sábado, 2 de setembro de 2017

Introdução à História da Filosofia (Parte I) – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Editora: Edições 70
ISBN: 978-97-2441-346-4
Tradução: Antônio Pinto de Carvalho
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 256
Sinopse: Criador da disciplina universitária “História da Filosofia”, Hegel propõe nesta introdução o núcleo do seu sistema, por vezes em fórmulas admiravelmente concisas. Situa a filosofia, saber crepuscular, na sua vinculação com o todo da cultura, com a história universal, a política, a religião, e a arte.

 
“De início, uma só coisa exijo: confiai na ciência e em vós mesmos. A coragem da verdade, a fé no poder do espírito é a condição primordial da filosofia. O homem, por ser espírito, pode e deve julgar-se digno de tudo quanto há de mais sublime. Da grandeza e do poder do seu espírito nunca pode formar um conceito demasiado altivo, e animado por esta fé não se negará a desvelar o seu segredo. A essência do universo, a princípio oculta e encerrada, não dispõe de força capaz de resistir à tentativa de quem pretenda conhecê-la; acaba sempre por se desvendar e patentear a sua riqueza e profundidade, para que o homem dela desfrute.”


“A história da filosofia representa a série dos espíritos nobres, a galeria dos heróis da razão pensante, os quais, graças a essa razão, lograram penetrar na essência das coisas, da natureza e do espírito, na essência de Deus, conquistando assim com o próprio trabalho o mais precioso tesouro: o do conhecimento racional. Na história política, o indivíduo, na singularidade da sua índole, do seu gênio, das suas paixões, da energia ou da fraqueza de caráter, em suma, em tudo o que caracteriza a sua individualidade, é o sujeito das ações e dos acontecimentos.
Na história da filosofia, estas ações e acontecimentos, ao que parece, não têm o cunho da personalidade nem do caráter individual; deste modo, as obras são tanto mais insignes quanto menos a responsabilidade e o mérito recaem no indivíduo singular, quanto mais este pensamento liberto de peculiaridade individual é, ele próprio, o sujeito criador.
Primeiramente, estes atos do pensamento, enquanto pertencentes à história, surgem como fatos do passado e para além da nossa existência real. Na realidade, porém, tudo o que somos, somo-lo por obra da história; ou, para falar com maior exatidão, do mesmo modo que na história do pensamento o passado é apenas uma parte, assim no presente, o que possuímos de modo permanente está inseparavelmente ligado com o fato da nossa existência histórica. O patrimônio da razão autoconsciente que nos pertence não surgiu sem preparação, nem cresceu só do solo atual, mas é característica de tal patrimônio o ser herança e, mais propriamente, resultado do trabalho de todas as gerações precedentes do gênero humano. (...)
Desta maneira se vai modificando o patrimônio herdado, e simultaneamente se enriquece e conserva o material elaborado.
É esta, precisamente, a posição e a função da nossa idade, como aliás de todas as idades: compreender a ciência existente, modelar por ela a nossa inteligência, e desse modo desenvolvê-la, elevá-la a um grau superior; no ato de a convertermos em propriedade nossa e individual, juntamos-lhe algo de que até então carecera. Desta característica da produção espiritual, que supõe um mundo espiritual preexistente e o transforma no ato de se apossar dele, segue-se que a nossa filosofia só pode existir enquanto ligada à precedente, da qual é necessário produto; e o curso da história mostra, não o devir de coisas a nós estranhas, mas sim o nosso devir, o devir do nosso saber.”


“Segundo uma antiga opinião, a faculdade de pensar é o que separa os homens dos brutos. Aceitamo-la como verdadeira. O que o homem possui de mais nobre do que o animal, possui-o graças ao pensamento: tudo quanto é humano, de qualquer forma que se manifeste, é-o na medida em que o pensamento age ou agiu.”


