Editora: EDUERJ / Contraponto
ISBN: 978-85-85910-42-6
Tradução: César
Benjamin
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 624
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Sinopse: Ver Parte
I
““É
inerente ao conceito de capital, em sua gênese, que ele surja do dinheiro e,
portanto, da riqueza que existe sob a forma de dinheiro. Também é inerente que
ele surja da circulação, que apareça como produto da circulação. O capital não
se forma a partir da propriedade da terra (quando muito, pode formar-se a
partir do arrendatário, se ele faz comércio com produtos agrícolas), tampouco
da corporação (embora neste último ponto [haja] uma possibilidade),23
mas sim da riqueza formada no comércio e na usura.”24
A primeira constitui, uma condição importante e necessária para o
desenvolvimento do modo de produção capitalista, já que “pressupõe a produção
para o comércio, a venda por atacado e não a um cliente individual, ou seja, a
presença de um comerciante que também não compra para satisfazer necessidades
pessoais, mas que concentra em seu ato de compra os atos de compra de muitos”.
Por outro lado, o desenvolvimento da riqueza comercial tende a “imprimir à
produção um caráter cada vez mais orientado na direção do valor de troca”,
minando assim as antigas relações de produção. (Marx falava da “ação
dissolvente” do comércio e da riqueza comercial.)25 Todavia, esse
efeito “considerado por si só [...] é insuficiente para explicar a transição de
um modo de produção a outro”26 (ou seja, do feudal ao capitalista).
(Lemos nos Grundrisse: “Caso contrário, a antiga Roma, Bizâncio etc.
teriam terminado sua história com trabalho livre e capital, ou melhor, teriam
começado uma nova história. Também ali a dissolução das velhas relações de
propriedade estava ligada ao desenvolvimento da riqueza monetária, do comércio
etc. Mas, em vez de conduzir à indústria, essa dissolução conduziu na verdade27
ao predomínio do campo sobre a cidade.”)28
Não
foi a riqueza em dinheiro, como tal, que converteu em capitalistas os comerciantes
e pessoas endinheiradas dos séculos XV ao XVII. Pelo contrário, essa conversão
pressupunha o processo histórico da separação dos meios de produção em relação
ao trabalho e aos trabalhadores. Só depois desse processo “ter alcançado certo
nível, a riqueza monetária pôde colocar-se como intermediária entre as
condições objetivas de vida, assim liberadas, e as forças de trabalho vivas,
liberadas mas também despossuídas, e assim pôde comprar umas com as outras”.29
Só então tornou-se possível a “acumulação primitiva” das condições de produção
por parte dos capitalistas.
Não
foi, de modo algum, uma criação a partir do nada (como, no fundo, propõe a
economia burguesa).30 “O processo de dissolução transforma uma massa
de indivíduos de uma nação em trabalhadores assalariados virtualmente livres.
Essa carência de propriedade obriga os indivíduos a trabalhar e a vender seu
trabalho. Isso não significa que as fontes precedentes de renda desses
indivíduos tenham desaparecido, mas sim, ao contrário, que seu uso
tenha sido alterado [...].” Pois “o mesmo processo que — de uma maneira ou de
outra31 — destruiu as relações positivas preexistentes de uma
multidão de indivíduos com as condições objetivas do trabalho, processo
que negou essas relações e transformou esses indivíduos em trabalhadores
livres, esse mesmo processo virtualmente liberou as condições objetivas do
trabalho — terras, matérias-primas, meios de subsistência, instrumentos de
trabalho, dinheiro ou tudo isso [em conjunto] — dos vínculos que até então
as ligavam aos indivíduos, agora separados delas”. Esse processo “baseou-se
na separação de elementos até então ligados: logo, seu resultado não consiste
em que um dos elementos desapareça, mas sim em que cada um deles apareça em uma
relação negativa com o outro, o trabalhador livre (como possibilidade), de um
lado, o capital (como possibilidade), de outro”. Por isso, a criação de
trabalhadores livres, separados das condições objetivas de trabalho, deve “aparecer,
no polo oposto, como uma autonomização dessas mesmas condições.32
Marx
prossegue: “Nada mais estúpido que conceber essa formação primitiva do capital
como se este houvesse acumulado e criado as condições objetivas da produção —
meios de subsistência, matérias-primas, instrumentos — e as houvesse entregue
aos trabalhadores despojados delas33 [...]. Sua formação primitiva
ocorre simplesmente quando, através do processo histórico de dissolução do
antigo modo de produção, o valor existente como riqueza monetária adquire, por
um lado, a capacidade de comprar as condições objetivas do trabalho e, por
outro, a de trocar por dinheiro o trabalho vivo dos trabalhadores livres. Todos
esses elementos existiam;34 sua separação é um processo histórico,
um processo de dissolução, e é esse processo que permite ao dinheiro
transformar-se em capital.35 Nesse processo, o próprio dinheiro
só é ativo quando intervém como um meio de separação extremamente enérgico e
ajuda a criar trabalhadores despossuídos, objetivamente livres; não cria para
eles as condições objetivas de sua existência, mas ajuda a acelerar sua
separação dessas condições, sua carência de propriedade.”36
Nessa
etapa, “o que é específico do capital é o fato de ele juntar as massas de
braços e os instrumentos que encontra e aglomerá-los sob sua autoridade. Esta
é sua verdadeira acumulação, a acumulação de trabalhadores em
[determinados] pontos, junto com seus instrumentos.”37 Todavia,
considerando-se “a situação histórica fundamental que é o ponto de partida
desse processo [a manufatura etc.], tal concentração só pode ter lugar se esses
trabalhadores virarem assalariados, isto é, trabalhadores que devem vender sua
força de trabalho porque se defrontam com os meios de produção como propriedade
alheia, como uma potência estranha e autônoma [...] [porque] o controle desses
meios se encontra em mãos de poucos proprietários de dinheiro ou de
mercadorias, que assim se convertem em capitalistas”.38 Aqui, é
preciso distinguir entre a forma capitalista e o conteúdo desse processo. Pois
a condição geral do trabalho, como tal, é que “devem existir meios de
subsistência para o trabalhador antes de serem produzidos os novos”, e que os
“produtos do trabalho devem constituir a matéria-prima e os instrumentos de sua
reprodução”. Só no capitalismo essa reserva de meios de produção e de
subsistência adota a forma de mercadorias e de capital. “Mas os economistas sempre expressam como uma propriedade do objeto o que é
uma propriedade, uma característica, do modo de produção capitalista, ou
seja, do próprio capital, na medida em que ele expressa determinada relação dos
produtores entre si e com seu produto.”39
23.
