplicação técnica da ciência. A tendência do capital, portanto, é dar à produção um caráter científico, reduzindo o trabalho a um simples momento desse processo.”26

9. Grundrisse, p. 427.

10. Ibid., p. 483. Naturalmente, a aglomeração de muitos trabalhadores em um processo de produção não é uma característica exclusiva e peculiar do capitalismo. Basta lembrar a agricultura em grande escala feita por escravos ou servos da gleba, ou então “o emprego esporádico da cooperação em grande escala” nos empreendimentos industriais do mundo antigo ou da Idade Média. “Certos setores da indústria — por exemplo, o trabalho nas minas — pressupõem a cooperação. Por isso, enquanto não existe a relação capitalista, a mineração se realiza como trabalho forçado, servil ou escravo, vigiado por capatazes. O mesmo ocorre com a construção de estradas etc. Para levar adiante esses trabalhos, o capital não cria a aglomeração e a concentração de trabalhadores; simplesmente as adota.’’ Mas, ao contrário dos sistemas anteriores, o capital “põe em prática a mesma associação de outro modo, à sua maneira, através do intercâmbio com o trabalho livre”. A cooperação em grande escala “não é imposta por meio da violência física direta [...], mas porque as condições da produção são propriedade alheia e existem como associação objetiva, que é o mesmo que acumulação e concentração das condições de produção” (ibid., p. 480, 427 e 484).

11. Cf: nota 132 do capítulo 2.

12. “A acumulação de capital pressupõe que ocorra antes uma acumulação que constitui o capital, que integra sua determinação conceitual; de concentração praticamente não podemos falar, já que esta se distingue por ocorrer entre uma pluralidade de capitais; quando se fala apenas do capital, a concentração coincide com a acumulação ou com o conceito do capital. Ainda não constitui uma determinação especial. Entretanto, desde o início o capital se defronta na condição de uno, ou de unidade, com os trabalhadores, estes como pluralidade. Assim, [...] aparece como a concentração dos trabalhadores, como uma unidade externa a estes. Nesse sentido, a concentração está presente no conceito de capital[...]” (ibid., p. 484).

13. Ibid., p. 480.

14. Ibid., p. 481.

15. Das Kapital, I, p. 337.

16. Ibid., p. 351.

17. Grundrisse, p. 410-411.

18. Theorien, II, p. 586.

19. Das Kapital, I, p. 386 e 365.

20. Em inglês no original: “amount”.

21. Grundrisse, p. 482.

22. Das Kapital, I, p. 388.

23. Grundrisse, p. 374.

24. Referindo-se às formas pré-capitalistas de cooperação, Marx diz: “Quanto mais a produção ainda se baseia no trabalho manual, na aplicação da força muscular etc., em suma, no esforço e no trabalho físicos dos indivíduos, tanto mais o aumento da capacidade produtiva depende da colaboração de grandes massas.” (“Daí decorre o recrutamento brutal do povo no Egito, da Etrúria, na Índia, para realizar construções obrigatórias e trabalhos públicos forçados.’’) No caso do “artesanato semi-artístico”, a situação era outra: tratava-se de contar com a “destreza do indivíduo, em trabalho não coordenado”. O capital, porém, “combina o trabalho de massas com a destreza, mas de tal modo que o primeiro perde seu caráter essencialmente físico e a destreza não está colocada no trabalhador, mas na máquina, na factory [fábrica] que [...] atua como um todo. O espírito social do trabalho adquire uma existência objetiva independente dos trabalhadores individuais” (ibid., p. 427-428).

25. No sentido de que a atividade do trabalhador assalariado “se converte cada vez mais em [...] atividade [...] puramente mecânica, e portanto indiferente, indiferente à. sua forma particular” (ibid., p. 204). Cf. o capítulo 12 deste trabalho, p. 178.