“Ocorre perguntar: como distinguir estes produtos daqueles que formam o objeto do nosso estudo? Mais. Que relação medeia entre eles e a história? Sobre estas duas questões precisamos dizer alguma coisa, o bastante para elucidar a maneira como entendemos tratar a história da filosofia.
Além disso, em terceiro lugar, é oportuno, antes de baixar aos pormenores, abarcar num relance o conjunto, sob risco de deixar o todo pelos pormenores, a floresta pelas árvores, a filosofia pelas filosofias. O espírito exige a posse de uma representação geral do escopo e da finalidade do conjunto para saber a que deva consagrar-se. Do mesmo modo que se abarca num relance uma paisagem que se vai estreitando à medida que demoramos o olhar em cada uma das partes que a constituem, assim também o espírito deseja compreender a relação entre as filosofias particulares e a filosofia geral, porque o valor das partes singulares deriva principalmente da relação entre elas e o todo. Isto se obtém, acima de tudo, por meio da filosofia e da história da filosofia. A necessidade desta visão de conjunto pode, com rigor, parecer menor para a história do que para uma ciência própria e verdadeira. De fato, à primeira vista, a história parece ser uma sucessão de fenômenos contingentes, isolados, e que só do tempo recebem o nexo que os prende. Todavia, já na história política não nos contentamos com esta maneira de ver: compreendemos ou pelo menos pressentimos uma conexão necessária que marca, a cada um dos fatos, a sua posição especial e a relação com uma finalidade, e com isso lhes marca também um significado. Tudo, na história, tem significado só pela sua relação com algum fato geral e em virtude da sua ligação com ele; descobrir este fato geral chama-se compreender o seu significado.”


“A filosofia se propõe compreender o que é imutável, eterno, em si e por si: o seu fim é a verdade. A história, pelo contrário, aspira a contar aquilo que existiu um tempo, e noutro tempo deixou de existir, por ter dado lugar a qualquer outra coisa.”


“A filosofia é a ciência objetiva da verdade, é a ciência da sua necessidade: é conhecer por conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião de outra.”


“De fato, acontece que toda filosofia nova sustenta que todas as outras nada valem; toda filosofia se ergue com a pretensão não somente de refutar as filosofias precedentes, mas de corrigir além disso os defeitos e de suprir as imperfeições delas e de ter encontrado finalmente a verdade. Mas, à base da precedente experiência, acontece que se podem aplicar também a tal filosofia as palavras da Escritura que o apóstolo Pedro dirige à mulher de Ananias: os pés dos que sepultaram o teu marido estão ali à porta, para te levarem a enterrar. A filosofia destinada a refutar e substituir a tua mão não se fará esperar por muito tempo, como não se fez esperar para as outras.”


“Para compreender o que significa o desenvolvimento devem distinguir-se, por assim dizer, dois estados diversos: o primeiro é o que é conhecido como disposição, capacidade, o ser em si (como eu chamo), potentia, dynamis; o segundo é o ser por si, a atualidade, actus, enérgeia. Se, por exemplo, dissermos: o homem é, por natureza, racional — queremos significar que ele tem a razão em potência, em germe: neste sentido, o homem tem razão, intelecto, fantasia, querer, desde o instante do nascimento, até mesmo no útero materno. Mas enquanto a criança só tem a potência ou a possibilidade real da razão, é como se não tivesse razão: a razão não existe ainda nela, porque ela nada pode fazer de racional e carece de consciência racional. Só no ato em que o homem devém por si aquilo que em si é, e isto é, a razão por si, é que o homem tem atualidade naquele determinado aspecto e é racional, quer dizer, chega efetivamente à razão por si.
Qual é o significado próprio destas palavras? O que é em si deve tornar-se objeto para o homem, vir à consciência, e assim devém para o homem. O que se tornou objeto para ele é o mesmo daquilo que ele é em si; só por meio do objetivar-se deste ser em si o homem devém por si, se desdobra, embora permanecendo ele próprio e não se tornando outro.
O homem é, por exemplo, pensante, e então pensa o seu pensamento; deste modo, o objeto do pensamento é o próprio pensamento, a racionalidade produz o racional, a razão é o seu próprio objeto. O fato que o pensar possa degradar-se até o irracional é uma consideração ulterior que não vem aqui ao caso. Se à primeira vista parece que o homem racional em si não tenha progredido para se ter tornado racional por si, visto que só se manteve o em si, a diferença não deixa de ser imensa: não se tira a limpo nenhum novo conteúdo, e apesar disso esta forma do ser por si constitui uma diferença enorme. Sobre esta diferença se funda o complexo das diferenças dos desenvolvimentos da história do mundo. Só assim se explica como, sendo todos os homens racionais por natureza, e sendo a explicação formal desta racionalidade o serem livres, tivesse havido e haja ainda em muitos povos um regime de escravidão, e que os povos se tenham contentado com tal regime. A diferença entre os povos africanos e asiáticos, por um lado, e os gregos e romanos e modernos, por outro, reside precisamente no fato de que estes são livres e o são por si; ao passo que aqueles o são sem saberem que o são, isto é, sem existirem como livres.
Nisto consiste a imensa diferença das suas condições. Todo o conhecimento e cultura, a ciência e a própria ação não visam a outro escopo senão a exprimir de si o que é em si, e deste modo a se converter em objeto para si mesmo.”