“Ao ocorrer a dissolução das corporações, alguns mestres se transformam em
capitalistas industriais; não obstante, esse caso é raro, o que está de acordo
com a natureza da coisa. Ali onde surgem o capitalista e o operário, em geral a
corporação se arruína, o mestre e o oficial se arruínam” (ibid., p. 405).
24.
Ibid., p. 404.
25. O
termo aparece nos Grundrisse, p. 741-742. Ver nota 17 do capítulo 8.
26. Das Kapital, III, p. 358-359.
27. No original, “in fact”.
28. Grundrisse, p. 405. Cf. Das Kapital, III, p. 364: “No mundo antigo, os resultados do
comércio e do desenvolvimento do capital comercial foram sempre a economia
escravista; segundo o ponto de partida, eles resultaram na transformação de um
sistema escravista patriarcal, voltado para a produção de meios de subsistência
direta, em um sistema orientado para a produção de mais-valia. Em troca, na era
moderna, desembocam no modo capitalista de produção. Disso se deduz que esses
mesmos resultados ainda estavam condicionados por outras circunstâncias
totalmente diferentes do desenvolvimento do capital comercial.”
29. Grundrisse,
p. 408.
30.
Cf. Das Kapital, II, p. 134-135.
31.
Em francês no original: “d’une maniêre ou d’autri’.
32. Grundrisse,
p. 402-403.
33.
Em uma nota de pé de página, Marx observa: “Fica logo claro que circuito
absurdo surgiria se, de um lado, os trabalhadores que o capital deve colocar em
ação para agir como capital devessem primeiro ser criados, devessem ser
chamados à vida, através da acumulação do capital, devessem esperar deste um
“façam-se os trabalhadores!”, enquanto o próprio capital não fosse capaz de
acumular-se sem trabalho alheio; o máximo que poderia fazer seria acumular seu
próprio trabalho, ou seja, existir então como não-capital e não-dinheiro, pois
o trabalho antes da existência do capital só pode valorizar a si próprio em
formas como a do trabalho artesanal, a agricultura em pequena escala etc., em
suma, só em formas que não permitem acumular, ou só o permitem em escassa
quantidade, e formas que só deixam um pequeno produto excedente, que é
consumido em sua maior parte” (ibid., p. 406).
34.
Isso vale também para os instrumentos de trabalho; pois “a riqueza em dinheiro não
descobriu nem fabricou o torno de fiar nem o tear. Mas, separados da terra, os
fiandeiros e os tecelões, com seus tornos e teares, caíram sob o domínio da
riqueza em dinheiro etc.” (ibid., p. 407).
35. O
texto prossegue: “A maneira como o dinheiro se transforma em capital com
frequência se torna visível, de uma forma simples e clara, quando o mercador,
por exemplo, faz trabalhar para si mais tecelões e fiandeiros, que até então
trabalhavam no tecido e na fiação como atividade acessória da agricultura, de tal
modo que ele converte essa atividade acessória em ocupação central; daí em
diante, está mais seguro deles, pois os converteu em trabalhadores assalariados
sob seu comando. Mudá-los de seus lugares de origem e reuni-los em um local de
trabalho é um passo posterior. Nesse simples processo se vê claramente que o
capitalista não criou matérias-primas, nem instrumentos, nem meios de
subsistência para tecelões e fiandeiros. Tudo o que fez foi limitá-los cada vez
mais a um tipo de trabalho, no qual se tornam dependentes da venda, do comprador,
do comerciante e finalmente só produzem para e por intermédio
dele. Originariamente, este só comprava trabalho através da compra do produto;
nem bem os trabalhadores se limitaram à produção deste valor de troca — e, por
conseguinte, devem produzir valor de troca imediato, intercambiar todo o seu
trabalho por dinheiro para poder seguir existindo —, caem sob o comando do
comerciante e finalmente desaparece também a aparência de que eles lhe vendem
seus produtos. Ele compra seu trabalho e lhes retira primeiro a propriedade do
produto, em seguida a do instrumento, ou as deixa como propriedade aparente,
para diminuir seus próprios custos de produção” (ibid., p. 409-410).
36.
Ibid, p. 406 e 408.
37.
Ibid, p. 407.
38. Theorien,
III, p. 267.
39. Ibid., p. 266-267.
“A
história da humanidade divide-se em três etapas, na forma de uma tríade
dialética:’“As relações de dependência pessoal[...] são as primeiras formas
sociais; nelas, a capacidade produtiva humana só se desenvolve em âmbito
restrito e em lugares isolados. A independência pessoal, construída com base
na dependência em relação às coisas, é a segunda forma importante; nela,
constitui-se pela primeira vez um metabolismo social geral, um sistema de
relações universais, necessidades universais e capacidades universais. A livre
individualidade, baseada no desenvolvimento universal dos indivíduos e na
produtividade coletiva, social, considerada como patrimônio social, constitui o
terceiro estágio. O segundo cria as condições do terceiro.”6
Aqui se
resume o essencial da história da humanidade, um processo necessário de
formação da personalidade humana e de sua liberdade. Mas, do ponto de vista de
Marx, o mais importante não era tanto demonstrar a necessidade desse processo
(que já havia sido reconhecida pela filosofia clássica alemã),
mas sim liberar essas noções de toda ilusão ideológica, colocando-as sobre a
base firme da história real, ou seja, do desenvolvimento das relações sociais
de produção. Esta tarefa exigia a ajuda do método materialista.
