sexta-feira, 7 de maio de 2021

Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Parte IV), de Roman Rosdolsky

Editora: EDUERJ / Contraponto

ISBN: 978-85-85910-42-6

Tradução: César Benjamin

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 624

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Sinopse: Ver Parte I



““É inerente ao conceito de capital, em sua gênese, que ele surja do dinheiro e, portanto, da riqueza que existe sob a forma de dinheiro. Também é inerente que ele surja da circulação, que apareça como produto da circulação. O capital não se forma a partir da propriedade da terra (quando muito, pode formar-se a partir do arrendatário, se ele faz comércio com produtos agrícolas), tampouco da corporação (embora neste último ponto [haja] uma possibilidade),23 mas sim da riqueza formada no comércio e na usura.”24 A primeira constitui, uma condição importante e necessária para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, já que “pressupõe a produção para o comércio, a venda por atacado e não a um cliente individual, ou seja, a presença de um comerciante que também não compra para satisfazer necessidades pessoais, mas que concentra em seu ato de compra os atos de compra de muitos”. Por outro lado, o desenvolvimento da riqueza comercial tende a “imprimir à produção um caráter cada vez mais orientado na direção do valor de troca”, minando assim as antigas relações de produção. (Marx falava da “ação dissolvente” do comércio e da riqueza comercial.)25 Todavia, esse efeito “considerado por si só [...] é insuficiente para explicar a transição de um modo de produção a outro”26 (ou seja, do feudal ao capitalista). (Lemos nos Grundrisse: “Caso contrário, a antiga Roma, Bizâncio etc. teriam terminado sua história com trabalho livre e capital, ou melhor, teriam começado uma nova história. Também ali a dissolução das velhas relações de propriedade estava ligada ao desenvolvimento da riqueza monetária, do comércio etc. Mas, em vez de conduzir à indústria, essa dissolução conduziu na verdade27 ao predomínio do campo sobre a cidade.”)28

Não foi a riqueza em dinheiro, como tal, que converteu em capitalistas os comerciantes e pessoas endinheiradas dos séculos XV ao XVII. Pelo contrário, essa conversão pressupunha o processo histórico da separação dos meios de produção em relação ao trabalho e aos trabalhadores. Só depois desse processo “ter alcançado certo nível, a riqueza monetária pôde colocar-se como intermediária entre as condições objetivas de vida, assim liberadas, e as forças de trabalho vivas, liberadas mas também despossuídas, e assim pôde comprar umas com as outras”.29 Só então tornou-se possível a “acumulação primitiva” das condições de produção por parte dos capitalistas.

Não foi, de modo algum, uma criação a partir do nada (como, no fundo, propõe a economia burguesa).30 “O processo de dissolução transforma uma massa de indivíduos de uma nação em trabalhadores assalariados virtualmente livres. Essa carência de propriedade obriga os indivíduos a trabalhar e a vender seu trabalho. Isso não significa que as fontes precedentes de renda desses indivíduos tenham desaparecido, mas sim, ao contrário, que seu uso tenha sido alterado [...].” Pois “o mesmo processo que — de uma maneira ou de outra31 — destruiu as relações positivas preexistentes de uma multidão de indivíduos com as condições objetivas do trabalho, processo que negou essas relações e transformou esses indivíduos em trabalhadores livres, esse mesmo processo virtualmente liberou as condições objetivas do trabalho — terras, matérias-primas, meios de subsistência, instrumentos de trabalho, dinheiro ou tudo isso [em conjunto] — dos vínculos que até então as ligavam aos indivíduos, agora separados delas”. Esse processo “baseou-se na separação de elementos até então ligados: logo, seu resultado não consiste em que um dos elementos desapareça, mas sim em que cada um deles apareça em uma relação negativa com o outro, o trabalhador livre (como possibilidade), de um lado, o capital (como possibilidade), de outro”. Por isso, a criação de trabalhadores livres, separados das condições objetivas de trabalho, deve “aparecer, no polo oposto, como uma autonomização dessas mesmas condições.32

Marx prossegue: “Nada mais estúpido que conceber essa formação primitiva do capital como se este houvesse acumulado e criado as condições objetivas da produção — meios de subsistência, matérias-primas, instrumentos — e as houvesse entregue aos trabalhadores despojados delas33 [...]. Sua formação primitiva ocorre simplesmente quando, através do processo histórico de dissolução do antigo modo de produção, o valor existente como riqueza monetária adquire, por um lado, a capacidade de comprar as condições objetivas do trabalho e, por outro, a de trocar por dinheiro o trabalho vivo dos trabalhadores livres. Todos esses elementos existiam;34 sua separação é um processo histórico, um processo de dissolução, e é esse processo que permite ao dinheiro transformar-se em capital.35 Nesse processo, o próprio dinheiro só é ativo quando intervém como um meio de separação extremamente enérgico e ajuda a criar trabalhadores despossuídos, objetivamente livres; não cria para eles as condições objetivas de sua existência, mas ajuda a acelerar sua separação dessas condições, sua carência de propriedade.”36

Nessa etapa, “o que é específico do capital é o fato de ele juntar as massas de braços e os instrumentos que encontra e aglomerá-los sob sua autoridade. Esta é sua verdadeira acumulação, a acumulação de trabalhadores em [determinados] pontos, junto com seus instrumentos.”37 Todavia, considerando-se “a situação histórica fundamental que é o ponto de partida desse processo [a manufatura etc.], tal concentração só pode ter lugar se esses trabalhadores virarem assalariados, isto é, trabalhadores que devem vender sua força de trabalho porque se defrontam com os meios de produção como propriedade alheia, como uma potência estranha e autônoma [...] [porque] o controle desses meios se encontra em mãos de poucos proprietários de dinheiro ou de mercadorias, que assim se convertem em capitalistas”.38 Aqui, é preciso distinguir entre a forma capitalista e o conteúdo desse processo. Pois a condição geral do trabalho, como tal, é que “devem existir meios de subsistência para o trabalhador antes de serem produzidos os novos”, e que os “produtos do trabalho devem constituir a matéria-prima e os instrumentos de sua reprodução”. Só no capitalismo essa reserva de meios de produção e de subsistência adota a forma de mercadorias e de capital. “Mas os economistas sempre expressam como uma propriedade do objeto o que é uma propriedade, uma característica, do modo de produção capitalista, ou seja, do próprio capital, na medida em que ele expressa determinada relação dos produtores entre si e com seu produto.”39

23. “Ao ocorrer a dissolução das corporações, alguns mestres se transformam em capitalistas industriais; não obstante, esse caso é raro, o que está de acordo com a natureza da coisa. Ali onde surgem o capitalista e o operário, em geral a corporação se arruína, o mestre e o oficial se arruínam” (ibid., p. 405).

