terça-feira, 18 de maio de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte V), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 894

Sinopse: Ver Parte I



Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida.

Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (...) Mas tão logo entra em jogo a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos.

Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção, como no caso, por exemplo, do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.

A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os elementos daquela.

O produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou vassalo de outra pessoa. Para converter-se em livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde haja mercado para ela, ele tinha, além disso, de emancipar-se do jugo das corporações, de seus regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo.

Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram, por sua vez, de deslocar não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas também os senhores feudais, que detinham as fontes de riquezas. Sob esse aspecto, sua ascensão se apresenta como o fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas colocavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas se os cavaleiros da indústria desalojaram os cavaleiros da espada, isso só foi possível porque os primeiros exploraram acontecimentos nos quais eles não tinham a menor culpa. Sua ascensão se deu por meios tão vis quanto os que outrora permitiram ao liberto romano converter-se em senhor de seu patronus [patrono].

O ponto de partida do desenvolvimento que deu origem tanto ao trabalhador assalariado como ao capitalista foi a subjugação do trabalhador. O estágio seguinte consistiu numa mudança de forma dessa subjugação, na transformação da exploração feudal em exploração capitalista. Para compreendermos sua marcha, não precisamos remontar a um passado tão remoto. Embora os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente, nos séculos XIV e XV, em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só tem início no século XVI. Nos lugares onde ela surge, a supressão da servidão já está há muito consumada, e o aspecto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito já empalideceu.

Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássicab 189.

 

2. Expropriação da terra pertencente à população rural

Na Inglaterra, a servidão havia praticamente desaparecido na segunda metade do século XIV. A maioria da população190 consistia naquela época, e mais ainda no século XV, em camponeses livres, economicamente autônomos, qualquer que fosse o rótulo feudal a encobrir sua propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o arrendatário livre tomara o lugar do bailiff (bailio), ele mesmo servo em outras épocas. Os assalariados agrícolas consistiam, em parte, em camponeses que empregavam seu tempo livre trabalhando para os grandes proprietários, em parte, numa classe de trabalhadores assalariados propriamente ditos, classe essa independente e pouco numerosa, tanto em termos relativos como absolutos. Ao mesmo tempo, também estes últimos eram, de fato, camponeses economicamente autônomos, pois, além de seu salário, recebiam terras de 4 ou mais acres para o cultivo, além de cottages. Ademais, junto com os camponeses propriamente ditos, desfrutavam das terras comunais, sobre as quais pastava seu gado e que lhes forneciam também combustíveis, como lenha, turfa etc.191 Em todos os países da Europa, a produção feudal se caracteriza pela partilha do solo entre o maior número possível de vassalos. O poder de um senhor feudal, como o de todo soberano, não se baseava na extensão de seu registro de rendas, mas no número de seus súditos, e este dependia da quantidade de camponeses economicamente autônomos192. Isso explica por que o solo inglês, que depois da conquista normanda se dividiu em gigantescos baronatos, um único dos quais costumava incluir 900 dos antigos senhorios anglo-saxônicos, era entremeado de pequenas propriedades camponesas, apenas aqui e ali interrompidas por domínios senhoriais maiores. Tais condições, somadas ao florescimento simultâneo das cidades, que caracteriza o século XV, permitiam aquela riqueza popular que o chanceler Fortescue descreve com tanta eloquência em seu Laudibus Legum Angliae, mas excluíam a riqueza capitalista.

O prelúdio da revolução que criou as bases do modo de produção capitalista ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI. Uma massa de proletários absolutamente livres foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos feudais, que, como observou corretamente sir James Steuart, “por toda parte lotavam inutilmente casas e castelos”c. Embora o poder real, ele mesmo um produto do desenvolvimento burguês, em sua ânsia pela conquista da soberania absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos, ele não foi, de modo algum, a causa exclusiva dessa dissolução. Ao contrário, foi o grande senhor feudal que, na mais tenaz oposição à Coroa e ao Parlamento, criou um proletariado incomparavelmente maior tanto ao expulsar brutalmente os camponeses das terras onde viviam e sobre as quais possuíam os mesmos títulos jurídicos feudais que ele quanto ao usurpar-lhes as terras comunais. O impulso imediato para essas ações foi dado, na Inglaterra, particularmente pelo florescimento da manufatura flamenga de lã e o consequente aumento dos preços da lã. A velha nobreza feudal fora aniquilada pelas grandes guerras feudais; a nova nobreza era uma filha de sua época, para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes. Sua divisa era, por isso, transformar as terras de lavoura em pastagens de ovelhas. Em sua Description of England. Prefixed to Holinshed’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos pequenos camponeses significa a ruína do campo. “What care our great incroachers!” (Mas o que isso importa a nossos grandes usurpadores?) As habitações dos camponeses e os cottages dos trabalhadores foram violentamente demolidos ou abandonados à ruína.