Podemos
ler nos Grundrisse: “Quando se consideram relações sociais que produzem
um sistema não desenvolvido de troca, de valores de troca e de dinheiro [ou
seja, relações pré-capitalistas], é claro que os indivíduos — mesmo quando suas
relações são vividas como relações entre pessoas — só estabelecem vínculos
entre si na condição de portadores de um caráter bem definido: senhor feudal e
vassalo, proprietário de terras e servo da gleba etc., ou membro de uma casta
etc., ou então integrante de um estamento etc. Nas relações monetárias, no
sistema de trocas desenvolvido (e esta aparência seduz os democratas), os
vínculos de dependência pessoal, as diferenças de sangue, educação etc. são
destruídos, esgarçados, [...] e os indivíduos parecem independentes7
[...], parecem livres para se defrontar uns com os outros e realizar
trocas em liberdade. Mas, só podem ser vistos assim por quem abstrai as
condições de existência dentro das quais eles se relacionam. [...] No primeiro
caso, o caráter bem definido aparece como uma limitação pessoal do indivíduo
diante do outro; no segundo, se apresenta como uma limitação objetiva do
indivíduo, resultante de relações que são independentes dele e se baseiam em si
mesmas. (Como o indivíduo não pode eliminar seu caráter pessoal, mas pode
superá-lo e subordinar a ele as relações externas, sua liberdade parece ser
maior no segundo caso. Porém, uma análise mais precisa dessas relações
externas, dessas condições, mostra que os indivíduos de uma classe não podem
superar en masse tais relações, nem têm condições de suprimi-las. Um
indivíduo isolado pode fazer isso, mas tal não ocorre com a massa dos que são
dominados por elas, já que sua permanência expressa a necessária subordinação
dos indivíduos a suas próprias relações.) Estas relações externas não removem
as ‘relações de dependência’. Constituem apenas a dissolução destas em uma
forma geral. São, antes de tudo, a afirmação do princípio geral das relações
pessoais de dependência [...].”8
Em uma
observação marginal dos Grundrisse, feita nos marcos da análise do
“poder objetivo do dinheiro”, podemos ler: “Foi dito e poderia ser repetido que
a beleza e a grandeza desse sistema residem precisamente nesse vínculo
espontâneo, nesse metabolismo material e espiritual, que independe do
conhecimento e da vontade dos indivíduos, e que pressupõe sua indiferença e
independência recíprocas. Esse vínculo objetivo é preferível à ausência de
vínculos ou a vínculos locais baseado7s em consanguinidade, ou nas [relações]
de senhorio e servidão. Também é certo que os indivíduos não
podem dominar suas próprias relações sociais9 antes de havê-las
criado. Mas é absurdo conceber este vínculo puramente material como tendo
sido criado naturalmente, como inseparável da natureza da individualidade e
imanente a ela [...]. O vínculo é um produto dos indivíduos. É um produto
histórico. Pertence a uma determinada fase do desenvolvimento. A forma externa
e autônoma com que esse vínculo existe diante dos indivíduos demonstra que
estes estão em via de criar as condições de sua vida social; ainda não
começaram a vivê-la. É o vínculo [...] entre os indivíduos imersos em relações
de produção determinadas e estreitas.” De outro lado, “em estágios de
desenvolvimento anteriores, o indivíduo se apresenta com maior plenitude
precisamente porque ainda não elaborou plenamente suas relações e não as pôs
diante dele como potências e relações sociais autônomas. É ridículo sentir
nostalgia daquela plenitude primitiva; mas também é ridículo crer que é preciso
deter-se no esvaziamento completo”10 que caracteriza a época atual.11
“O ponto de vista burguês jamais se elevou acima da oposição a esta visão
romântica, e por isso ela o acompanhará como uma oposição legítima até sua
morte piedosa.”12
O
conceito burguês de liberdade padece do modo de pensar a-histórico de seus
porta-vozes, que absolutizam uma individualidade própria de uma época e de um
modo de produção determinados, confundindo-a com a realização da “liberdade
plena”. (“Uma pessoa que crê em determinada religião vê nela a religião
verdadeira, e vê fora dela apenas religiões falsas.”)13 Não
compreendem que a liberdade burguesa, longe de representar a encarnação da
“liberdade em geral”, é um produto específico do modo de produção capitalista,
e por isso compartilha as limitações deste. Libertados das barreiras
anteriores, os seres humanos foram submetidos no capitalismo a uma nova
sujeição, ao domínio reificado das relações de produção (que escaparam de
qualquer controle), ao cego poder da concorrência e da casualidade.14
Tornaram-se mais livres em um aspecto e menos livres em outro.
Esse
modo de pensar a-histórico aparece com clareza na maneira como os economistas
burgueses (e a ideologia burguesa em geral) julgam a concorrência capitalista.
Apesar de a concorrência, diz Marx, “se apresentar historicamente como
dissolução das coerções corporativas, regulamentações governamentais, aduanas
internas e instituições similares no interior de um país, e no mercado mundial
como supressão de obstruções, proibições e protecionismos”, ela jamais foi
considerada “em seu aspecto puramente negativo, puramente histórico”. “Essa
consideração levou à necessidade, ainda mais absurda, de ver a concorrência
como um enfrentamento de indivíduos desacorrentados, movidos apenas por seus
próprios interesses; como repulsão e atração de indivíduos
livres; como a forma absoluta de existência da livre individualidade na esfera
da produção e da troca.”
“Nada
mais falso”, acrescenta. Pois, em primeiro lugar, “embora a concorrência tenha
dissolvido os obstáculos que se opunham a certas relações em modos de produção
anteriores, deve-se considerar antes de mais nada15 que o que para
ela era obstáculo, para os modos de produção anteriores eram limites imanentes,
dentro dos quais se desenvolviam e se moviam com naturalidade. Esses limites só
se tornaram obstáculos quando as forças produtivas e as relações de troca se
desenvolveram a ponto de o capital poder apresentar-se como princípio regulador
da produção. Os limites que o capital aboliu eram obstáculos para o seu movimento,
desenvolvimento e realização. Ele não suprimiu todos os limites, todos os
obstáculos, mas só os que não eram adequados a ele, os que constituíam limites
e obstáculos para ele.16 Dentro de seus próprios limites — que, de
um ponto de vista mais elevado, se apresentam como obstáculos à produção [...]