24. Ibid., p. 404.

25. O termo aparece nos Grundrisse, p. 741-742. Ver nota 17 do capítulo 8.

26. Das Kapital, III, p. 358-359.

27. No original, “in fact”.

28. Grundrisse, p. 405. Cf. Das Kapital, III, p. 364: “No mundo antigo, os resultados do comércio e do desenvolvimento do capital comercial foram sempre a economia escravista; segundo o ponto de partida, eles resultaram na transformação de um sistema escravista patriarcal, voltado para a produção de meios de subsistência direta, em um sistema orientado para a produção de mais-valia. Em troca, na era moderna, desembocam no modo capitalista de produção. Disso se deduz que esses mesmos resultados ainda estavam condicionados por outras circunstâncias totalmente diferentes do desenvolvimento do capital comercial.”

29. Grundrisse, p. 408.

30. Cf. Das Kapital, II, p. 134-135.

31. Em francês no original: “d’une maniêre ou d’autri’.

32. Grundrisse, p. 402-403.

33. Em uma nota de pé de página, Marx observa: “Fica logo claro que circuito absurdo surgiria se, de um lado, os trabalhadores que o capital deve colocar em ação para agir como capital devessem primeiro ser criados, devessem ser chamados à vida, através da acumulação do capital, devessem esperar deste um “façam-se os trabalhadores!”, enquanto o próprio capital não fosse capaz de acumular-se sem trabalho alheio; o máximo que poderia fazer seria acumular seu próprio trabalho, ou seja, existir então como não-capital e não-dinheiro, pois o trabalho antes da existência do capital só pode valorizar a si próprio em formas como a do trabalho artesanal, a agricultura em pequena escala etc., em suma, só em formas que não permitem acumular, ou só o permitem em escassa quantidade, e formas que só deixam um pequeno produto excedente, que é consumido em sua maior parte” (ibid., p. 406).

34. Isso vale também para os instrumentos de trabalho; pois “a riqueza em dinheiro não descobriu nem fabricou o torno de fiar nem o tear. Mas, separados da terra, os fiandeiros e os tecelões, com seus tornos e teares, caíram sob o domínio da riqueza em dinheiro etc.” (ibid., p. 407).

35. O texto prossegue: “A maneira como o dinheiro se transforma em capital com frequência se torna visível, de uma forma simples e clara, quando o mercador, por exemplo, faz trabalhar para si mais tecelões e fiandeiros, que até então trabalhavam no tecido e na fiação como atividade acessória da agricultura, de tal modo que ele converte essa atividade acessória em ocupação central; daí em diante, está mais seguro deles, pois os converteu em trabalhadores assalariados sob seu comando. Mudá-los de seus lugares de origem e reuni-los em um local de trabalho é um passo posterior. Nesse simples processo se vê claramente que o capitalista não criou matérias-primas, nem instrumentos, nem meios de subsistência para tecelões e fiandeiros. Tudo o que fez foi limitá-los cada vez mais a um tipo de trabalho, no qual se tornam dependentes da venda, do comprador, do comerciante e finalmente só produzem para e por intermédio dele. Originariamente, este só comprava trabalho através da compra do produto; nem bem os trabalhadores se limitaram à produção deste valor de troca — e, por conseguinte, devem produzir valor de troca imediato, intercambiar todo o seu trabalho por dinheiro para poder seguir existindo —, caem sob o comando do comerciante e finalmente desaparece também a aparência de que eles lhe vendem seus produtos. Ele compra seu trabalho e lhes retira primeiro a propriedade do produto, em seguida a do instrumento, ou as deixa como propriedade aparente, para diminuir seus próprios custos de produção” (ibid., p. 409-410).

36. Ibid, p. 406 e 408.

37. Ibid, p. 407.

38. Theorien, III, p. 267.

39. Ibid., p. 266-267.

 

 

“A história da humanidade divide-se em três etapas, na forma de uma tríade dialética:’“As relações de dependência pessoal[...] são as primeiras formas sociais; nelas, a capacidade produtiva humana só se desenvolve em âmbito restrito e em lugares isolados. A independência pessoal, construída com base na dependência em relação às coisas, é a segunda forma importante; nela, constitui-se pela primeira vez um metabolismo social geral, um sistema de relações universais, necessidades universais e capacidades universais. A livre individualidade, baseada no desenvolvimento universal dos indivíduos e na produtividade coletiva, social, considerada como patrimônio social, constitui o terceiro estágio. O segundo cria as condições do terceiro.”6

Aqui se resume o essencial da história da humanidade, um processo necessário de formação da personalidade humana e de sua liberdade. Mas, do ponto de vista de Marx, o mais importante não era tanto demonstrar a necessidade desse processo (que já havia sido reconhecida pela filosofia clássica alemã), mas sim liberar essas noções de toda ilusão ideológica, colocando-as sobre a base firme da história real, ou seja, do desenvolvimento das relações sociais de produção. Esta tarefa exigia a ajuda do método materialista.