“Se consultamos” – diz Harrison – “os inventários mais antigos de cada domínio senhorial, vemos que inúmeras casas e pequenas propriedades camponesas desapareceram, que o campo alimenta muito menos gente, que muitas cidades estão arruinadas, embora algumas novas floresçam [...]. Eu teria algo a contar sobre cidades e aldeias que foram destruídas para ceder lugar a pastagens de ovelhas e onde só restaram as casas dos antigos senhores.”

As queixas dessas velhas crônicas são invariavelmente exageradas, mas ilustram exatamente a impressão que a revolução nas condições de produção provocou nos homens daquela época. Uma comparação dos escritos do chanceler Fortescue com os de Thomas More evidencia o abismo entre os séculos XV e XVI. De sua idade de ouro, como diz Thornton corretamente, a classe trabalhadora inglesa decaiu, sem qualquer fase de transição, à idade de ferro.

A legislação se aterrorizou com esse revolucionamento. Ela ainda não havia alcançado aquele ápice civilizacional em que a “wealth of the nation”, isto é, a formação do capital e a exploração e empobrecimento inescrupulosos das massas populares são considerados a última Thule de toda a sabedoria de Estado. Em sua história de Henrique VII, diz Bacon:

“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transformação de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas etc.), “fáceis de vigiar com poucos pastores; e as propriedades arrendadas temporária, vitalícia ou anualmente (dos quais vivia grande parte dos yeomend) foram transformados em domínios senhoriais. Isso provocou uma decadência do povo e, em decorrência, uma decadência das cidades, igrejas, dízimos [...]. Na cura desse mal, foi admirável, naquela época, a sabedoria do rei e do Parlamento [...]. Adotaram medidas contra essa usurpação que despovoava os domínios comunais (depopulating inclosures) e o despovoador regime de pastagens (depopulating pasture) que o acompanhava.”

Uma lei de Henrique VII, de 1489, c. 19e, proibiu a destruição de toda casa camponesa que tivesse pelo menos 20 acres de terra. Numa lei 25f, de Henrique VIII, confirma-se a disposição legal anterior. Diz-se, entre outras coisas, que

“muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de ovelhas, concentram-se em poucas mãos, provocando um aumento considerável das rendas fundiárias e, ao mesmo tempo, uma grande diminuição das lavouras (tillage) e a demolição de igrejas e casas, de maneira que enormes massas populares se veem impossibilitadas de sustentar a si mesmas e a suas famílias.”

A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades rurais arruinadas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens etc. Um decreto de 1533 se queixa de que um número considerável de proprietários possuíam 24 mil ovelhas e restringe seu número a 2 mil193. As queixas populares e a legislação, que desde Henrique VII, e durante 150 anos, condenou a expropriação dos pequenos arrendatários e camponeses, foram igualmente infrutíferas. (...)

O que o sistema capitalista exigia, ao contrário, era uma posição servil das massas populares, a transformação destas em trabalhadores mercenários e a de seus meios de trabalho em capital. (...)

Um novo e terrível impulso ao processo de expropriação violenta das massas populares foi dado, no século XVI, pela Reforma e, em consequência dela, pelo roubo colossal dos bens da Igreja. Na época da Reforma, a Igreja católica era a proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos monastérios etc. lançou seus moradores no proletariado. Os próprios bens eclesiásticos foram, em grande parte, presenteados aos rapaces favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a especuladores, sejam arrendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa os antigos vassalos hereditários e açambarcaram suas propriedades. A propriedade, garantida por lei aos camponeses empobrecidos, de uma parte dos dízimos da Igreja foi tacitamente confiscada195. Pauper ubique jacetg, exclamou a rainha Elizabeth após um giro pela Inglaterra. No 43º ano de seu reinado não havia mais como impedir o reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a introdução dos impostos de beneficência. (...)

A propriedade da Igreja constituía o baluarte religioso das antigas relações de propriedade da terra. Com a ruína daquela, estas não podiam se manter198.

Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos arrendatários. Ela constituíra a força principal de Cromwell e, como reconhece o próprio Macaulay, era superior aos sórdidos fidalgos bêbados e seus lacaios, os curas rurais, obrigados a desposar a “criada favorita” do senhor. Os assalariados rurais ainda eram coproprietários da propriedade comunal. Em torno de 1750, a yeomanry havia desaparecido199 e, nas últimas décadas do século XVIII, o último resquício de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos aqui as forças motrizes puramente econômicas da revolução agrícola. O que procuramos são os meios violentos por ela empregados.

Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários instituíram legalmente uma usurpação, que em todo o continente também foi realizada sem formalidades legais. Eles aboliram o regime feudal da propriedade da terra, isto é, liberaram esta última de seus encargos estatais, “indenizaram” o Estado por meio de impostos sobre os camponeses e o restante da massa do povo, reivindicaram a moderna propriedade privada de bens, sobre os quais só possuíam títulos feudais, e, por fim, outorgaram essas leis de assentamento (laws of settlement), que, mutatis mutandis, tiveram sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro Boris Godunov sobre os camponeses russosi.

A “Glorious Revolution” (Revolução Gloriosa)j conduziu ao poder, com Guilherme III de Orange200, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privados201. Tudo isso ocorreu sem a mínima observância da etiqueta legal. O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento, somado ao roubo das terras da Igreja – quando estas já não haviam sido tomadas durante a revolução republicana –, constituem a base dos atuais domínios principescos da oligarquia inglesa202. Os capitalistas burgueses favoreceram a operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo puramente comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar a oferta de proletários absolutamente livres, provenientes do campo etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era aliada natural da nova bancocracia, das altas finanças recém-saídas do ovo e dos grandes manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas. A burguesia inglesa atuava em defesa de seus interesses tão acertadamente quanto os burgueses suecos, que, ao contrário, em aliança com seu baluarte econômico, o campesinato, apoiaram os reis na retomada violenta das terras da Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde nos reinados de Carlos X e Carlos XI).

A propriedade comunal – absolutamente distinta da propriedade estatal anteriormente considerada – era uma antiga instituição germânica, que subsistiu sob o manto do feudalismo. Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI. Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados203. (...)

O roubo sistemático da propriedade comunal, ao lado do roubo dos domínios estatais, ajudou especialmente a inchar aqueles grandes arrendamentos, que, no século XVIII, eram chamados de fazendas de capital205 ou arrendamentos de mercador206, e a “liberar” a população rural para a indústria, como proletariado. (...)

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.”

b Na edição francesa, no lugar das três últimas frases, lê-se: “Essa expropriação só se realizou de maneira radical na Inglaterra: por isso, esse país desempenhará o papel principal em nosso esboço. Mas todos os outros países da Europa ocidental percorreram o mesmo caminho, ainda que, segundo o meio, ele mude de coloração local, ou se restrinja a um círculo mais estreito, ou apresente um caráter menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente”, Karl Marx, Le Capital, cit., p. 315. (N. T.)

189 A Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, foi também o primeiro país a manifestar a dissolução das relações de servidão. O servo se emancipa, aqui, antes de ter garantido para si, por prescrição, qualquer direito à terra. Assim, sua emancipação o transforma imediatamente num proletário absolutamente livre, que, no entanto, já encontra seus novos senhores nas cidades, em sua maior parte originárias da época romana. Quando, no final do século XV, a revolução do mercado mundial acabou com a supremacia comercial do norte da Itália, surgiu um movimento em sentido contrário. Os trabalhadores urbanos foram massivamente expulsos para o campo e lá deram um impulso inédito à pequena agricultura, exercida sob a forma da horticultura. [Revolução do mercado mundial: Marx refere-se aqui às consequências econômicas das grandes descobertas geográficas do fim do século XV. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, das ilhas das Índias Ocidentais e do continente americano provocou uma enorme expansão no comércio mundial. As cidades comerciais do norte da Itália (Gênova, Veneza, entre outras) perderam sua predominância. Em contrapartida, o papel principal no comércio mundial passou a ser exercido por Portugal, Holanda, Espanha e Inglaterra, países favorecidos por sua localização geográfica, com acesso direto ao Oceano Atlântico. (N. E. A. MEW)]

