quarta-feira, 10 de julho de 2024

Nos ombros dos gigantes, de Umberto Eco

Editora: Record

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Eliana Aguiar

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ISBN: 978-85-01-11462-4

Páginas: 446

Sinopse: Nos ombros dos gigantes representa um evento festivo para os leitores de Umberto Eco. Ao longo de quinze anos, longe das cátedras universitárias, dos congressos acadêmicos e das cerimônias honorárias, Eco escreveu estes textos para entreter os espectadores, sempre em grande número, de La Milanesiana, festival criado e dirigido por Elisabetta Sgarbi ― um “laboratório de excelência”, que entrelaça artes e saberes diversos, reunindo grandes nomes da cena internacional nos vários campos da cultura, como literatura, música, cinema, ciência, arte, filosofia e teatro.

Os textos desta coletânea, em sua maioria, partem do tema escolhido pelo festival para em seguida percorrer um repertório que bebe tanto na filosofia, quanto na literatura, na estética, na ética e nas mídias. Em suma: a quintessência do universo de Umberto Eco, narrado com uma linguagem afável, entremeada de ironia, às vezes jocosa, e afiada quando necessário. As raízes da nossa civilização, os cânones mutáveis da beleza, o falso que se torna verdadeiro e modifica o curso da história, a obsessão pela conspiração, os heróis emblemáticos da grande narrativa, as formas da arte, aforismos e paródias são alguns dos destaques deste livro, enriquecido ainda pelas imagens que o autor costumava projetar no decorrer de sua fala. Umberto Eco.



“É a partir do surgimento medieval dos anões que tem início a história da modernidade como inovação, que só pode inovar porque recupera modelos esquecidos pelos pais. Tomemos, por exemplo, a curiosa situação dos primeiros humanistas e de filósofos como Pico della Mirandola ou Marsílio Ficino. São os protagonistas — conforme nos ensinam na escola — de uma batalha contra o mundo medieval; é mais ou menos nesse período que surge a palavra “gótico”, com conotações não totalmente favoráveis. Mas o que faz o platonismo renascentista? Opõe Platão a Aristóteles, descobre o Corpus hermeticum ou os Oráculos caldaicos, constrói o novo saber sobre uma sabedoria muito antiga, anterior ao próprio Jesus Cristo. Humanismo e Renascimento são movimentos culturais tidos usualmente como revolucionários, mas que baseiam sua estratégia inovadora em um dos movimentos mais reacionários que já existiram, se entendermos como reacionarismo filosófico o retorno à tradição intemporal. Portanto, estamos diante de um parricídio que elimina os pais recorrendo aos avós e tentando reconstruir sobre seus ombros a visão renascentista do homem como centro do cosmos.”

 

 

“Mas hoje os mass media e a própria midiatização dos museus, visitados até pelos incultos de antigamente, geraram a coexistência e a aceitação sincrética de todos os modelos, para não dizer de todos os valores. Quando Megan Gale volteia, na publicidade de uma companhia telefônica, entre as cúpulas e volutas do Museu Guggenheim Bilbao, tanto o modelo sexual quanto o artístico são apetecíveis para qualquer geração: o museu é tão sexualmente desejável quanto Megan e Megan é um objeto cultural tanto quanto o museu, dado que convivem no amálgama de uma invenção cinematográfica que reúne a gastronomicidade do apelo publicitário à ousadia estética daquele que outrora era somente filme de cinemateca.

Entre novas propostas e exercícios de nostalgia, modelos como Che Guevara e Madre Teresa de Calcutá, Lady Diana e Padre Pio, Rita Hayworth, Brigitte Bardot e Julia Roberts, o virilíssimo John Wayne dos anos 1940 e o suave Dustin Hoffman dos anos 1960 tornam-se transgeracionais graças à TV. Nos anos 1950, o esbelto Fred Astaire dos anos 1930 dança com o musculoso Gene Kelly a tela nos faz sonhar com toilettes femininamente suntuosas como as que vemos em Roberta, e com os modelos andróginos de Coco Chanel. Para quem não tem a beleza máscula e refinada de Richard Gere, há o fascínio esbelto de Al Pacino e a simpatia proletária de Robert De Niro. Para quem jamais poderá ter a majestade de uma Maserati, há a elegante utilidade da Mini Morris.