— sente-se livre, ilimitado, isto é, limitado só por si mesmo, por suas condições
de existência. Ora, a indústria corporativa, em seu período de esplendor,
encontrava na organização gremial a liberdade de que necessitava, ou seja, as
relações de produção que lhe eram correspondentes. Ela [a indústria
corporativa] as criou a partir de si mesma e as desenvolveu como suas condições
imanentes, de modo algum, portanto, como barreiras externas e opressivas. O
aspecto histórico da negação do regime corporativo etc., por parte do capital e
através da concorrência, significa apenas que, suficientemente fortalecido, o
capital derrubou, graças ao modo de intercâmbio que lhe é adequado, as
barreiras históricas que atrapalhavam e freavam o movimento conveniente à sua
própria natureza.”
Todavia,
a concorrência não tem apenas esse significado histórico negativo. Também é,
por sua natureza, a realização do modo de produção capitalista.17 É
uma ilusão afirmar que, “nos marcos da concorrência, os indivíduos, obedecendo
exclusivamente a seus interesses privados, realizam os interesses comuns ou
mesmo18 gerais”19 “Na livre concorrência, não são livres
os indivíduos, mas sim o capital. Quando a produção baseada no capital é a
forma necessária, e portanto a mais adequada, ao desenvolvimento da força
produtiva social, o movimento dos indivíduos nos marcos das condições
estabelecidas pelo capital se apresenta como a liberdade destes. Esta liberdade
é afirmada de forma dogmática, enfatizando-se sistematicamente obstáculos
derrubados pela concorrência.”20 Daí “a insipidez de considerar a
concorrência como o último desenvolvimento da liberdade humana e a negação da
concorrência como igual à negação da liberdade individual e o fim da produção
social baseada na liberdade individual. O desenvolvimento
atual é livre sobre uma base limitada, a base da dominação pelo capital. Este
tipo de liberdade individual é, ao mesmo tempo, uma abolição da liberdade
individual e a subjugação completa da individualidade a condições sociais que
adotam a forma de poderes objetivos, de coisas poderosíssimas [...]. Submeter a
concorrência à crítica é a única resposta racional ao seu endeusamento pelos
profetas da classe média21, ou à sua apresentação como demoníaca por
parte dos socialistas.”22 “Afirmar que a concorrência é a última
forma de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, da liberdade humana
significa afirmar que a dominação da classe média é o fim da história mundial
[...].”23
O que
estamos lendo é uma continuação de raciocínios que já encontramos em A
ideologia alemã: ao longo da história da humanidade, o desenvolvimento
das forças produtivas substituiu as relações de dependência originárias,
pessoais, por outras objetivas, e o vínculo local e nacional dos homens por
outro, universal. Já em A
ideologia alemã, Marx e Engels destacam o caráter contraditório e
dicotômico do progresso social até o presente: de um lado, criou um indivíduo
social mais capaz de se desenvolver e mais rico em necessidades; de outro,
converteu-se na mais ampla “alienação” e “esvaziamento” desse mesmo indivíduo.
Também se encontra ali o raciocínio de que a liberação dos homens em relação
aos constrangimentos feudais e outros, realizada pelo capitalismo, produz uma
liberdade aparente. A liberdade, plena, o “desenvolvimento original e livre dos
indivíduos”, só poderia converter-se em realidade no comunismo. Podemos ler em A
ideologia alemã: “Sob o domínio da burguesia, os homens são idealmente
mais livres que, antes, pois suas condições de vida lhes são fortuitas; na
realidade, porém, são menos livres, pois estão mais submetidos à coerção das
coisas.” “Esse direito de poder desfrutar da contingência e do acaso sem ser
perturbado, dentro de certas condições, foi chamado até hoje liberdade pessoal
“24 Essa concepção é desenvolvida nos Grundrisse, com maior
intensidade e nitidez no que diz respeito ao outro aspecto, positivo, da
contradição: o progresso real produzido pela “pseudoliberdade burguesa”.
Isso se
vê com especial clareza na notável passagem que trata do “infantil mundo
antigo”, em contraste com o mundo moderno do capitalismo. Marx, diz: “Nunca
encontraremos entre os antigos uma investigação sobre qual forma de propriedade
da terra é a mais produtiva, cria mais riqueza. A riqueza
não aparece como objetivo da produção, embora possa Catão investigar qual
maneira de cultivar o campo deve ser mais lucrativa, ou Brutus emprestar seu
dinheiro à maior taxa de juros. Para eles, a questão é saber qual modo de propriedade cria
melhores cidadãos[...].”
Coisa muito diferente ocorre no mundo moderno. Neste, a riqueza aparece “[...]
com a forma de coisa — trate-se de um objeto ou de uma relação
mediada por um objeto —, que é externa em relação ao indivíduo e mantém com ele
uma relação acidental. Por isso, a concepção antiga — segundo a qual o homem, qualquer
que seja a limitada determinação nacional, religiosa ou política em que se
apresente, é sempre o objetivo da produção — parece sublime diante do mundo
moderno, no qual a produção aparece como o objetivo do homem, e a riqueza como
o objetivo da produção. Mas, na realidade,25 se se retira da
produção sua mesquinha forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade
das necessidades, capacidades, gozos, forças produtivas etc., dos indivíduos,
criada através do intercâmbio universal? Que é, senão o desenvolvimento pleno
do domínio humano sobre as forças naturais, tanto sobre as da assim chamada
natureza como sobre a própria natureza humana? Que é, senão a expressão de suas
potencialidades criadoras, tendo como único pressuposto o desenvolvimento histórico
precedente e permitindo o desenvolvimento das capacidades humanas como tais,
não medidas por um padrão preestabelecido? Que é, senão uma criação na qual o
homem não se reproduz de modo limitado, mas sim produz sua própria totalidade?
Nesse caso, ele não busca permanecer como algo que já veio a ser: está no
movimento do devir. Na economia política burguesa — e na época produtiva que
lhe corresponde —, a plena expressão do homem aparece como seu esvaziamento
pleno; a objetivação universal, como alienação total;26 e a
destruição de todos os objetivos unilaterais e limitados, como sacrifício do
objetivo próprio diante de um objetivo completamente externo. Por isso o
infantil mundo antigo aparece, de um lado, como superior; de outro, o é em tudo
aquilo em que se busque uma configuração fechada, com forma e limitação dadas.