Podemos ler nos Grundrisse: “Quando se consideram relações sociais que produzem um sistema não desenvolvido de troca, de valores de troca e de dinheiro [ou seja, relações pré-capitalistas], é claro que os indivíduos — mesmo quando suas relações são vividas como relações entre pessoas — só estabelecem vínculos entre si na condição de portadores de um caráter bem definido: senhor feudal e vassalo, proprietário de terras e servo da gleba etc., ou membro de uma casta etc., ou então integrante de um estamento etc. Nas relações monetárias, no sistema de trocas desenvolvido (e esta aparência seduz os democratas), os vínculos de dependência pessoal, as diferenças de sangue, educação etc. são destruídos, esgarçados, [...] e os indivíduos parecem independentes7 [...], parecem livres para se defrontar uns com os outros e realizar trocas em liberdade. Mas, só podem ser vistos assim por quem abstrai as condições de existência dentro das quais eles se relacionam. [...] No primeiro caso, o caráter bem definido aparece como uma limitação pessoal do indivíduo diante do outro; no segundo, se apresenta como uma limitação objetiva do indivíduo, resultante de relações que são independentes dele e se baseiam em si mesmas. (Como o indivíduo não pode eliminar seu caráter pessoal, mas pode superá-lo e subordinar a ele as relações externas, sua liberdade parece ser maior no segundo caso. Porém, uma análise mais precisa dessas relações externas, dessas condições, mostra que os indivíduos de uma classe não podem superar en masse tais relações, nem têm condições de suprimi-las. Um indivíduo isolado pode fazer isso, mas tal não ocorre com a massa dos que são dominados por elas, já que sua permanência expressa a necessária subordinação dos indivíduos a suas próprias relações.) Estas relações externas não removem as ‘relações de dependência’. Constituem apenas a dissolução destas em uma forma geral. São, antes de tudo, a afirmação do princípio geral das relações pessoais de dependência [...].”8

Em uma observação marginal dos Grundrisse, feita nos marcos da análise do “poder objetivo do dinheiro”, podemos ler: “Foi dito e poderia ser repetido que a beleza e a grandeza desse sistema residem precisamente nesse vínculo espontâneo, nesse metabolismo material e espiritual, que independe do conhecimento e da vontade dos indivíduos, e que pressupõe sua indiferença e independência recíprocas. Esse vínculo objetivo é preferível à ausência de vínculos ou a vínculos locais baseado7s em consanguinidade, ou nas [relações] de senhorio e servidão. Também é certo que os indivíduos não podem dominar suas próprias relações sociais9 antes de havê-las criado. Mas é absurdo conceber este vínculo puramente material como tendo sido criado naturalmente, como inseparável da natureza da individualidade e imanente a ela [...]. O vínculo é um produto dos indivíduos. É um produto histórico. Pertence a uma determinada fase do desenvolvimento. A forma externa e autônoma com que esse vínculo existe diante dos indivíduos demonstra que estes estão em via de criar as condições de sua vida social; ainda não começaram a vivê-la. É o vínculo [...] entre os indivíduos imersos em relações de produção determinadas e estreitas.” De outro lado, “em estágios de desenvolvimento anteriores, o indivíduo se apresenta com maior plenitude precisamente porque ainda não elaborou plenamente suas relações e não as pôs diante dele como potências e relações sociais autônomas. É ridículo sentir nostalgia daquela plenitude primitiva; mas também é ridículo crer que é preciso deter-se no esvaziamento completo”10 que caracteriza a época atual.11 “O ponto de vista burguês jamais se elevou acima da oposição a esta visão romântica, e por isso ela o acompanhará como uma oposição legítima até sua morte piedosa.”12

O conceito burguês de liberdade padece do modo de pensar a-histórico de seus porta-vozes, que absolutizam uma individualidade própria de uma época e de um modo de produção determinados, confundindo-a com a realização da “liberdade plena”. (“Uma pessoa que crê em determinada religião vê nela a religião verdadeira, e vê fora dela apenas religiões falsas.”)13 Não compreendem que a liberdade burguesa, longe de representar a encarnação da “liberdade em geral”, é um produto específico do modo de produção capitalista, e por isso compartilha as limitações deste. Libertados das barreiras anteriores, os seres humanos foram submetidos no capitalismo a uma nova sujeição, ao domínio reificado das relações de produção (que escaparam de qualquer controle), ao cego poder da concorrência e da casualidade.14 Tornaram-se mais livres em um aspecto e menos livres em outro.

Esse modo de pensar a-histórico aparece com clareza na maneira como os economistas burgueses (e a ideologia burguesa em geral) julgam a concorrência capitalista. Apesar de a concorrência, diz Marx, “se apresentar historicamente como dissolução das coerções corporativas, regulamentações governamentais, aduanas internas e instituições similares no interior de um país, e no mercado mundial como supressão de obstruções, proibições e protecionismos”, ela jamais foi considerada “em seu aspecto puramente negativo, puramente histórico”. “Essa consideração levou à necessidade, ainda mais absurda, de ver a concorrência como um enfrentamento de indivíduos desacorrentados, movidos apenas por seus próprios interesses; como repulsão e atração de indivíduos livres; como a forma absoluta de existência da livre individualidade na esfera da produção e da troca.”

“Nada mais falso”, acrescenta. Pois, em primeiro lugar, “embora a concorrência tenha dissolvido os obstáculos que se opunham a certas relações em modos de produção anteriores, deve-se considerar antes de mais nada15 que o que para ela era obstáculo, para os modos de produção anteriores eram limites imanentes, dentro dos quais se desenvolviam e se moviam com naturalidade. Esses limites só se tornaram obstáculos quando as forças produtivas e as relações de troca se desenvolveram a ponto de o capital poder apresentar-se como princípio regulador da produção. Os limites que o capital aboliu eram obstáculos para o seu movimento, desenvolvimento e realização. Ele não suprimiu todos os limites, todos os obstáculos, mas só os que não eram adequados a ele, os que constituíam limites e obstáculos para ele.16 Dentro de seus próprios limites — que, de um ponto de vista mais elevado, se apresentam como obstáculos à produção [...] — sente-se livre, ilimitado, isto é, limitado só por si mesmo, por suas condições de existência. Ora, a indústria corporativa, em seu período de esplendor, encontrava na organização gremial a liberdade de que necessitava, ou seja, as relações de produção que lhe eram correspondentes. Ela [a indústria corporativa] as criou a partir de si mesma e as desenvolveu como suas condições imanentes, de modo algum, portanto, como barreiras externas e opressivas. O aspecto histórico da negação do regime corporativo etc., por parte do capital e através da concorrência, significa apenas que, suficientemente fortalecido, o capital derrubou, graças ao modo de intercâmbio que lhe é adequado, as barreiras históricas que atrapalhavam e freavam o movimento conveniente à sua própria natureza.”