Os mass media não apresentam mais nenhum modelo unificado. Podem recuperar, mesmo em uma publicidade destinada a durar apenas uma semana, todas as experiências da vanguarda e, ao mesmo tempo, redescobrir uma iconografia oitocentista; oferecem o realismo fabuloso dos RPGs e as perspectivas alucinadas de Escher, a opulência de Marilyn Monroe e a graça enfermiça das novas top models, a beleza extracomunitária de Naomi Campbell e a beleza nórdica de Claudia Schiffer, a graça do sapateado tradicional de A Chorus Line e as arquiteturas futurísticas e gélidas de Blade Runner, a androginia de Jodie Foster e a “cara lavada” de Cameron Diaz, Rambo e a drag queen Platinette, George Clooney (que todos os pais queriam ter como filho recém-formado em medicina) e os neo-cyborgs que metalizam o rosto e transformam os cabelos em uma floresta de pontas coloridas.

Diante desta orgia de tolerância, deste absoluto e irrefreável politeísmo, qual seria ainda a linha divisória que separa os pais dos filhos e obriga os últimos ao parricídio (que é rebelião e homenagem), e os primeiros ao complexo de Saturno?”

 

 

“Os piores diagnósticos de cada época são justamente os contemporâneos.”

 

 

“Considerando, portanto, o arco de cinquenta anos no curso dos quais tive ocasião de refletir muitas vezes sobre o conceito de beleza, percebi que poderia muito bem, hoje como então, repetir a este respeito tudo o que Agostinho dizia quando perguntado sobre o que é o tempo: “Se ninguém me perguntar, sei o que é; mas se precisar explicar a alguém que pergunte, não sei”.”

 

 

“Ao identificar o belo ao bom, kalòs kai agathòs, os gregos identificavam o feio físico com o feio moral, e eis que na Ilíada, Térsites, “o homem mais feio que já esteve em Ílion, vesgo, manco de uma perna, os ombros curvos sobre o peito, a cabeça pontiaguda coberta por uns pelos ralos” era mau; assim como eram más as sereias, que eram pássaros repugnantes, e não as sereias do decadentismo europeu, que as imaginava como belíssimas mulheres. Assim como eram más as harpias e continuaram a sê-lo, por meio de Dante, na selva dos suicídios, e como era horrendo o Minotauro e horrenda a Medusa, horrendas as Górgones, horrendo o monóculo Polifemo.

Mas a cultura grega é obrigada, desde os tempos de Platão, a enfrentar um problema: como pode Sócrates, possuidor de uma alma tão grande, ser feio? E como é feio Esopo que, segundo o Romance de Esopo, de época helenística, “era escravo, repulsivo à visão, nojento, barrigudo, com a cabeça saliente, nariz chato, corcunda, oliváceo, baixo, com pés chatos, braços curtos, lábio torto, um erro da natureza”? E, além do mais, era gago. Ainda bem que sabia escrever.”

 

 

“Kitsch é a obra que, para justificar sua função de estimuladora de efeitos, pavoneia-se com os despojos de outras experiências para vender-se como arte.”

 

 

“Segundo os dicionários de filosofia, absoluto seria tudo aquilo que é ab solutus, livre de laços ou limites, que não depende de outro algo, que tem a própria razão, causa e explicação em si mesmo. Algo, portanto, muito semelhante a Deus, no sentido em que Ele se definia como “eu sou aquele que é”, ego sum qui sum, em relação ao qual todo o resto é contingente, ou seja, não tem sua causa em si mesmo e — ainda que exista por acidente — poderia muito bem não existir ou não existir mais amanhã, como acontece com o sistema solar ou com cada um de nós.