“No espírito as coisas passam-se de modo diferente: o espírito é consciência, livre porque nele coincidem princípio e fim. Também o espírito, como o germe na natureza, se recolhe de novo à unidade depois de se ter feito outro; mas o que é em si devém pelo espírito, e assim devém o espírito por si. O fruto e a nova semente nele contida não devêm pelo primeiro germe, mas só por nós; pelo espírito ambas as fases não são apenas o em si da própria natureza, mas um ser pelo outro e, precisamente por isso, um ser por si: aquilo pelo qual outro é, é idêntico a esse outro; só assim o espírito é consigo próprio no seu outro. Por conseguinte, o desenvolvimento do espírito consiste em que o seu extrinsecar-se e o seu cindir-se é simultaneamente o vir a si mesmo. Este ser consigo mesmo do espírito, este vir a si próprio, pode ser considerado como o seu fim mais elevado e absoluto; só isto ele quer e nada mais. Tudo o que desde a eternidade acontece no céu e na terra, a vida de Deus e quanto se opera no tempo, visa apenas a que o espírito se conheça a si próprio, se faça a si mesmo objeto, se encontre, devenha por si mesmo, se recolha em si próprio; desdobrou-se, alienou-se, mas somente para se poder encontrar e para poder voltar a si próprio.
Só assim o espírito alcança a sua liberdade, visto ser livre aquilo que se não refere a outro nem de outros depende; só nisto aparece a verdadeira posse de si, e a verdadeira e própria satisfação; em tudo o mais que não seja pensamento, o espírito não alcança esta liberdade. Assim, na intuição, nos sentimentos, eu encontro-me determinado, não sou livre, mas suporto esta intuição ou estes sentimentos embora tendo consciência da minha sensação. Até no querer se tem um escopo determinado, um determinado interesse; eu sou livre enquanto este interesse é meu; mas estes escopos contêm sempre alguma coisa do outro, ou alguma coisa que para mim é outra, como impulsos, tendências, etc. Só no pensamento é transparente e se esfuma toda coisa estranha: o espírito é aqui livre de modo absoluto e nisso encontra também expressão todo interesse contido na ideia e na filosofia.”