Todavia, a concorrência não tem apenas esse significado histórico negativo. Também é, por sua natureza, a realização do modo de produção capitalista.17 É uma ilusão afirmar que, “nos marcos da concorrência, os indivíduos, obedecendo exclusivamente a seus interesses privados, realizam os interesses comuns ou mesmo18 gerais”19 “Na livre concorrência, não são livres os indivíduos, mas sim o capital. Quando a produção baseada no capital é a forma necessária, e portanto a mais adequada, ao desenvolvimento da força produtiva social, o movimento dos indivíduos nos marcos das condições estabelecidas pelo capital se apresenta como a liberdade destes. Esta liberdade é afirmada de forma dogmática, enfatizando-se sistematicamente obstáculos derrubados pela concorrência.”20 Daí “a insipidez de considerar a concorrência como o último desenvolvimento da liberdade humana e a negação da concorrência como igual à negação da liberdade individual e o fim da produção social baseada na liberdade individual. O desenvolvimento atual é livre sobre uma base limitada, a base da dominação pelo capital. Este tipo de liberdade individual é, ao mesmo tempo, uma abolição da liberdade individual e a subjugação completa da individualidade a condições sociais que adotam a forma de poderes objetivos, de coisas poderosíssimas [...]. Submeter a concorrência à crítica é a única resposta racional ao seu endeusamento pelos profetas da classe média21, ou à sua apresentação como demoníaca por parte dos socialistas.”22 “Afirmar que a concorrência é a última forma de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, da liberdade humana significa afirmar que a dominação da classe média é o fim da história mundial [...].”23

O que estamos lendo é uma continuação de raciocínios que já encontramos em A ideologia alemã: ao longo da história da humanidade, o desenvolvimento das forças produtivas substituiu as relações de dependência originárias, pessoais, por outras objetivas, e o vínculo local e nacional dos homens por outro, universal. Já em A ideologia alemã, Marx e Engels destacam o caráter contraditório e dicotômico do progresso social até o presente: de um lado, criou um indivíduo social mais capaz de se desenvolver e mais rico em necessidades; de outro, converteu-se na mais ampla “alienação” e “esvaziamento” desse mesmo indivíduo. Também se encontra ali o raciocínio de que a liberação dos homens em relação aos constrangimentos feudais e outros, realizada pelo capitalismo, produz uma liberdade aparente. A liberdade, plena, o “desenvolvimento original e livre dos indivíduos”, só poderia converter-se em realidade no comunismo. Podemos ler em A ideologia alemã: “Sob o domínio da burguesia, os homens são idealmente mais livres que, antes, pois suas condições de vida lhes são fortuitas; na realidade, porém, são menos livres, pois estão mais submetidos à coerção das coisas.” “Esse direito de poder desfrutar da contingência e do acaso sem ser perturbado, dentro de certas condições, foi chamado até hoje liberdade pessoal “24 Essa concepção é desenvolvida nos Grundrisse, com maior intensidade e nitidez no que diz respeito ao outro aspecto, positivo, da contradição: o progresso real produzido pela “pseudoliberdade burguesa”.

Isso se vê com especial clareza na notável passagem que trata do “infantil mundo antigo”, em contraste com o mundo moderno do capitalismo. Marx, diz: “Nunca encontraremos entre os antigos uma investigação sobre qual forma de propriedade da terra é a mais produtiva, cria mais riqueza. A riqueza não aparece como objetivo da produção, embora possa Catão investigar qual maneira de cultivar o campo deve ser mais lucrativa, ou Brutus emprestar seu dinheiro à maior taxa de juros. Para eles, a questão é saber qual modo de propriedade cria melhores cidadãos[...].” Coisa muito diferente ocorre no mundo moderno. Neste, a riqueza aparece “[...] com a forma de coisa — trate-se de um objeto ou de uma relação mediada por um objeto —, que é externa em relação ao indivíduo e mantém com ele uma relação acidental. Por isso, a concepção antiga — segundo a qual o homem, qualquer que seja a limitada determinação nacional, religiosa ou política em que se apresente, é sempre o objetivo da produção — parece sublime diante do mundo moderno, no qual a produção aparece como o objetivo do homem, e a riqueza como o objetivo da produção. Mas, na realidade,25 se se retira da produção sua mesquinha forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades, gozos, forças produtivas etc., dos indivíduos, criada através do intercâmbio universal? Que é, senão o desenvolvimento pleno do domínio humano sobre as forças naturais, tanto sobre as da assim chamada natureza como sobre a própria natureza humana? Que é, senão a expressão de suas potencialidades criadoras, tendo como único pressuposto o desenvolvimento histórico precedente e permitindo o desenvolvimento das capacidades humanas como tais, não medidas por um padrão preestabelecido? Que é, senão uma criação na qual o homem não se reproduz de modo limitado, mas sim produz sua própria totalidade? Nesse caso, ele não busca permanecer como algo que já veio a ser: está no movimento do devir. Na economia política burguesa — e na época produtiva que lhe corresponde —, a plena expressão do homem aparece como seu esvaziamento pleno; a objetivação universal, como alienação total;26 e a destruição de todos os objetivos unilaterais e limitados, como sacrifício do objetivo próprio diante de um objetivo completamente externo. Por isso o infantil mundo antigo aparece, de um lado, como superior; de outro, o é em tudo aquilo em que se busque uma configuração fechada, com forma e limitação dadas. É satisfação de um ponto de vista limitado, enquanto o [mundo] moderno deixa insatisfeito ou, onde aparece satisfeito consigo mesmo, é vulgar.”27

Aqui se manifesta com clareza o contraste entre a crítica marxista e a crítica romântica ao capitalismo. O que Marx reprovava nos românticos não eram apenas suas “lágrimas sentimentais”28 nem a circunstância de que, com intenções demagógicas, “agitam nas mãos o embornal de proletário como uma bandeira”, ocultando ao mesmo tempo, atrás das costas, “os antigos brasões feudais”.29 Ele reprovava especialmente o fato de que os românticos eram incapazes de compreender “o devir da história moderna”, ou seja, a necessidade e o caráter historicamente progressista da ordem social burguesa que criticavam, limitando-se a uma condenação de tipo moral.