É satisfação de um ponto de vista limitado, enquanto o [mundo] moderno deixa
insatisfeito ou, onde aparece satisfeito consigo mesmo, é vulgar.”27
Aqui se
manifesta com clareza o contraste entre a crítica marxista e a crítica
romântica ao capitalismo. O que Marx reprovava nos românticos não eram apenas
suas “lágrimas sentimentais”28 nem a circunstância de que, com
intenções demagógicas, “agitam nas mãos o embornal de proletário como uma
bandeira”, ocultando ao mesmo tempo, atrás das costas, “os antigos brasões
feudais”.29 Ele reprovava especialmente o fato de que os românticos
eram incapazes de compreender “o devir da história moderna”, ou seja, a
necessidade e o caráter historicamente progressista da ordem social burguesa
que criticavam, limitando-se a uma condenação de tipo moral.
O
domínio do capital se baseia em extrair mais-trabalho, explorar e oprimir as
massas populares. Neste aspecto, ele certamente supera “em energia, ímpeto e eficácia todos os sistemas de produção precedentes,
baseados no trabalho diretamente compulsório”.30 O capital foi quem
“primeiro capturou o progresso histórico, colocando-o a serviço da riqueza”.31
A produção capitalista é a primeira que “se transforma em um modo de exploração
que inicia uma época; no transcurso de seu desenvolvimento histórico, mediante
a organização do processo de trabalho e o enorme aperfeiçoamento da técnica,
revoluciona a estrutura econômica da sociedade, de modo a eclipsar as épocas
anteriores”.32
O que
distingue radicalmente a produção capitalista em relação a todos os modos de
produção anteriores é o seu caráter universal, seu impulso em direção a uma
permanente revolução das forças produtivas materiais. As etapas pré-capitalistas
da produção — por seus métodos de trabalho primitivos, não desenvolvidos —
nunca conseguiram desenvolver o trabalho para muito além do necessário à
manutenção imediata da vida. “O sentido histórico do capital” consiste
precisamente em “criar o trabalho excedente, trabalho supérfluo do ponto de
vista do mero valor de uso, da mera subsistência”. O capital cumpre essa missão
ao desenvolver de modo sem precedentes as forças produtivas sociais, de um
lado, e as necessidades e capacidades de trabalho dos homens, de outro.
A
“missão histórica do capital”, diz uma passagem particularmente expressiva dos Grundrisse,
“se completa, de um lado, quando as necessidades estão tão desenvolvidas que o
trabalho excedente (que produz acima e além das necessidades) passa a ser, ele
mesmo, uma necessidade geral, que surge das próprias necessidades individuais;
de outro lado, quando a disciplina estrita do capital, pela qual passaram
sucessivas gerações, desenvolveu uma laboriosidade universal que foi apropriada
pelas novas gerações”;33 finalmente, “quando o desenvolvimento das
forças produtivas do trabalho, impulsionado continuamente pelo capital — em sua
ilimitada busca de enriquecimento e nas únicas condições sob as quais esta
busca pode realizar-se —, alcançou tal ponto que a posse e a conservação da
riqueza geral exigem um tempo de trabalho menor para a sociedade inteira;
[então] a sociedade se relacionará cientificamente com o processo de sua
reprodução, em meio a uma abundância crescente: deixará de existir o trabalho
no qual o homem faz aquilo que as coisas podem fazer em seu lugar[...]. Em sua
aspiração incessante pela forma universal da riqueza, o capital impele o
trabalho a ultrapassar os limites de sua necessidade natural, criando os
elementos materiais para o desenvolvimento de uma rica individualidade,
multilateral na produção e no consumo. O trabalho, nesse caso, não se apresenta
como trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade.34
Desapareceu a necessidade natural direta, substituída por uma necessidade
historicamente produzida. Por isso, o capital é produtivo;
ou seja, é uma relação essencial para o desenvolvimento das forças produtivas
sociais. Só deixa de sê-lo quando o desenvolvimento das forças produtivas
encontra um limite no próprio capital”.35
Em
outras palavras: enquanto os modos de produção anteriores eram compatíveis com
forças produtivas que só avançavam muito lentamente, e até mesmo permaneciam
estacionárias durante períodos prolongados,36 o capital se baseia no
“constante revolucionamento de suas premissas”. “Embora seja limitado por sua
própria natureza, [o capital] tende a produzir um desenvolvimento universal das
forças produtivas e se converte na premissa de um novo modo de produção, que
não se baseará em um desenvolvimento das forças produtivas que reproduza e
amplie uma condição limitada. Será um modo de produção no qual o
desenvolvimento livre, desimpedido, progressivo e universal das forças
produtivas constitui a premissa da sociedade e, portanto, de sua reprodução; no
qual a única premissa é superar o ponto de partida.”37 Só sobre esta
nova base será possível a “universalidade do indivíduo, não como universalidade
ideal ou imaginada, mas como universalidade de suas relações reais e ideais.
Daí, também, a compreensão de sua própria história como um processo e o
reconhecimento da natureza (o qual existe também como poder prático sobre ela)
como seu corpo real.”38 Assim, graças ao desenvolvimento do
capitalismo, prepara-se inclusive a solução do problema da personalidade humana
e de sua liberdade, colocado pela história. Deste ponto de vista, nunca se
poderá enfatizar suficientemente a conquista histórica do capitalismo, que
tantas vezes Marx destaca tão claramente.”
6. Das
Kapital, III,, p. 222-223.
7.
Ibid., p. 225-226.
8. Ibid.,
p. 250. Cf Theorien, 11, p. 441: “A taxa de lucro cai — mesmo que a taxa
de mais-valia permaneça idêntica ou cresça — porque, com o desenvolvimento das
forças produtivas do trabalho, o capital variável diminui em relação ao capital
constante. Não cai porque o trabalho se tenha tornado mais improdutivo, mas sim
porque se tornou mais produtivo. Em consequência, o mais-trabalho absoluto
aumenta, não porque o trabalhador seja menos explorado, mas sim porque é mais
explorado; quando o Estado inibe isso, a produção capitalista é inseparável do
valor relativo descendente do trabalho e, portanto, aumenta o mais-trabalho
relativo.”