26. Grundrisse, p. 584-587.

 

 

Em outras palavras: do ponto de vista da investigação realizada até aqui, podíamos e devíamos supor que, antes de ingressar no mercado como comprador de força de trabalho e de meios de produção, “o capitalista e proprietário se convertera em possuidor do dinheiro graças a alguma forma de acumulação primitiva que teve lugar independentemente da exploração de trabalho alheio não pago”; isso quer dizer que a apropriação de trabalho alheio pelo capitalista foi precedida pelo intercâmbio de mercadorias pertencentes a ele e por ele lançadas em circulação, como “valores que não tiveram origem nem em seu intercâmbio com o trabalho vivo nem em seu comportamento como capital diante do trabalho”.3 Os economistas burgueses se agarram nessa “acumulação primitiva” para afirmar que a valorização do capital, que consiste em apropriação de trabalho não pago, está “em harmonia com as leis gerais da propriedade, tal como elas são proclamadas pela própria sociedade capitalista”. Eles dizem: independentemente de como as coisas ocorrem hoje, os capitalistas ganharam seu capital “trabalhando”; logo, é natural que reclamem uma recompensa pelos “serviços produtivos” que este capital presta.

Esse argumento apresenta várias falhas. Em primeiro lugar, sabemos como a gênese do capital se baseou em saques (por exemplo, a expropriação de camponeses), trapaças, dominações, em suma, violências4 e todo tipo de procedimentos que nada têm a ver com o método pacífico de acumular o que se “ganha trabalhando”. (Se o capitalismo se tivesse limitado a métodos pacíficos, ainda não teria saído da infância.) Em segundo lugar, os economistas burgueses incorrem em confusão, ao misturar as condições do devir do capital com “as condições de sua realização atual. Confundem os momentos em que o capitalista pratica a apropriação como um não-capitalista — porque ainda não se tornou propriamente capitalista — com as condições5 nas quais ele pratica a apropriação como capitalista”. Esquecem justamente que a acumulação de capital, que precedeu o trabalho e não teve origem nele, integra as condições que são “etapas históricas anteriores de seu devir, assim como os processos pelos quais a Terra passou, desde um amálgama de fogo e vapores até sua forma atual, se situam aquém de sua existência acabada como Terra. [...] É claro que capitalistas individuais sempre podem surgir graças ao entesouramento.6 [...] Mas o tesouro7 não se converte em capital, a não ser mediante a exploração do trabalho.”8 Como diz Marx em O capital, devem ser relegadas à condição de fábulas as tentativas dos apologistas de defender que “o eterno direito do capital aos frutos do trabalho alheio” tem origem na “propriedade do trabalho” e nas “simples e ‘justas’ leis de intercâmbio de equivalentes”. Logo se verá como a afirmação de Marx é correta, especialmente se levarmos em conta o processo de reprodução do capital, em vez de enfocarmos um processo isolado de produção.

Vimos que, como resultado do processo original de produção, o capitalista se apropria de mais-trabalho, que existe em primeiro lugar sob a forma de mais-produto e deve ser transformado em dinheiro. Marx só analisou as condições de realização do mais-produto, assim como as da realização em geral, na seção seguinte da obra, que trata do processo de circulação do capital. Por isso, devemos supor aqui que o capitalista consegue passar adiante sua mercadoria, e que a vende por seu valor. Assim, a mais-valia se realiza, é convertida em dinheiro. Mas este dinheiro “já é agora em si capital” e “como tal, mando sobre novo trabalho”.9 Também este novo capital (que Marx chama de “capital excedente” ou “capital adicional”, para distingui-lo do capital original, do qual é fruto) deve, é claro, valorizar-se, ou seja, retornar ao processo de produção. Porém, as premissas desse segundo processo diferem muito das do primeiro.