O domínio do capital se baseia em extrair mais-trabalho, explorar e oprimir as massas populares. Neste aspecto, ele certamente supera “em energia, ímpeto e eficácia todos os sistemas de produção precedentes, baseados no trabalho diretamente compulsório”.30 O capital foi quem “primeiro capturou o progresso histórico, colocando-o a serviço da riqueza”.31 A produção capitalista é a primeira que “se transforma em um modo de exploração que inicia uma época; no transcurso de seu desenvolvimento histórico, mediante a organização do processo de trabalho e o enorme aperfeiçoamento da técnica, revoluciona a estrutura econômica da sociedade, de modo a eclipsar as épocas anteriores”.32

O que distingue radicalmente a produção capitalista em relação a todos os modos de produção anteriores é o seu caráter universal, seu impulso em direção a uma permanente revolução das forças produtivas materiais. As etapas pré-capitalistas da produção — por seus métodos de trabalho primitivos, não desenvolvidos — nunca conseguiram desenvolver o trabalho para muito além do necessário à manutenção imediata da vida. “O sentido histórico do capital” consiste precisamente em “criar o trabalho excedente, trabalho supérfluo do ponto de vista do mero valor de uso, da mera subsistência”. O capital cumpre essa missão ao desenvolver de modo sem precedentes as forças produtivas sociais, de um lado, e as necessidades e capacidades de trabalho dos homens, de outro.

A “missão histórica do capital”, diz uma passagem particularmente expressiva dos Grundrisse, “se completa, de um lado, quando as necessidades estão tão desenvolvidas que o trabalho excedente (que produz acima e além das necessidades) passa a ser, ele mesmo, uma necessidade geral, que surge das próprias necessidades individuais; de outro lado, quando a disciplina estrita do capital, pela qual passaram sucessivas gerações, desenvolveu uma laboriosidade universal que foi apropriada pelas novas gerações”;33 finalmente, “quando o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, impulsionado continuamente pelo capital — em sua ilimitada busca de enriquecimento e nas únicas condições sob as quais esta busca pode realizar-se —, alcançou tal ponto que a posse e a conservação da riqueza geral exigem um tempo de trabalho menor para a sociedade inteira; [então] a sociedade se relacionará cientificamente com o processo de sua reprodução, em meio a uma abundância crescente: deixará de existir o trabalho no qual o homem faz aquilo que as coisas podem fazer em seu lugar[...]. Em sua aspiração incessante pela forma universal da riqueza, o capital impele o trabalho a ultrapassar os limites de sua necessidade natural, criando os elementos materiais para o desenvolvimento de uma rica individualidade, multilateral na produção e no consumo. O trabalho, nesse caso, não se apresenta como trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade.34 Desapareceu a necessidade natural direta, substituída por uma necessidade historicamente produzida. Por isso, o capital é produtivo; ou seja, é uma relação essencial para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Só deixa de sê-lo quando o desenvolvimento das forças produtivas encontra um limite no próprio capital”.35

Em outras palavras: enquanto os modos de produção anteriores eram compatíveis com forças produtivas que só avançavam muito lentamente, e até mesmo permaneciam estacionárias durante períodos prolongados,36 o capital se baseia no “constante revolucionamento de suas premissas”. “Embora seja limitado por sua própria natureza, [o capital] tende a produzir um desenvolvimento universal das forças produtivas e se converte na premissa de um novo modo de produção, que não se baseará em um desenvolvimento das forças produtivas que reproduza e amplie uma condição limitada. Será um modo de produção no qual o desenvolvimento livre, desimpedido, progressivo e universal das forças produtivas constitui a premissa da sociedade e, portanto, de sua reprodução; no qual a única premissa é superar o ponto de partida.”37 Só sobre esta nova base será possível a “universalidade do indivíduo, não como universalidade ideal ou imaginada, mas como universalidade de suas relações reais e ideais. Daí, também, a compreensão de sua própria história como um processo e o reconhecimento da natureza (o qual existe também como poder prático sobre ela) como seu corpo real.”38 Assim, graças ao desenvolvimento do capitalismo, prepara-se inclusive a solução do problema da personalidade humana e de sua liberdade, colocado pela história. Deste ponto de vista, nunca se poderá enfatizar suficientemente a conquista histórica do capitalismo, que tantas vezes Marx destaca tão claramente.”

6. Das Kapital, III,, p. 222-223.

7. Ibid., p. 225-226.

8. Ibid., p. 250. Cf Theorien, 11, p. 441: “A taxa de lucro cai — mesmo que a taxa de mais-valia permaneça idêntica ou cresça — porque, com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, o capital variável diminui em relação ao capital constante. Não cai porque o trabalho se tenha tornado mais improdutivo, mas sim porque se tornou mais produtivo. Em consequência, o mais-trabalho absoluto aumenta, não porque o trabalhador seja menos explorado, mas sim porque é mais explorado; quando o Estado inibe isso, a produção capitalista é inseparável do valor relativo descendente do trabalho e, portanto, aumenta o mais-trabalho relativo.”

9. Aqui caberia citar, além da passagem citada na nota 8, especialmente as p. 237, 296, 305 e 359 do terceiro tomo das Teorias. Na p. 296, Marx diz: “Expliquei a queda na taxa de lucro, apesar de a taxa de mais-valia permanecer constante e até mesmo aumentar, pelo fato de que o capital variável decresce em relação ao capital constante, ou seja, diminui o trabalho vivo presente em relação ao trabalho passado que é empregado e reproduzido.” Na p. 305: “Portanto, aqui se resolve o ponto de vista de Hodgskin na lei geral que desenvolvi. A mais-valia, a exploração do trabalhador, aumenta. Ao mesmo tempo, cai a taxa de lucro, pois o capital variável diminui em relação ao capital. constante; a massa de trabalho vivo diminui relativamente, em relação ao capital que o põe em movimento. O capitalista se apropria de uma parte maior do produto anual do trabalho sob a rubrica de capital, e de uma parte menor sob a rubrica de lucro” (cf. Das Kapital, III, p. 256).