9. Aqui
caberia citar, além da passagem citada na nota 8, especialmente as p. 237, 296,
305 e 359 do terceiro tomo das Teorias. Na p. 296, Marx diz: “Expliquei
a queda na taxa de lucro, apesar de a taxa de mais-valia permanecer constante e
até mesmo aumentar, pelo fato de que o capital variável decresce em relação ao
capital constante, ou seja, diminui o trabalho vivo presente em relação ao
trabalho passado que é empregado e reproduzido.” Na p. 305: “Portanto, aqui se
resolve o ponto de vista de Hodgskin na lei geral que desenvolvi. A mais-valia,
a exploração do trabalhador, aumenta. Ao mesmo tempo, cai a taxa de lucro, pois
o capital variável diminui em relação ao capital. constante; a massa de
trabalho vivo diminui relativamente, em relação ao capital que o põe em
movimento. O capitalista se apropria de uma parte maior do produto anual do
trabalho sob a rubrica de capital, e de uma parte menor sob a rubrica de lucro”
(cf. Das Kapital, III, p. 256).
10. De
forma semelhante, Sweezy argumenta: “Vimos que Marx deduz a tendência à queda
na taxa de lucro baseando-se na suposição de que a composição orgânica do
capital aumenta, sendo constante a taxa de mais-valia. Porém, será
justificável supor uma taxa de mais-valia constante? É necessário compreender
as implicações desta última suposição. Um aumento da composição orgânica do
capital se produz simultaneamente a um crescimento da produtividade do
trabalho. Se a taxa de mais-valia permanece constante, isso significa que os
salários reais aumentam de forma proporcional ao aumento da produtividade do
trabalho. Suponhamos que a produtividade do trabalho duplique, ou seja, que no
mesmo tempo o trabalho produza o dobro de antes. Então, já que uma taxa de
mais-valia inalterada significa que o trabalhador trabalha a mesma quantidade
de tempo para si e a mesma quantidade para o capitalista, como antes, se
depreende que tanto o rendimento físico representado pelo salário como o
rendimento físico representado pela mais-valia duplicaram. Em outras palavras,
o trabalhador se beneficia da mesma forma que o capitalista com o aumento da
produtividade de seu trabalho. Embora não possa haver objeções lógicas a uma hipótese
que conduza a este resultado, há motivos para duvidar de sua adequação [...]” (op. cit, p. 100-101).
11. Joan Robinson, op. cit, p. 36.
12. Ibid., p. 42.
13. Paul M. Sweezy, A teoria do
desenvolvimento capitalista, 1942, p. 101.
14. Das
Kapital, III, p. 244. “Existem muitos fatores de intensificação do trabalho
que implicam um crescimento do capital constante em relação ao variável, ou
seja, uma queda da taxa de lucro, como quando um trabalhador deve supervisionar
maior volume de maquinaria[...]. Mas existem outros fatores de intensificação,
como por exemplo uma aceleração na velocidade da maquinaria: esta utiliza agora
maior quantidade de matéria-prima no mesmo tempo, mas, no que diz respeito ao
capital fixo, embora consuma mais rapidamente a maquinaria, não será afetada a
relação entre seu valor e o preço do trabalho que a coloca em movimento. Mas é
especialmente o prolongamento da jornada de trabalho — esta invenção da
indústria moderna — o que aumenta a massa de mais-trabalho apropriado sem
modificar no essencial a relação entre a força de trabalho empregada e o
capital constante que coloca em movimento, já que, de fato, diminui em relação
a este último” (ibid., p. 242-243). O primeiro parágrafo do capítulo XIV trata
desses fatores.
15. Por
isso, Sweezy erra quando formula a seguinte reprovação ao que foi exposto nessa
seção: “Um efeito mais importante do exército de reserva[...] se produz por
concorrência no mercado de trabalho com a força de trabalho ativa, para
deprimir a taxa dos salários e elevar a taxa demais-valia” (op. cit., p. 99).
Se Marx tivesse esperado o capítulo XIV para discutir este tema, cairia naquilo
que Bortkiewicz reprovava.
16.
Sweezy discorda de Marx, quando este considera a desvalorização do capital
constante como uma das causas que atuam contra a queda da taxa de lucro: “Teria
sido preferível contemplar primeiro o que poderia ser chamado de ‘aumento
original’ da composição orgânica, observar seu efeitos sobre a taxa de juro, e
só então levar em conta o barateamento dos elementos do capital constante,
que por sua vez decorre do aumento da produtividade associado com o elemento ‘original’.
Poderia sustentar-se que, se assim se procedesse, a taxa de aumento da
composição orgânica pareceria muito maior, e que o que impede que este fato se
revele nas estatísticas são as ‘causas contrastantes’. Todavia, resulta
duvidoso que possa servir a alguma finalidade útil essa tentativa de conservar
a distinção implícita de Marx entre o aumento primário na composição orgânica e
a queda, mesmo menor, decorrente do barateamento dos elementos do capital
constante. Tudo quanto se pode observar é a alteração líquida na composição
orgânica que resulta de ambas as forças. Todavia, parece melhor usar a
expressão ‘alteração na composição orgânica do capital’ só no sentido líquido,
que leva em conta o barateamento dos elementos do capital constante. Se assim
se faz, talvez seja menor a tentação de pensar a composição orgânica em termos
físicos, em vez de fazê-lo em termos de valor” (op. cit., p. 103-104). Se
acreditarmos em Sweezy, Marx baseou sua lei, em primeiro lugar, na composição
técnica do capital, para depois introduzir de contrabando, no capítulo XIV, a
composição em termos de valor como uma “causa contrastante”...
17. Das
Kapital, III, p. 245. Marx trata de forma muito detalhada de todos esses
métodos na seção 1 do terceiro tomo.
18.
Sweezy, op. cit., p. 102-104.
19.
Natalie Moszkowska, Zur Kritik modemer Krisentheorien [Contribuição à
crítica das modernas teorias da crise], 1935, p. 46. Em seu livro anterior, Das
Marxschen System [O sistema de Marx, 1929], diz a mesma autora na p. 118:
“A ‘lei da baixa tendencial da taxa de lucro’ não é uma lei histórica, mas sim
uma lei dinâmica. Não afirma um fato histórico, a saber, que a taxa de lucro cai,
mas apenas formula a dependência recíproca de duas magnitudes, a saber: (a)
quando permanece constante a taxa de mais-valia, cai a taxa de lucro; (b)
quando permanece constante a taxa de lucro, aumenta a taxa de mais-valia. Em
consequência, a lei só expressa uma relação funcional. Por isso, pode ser
denominada tanto como lei ‘da baixa tendencial da taxa de lucro’ como também
lei ‘do aumento tendencial da taxa de mais-valia’.” É evidente que esta
interpretação não é fiel à lei de Marx.