Como seres contingentes e, portanto, destinados a morrer, temos uma necessidade desesperada de nos ancorar em algo que não perece, ou seja, algo de absoluto. Mas esse absoluto pode ser transcendente, como a divindade bíblica, ou imanente. Para não falar de Spinoza ou Giordano Bruno, com os filósofos idealistas, nós também passamos a fazer parte do absoluto, pois o absoluto seria (em Schelling, por exemplo) a unidade indissolúvel do sujeito que conhece e daquilo que antes era considerado estranho ao sujeito, como a natureza ou o mundo. No absoluto, identificamo-nos com Deus, somos parte de algo que ainda não se completou plenamente: processo, desenvolvimento, crescimento infinito e infinita autodefinição. Mas, se as coisas fossem assim, nunca poderíamos definir ou conhecer o absoluto, pois fazemos parte dele e, portanto, tentar concebê-lo seria fazer como o barão de Münchausen, que saía do pântano puxando-se pelos cabelos.

A alternativa, então, é pensar no absoluto como algo que não somos e que está em outra parte, não dependendo de nós, como o Deus de Aristóteles que pensa a si mesmo pensante e que, como queria Joyce no Retrato do artista quando jovem, “permanece dentro, junto, atrás ou acima de sua obra, invisível, refinado a ponto de desaparecer, preocupado em aparar as unhas”. De fato, no século XV, em De docta ignorantia, Nicolau de Cusa já dizia: Deus est absolutus.

Mas para de Cusa, enquanto Absoluto, Deus nunca é plenamente alcançável. A relação entre nosso conhecimento e Deus é a mesma que se instaura entre um polígono inscrito e a circunferência na qual está inscrito: à medida que se multiplicam os lados do polígono, ficamos cada vez mais próximos da circunferência, mas polígono e circunferência nunca serão iguais. De Cusa dizia que Deus é como um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma.

É possível pensar um círculo com o centro em toda parte e a circunferência em parte alguma? É claro que não. No entanto, podemos nomeá-lo, e é isso que estou fazendo neste momento. Cada um de vocês entende que estou falando de algo que tem a ver com a geometria, salvo que é geometricamente impossível e inconcebível. Existe, portanto, uma diferença entre poder ou não conceber uma coisa e poder de todo modo nomeá-la, atribuindo-lhe um significado qualquer. (...)

Outras expressões têm significados vagos e imprecisos — e com graus de clareza decrescentes. Por exemplo, a expressão o mais alto número par tem um significado, tanto é verdade que já sabemos que deveria ter a propriedade de ser divisível por dois (e seremos, portanto, capazes de diferenciá-lo do mais alto número ímpar), e dispomos também de uma vaga instrução para sua produção, no sentido de que podemos imaginar que contamos números cada vez mais altos, separando os ímpares dos pares... Só que logo percebemos que não chegaremos nunca, como em um sonho em que sentimos que podemos agarrar uma coisa, mas nunca conseguimos. Uma expressão como círculo com o centro em toda parte e a circunferência em parte alguma não sugere, ao contrário, nenhuma regra para produzir um objeto correspondente e não só não suporta nenhuma definição, como também frustra qualquer esforço para imaginá-lo sem sofrer uma sensação de vertigem. Uma expressão como absoluto tem uma definição a bem dizer tautológica (é absoluto o que não é contingente, mas é contingente o que não é absoluto), mas não sugere descrições, definições e classificações; não podemos pensar em instruções para produzir algo de correspondente, não conhecemos nenhuma de suas propriedades, exceto a suposição de que as tenha todas e seja provavelmente aquele id cuius nihil maius cogitari possit*, de que falava Santo Anselmo de Aosta (o que me traz à mente a frase atribuída Rubinstein: “Se creio em Deus? Não, creio em algo... muito maior...”).”