10. De forma semelhante, Sweezy argumenta: “Vimos que Marx deduz a tendência à queda na taxa de lucro baseando-se na suposição de que a composição orgânica do capital aumenta, sendo constante a taxa de mais-valia. Porém, será justificável supor uma taxa de mais-valia constante? É necessário compreender as implicações desta última suposição. Um aumento da composição orgânica do capital se produz simultaneamente a um crescimento da produtividade do trabalho. Se a taxa de mais-valia permanece constante, isso significa que os salários reais aumentam de forma proporcional ao aumento da produtividade do trabalho. Suponhamos que a produtividade do trabalho duplique, ou seja, que no mesmo tempo o trabalho produza o dobro de antes. Então, já que uma taxa de mais-valia inalterada significa que o trabalhador trabalha a mesma quantidade de tempo para si e a mesma quantidade para o capitalista, como antes, se depreende que tanto o rendimento físico representado pelo salário como o rendimento físico representado pela mais-valia duplicaram. Em outras palavras, o trabalhador se beneficia da mesma forma que o capitalista com o aumento da produtividade de seu trabalho. Embora não possa haver objeções lógicas a uma hipótese que conduza a este resultado, há motivos para duvidar de sua adequação [...]” (op. cit, p. 100-101).

11. Joan Robinson, op. cit, p. 36.

12. Ibid., p. 42.

13. Paul M. Sweezy, A teoria do desenvolvimento capitalista, 1942, p. 101.

14. Das Kapital, III, p. 244. “Existem muitos fatores de intensificação do trabalho que implicam um crescimento do capital constante em relação ao variável, ou seja, uma queda da taxa de lucro, como quando um trabalhador deve supervisionar maior volume de maquinaria[...]. Mas existem outros fatores de intensificação, como por exemplo uma aceleração na velocidade da maquinaria: esta utiliza agora maior quantidade de matéria-prima no mesmo tempo, mas, no que diz respeito ao capital fixo, embora consuma mais rapidamente a maquinaria, não será afetada a relação entre seu valor e o preço do trabalho que a coloca em movimento. Mas é especialmente o prolongamento da jornada de trabalho — esta invenção da indústria moderna — o que aumenta a massa de mais-trabalho apropriado sem modificar no essencial a relação entre a força de trabalho empregada e o capital constante que coloca em movimento, já que, de fato, diminui em relação a este último” (ibid., p. 242-243). O primeiro parágrafo do capítulo XIV trata desses fatores.

15. Por isso, Sweezy erra quando formula a seguinte reprovação ao que foi exposto nessa seção: “Um efeito mais importante do exército de reserva[...] se produz por concorrência no mercado de trabalho com a força de trabalho ativa, para deprimir a taxa dos salários e elevar a taxa demais-valia” (op. cit., p. 99). Se Marx tivesse esperado o capítulo XIV para discutir este tema, cairia naquilo que Bortkiewicz reprovava.

16. Sweezy discorda de Marx, quando este considera a desvalorização do capital constante como uma das causas que atuam contra a queda da taxa de lucro: “Teria sido preferível contemplar primeiro o que poderia ser chamado de ‘aumento original’ da composição orgânica, observar seu efeitos sobre a taxa de juro, e só então levar em conta o barateamento dos elementos do capital constante, que por sua vez decorre do aumento da produtividade associado com o elemento ‘original’. Poderia sustentar-se que, se assim se procedesse, a taxa de aumento da composição orgânica pareceria muito maior, e que o que impede que este fato se revele nas estatísticas são as ‘causas contrastantes’. Todavia, resulta duvidoso que possa servir a alguma finalidade útil essa tentativa de conservar a distinção implícita de Marx entre o aumento primário na composição orgânica e a queda, mesmo menor, decorrente do barateamento dos elementos do capital constante. Tudo quanto se pode observar é a alteração líquida na composição orgânica que resulta de ambas as forças. Todavia, parece melhor usar a expressão ‘alteração na composição orgânica do capital’ só no sentido líquido, que leva em conta o barateamento dos elementos do capital constante. Se assim se faz, talvez seja menor a tentação de pensar a composição orgânica em termos físicos, em vez de fazê-lo em termos de valor” (op. cit., p. 103-104). Se acreditarmos em Sweezy, Marx baseou sua lei, em primeiro lugar, na composição técnica do capital, para depois introduzir de contrabando, no capítulo XIV, a composição em termos de valor como uma “causa contrastante”...

17. Das Kapital, III, p. 245. Marx trata de forma muito detalhada de todos esses métodos na seção 1 do terceiro tomo.

18. Sweezy, op. cit., p. 102-104.

19. Natalie Moszkowska, Zur Kritik modemer Krisentheorien [Contribuição à crítica das modernas teorias da crise], 1935, p. 46. Em seu livro anterior, Das Marxschen System [O sistema de Marx, 1929], diz a mesma autora na p. 118: “A ‘lei da baixa tendencial da taxa de lucro’ não é uma lei histórica, mas sim uma lei dinâmica. Não afirma um fato histórico, a saber, que a taxa de lucro cai, mas apenas formula a dependência recíproca de duas magnitudes, a saber: (a) quando permanece constante a taxa de mais-valia, cai a taxa de lucro; (b) quando permanece constante a taxa de lucro, aumenta a taxa de mais-valia. Em consequência, a lei só expressa uma relação funcional. Por isso, pode ser denominada tanto como lei ‘da baixa tendencial da taxa de lucro’ como também lei ‘do aumento tendencial da taxa de mais-valia’.” É evidente que esta interpretação não é fiel à lei de Marx.

20. Theorien, III, p. 358.

21. A frase entre colchetes é do editor das Teorias, Karl Kautsky.

22. Theorien, III, p. 359-360.

23. Não podemos discutir aqui o problema de até que ponto as diferenças entre a indústria e a agricultura podem diminuir por causa do desenvolvimento técnico desta última.