190 “Os pequenos proprietários, que cultivavam suas próprias terras com as próprias mãos e desfrutavam de um modesto bem-estar [...] constituíam então uma parte muito mais importante da nação do que em nossos dias [...]. Não menos que 160 mil proprietários, que, com suas famílias, deviam constituir mais de 1/7 da população total, viviam do cultivo de suas pequenas parcelas freehold” (freehold significa propriedade plenamente livre). “O rendimento médio desses pequenos proprietários fundiários [...] é avaliado entre £60 e £70. Calculou-se que o número daqueles que cultivavam sua própria terra era maior que o dos arrendatários que trabalhavam terras alheias”, Macaulay, Hist. of England (10. ed., Londres, 1854), v. I, p. 333-4. Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da população inglesa era formada de agricultores (ibidem, p. 413). – Cito Macaulay porque, como falsificador sistemático da história, ele “poda” tais fatos o máximo que consegue.

191 Não se deve esquecer jamais que o próprio servo era não apenas proprietário, ainda que sujeito a tributos, da parcela de terra pertencente a sua casa, como também coproprietário das terras comunais. “Le paysan y [...] est serf” [“Lá” (na Silésia) “o camponês é servo”]. Não obstante, esses serfs [servos] possuíam bens comunais. “Até agora não se conseguiu induzir os silesianos à partilha das terras comunais, enquanto no Novo Margraviato [Neumark] não há praticamente nenhuma aldeia em que essa partilha não se tenha efetuado com enorme êxito”, Mirabeau, De la Monarchie Prussienne (Londres, 1788), t. II, p. 125-6.

192 O Japão, com sua organização puramente feudal da propriedade fundiária e sua desenvolvida economia de pequena agricultura, fornece um quadro muito mais fiel da Idade Média europeia que todos os nossos livros de História, ditados em sua maior parte por preconceitos burgueses. É realmente muito cômodo ser “liberal” à custa da Idade Média.

c James Steuart, An Inquiry into the Principles of Political Economy, cit., p. 52. (N. E. A. MEW)

d Yeomen, yeomanry, assim se chamava um extrato de pequenos camponeses ingleses, não sujeitos a prestações feudais, que desapareceram aproximadamente em meados do século XVIII, dando lugar aos pequenos proprietários fundiários. Arqueiros habilidosos, os yeomen formavam o núcleo do exército inglês antes da introdução das armas de fogo. Marx escreveu que, durante a revolução inglesa do século XVII, os yeomen constituíam a principal força militar de Oliver Cromwell. Na versão francesa d’O capital, Marx identifica a yeomanry com o “orgulhoso campesinato de Shakespeare”, numa provável referência às palavras de Ricardo III a seu exército: “À luta, cavalheiros da Inglaterra! À luta, bravos yeomen!”. Shakespeare, A tragédia do rei Ricardo III, ato V, cena 3. (N. T.)

e A 19ª lei promulgada naquele ano. (N. E. A. MEW)

f Uma lei promulgada no 25º ano do reinado de Henrique VIII. (N. E. A. MEW)

193 Em sua Utopia, Thomas More fala de um estranho país, onde “as ovelhas devoram os homens” (trad. Robinson, Arber, Londres, 1869, p. 41).

195 “O direito dos pobres a participar nos dízimos da Igreja é estabelecido pelos antigos estatutos”. Tuckett, A History of the Past and Present State of the Labouring Population, cit., v. II, p. 804-5.

g “O pobre está por toda parte subjugado.” A citação da rainha Elizabeth I refere-se ao verso de Ovídio, em Fastos, I, 218: “Hoje em dia nada importa, a não ser o dinheiro; a riqueza gera honras, amizades; o pobre está por toda parte subjugado”. (N. T.)

198 O sr. Rogers, embora fosse então professor de economia política na Universidade de Oxford, sede da ortodoxia protestante, chama a atenção, em seu prefácio à History of Agriculture, para a pauperização da massa do povo pela Reforma.

199 A Letter to Sir T. C. Bunbury, Baronet: on the High Price of Provisions, by a Suffolk Gentleman (Ipswich, 1795), p. 4. Até mesmo o fanático defensor do sistema de grandes arrendamentos, o autor [J. Arbuthnot] de Inquiry into the Connection of Large Farms etc. (Londres, 1773), p. 139, diz: “O que mais deploro é a perda de nossa yeomanry, esse conjunto de homens que, na realidade, sustentava a independência desta nação, e lamento ver agora suas terras nas mãos de lords monopolizadores, sendo arrendadas a pequenos fazendeiros, que obtêm seus arrendamentos sob tais condições que são pouco mais que vassalos prontos a serem convocados em qualquer situação adversa”.

i Em 1597, sob o domínio de Fiódor Ivanovitch (1584-1598), mas sendo Bóris Godunov o governante de fato da Rússia, foi promulgado um édito de acordo com o qual os camponeses fugitivos seriam procurados por 5 anos e, depois de recapturados, seriam devolvidos a seus antigos senhores. (N. E. A. MEW)

j Assim é chamado golpe de Estado que, em 1689, derrubou o rei James II e o substituiu por Guilherme III de Orange, consolidando, assim, a monarquia constitucional. (N. T.)