20. Theorien,
III, p. 358.
21. A
frase entre colchetes é do editor das Teorias, Karl Kautsky.
22. Theorien,
III, p. 359-360.
23. Não
podemos discutir aqui o problema de até que ponto as diferenças entre a
indústria e a agricultura podem diminuir por causa do desenvolvimento técnico
desta última.
24.
Novamente, aqui faz falta uma limitação. Assim, por exemplo, o trabalhador
norte-americano gasta em alimentos uma parte relativamente muito menor de seu
salário que o europeu; o trabalhador europeu, por sua vez, gasta uma parte
menor que o asiático etc.
25. Theorien,
III, p. 295. Como se vê, neste ponto
Marx se expressa com o detalhe e a clareza possíveis. Mesmo assim, podemos ler
em Joan Robinson: “Poder-se-ia sustentar que Marx supunha inconscientemente que
o aumento da produtividade não afeta as indústrias de bens que a classe
trabalhadora consome, de modo que os salários reais constantes são compaúveis
com um grau constante de exploração” (op. cit, p. 40). Tantas palavras, tantos
erros...
26. Theorien,
III, p. 306.
27. Já
citamos estas manifestações de Marx — muito mais detalhadamente — no capítulo
16 de nosso trabalho. Grundrisse, p. 246.
“2. O
papel do maquinário como precondição material para a sociedade socialista
Podemos
ler nos Grundrisse: “Se a sociedade, tal como é, não contivesse,
ocultas, as condições materiais de produção e de circulação necessárias a uma
sociedade sem classes, todas as tentativas de criá-la seriam quixotescas.”39
Quais
condições materiais de produção tornam possível e necessária a transição a uma
sociedade sem classes?
Devemos
buscar a resposta, antes de tudo, na análise que Marx faz do papel da
maquinaria. Ela mostrou, de um lado, como o desenvolvimento do sistema de
máquinas automáticas reduz o trabalhador individual ao nível de ferramenta
parcial, a mero elemento do processo de trabalho; de outro, mostrou como o
mesmo desenvolvimento cria também as condições prévias para que o dispêndio de
esforços humanos se reduza a um mínimo no processo de produção e para que o
lugar dos trabalhadores segmentados de hoje seja ocupado por
indivíduos desenvolvidos de forma multifacética, para quem “as diferentes
funções sociais sejam modos intercambiáveis de atividade”. Tudo isso consta
tanto dos Grundrisse como do primeiro tomo de O capital. Porém,
há nos Grundrisse ideias sobre a maquinaria que estão ausentes de O
capital; ideias que, embora escritas há mais de um século, tiram o fôlego
ao serem lidas hoje, pois apresentam uma das visões mais audaciosas produzidas
pelo espírito humano.
Marx
diz: “O intercâmbio de trabalho vivo por trabalho objetivado, ou seja, a
colocação do trabalho social na forma de antítese entre capital e trabalho
assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção
baseada no valor. O pressuposto desta produção é, e segue sendo, a magnitude do
tempo imediato de trabalho, a quantidade de trabalho usada como fator decisivo
na produção da riqueza. Todavia, na medida em que a grande indústria se desenvolve,
a criação de riqueza se torna menos dependente do tempo de trabalho e da
quantidade de trabalho usados, passando a depender mais da capacidade dos
agentes acionados durante o tempo de trabalho, capacidade cuja eficácia40
não mantém nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que sua produção
exige; depende do estado geral da ciência e do progresso técnico, ou da
aplicação da ciência à produção [...]. A riqueza efetiva se manifesta mais — e
isto a grande indústria revela — na enorme desproporção entre o tempo de
trabalho empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre
o trabalho, reduzido a pura abstração, e o vigor do processo produtivo que ele
vigia. O trabalho já não aparece tanto confinado ao processo de produção, pois
o homem se comporta como supervisor e regulador em relação a este
processo[...]. O trabalhador já não introduz a coisa natural modificada, como
elo intermediário, entre o objeto e ele mesmo, mas insere o processo natural,
transformado em processo industrial, como meio entre si mesmo e a natureza
inorgânica, à qual domina. Apresenta-se ao lado do processo de produção, em vez
de ser seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como pilar
fundamental da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado
pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral,
sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência
como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O
roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se
uma base miserável, comparado com este fundamento, recém-desenvolvido, criado
pela própria grande indústria. Tão logo o trabalho, em sua forma imediata, tenha
deixado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser —
tem que deixar de ser — sua medida; e o valor de troca [deixa de ser a medida]
do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser
condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de
uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento da potência geral do intelecto
humano.41 Com isso desmorona a produção baseada no valor de troca, e
o processo de produção material imediato se despoja da forma de carecimento e
antagonismo. Trata-se agora de desenvolver livremente as individualidades, e
não de reduzir o tempo de trabalho necessário, tendo em vista criar
mais-trabalho; a redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo passa
a corresponder à formação artística, científica etc., dos indivíduos graças ao
tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos.”42
Em outra
passagem dos Grundrisse, Marx escreveu: “A criação de muito tempo
disponível43 — além do tempo de trabalho necessário — para a sociedade
em geral e para cada integrante dela (isto é, espaço para o desenvolvimento de
toda a capacidade produtiva do indivíduo e portanto também da sociedade), essa
criação de tempo de não-trabalho é, do ponto de vista do capital, assim como em
todos os estágios precedentes, tempo de não-trabalho ou tempo livre para
alguns. Mediante todos os recursos da arte e da ciência, o capital aumenta o
tempo de mais-trabalho da massa, pois sua riqueza consiste na apropriação
direta de valor resultante do mais-trabalho; seu objetivo é diretamente o
valor, não o valor de uso. Assim, malgré lui, serve de