“A respeito do desenvolvimento, podemos perguntar: que coisa se desenvolve? Que coisa é o conteúdo absoluto? O desenvolvimento apresenta-se como atividade formal sem conteúdo. Mas o ato não tem outro fim senão a atividade, e por meio desta atividade é determinado o caráter geral do conteúdo. Porquanto, o ser em si e o ser por si são os momentos da atividade; mas o ato é precisamente o compreender em si tais momentos distintos. O ato é realmente uno, e esta unidade dos distintos constitui precisamente o concreto. Não só o ato é concreto, mas também o em si, o sujeito da atividade, aquilo que começa; e finalmente o produto é tão concreto como a atividade e aquilo que começa. O curso do desenvolvimento forma também o conteúdo, a própria ideia, que precisamente consiste em que temos o Uno e um Outro, e ambos são Uno, que é Terceiro, estando o Uno no Outro junto de si mesmo e não fora de si mesmo. Assim, a ideia é, no seu conteúdo, concreta em si; é concreta em si, e então tem interesse em que o que é em si se torne por si.
É preconceito geral que a ciência filosófica só tenha de se ocupar de abstrações, de generalidades ocas, enquanto a representação na autoconsciência empírica, o sentimento da nossa personalidade, o sentido da vida, são o concreto em si, determinada riqueza em si. Na realidade, a filosofia está na região do pensamento, e por isso tem de se ocupar de generalidades. O seu conteúdo é abstrato, mas só pelo que respeita à forma, ao elemento, porque em si mesma a ideia é essencialmente concreta, visto ser essa a unidade de distintas determinações. Nisto se diferencia o conhecimento racional do mero conhecimento intelectivo; e o filosofar tem como tarefa o demonstrar, contra o intelecto, que a verdade, a ideia, não consiste em generalidades balofas, mas sim num universal que é em si mesmo o particular, o determinado. Se a verdade é abstrata, não é verdadeira. A sã razão humana somente visa ao concreto. A reflexão do intelecto é teoria abstrata, não verdadeira, justa apenas no cérebro e de mais a mais impraticável; a filosofia é inimicíssima do abstrato e reconduz ao concreto. Se unirmos o conceito do concreto com o do desenvolvimento, obtemos o movimento do concreto. Com efeito, em si é já concreto em si mesmo e nós pomos apenas o que já existe: junta-se somente a forma nova, de sorte que aparece como distinto o que primeiro estava incluído no Uno originário. O concreto deve devir por si mesmo; como em si ou possibilidade, é somente distinto em si, não ainda posto como distinto, mas ainda na unidade. Portanto, o concreto é simples e, ao mesmo tempo, diverso. Esta interna contradição, que é precisamente o que provoca o desenvolvimento, leva as diferenças à existência. Mas, simultaneamente, a diferença é satisfeita no seu direito, que consiste em ser reabsorvida, e portanto superada, uma vez que a sua verdade é só ser no uno. Com isto põe-se a vitalidade, tanto a natural como a da ideia do espírito em si. Se a ideia fosse abstrata, seria só o ser supremo, do qual nenhuma outra coisa se pode afirmar; mas tal Deus é produto do intelecto do mundo moderno. O verdadeiro Deus é, pelo contrário, movimento, processo, mas com repouso; a diferença consiste apenas em estar em vias de desaparecer para produzir a plena unidade concreta.”


“A ideia, como concreta em si mesma e desenvolvendo-se, é um sistema orgânico, uma totalidade que compreende em si multidão de graus e de momentos. A filosofia por si é o conhecimento deste desenvolvimento, e como pensamento é ela própria este desenvolvimento pensante; quanto mais este desenvolvimento progrediu, tanto mais perfeita é a filosofia.
Este desenvolvimento não se dirige para fora, para a exterioridade, mas, explicando-se, volta-se para o interior: quer dizer, a ideia geral permanece sendo a base e continua a ser o que tudo abraça e o imutável. Com efeito, o andar fora de si da ideia filosófica no seu desenvolvimento não é uma mudança, nem outro devir, mas é, antes, um entrar em si, um aprofundar-se a si próprio; deste modo, o progredir torna mais determinada em si a ideia que anteriormente era genérica e indeterminada. O ulterior desenvolvimento da ideia e a sua maior determinação são exatamente a mesma coisa. A profundidade parece querer significar intensificação; mas neste caso o mais extensivo é igualmente o mais intensivo; quanto mais intensivo é o espírito, tanto mais extenso é, tanto maior o campo que abraça. A extensão, como desenvolvimento, não é dispersão nem desagregação; é, sim, coesão, e esta é tanto mais vigorosa e intensa quanto mais rica e vasta for a extensão e o número dos objetos que deve abarcar. Neste caso, quanto maior for a força de oposição e de separação, tanto maior é o poder de a vencer.”