200 Sobre a moral privada desse herói burguês, veja-se, entre outras coisas: “A grande concessão de terras a lady Orkney, na Irlanda, em 1695, é um exemplo público da afeição do rei e da influência da referida lady [...]. Os inestimáveis serviços de lady Orkney consistiram supostamente em – foeda labiorum ministeria [obscenos serviços labiais]”, em Sloane Manuscript Collection, conservada no Museu Britânico, n. 4.224. O manuscrito é intitulado: The Charakter and Behaviour of King William, Sunderland etc. as Represented in Original Letters to the Duke of Shrewsbury from Somers, Halifax, Oxford, Secretary Vermon etc. Repleto de curiosidades.

201 “A alienação ilegal dos bens da Coroa, em parte por venda, em parte por doação, constitui um capítulo escandaloso da história inglesa [...] uma fraude gigantesca contra a nação (gigantic fraud on the nation)”, F. W. Newman, Lectures on Political Economy (Londres, 1851), p. 129-30. {Pode-se ver detalhadamente como os atuais latifundiários tomaram posse de suas terras em [N. H. Evans] Our Old Nobility. By Noblesse Oblige (Londres, 1879). (F. E.)}

202 Leia-se, por exemplo, o panfleto de E. Burke sobre a casa ducal de Bedford, cujo rebento é lord John Russell “the tomtit of liberalism” [o rouxinol do liberalismo].

203 “Os arrendatários proíbem os inquilinos de casebres de manter qualquer ser vivo além deles mesmos, sob o pretexto de que a posse de gado ou aves os levaria a furtar ração dos celeiros. Dizem também: mantende os cottagers na pobreza e os conservareis laboriosos. A realidade, porém, é que assim os arrendatários usurpam integralmente os direitos sobre as terras comunais”, A Political Enquiry into the Consequences of Enclosing Waste Lands (Londres, 1785), p. 75.

205 “Capital farms”, Two Letters on the Flour Trade and the Dearness of Corn. By a Person in Business (Londres, 1767), p. 19-20.

206 “Merchant-farms”, An Inquiry into the Present High Prices of Provision (Londres, 1767), p. 111, nota. Esse belo escrito, publicado anonimamente, é de autoria do reverendo Nathaniel Forster.

 

 

“Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes. (...)

Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.

Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva.”

 

 

“Em todas as esferas da vida social, a parte do leão cabe ao intermediário. Na área econômica, por exemplo, quem fica com a nata dos negócios são os financistas, operadores da Bolsa, negociantes e pequenos comerciantes; nos pleitos civis, o advogado depena as partes; na política, o representante vale mais que os eleitores, o ministro mais que o soberano; na religião, Deus é empurrado para o segundo plano pelo “mediador”, e este, por sua vez, é deixado para trás pelos padres, que são, por sua vez, os intermediários imprescindíveis entre o bom pastor e suas ovelhas.”

 

 

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa sequência mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica.

Sobre o sistema colonial cristão, afirma W. Howitt, um homem que faz do cristianismo uma especialidade:

“As barbaridades e as iníquas crueldades perpetradas pelas assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que conseguiram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal e em nenhuma raça, por mais selvagem e inculta, por mais desapiedada e inescrupulosa que fosse.”241

241 William Howitt, Colonization and Christianity. A Popular History of the Treatment of the Natives by the Europeans in all their Colonies (Londres, 1838), p. 9. Sobre o tratamento dado aos escravos, uma boa compilação encontra-se em Charles Comte, Traité de la législation (3. ed., Bruxelas, 1837). É preciso estudar essa questão em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador lá onde tem plena liberdade para moldar o mundo segundo sua própria imagem.

 

 

Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o “deus estranho” que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que, um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única da humanidade.”