instrumento para criar as possibilidades do tempo disponível em escala social,44
para reduzir a um mínimo decrescente o tempo de trabalho de toda a sociedade e
tornar livre o tempo de todos, para o desenvolvimento de todos. Porém, a
tendência do capital é sempre, de um lado, criar tempo disponível e, de outro,
convertê-lo em mais-trabalho.45 Se tem êxito no primeiro
objetivo, experimenta uma superprodução; o trabalho necessário será
interrompido, pois o capital não pode realizar mais-trabalho46
algum.47 Quanto mais se desenvolve esta contradição, tanto mais
evidente fica que o desenvolvimento das forças produtivas não pode permanecer
confinado à apropriação de mais-trabalho alheio. A própria massa trabalhadora
deve apropriar-se de seu mais-trabalho. Fazendo-o — e por isso o tempo
disponível deixará de ter uma existência antitética —, o tempo de trabalho
necessário encontrará sua medida nas necessidades do indivíduo social, e o
desenvolvimento da força produtiva social será tão mais rápido que, embora a
produção seja calculada em função da riqueza comum, crescerá o tempo disponível
de todos, pois a riqueza real é a capacidade produtiva desenvolvida de todos os
indivíduos. O tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza, e o tempo
disponível assume este papel. O tempo de trabalho como medida da riqueza
coloca a própria riqueza como algo baseado na pobreza, e coloca o tempo
disponível como algo imerso na antítese com o tempo de
mais-trabalho; ou então coloca todo o tempo de um indivíduo como tempo de
trabalho, degradando-o em mero trabalhador.”48
Esta é a
análise de Marx sobre as transformações históricas surgidas do papel da
maquinaria no processo de produção capitalista. Hoje, diante de uma nova
revolução industrial em curso, não é necessário destacar a transcendência
profética dessa concepção imensamente dinâmica e radicalmente otimista. O que o
revolucionário alemão sonhava solitariamente em 1858, em seu exílio em Londres,
ingressou hoje em dia — mas só hoje em dia — no âmbito do que é imediatamente
possível. Graças ao desenvolvimento da técnica moderna, estão finalmente dadas
— pela primeira vez — as condições para suprimir total e definitivamente o
“roubo do tempo de trabalho alheio”; agora — pela primeira vez — podem ser
impulsionadas tão poderosamente as forças produtivas da sociedade que, de fato,
e em um futuro não muito longínquo, a medida da riqueza social não será mais o
tempo de trabalho, mas sim o tempo disponível. Até o presente, todos os métodos
para elevar a produtividade do trabalho humano revelaram-se ao mesmo tempo, na
prática capitalista, métodos de degradar, subordinar e despersonalizar cada vez
mais o trabalhador. Hoje, o desenvolvimento técnico chegou a um ponto no qual
os trabalhadores poderão finalmente libertar-se da “serpente de seus
tormentos”, da tortura sem fim do trabalho cansativo, monótono e fragmentado,
para se converterem de meros apêndices em verdadeiros dirigentes do processo de
produção. Nunca estiveram tão maduras as condições para uma transformação
socialista da sociedade, nunca o socialismo foi tão imprescindível e
economicamente viável. Recordemos a objeção burguesa, segundo a qual a ordem
social socialista teria de desmoronar perante a necessidade de trabalhos duros
e desagradáveis, que todos tentariam evitar, empurrando-os para os demais.49
Diante do fabuloso desenvolvimento atual das forças produtivas, quão ridícula
deve parecer esta observação, que reflete a natureza do burguês médio! Enquanto
era necessário levar água em baldes até as habitações, não eram poucas as
pessoas que tratavam de passar esta tarefa a outros; todavia, com a instalação
de tubulações de água corrente, o ofício dos distribuidores de água tornou-se
supérfluo. O desenvolvimento técnico nos impele para uma situação na qual pode
desaparecer a divisão do trabalho até hoje dominante, que mutila o homem, e com
ela todos os seus tormentos, sendo seu lugar ocupado pelo trabalho como
ocupação livre das forças físicas e intelectuais. Assim como seria um disparate
— para lembrar novamente a engenhosa comparação de Trotsky50 — que
os comensais de uma boa pensão, onde a mesa é abundantemente servida,
disputassem o pão, a manteiga e o açúcar, do mesmo modo seria absurdo e insensato
na nova sociedade o “roubo do trabalho alheio’’, a exploração
do homem pelo homem. Mas só então estará assegurada a construção de uma ordem
social realmente sem classes e socialista.”
39. Grundrisse, p. 77.
40.
Em inglês no original: “powerful effectiveness”.
41.
Cf. capítulo 17 deste trabalho.
42. Grundrisse,
p. 592-593.
43.
Em inglês no original: “disposable time”.
44. Em inglês no original: “instrumental in creating the means of
social disposable time”.
45. Em inglês no original: “to convert it into surplus labour”.
46.
Em inglês no original: “surplus labour”.
47.
Cf Das Kapital, III, p. 266: “Uma superprodução de capital significa uma
superprodução de meios de produção — meios de trabalho e meios de subsistência
— que possam atuar como capital, ou seja, possam ser usados para explorar o
trabalho com um determinado grau de exploração; pois a diminuição desse grau de
exploração até um nível abaixo de certo ponto provoca perturbações e
paralisações no processo de produção capitalista, crise e destruição de
capital.”
48. Grundrisse,
p. 595-596.
49.
Blanqui já ressaltava com malícia que a objeção dos críticos burgueses — “quem limpará as escarradeiras no socialismo?” —
poderia ser reduzida, no fundo, a uma simples pergunta: “quem limpará a minha
escarradeira?”.
50. Cf. The Revolution Betrayed, p. 46.
“Mas
tempo livre, tempo disponível, é a própria riqueza — em parte para fruir dos
produtos, em parte para realizar atividades livres, que, ao contrário do
trabalho, não estão determinadas pela coerção de uma finalidade externa que
deve cumprir-se —, cujo preenchimento obedece a uma necessidade natural ou a um
dever social, como se queira.” (Karl Marx, Theorien, III, p. 253)
“A história é a mais cruel de todas as deusas. Seu carro triunfal passa
sobre montanhas de cadáveres, não só na guerra, mas também no desenvolvimento
econômico ‘pacífico’.” (Friedrich Engels)
“Os
resultados nada são sem o desenvolvimento que conduziu a eles. Sabemos disso
desde Hegel...” (Friedrich Engels)
Nenhum comentário:
Postar um comentário