“Pelo que respeita à essência do espírito, observou-se já que o seu objeto é o seu agir. A natureza, pelo contrário, é o que é, e as suas transformações não são mais do que repetições, o seu movimento não passa de movimento circular. A atividade do espírito consiste antes em conhecer-se a si mesmo. Eu sou imediatamente, mas nesta imediateza sou apenas um organismo vivo; como espírito sou apenas enquanto me conheço. Gnôti seautón (Conhece-te a ti próprio): a inscrição, que se encontra no templo de Apolo em Delfos, é a ordem absoluta que exprime a natureza do espírito. Mas a consciência implica essencialmente que eu, para mim, seja o meu objeto. Com este juízo absoluto da diferenciação de mim por mim mesmo, o espírito estabelece a sua existência e põe-se externamente a si mesmo; põe-se na exterioridade e nisto consiste precisamente o modo universal e peculiar da existência da natureza. Mas uma forma de exterioridade é o tempo: forma esta que terá mais amplo exame na filosofia da natureza, e na do espírito finito.
Esta existência, e com ela o ser no tempo, é um momento não somente da consciência particular, que como tal é essencialmente finita, mas também do desenvolvimento da ideia filosófica no elemento do pensamento. De fato, a ideia pensada no seu repouso é sem tempo; pensá-la no repouso é o mesmo que fixá-la na forma da imediateza, e isto equivale à sua mesma intuição interna. Porém, a ideia enquanto concreta e unidade diferenciada, como acima referimos, não pode ser essencialmente repouso, nem o seu ser pode considerar-se como pura intuição; mas chega à existência como diferenciação de si em si mesma e, por conseguinte, desenvolvimento, e à sua exterioridade no elemento do pensamento; de modo semelhante, a pura filosofia aparece no pensamento como existência e se desenvolve no tempo. Mas este elemento do pensamento é ainda abstrato: é a atividade duma consciência singular. Pelo contrário, o espírito deve considerar-se não só como consciência única e finita, mas como espírito em si universal e concreto: esta concreta universalidade compreende todos os modos e aspectos evolutivos em que ele é e devém, conforme a ideia, objeto de si próprio. Assim, a sua compreensão pensante é, ao mesmo tempo, a do progresso realizado da total atualidade evoluída, e que não percorre o pensamento dum indivíduo nem se manifesta numa única consciência; mas aparece como espírito universal que se apresenta na história universal em toda a riqueza das suas formas. Ora, acontece que, neste desenvolvimento, uma forma, um grau da ideia se torna consciente num povo, de sorte que este povo e este tempo não exprimem senão esta forma, na qual ele constitui o seu universo e elabora a sua condição; mas o grau superior revela-se nos séculos sucessivos no meio de outro povo.”


“Os efêmeros e mortais não dispõem de tempo bastante para levarem a cabo muitas das suas empresas: quem é que não morre antes de haver concluído os seus projetos?”


“Na história universal os progressos são lentos.”