 

 

“Por que”, exclama Mirabeau, “procurar tão longe a causa do fulgor manufatureiro da Saxônia antes da Guerra dos Sete Anos? 180 milhões de dívidas públicas!”244

Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano dos inocentes. Como a marinha real, as fábricas recrutam por meio da coerção. Sir F. M. Eden, tão impassível diante dos horrores da expropriação da população rural, que se viu despojada de suas terras desde o último terço do século XV até a época desse autor, isto é, o final do século XVIII, e que tão vaidosamente se regozija com esse processo, por ele considerado “necessário” para “estabelecer” a agricultura capitalista e “a proporção devida entre lavoura e pastagem”, não dá provas, no entanto, da mesma compreensão econômica no que diz respeito à necessidade do roubo de crianças e da escravidão infantil para a transformação da empresa manufatureira em empresa fabril e o estabelecimento da devida proporção entre capital e força de trabalho. Diz ele:

“Talvez mereça a atenção do público a questão de se uma manufatura, que, para ser operada de modo eficaz, tem de saquear cottages e workhouses em busca de crianças pobres, que serão divididas em turmas, esfalfadas durante a maior parte da noite e terão seu descanso roubado; uma manufatura que, além disso, amontoa uma multidão de pessoas de ambos os sexos, de diferentes idades e inclinações, de tal modo que a contaminação do exemplo tem necessariamente de levar à depravação e à licenciosidade, se tal manufatura pode aumentar a soma da felicidade nacional e individual.”245

“Em Derbyshire, Nottinghamshire e especialmente em Lancashire” – diz Fielden – “a maquinaria recém-inventada foi empregada em grandes fábricas, instaladas junto a correntezas capazes de girar a roda-d’água. Nesses lugares, afastados das cidades, requeriam-se subitamente milhares de braços, e principalmente Lancashire, até então comparativamente pouco povoado e infértil, agora necessitava, antes de mais nada, de uma população. O que mais se requisitava eram dedos pequenos e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes” (!) “nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, Birmingham e outros lugares. E assim muitos, muitos milhares dessas pequenas criaturas desamparadas, entre os 7 e os 13 ou 14 anos, foram despachadas para o norte. Era habitual que o patrão” (isto é, o ladrão de crianças) “vestisse, alimentasse e alojasse seus aprendizes numa casa de aprendizes, próxima à fábrica. Capatazes eram designados para vigiar o trabalho. O interesse desses feitores de escravos era sobrecarregar as crianças de trabalho, pois a remuneração dos primeiros era proporcional à quantidade de produto que se conseguia extrair da criança. A consequência natural foi a crueldade [...]. Em muitos distritos fabris, especialmente de Lancashire, essas criaturas inocentes e desvalidas, consignadas aos senhores de fábricas, foram submetidas às torturas mais pungentes. Foram acossadas até a morte por excesso de trabalho [...] foram açoitadas, acorrentadas e torturadas com os maiores requintes de crueldade; em muitos casos, foram esfomeadas até restar-lhes só pele e ossos, enquanto o chicote as mantinha no trabalho. Sim, em alguns casos, foram levadas ao suicídio! [...] Os belos e românticos vales de Derbyshire, Nottinghamshire e Lancashire, ocultos ao olhar do público, converteram-se em lúgubres ermos de tortura e, com frequência, de assassinato! [...] Os lucros dos fabricantes eram enormes. Mas isso só aguçava mais sua voracidade de lobisomem. Implementaram o trabalho noturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de operários pelo trabalho diurno, já dispunham de outro grupo pronto para o trabalho noturno; o grupo diurno ocupava as camas que o grupo noturno acabara de deixar, e vice-versa. Em Lancashire, dizia a tradição popular que as camas nunca esfriavam.246

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As nações se jactavam cinicamente de toda infâmia que constituísse um meio para a acumulação de capital. Leia-se, por exemplo, os ingênuos anais comerciais do ínclito A. Anderson. Neles é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa o fato de que, na paz de Utrecht, a Inglaterra arrancara dos espanhóis, pelo Tratado de Asientoab, o privilégio de explorar também entre a África e a América espanhola o tráfico de negros, que até então ela só explorava entre a África e as Índias Ocidentais inglesas. A Inglaterra obteve o direito de guarnecer a América espanhola, até 1743, com 4.800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial para o contrabando britânico. Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu método de acumulação primitiva, e até hoje a “respeitabilidade” de Liverpool é o Píndaro do tráfico de escravos, que – cf. o escrito citado do dr. Aikin, de 1795 – “eleva até a paixão o espírito de empreendimento comercial, forma navegantes afamados e rende quantias enormes de dinheiro”ac. Em 1730, Liverpool empregava 15 navios no tráfico de escravos; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e, em 1792, 132.

Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo247.

Tantae molis erat [tanto esforço se fazia necessário]ad para trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos polos, os meios sociais de produção e subsistência em capital, e, no polo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, esse produto artificial da história moderna248. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces”249, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés250.”

244 Mirabeau, De la monarchie prussienne, cit., t. VI, p. 101.

245 Eden, The State of the Poor, or an History of the Labouring Classes in England etc., cit., livro II, c. I, p. 421.

246 John Fielden, The Curse of the Factory System, cit., p. 5-6. Sobre as infâmias do sistema fabril em suas origens, cf. dr. Aikin, Description of the Country from 30 to 40 miles round Manchester, cit., 1795, p. 219, e Gisborne, Enquiry into the Duties of Men (1795), v. II. Uma vez que a máquina a vapor transplantou as fábricas antes construídas no campo, próximas às quedas-d’águas, para o centro das cidades, o extrator de mais-valor, sempre “disposto à renúncia”, encontrou à mão o material infantil, sem a necessidade das remessas forçadas de escravos das workhouses. – Quando sir R. Peel (pai do “ministro da plausibilidade”) apresentou em 1815 sua bill em proteção das crianças, F. Horner (luminar do Bullion Committe e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Câmara Baixa: “É notório que, entre os efeitos da falência de um fabricante, está o de que um bando, se me permitem essa expressão, de crianças de fábrica foi anunciado e arrematado, em leilão público, como parte da propriedade. Há dois anos” (em 1813) “apresentou-se ao King’s Bench um caso terrível. Tratava-se de certo número de rapazes. Uma paróquia de Londres os havia consignado a um fabricante, que, por sua vez, os transferiu a outrem. Finalmente, eles foram descobertos por alguns filantropos, em estado de absoluta inanição (absolute famine). Outro caso, ainda mais atroz, chegou a meu conhecimento como membro da comissão parlamentar de inquérito. Há não muitos anos, num convênio entre uma paróquia londrina e um fabricante de Lancashire, estipulou-se que o comprador, para cada vinte crianças sadias teria de aceitar uma idiota”. [Na revista Nova Gazeta Renana (maio-out. 1850), Marx escreve: “Desde 1845, Peel foi tratado como traidor pelo partido tory. O poder de Peel sobre a Câmara Baixa repousa sobre a plausibilidade de sua eloquência. Quando lemos seus mais famosos discursos, vemos que eles consistem num volumoso amontoado de lugares-comuns, entre os quais são habilmente inseridos alguns dados estatísticos”. King’s Bench (ou Queen’s Bench): suprema corte de justiça no Reino Unido. (N. T.)]

ab Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros africanos para seus assentamentos americanos, do século XVI até o século XVIII. (N. E. A. MEW)

ac O trecho citado diz o seguinte: “[...] [O tratado] coincidiu com esse espírito de audaz aventura que caracterizou o comércio de Liverpool e o levou rapidamente a seu estado atual de prosperidade; ocasionou um vasto emprego de barcos e marinheiros, e aumentou em grande medida a demanda pelas manufaturas do país”. (N. T.)

247 Em 1790, as Índias Ocidentais inglesas contavam com 10 escravos para 1 homem livre, nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. Henry Brougham, An Inquiry into the Colonial Policy of the European Powers (Edimburgo, 1803), v. II, p. 74.

ad Virgílio, Eneida, I, 33, onde se lê: “Tanto esforço para fundar o povo romano”]. (N. E. A. MEW)