Em primeiro lugar, o capital adicional é mais-valia capitalizada. “Desde sua origem, não contém nem um só átomo de valor que não decorra de trabalho alheio não pago.”10 Em consequência, as formas específicas que deve assumir para valorizar-se mais uma vez — a saber, as de capital constante e de capital variável — também são formas específicas do mais-trabalho. Antes, quando se considerava o ato original da produção, a ação do capital é que parecia tornar disponíveis as condições objetivas de produção — matérias-primas, instrumentos e meios de vida para os trabalhadores — “em quantidades que possibilitassem a realização do trabalho vivo não só como trabalho necessário, mas como mais-trabalho”.11 Agora, no entanto, “desapareceu a aparência — ainda visível na primeira análise do processo de produção — de que o capital, a partir da circulação, produz algum valor. [...] Todos os elementos que se contrapunham à força viva de trabalho como poderes alheios, exteriores [...], estão colocados agora como seu próprio produto e seu resultado.’’12

Isso não é tudo. Também a separação absoluta entre propriedade e trabalho, inscrita na essência das relações capitalistas,13 mas que do ponto de vista até aqui considerado só se revelava como um pressuposto histórico dessa relação, “apresenta-se agora como produto do próprio trabalho, como objetivação, materialização de seus elementos”. Até agora era possível supor que o capital se convertia em um poder que dominava o trabalho graças, precisamente, à “acumulação primitiva” realizada por seu proprietário. Esta ilusão desaparece quando consideramos o ciclo do capital adicional, ou seja, o processo de reprodução. Agora fica claro que a força de trabalho se defronta com condições objetivas de produção que ela mesma criou e que assumem a forma de capital, de modo que o processo de realização do trabalho se converte simultaneamente no processo de sua desrealização.14 Colocada dentro do processo produtivo, a força de trabalho “não apenas produz as condições do trabalho necessário como condições que pertencem ao capital; também a possibilidade de criação de valor, a valorização que existe nela como possibilidade, agora existe como mais-valia, mais-produto, em uma palavra, como capital. [...] O trabalhador não só produziu a riqueza alheia e a própria pobreza, mas também a relação entre essa riqueza [...] e ele mesmo como pobreza”, ou seja, a relação do capital.15 E “esta relação social, relação de produção, apresenta-se in fact como um resultado ainda mais significativo desse processo do que seus resultados materiais”.16

A investigação realizada até aqui nos conduzia ao seguinte: antes de mais nada, devemos distinguir as condições do capital em devir, aquele que está em processo de transformar-se em capital, e as condições do capital “pronto e acabado”.17 Estando historicamente desenvolvido, o capital engendra suas condições de existência “não como condições de sua gênese, mas como resultados de sua existência. Já não precisa de pressupostos para se desenvolver; ele mesmo está pressuposto; partindo de si, cria os pressupostos de sua conservação e crescimento.”18

Marx prossegue: “Para a formação do capital adicional I, se assim denominarmos o capital adicional oriundo do processo original de produção, [...] é necessário que o capitalista possua valores, uma parte dos quais ele troca formalmente pela força viva de trabalho. Dizemos formalmente porque o trabalho vivo tem de restituir e substituir esses valores intercambiados. [...] Imaginemos agora que o capital adicional, relançado no processo de produção, realiza de novo sua mais-valia no processo de intercâmbio e reaparece como um novo capital adicional no começo de um terceiro processo de produção. Este capital adicional II tem pressupostos diferentes dos do capital adicional I. Os pressupostos do capital adicional I eram os valores pertencentes ao capitalista e lançados por ele em circulação [...]. O pressuposto do capital adicional II é a própria existência do capital adicional I, ou seja, o fato de que o capitalista já se apoderou antes de trabalho alheio, sem intercâmbio. Isso lhe permite recomeçar o processo, indefinidamente [...]. A apropriação do trabalho alheio no passado se apresenta como precondição para uma nova apropriação de trabalho alheio no presente.[...] Que o capitalista já se encontre confrontado, como capital, ao trabalho vivo é a única condição para que não só ele se conserve como capital, mas também para que, como capital em crescimento, se aproprie de cada vez mais trabalho alheio, sem equivalente. Em outras palavras: amplia-se o poder do capitalista, sua existência como capital confrontada à força viva de trabalho;19 por outro lado, a força viva de trabalho se reproduz em sua indigência desprovida de substância e subjetividade, apenas como força viva de trabalho.”20