“O primeiro resultado do que fica dito é que o conjunto da história da filosofia é um progresso sucessivo e em si necessário, em si racional e determinado a priori da sua ideia; portanto, é isto o que a história da filosofia tem de apresentar como exemplo. Apenas entrados na filosofia, devemos abandonar a contingência: a sua história é tão necessária como o desenvolvimento das noções, e a força propulsiva é comunicada pela dialética interna das formas. O finito não é verdadeiro, nem se sabe como é que ele pode existir (para que exista deve ser determinado). Mas a ideia interna suprime estas formas finitas: uma filosofia, que não tenha a forma absolutamente idêntica ao conteúdo, deve forçosamente deixar de existir, porque a sua forma não é a verdadeira.
O segundo princípio que se deduz das precedentes observações é este: que toda a filosofia existe e é necessária, nenhuma deixou de existir, mas todas se conservaram na filosofia como momentos de um modo afirmativo. Temos, porém, de distinguir entre o princípio particular destas filosofias como particulares e a realização deste princípio através de toda a concepção mundial. Os princípios conservaram-se, e sendo a mais recente filosofia o resultado dos princípios anteriores, nenhuma filosofia é em dia algum refutada. O que aparece refutado não é o princípio desta filosofia, mas sim o fato de este princípio ter podido ser considerado como determinação última e absoluta. Assim, por exemplo, a filosofia atomística propôs-se estabelecer que o átomo é o absoluto, que constitui a unidade indivisível, que é o que há de mais individual e subjetivo; mas, porque só a unidade se torna, em seguida, o abstrato ser por si, o absoluto viria a ser concebido como tantas unidades ao infinito. Este princípio atomístico foi refutado: já não somos atomistas. O princípio existe essencialmente como unidade, isto é, como átomo, também; mas esta é uma determinação insuficiente, que não pode exprimir a profundidade do espírito. Todavia, também este princípio se conservou; só que já não é a completa determinação do absoluto. A mesma contradição aparece em todo o desenvolvimento. O desenvolvimento da árvore é a negação do germe, e a floração a das folhas, enquanto estas não marcam a mais alta e verdadeira existência da árvore; por último, a floração é negada pelo fruto. Mas este último não pode chegar à atualidade sem a precedente existência dos outros estádios. A nossa posição em face de uma filosofia deve, por conseguinte, ter um caráter afirmativo e um caráter negativo; só depois de havermos tomado ambos em consideração, faremos imediatamente justiça a uma filosofia. O caráter afirmativo será reconhecido mais tarde, tanto na vida como na ciência: refutar é mais fácil do que justificar.
Em terceiro lugar, temos de nos limitar à consideração especial do próprio princípio. Cada princípio gozou, por um tempo, de predomínio; quando todo o conceito do mundo se desenvolveu, nesta forma especial, foi denominado sistema filosófico. Falta conhecer ainda a sua execução. Mas quando o princípio é ainda abstrato, não basta para compreender as formas que pertencem à nossa concepção universal. As teorias de Descartes, por exemplo, são suficientes apenas para o mecanismo, e para nada mais; as suas representações de outras manifestações do mundo, como as da natureza vegetal e animal, são insuficientes e, por conseguinte, não oferecem interesse.
Consideramos, por isso, só os princípios destas filosofias; mas nas filosofias concretas devemos considerar, além disso, os principais desenvolvimentos e suas aplicações. As filosofias dum princípio subordinado são incoerentes: e se tiveram muitos lampejos de verdade, estes quedaram-se sempre alheios àquele princípio.
Em quarto lugar, pode-se deduzir que na história da filosofia não temos de nos ocupar com o passado, embora seja propriamente uma história. Os produtos científicos da razão formam o conteúdo desta história e estes não constituem um passado. O que se obteve neste domínio foi a Verdade, e esta é eterna, não existe num tempo e deixa de existir noutro; é verdadeira não só hoje e amanhã, mas fora de todo o tempo; e, embora esteja no tempo, é sempre verdadeira, em todos os tempos. Os corpos dos espíritos, que são os heróis desta história, a vida no tempo e os destinos exteriores dos filósofos, passaram, mas as suas obras, os seus pensamentos, não sofreram o mesmo destino, porque o conteúdo racional das suas obras não foi imaginado, nem sonhado por eles.
A filosofia não é sonambulismo, mas sim consciência desenvolvida, e a obra daqueles heróis consiste em ter trazido o racional em si à luz, em tê-lo arrancado à profundidade do espírito onde primitivamente se encontrava unicamente como substância, como ser interno, e em passá-lo para a consciência e para o conhecimento. Estas formas estão em contínuo despertar. Estes fatos não ficam depositados no templo da memória, como quadros de épocas passadas, mas encontram-se sempre presentes e vivos como ao tempo da sua primeira manifestação. São ações e obras que não são anuladas nem interrompidas por outras posteriores, mas nós próprios devemos estar presentes nelas. Não têm tela, nem mármore, nem papel, nem representação, nem memória como elemento em que se possam conservar (elementos que são efêmeros ou constituem a base do que é passageiro), mas têm o pensamento, o conceito, a essência imutável do espírito, onde não penetra a traça nem o caruncho. Os produtos do pensamento constituídos em pensamento formam o próprio ser do espírito. Nem por isso estes conhecimentos são coletânea de noções, ou conhecimentos do que é morto, soterrado e decomposto; a história da filosofia ocupa-se daquilo que não envelhece, daquilo que é o presente vivo.”

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