248 A expressão “labouring poor” [pobres laboriosos] é encontrada nas leis inglesas desde o momento que a classe dos assalariados se torna digna de atenção. Os “labouring poor” encontram-se em oposição, por um lado, aos “idle poor” [pobres ociosos], mendigos etc.; por outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas permanecem proprietários de seus meios de trabalho. Da lei, a expressão “labouring poor” passou à economia política, desde Culpeper, J. Child etc., até A. Smith e Eden. A partir disso, pode-se julgar a bonne foi [boa fé] do “execrable political cantmonger” [execrável traficante de hipocrisia política] Edmund Burke, quando declara a expressão “labouring poor” como uma “execrable political cant” [execrável hipocrisia política]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa desempenhou o papel de romântico contra a Revolução Francesa, exatamente como antes, nos primeiros momentos das agitações na América, atuara como liberal, a soldo das colônias norte-americanas, contra a oligarquia inglesa, não era senão um burguês ordinário: “As leis do comércio são as leis da natureza e, por conseguinte, as leis de Deus”, E. Burke, Thoughts and Details on Scarcity, Originally Presented to the Rt. Hon. W. Pitt in the Month of November 1795, cit., p. 31-2. Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da natureza, tenha sempre vendido a si mesmo a quem pagasse melhor! Nos escritos do reverendo Tucker – apesar de pároco e tory, Tucker era, quanto ao mais, um homem correto e competente economista político – encontramos uma boa caracterização desse Edmund Burke durante seu período liberal. Diante da infame falta de caráter que hoje em dia impera e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é um dever estigmatizar repetidamente os Burkes, que se distinguem de seus sucessores por uma única coisa: talento!

249 Marie Augier, Du crédit public (Paris, 1842), p. 265.

250 “O Capital”, diz o Quarterly Reviewer, “foge do tumulto e da contenda, e é tímido por natureza. Isso é muito certo, porém não é toda a verdade. O capital abomina a ausência do lucro, ou ao lucro muito pequeno, assim como a natureza o vácuo. Com um lucro adequado, o capital torna-se audaz. Com 10%, ele está seguro, e é possível aplicá-lo em qualquer parte; com 20%, torna-se impulsivo; com 50%, positivamente temerário; com 100%, pisoteará todas as leis humanas; com 300%, não há crime que não arrisque, mesmo sob o perigo da forca. Se tumulto e contenda trouxerem lucro, ele encorajará a ambos. A prova disso é o contrabando e o tráfico de escravos”, T. J. Dunning, Trade’s Unions and Strikes, cit., p. 35-6.

 

 

7. Tendência histórica da acumulação capitalista

No que resulta a acumulação primitiva do capital, isto é, sua gênese histórica? Na medida em que não é transformação direta de escravos e servos em trabalhadores assalariados, ou seja, mera mudança de forma, ela não significa mais do que a expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada fundada no próprio trabalho.

A propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe onde os meios e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas. Mas, conforme essas pessoas sejam os trabalhadores ou os não trabalhadores, a propriedade privada tem também outro caráter. Os infinitos matizes que ela exibe à primeira vista refletem apenas os estágios intermediários que existem entre esses dois extremos.

A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador. É verdade que esse modo de produção existe também no interior da escravidão, da servidão e de outras relações de dependência, mas ele só floresce, só libera toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada onde o trabalhador é livre proprietário privado de suas condições de trabalho, manejadas por ele mesmo: o camponês, da terra que cultiva; o artesão, dos instrumentos que manuseia como um virtuoso.

Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais. Ele só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da produção e da sociedade. Querer eternizá-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”ae. Ao atingir certo nível de desenvolvimento, ele engendra os meios materiais de sua própria destruição. A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção. Ele tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre251.

Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em profundidade e extensão, a velha sociedade; tão logo os trabalhadores se tenham convertido em proletários, e suas condições de trabalho em capital; tão logo o modo de produção capitalista tenha condições de caminhar com suas próprias pernas, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados – e, por conseguinte, em meios de produção coletivos –, assim como a expropriação ulterior dos proprietários privados assumem uma nova forma. Quem será expropriado, agora, não é mais o trabalhador que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.

Essa expropriação se consuma por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista liquida muitos outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só podem ser utilizados coletivamente, a economia de todos os meios de produção graças a seu uso como meios de produção do trabalho social e combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores são expropriados.

O modo de apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, fundada no trabalho próprio. Todavia, a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Ela não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base daquilo que foi conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.

A transformação da propriedade privada fragmentária, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista, é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais prolongado, duro e dificultoso do que a transformação da propriedade capitalista – já fundada, de fato, na organização social da produção – em propriedade social. Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo252.”

ae Constantin Pecqueur, Théorie nouvelle d’économie sociale et politique (Paris, 1842), p. 435. (N. E. A. MEW)

251 “Encontramo-nos [...] numa condição totalmente nova da sociedade [...] tendemos a separar [...] toda espécie de propriedade de toda espécie de trabalho”. Sismondi, Nouveaux principes de l’économie politique, cit., t. II, p. 434.

252 “O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis [...]. De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico. [...] As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias [...] são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História”, K. Marx e F. Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 51, 49).

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