*: “Aquilo do qual nada maior pode ser pensável”

 

 

““Nomear um objeto é suprimir três quartos da potência da poesia, que é feita da felicidade de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”. Toda a vida de Mallarmé coloca-se sob o signo deste sonho, mas, ao mesmo tempo, sob o signo da derrota. Derrota que Dante dera como certa desde o início, ao compreender que é orgulho luciferino pretender expressar finitamente o infinito; e havia evitado a derrota da poesia fazendo justamente poesia da derrota, que não é poesia que pretende dizer o indizível, mas poesia da impossibilidade de dizê-lo.”

 

 

Ecpiroses contemporâneas

O fogo é destruidor em cada episódio de guerra, do fabuloso e fabulizado fogo grego dos bizantinos (segredo militar por excelência, e gostaria de recordar o belo romance que Luigi Malerba lhe dedicou, Il fuoco greco, 1990) à descoberta casual da pólvora por parte de Berthold Schwarz, dito o Negro, que desapareceu em uma pessoal e punitiva ecpirose. O fogo é punição para quem faz jogo duplo na guerra e “fogo!” é o comando de todos os fuzilamentos, como se invocassem a origem da vida para acelerar o epílogo da morte. Mas o fogo de guerra que mais aterrorizou a humanidade — digo a humanidade inteira, pela primeira vez globalmente informada de tudo o que estava ocorrendo em alguma de suas partes — talvez tenha sido a bomba atômica.

Um dos pilotos que lançou a bomba sobre Nagasaki escreveu: “De repente, a luz de mil sóis iluminou a cabine. Fui obrigado a fechar os olhos por dois segundos, apesar dos óculos escuros”. O Bhagavad Gita recitava: “Se a luz de mil Sóis brilhasse de uma só vez no céu, seria como o esplendor do Onipotente Eu me tornei a Morte, destruidora dos Mundos”, e foram estes os versos que o físico Robert evocou para comentar a explosão da primeira bomba atômica.

E assim chegamos dramaticamente à conclusão de meu discurso e — em um espaço de tempo mais razoável, à conclusão da aventura humana na Terra ou da aventura da Terra no cosmos, pois nunca três dos elementos primordiais estiveram tão ameaçados como agora: o ar, morto pela poluição e pelo anidrido carbônico; a água, de um lado, cada vez mais poluída e de outro, cada vez mais escassa. Só o fogo triunfa, sob a forma de um calor que enlouquece as estações e esteriliza a Terra e que, derretendo os gelos, convidará os mares a invadi-la. Sem perceber, marchamos para a primeira e verdadeira ecpirose. Enquanto Bush e a China recusam o protocolo de Kyoto, caminhamos para a morte pelo fogo — e pouco importa se, depois do nosso holocausto, o universo se regenerar, pois já não será o nosso.

Em seu Sermão do fogo, Buda recomendava:

Tudo queima, ó monges! E o que queima? A visão queima, ó monges, as formas e as cores queimam, a consciência visual queima, o contato visual e qualquer sensação que dependa do contato do olho com seus objetos — seja ela percebida como agradável, desagradável ou neutra — também queima. E queima por meio de quê? Queima por meio do fogo do afeiçoamento [...] Queima, vos digo, por causa do nascimento, da velhice e da morte, do sofrimento, do lamento, do mal-estar, da angústia e do desalento. A audição queima, os sons queimam. [...] O olfato queima, os odores queimam. [...] O paladar, ó monges, queima, os sabores queimam. [...] O tato, ó monges, queima. [...] A mente, ó monges, queima. [...] Vendo tudo isto, ó monges, o nobre discípulo que assimilou os ensinamentos fica serenamente desencantado em relação à visão, às formas e às cores [...], em relação à audição, aos sons. Fica serenamente desencantado em relação aos odores [...], em relação a qualquer coisa que surja na dependência do contato da língua com seus objetos, seja ela percebida como agradável, desagradável ou neutra.

Mas a humanidade não foi capaz de renunciar (ao menos em parte) ao apego aos próprios odores, sabores, sons e prazeres do tato — e à produção do fogo por fricção. Talvez devesse ter deixado sua geração aos deuses, de quem só o receberíamos de vez em quando, sob a forma fulgurante do raio.”