24. Novamente, aqui faz falta uma limitação. Assim, por exemplo, o trabalhador norte-americano gasta em alimentos uma parte relativamente muito menor de seu salário que o europeu; o trabalhador europeu, por sua vez, gasta uma parte menor que o asiático etc.

25. Theorien, III, p. 295. Como se vê, neste ponto Marx se expressa com o detalhe e a clareza possíveis. Mesmo assim, podemos ler em Joan Robinson: “Poder-se-ia sustentar que Marx supunha inconscientemente que o aumento da produtividade não afeta as indústrias de bens que a classe trabalhadora consome, de modo que os salários reais constantes são compaúveis com um grau constante de exploração” (op. cit, p. 40). Tantas palavras, tantos erros...

26. Theorien, III, p. 306.

27. Já citamos estas manifestações de Marx — muito mais detalhadamente — no capítulo 16 de nosso trabalho. Grundrisse, p. 246.

28. Cf. Das Kapital, III, p. 257-258: “Enquanto o desenvolvimento da força produtiva faz diminuir a parte paga do trabalho empregado, acrescenta a mais-valia porque aumenta sua taxa; mas, na medida em que faz diminuir a massa global do trabalho empregado por um dado capital, faz diminuir o fator numérico pelo qual se multiplica a taxa de mais-valia para obter sua massa. Dois trabalhadores que trabalham 12 horas diárias não podem produzir a mesma massa de mais-valia que 24 trabalhadores que só trabalham duas horas cada um, inclusive, se pudessem viver de ar, não tendo de trabalhar nada para si mesmos. Por isso, a compensação da diminuição no número de trabalhadores pelo incremento do grau de exploração do trabalho encontra limites insuperáveis; pode criar obstáculos à queda da taxa de lucro, mas não anulá-la. A esta passagem, que cita textualmente, Joan Robinson acrescenta o seguinte comentário: “A produtividade pode aumentar sem limites e, se os salários reais são constantes, a taxa de exploração aumenta com ela. Marx parece haver estado um tanto confuso a esse respeito, pois quando começa a tratar o efeito de um aumento da produtividade sobre a taxa de exploração muda de tema na metade da discussão para tratar do efeito da alteração da duração da jornada de trabalho” (op. cit., p. 39).

 

 

“2. O papel do maquinário como precondição material para a sociedade socialista

Podemos ler nos Grundrisse: “Se a sociedade, tal como é, não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção e de circulação necessárias a uma sociedade sem classes, todas as tentativas de criá-la seriam quixotescas.”39

Quais condições materiais de produção tornam possível e necessária a transição a uma sociedade sem classes?

Devemos buscar a resposta, antes de tudo, na análise que Marx faz do papel da maquinaria. Ela mostrou, de um lado, como o desenvolvimento do sistema de máquinas automáticas reduz o trabalhador individual ao nível de ferramenta parcial, a mero elemento do processo de trabalho; de outro, mostrou como o mesmo desenvolvimento cria também as condições prévias para que o dispêndio de esforços humanos se reduza a um mínimo no processo de produção e para que o lugar dos trabalhadores segmentados de hoje seja ocupado por indivíduos desenvolvidos de forma multifacética, para quem “as diferentes funções sociais sejam modos intercambiáveis de atividade”. Tudo isso consta tanto dos Grundrisse como do primeiro tomo de O capital. Porém, há nos Grundrisse ideias sobre a maquinaria que estão ausentes de O capital; ideias que, embora escritas há mais de um século, tiram o fôlego ao serem lidas hoje, pois apresentam uma das visões mais audaciosas produzidas pelo espírito humano.

Marx diz: “O intercâmbio de trabalho vivo por trabalho objetivado, ou seja, a colocação do trabalho social na forma de antítese entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O pressuposto desta produção é, e segue sendo, a magnitude do tempo imediato de trabalho, a quantidade de trabalho usada como fator decisivo na produção da riqueza. Todavia, na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza se torna menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho usados, passando a depender mais da capacidade dos agentes acionados durante o tempo de trabalho, capacidade cuja eficácia40 não mantém nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que sua produção exige; depende do estado geral da ciência e do progresso técnico, ou da aplicação da ciência à produção [...]. A riqueza efetiva se manifesta mais — e isto a grande indústria revela — na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a pura abstração, e o vigor do processo produtivo que ele vigia. O trabalho já não aparece tanto confinado ao processo de produção, pois o homem se comporta como supervisor e regulador em relação a este processo[...]. O trabalhador já não introduz a coisa natural modificada, como elo intermediário, entre o objeto e ele mesmo, mas insere o processo natural, transformado em processo industrial, como meio entre si mesmo e a natureza inorgânica, à qual domina. Apresenta-se ao lado do processo de produção, em vez de ser seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base miserável, comparado com este fundamento, recém-desenvolvido, criado pela própria grande indústria. Tão logo o trabalho, em sua forma imediata, tenha deixado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser — tem que deixar de ser — sua medida; e o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano.41 Com isso desmorona a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato se despoja da forma de carecimento e antagonismo. Trata-se agora de desenvolver livremente as individualidades, e não de reduzir o tempo de trabalho necessário, tendo em vista criar mais-trabalho; a redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo passa a corresponder à formação artística, científica etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos.”42