3. Das Kapital, I, p. 597, e Grundrisse, p. 360.

4. Grundrisse, p. 364, e Das Kapital I, p. 752.

5. Em inglês no original: “very conditiont.

6. Em inglês no original: “hoarding”.

7 Em inglês no original: “hoartf”.

8. Grundrisse, p. 363-364.

9. Ibid., p. 272.

10. Das Kapital, I, p. 661.

11. Grundrisse, p. 356. Aqui se abstrai, evidentemente, a parte da mais-valia consumida pelo próprio capitalista.

12. Ibid., p. 357 e 355.

13. Cf. p. 177-178 deste trabalho.

14. Como exemplo das peculiaridades do modo expositivo dos Grundrisse e de sua terminologia “hegeliana” que frequentemente parece confusa, reproduziremos aqui toda a passagem da qual foi extraída a primeira frase citada: “Do ponto de vista do trabalho, sua atividade no processo de produção aparece dessa maneira: o trabalho afasta de si mesmo sua realização em condições objetivas, como realidade alheia; ao mesmo tempo e por conseguinte, coloca-se como força de trabalho privada de substância, dotada apenas de necessidades e defrontada com esta sua realidade alienada, que não lhe pertence para si, mas como mero ser para outro, e portanto também como ser-de-outro modo, ou ser do outro, oposto a si mesmo. Este processo de realização caminha lado a lado com o processo de ‘desrealização’ do trabalho. O processo aparece objetivamente, mas coloca esta objetividade como seu próprio não ser ou como o ser de seu não-ser: do capital. O trabalho retorna a si mesmo como mera possibilidade de criar valores ou valorização, pois toda a riqueza real, o mundo do valor real e portanto as condições reais de sua própria realização o enfrentam como existências autônomas” (ibid., p. 357-358).

15. Cf. Das Kapital, I, p. 607: “O processo capitalista de produção, considerado em sua interdependência ou como processo de reprodução, não só produz mercadorias, não só produz mais-valia, mas produz e reproduz a própria relação capitalista: de um lado o capitalista, de outro o assalariado.”

16. Grundrisse, p. 356-357 e 362. Cf. ibid., p. 412: “A produção de capitalistas e de trabalhadores assalariados é então um produto fundamental do processo de valorização do capital” A economia usual, que só visualiza as coisas produzidas, se esquece disso completamente.

17. Cf. nota 132 do capítulo 2.

18. Grundrisse, p. 363 e 364. “É preciso recordar que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem a partir do nada, nem do ar, nem das entranhas que o Espírito impõe a si mesmo; elas se desenvolvem no interior da produção e das relações de propriedade tradicionais, contrapondo-se a elas. Se, no sistema burguês acabado, cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômica burguesa, e assim cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, o mesmo ocorre em todo sistema orgânico. Este mesmo sistema orgânico, como totalidade, tem seus pressupostos. E seu desenvolvimento até alcançar a totalidade plena consiste precisamente [em que] subordina todos os elementos da sociedade, ou em que cria os órgãos que ainda lhe fazem falta a partir daquela. Assim, chega a ser historicamente uma totalidade. O devir na direção desta totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento” (Grundrisse, p. 189).

19. “No capital adicional [...] produzido pelo trabalho está implícita ao mesmo tempo a necessidade real de novo mais-trabalho, e deste modo o próprio capital adicional constitui a possibilidade real de novo mais-trabalho e, ao mesmo tempo, de novo capital adicional. Vê-se aqui como o mundo objetivo da riqueza se amplia progressivamente pela ação do trabalho e se defronta com ele como um poder alheio; como alcança uma existência cada vez mais ampla e plena, de tal modo que, em relação aos valores produzidos, [...] a subjetividade da força viva de trabalho constitui um contraste cada vez mais rigoroso” (ibid., p. 359).

20. Ibid., p. 360-361.

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