Em outra passagem dos Grundrisse, Marx escreveu: “A criação de muito tempo disponível43 — além do tempo de trabalho necessário — para a sociedade em geral e para cada integrante dela (isto é, espaço para o desenvolvimento de toda a capacidade produtiva do indivíduo e portanto também da sociedade), essa criação de tempo de não-trabalho é, do ponto de vista do capital, assim como em todos os estágios precedentes, tempo de não-trabalho ou tempo livre para alguns. Mediante todos os recursos da arte e da ciência, o capital aumenta o tempo de mais-trabalho da massa, pois sua riqueza consiste na apropriação direta de valor resultante do mais-trabalho; seu objetivo é diretamente o valor, não o valor de uso. Assim, malgré lui, serve de instrumento para criar as possibilidades do tempo disponível em escala social,44 para reduzir a um mínimo decrescente o tempo de trabalho de toda a sociedade e tornar livre o tempo de todos, para o desenvolvimento de todos. Porém, a tendência do capital é sempre, de um lado, criar tempo disponível e, de outro, convertê-lo em mais-trabalho.45 Se tem êxito no primeiro objetivo, experimenta uma superprodução; o trabalho necessário será interrompido, pois o capital não pode realizar mais-trabalho46 algum.47 Quanto mais se desenvolve esta contradição, tanto mais evidente fica que o desenvolvimento das forças produtivas não pode permanecer confinado à apropriação de mais-trabalho alheio. A própria massa trabalhadora deve apropriar-se de seu mais-trabalho. Fazendo-o — e por isso o tempo disponível deixará de ter uma existência antitética —, o tempo de trabalho necessário encontrará sua medida nas necessidades do indivíduo social, e o desenvolvimento da força produtiva social será tão mais rápido que, embora a produção seja calculada em função da riqueza comum, crescerá o tempo disponível de todos, pois a riqueza real é a capacidade produtiva desenvolvida de todos os indivíduos. O tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza, e o tempo disponível assume este papel. O tempo de trabalho como medida da riqueza coloca a própria riqueza como algo baseado na pobreza, e coloca o tempo disponível como algo imerso na antítese com o tempo de mais-trabalho; ou então coloca todo o tempo de um indivíduo como tempo de trabalho, degradando-o em mero trabalhador.”48

Esta é a análise de Marx sobre as transformações históricas surgidas do papel da maquinaria no processo de produção capitalista. Hoje, diante de uma nova revolução industrial em curso, não é necessário destacar a transcendência profética dessa concepção imensamente dinâmica e radicalmente otimista. O que o revolucionário alemão sonhava solitariamente em 1858, em seu exílio em Londres, ingressou hoje em dia — mas só hoje em dia — no âmbito do que é imediatamente possível. Graças ao desenvolvimento da técnica moderna, estão finalmente dadas — pela primeira vez — as condições para suprimir total e definitivamente o “roubo do tempo de trabalho alheio”; agora — pela primeira vez — podem ser impulsionadas tão poderosamente as forças produtivas da sociedade que, de fato, e em um futuro não muito longínquo, a medida da riqueza social não será mais o tempo de trabalho, mas sim o tempo disponível. Até o presente, todos os métodos para elevar a produtividade do trabalho humano revelaram-se ao mesmo tempo, na prática capitalista, métodos de degradar, subordinar e despersonalizar cada vez mais o trabalhador. Hoje, o desenvolvimento técnico chegou a um ponto no qual os trabalhadores poderão finalmente libertar-se da “serpente de seus tormentos”, da tortura sem fim do trabalho cansativo, monótono e fragmentado, para se converterem de meros apêndices em verdadeiros dirigentes do processo de produção. Nunca estiveram tão maduras as condições para uma transformação socialista da sociedade, nunca o socialismo foi tão imprescindível e economicamente viável. Recordemos a objeção burguesa, segundo a qual a ordem social socialista teria de desmoronar perante a necessidade de trabalhos duros e desagradáveis, que todos tentariam evitar, empurrando-os para os demais.49 Diante do fabuloso desenvolvimento atual das forças produtivas, quão ridícula deve parecer esta observação, que reflete a natureza do burguês médio! Enquanto era necessário levar água em baldes até as habitações, não eram poucas as pessoas que tratavam de passar esta tarefa a outros; todavia, com a instalação de tubulações de água corrente, o ofício dos distribuidores de água tornou-se supérfluo. O desenvolvimento técnico nos impele para uma situação na qual pode desaparecer a divisão do trabalho até hoje dominante, que mutila o homem, e com ela todos os seus tormentos, sendo seu lugar ocupado pelo trabalho como ocupação livre das forças físicas e intelectuais. Assim como seria um disparate — para lembrar novamente a engenhosa comparação de Trotsky50 — que os comensais de uma boa pensão, onde a mesa é abundantemente servida, disputassem o pão, a manteiga e o açúcar, do mesmo modo seria absurdo e insensato na nova sociedade o “roubo do trabalho alheio’’, a exploração do homem pelo homem. Mas só então estará assegurada a construção de uma ordem social realmente sem classes e socialista.”

39. Grundrisse, p. 77.

40. Em inglês no original: “powerful effectiveness”.

41. Cf. capítulo 17 deste trabalho.

42. Grundrisse, p. 592-593.

43. Em inglês no original: “disposable time”.

44. Em inglês no original: “instrumental in creating the means of social disposable time”.

45. Em inglês no original: “to convert it into surplus labour”.

46. Em inglês no original: “surplus labour”.

47. Cf Das Kapital, III, p. 266: “Uma superprodução de capital significa uma superprodução de meios de produção — meios de trabalho e meios de subsistência — que possam atuar como capital, ou seja, possam ser usados para explorar o trabalho com um determinado grau de exploração; pois a diminuição desse grau de exploração até um nível abaixo de certo ponto provoca perturbações e paralisações no processo de produção capitalista, crise e destruição de capital.”

48. Grundrisse, p. 595-596.

49. Blanqui já ressaltava com malícia que a objeção dos críticos burgueses “quem limpará as escarradeiras no socialismo?” — poderia ser reduzida, no fundo, a uma simples pergunta: “quem limpará a minha escarradeira?”.

50. Cf. The Revolution Betrayed, p. 46.

 

 

“Mas tempo livre, tempo disponível, é a própria riqueza — em parte para fruir dos produtos, em parte para realizar atividades livres, que, ao contrário do trabalho, não estão determinadas pela coerção de uma finalidade externa que deve cumprir-se —, cujo preenchimento obedece a uma necessidade natural ou a um dever social, como se queira.” (Karl Marx, Theorien, III, p. 253)

 

 

“A história é a mais cruel de todas as deusas. Seu carro triunfal passa sobre montanhas de cadáveres, não só na guerra, mas também no desenvolvimento econômico ‘pacífico’.” (Friedrich Engels)

 

 

“Os resultados nada são sem o desenvolvimento que conduziu a eles. Sabemos disso desde Hegel...” (Friedrich Engels)

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