 

 

“O econômico é o mais rico dos homens; o mais pobre é o avaro.” (Chamfort, Massine e Pansieri, I, 145).

 

 

“Foi publicado um livrinho delicioso que reúne quinhentos lugares-comuns invertidos, já difundidos na internet. São quinhentos e desde já me desculpo por citar apenas alguns, a partir do título do livro, Scusa l’anticipo ma ho trovato tutti verdi [Desculpe o adiantado, mas estavam todos verdes].

Primeiro acabou com a própria vida, depois, com a mesma arma, matou a mulher e os filhos.

Obrigado por ter estado longe durante este período.

Eu me arrependo muito por não ter interrompido os estudos.

Já é hora de Papai Noel entender que crianças não existem.

Sou abobado, sim, mas não sou velho,

Não dorme, senão depois não bebe Coca-Cola.

Antigamente tudo aqui era cidade. (...)

 

E vamos agora a uma série de paradoxos de Karl Kraus. Nem tento invertê-los pois basta pensar um pouco para ver que é impossível. Eles são portadores, contra a opinião comum, de uma verdade não convencional. Não aceitam torções para transmitir a verdade oposta.

O escândalo começa quando a polícia o encerra.

Para ser perfeita, faltava-lhe apenas um defeito.

O ideal da virgindade é o ideal dos que querem desvirginar.

As penas servem para desencorajar os que não pretendem pecar.

Há uma obscura razão da terra que manda exploradores ao mundo.

As crianças brincam de soldados. Mas por que os soldados brincam de ser crianças?

 

Naturalmente, Kraus também cai no pecado dos aforismos cancrizáveis, e eis alguns de seus ditos que podem muito bem ser contraditos e, portanto, invertidos:

 

Nada é mais insondável que a superficialidade da mulher.

Nada é mais superficial que a insondabilidade das mulheres.

 

Mais fácil perdoar um pé feio que uma meia feia!

Mais fácil perdoar uma meia feia que um pé feio!

 

Há mulheres que não são belas, mas parecem ser.

Há mulheres que são belas, mas não parecem ser.

 

O super-homem é um ideal prematuro que pressupõe o homem.

O homem é um ideal prematuro que pressupõe o super-homem.

 

Os únicos paradoxos que nunca parecem cancrizáveis são os de Stanislaw J. Lec. Eis uma breve lista de seus Pensieri spettinati (1984):

 

Se pudéssemos descontar a morte dormindo-a em prestações!

Sonhei a realidade. Que alívio acordar!

Abre-te, Sésamo — quero sair!

Sabe-se lá o que Colombo teria descoberto se a América não tivesse barrado sua passagem!

Terrível é a mordaça besuntada de mel.

O camarão enrubesce depois de morto. Que fineza exemplar, numa vítima!

Ao demolir monumentos, poupem os pedestais. Eles sempre podem ser úteis.

Possuiu a ciência, mas não a engravidou.

Em sua modéstia, considerava-se um grafomaníaco. Na verdade era um delator.

As fogueiras não iluminam as trevas.

Pode-se morrer em Santa Helena sem ser Napoleão.

Abraçaram-se tão apertado que não sobrou espaço para sentimentos.

Ele cobre a cabeça com as cinzas de suas vítimas.

Sonhei com Freud. O que significa?

Frequentar anões deforma a espinha dorsal.

Tinha a consciência limpa. Nunca usada.

Até em seu silêncio havia erros linguísticos.

 

Devo admitir que tenho uma queda por Lec, mas quero terminar com um paradoxo dele que tem sido um guia, embora nem sempre observado, para minha vida, e espero que para a de vocês também:

Reflita antes de pensar.”

 

 

A simulação barroca

O século que refletiu com maior sutileza sobre estes problemas foi o barroco, século do nascimento do absolutismo e da razão de Estado, o século de Mazzarino, que passava o tempo não só perscrutando as mentiras alheias nos traços do rosto, mas escondendo o que estava lendo ou escrevendo naquele momento, e que organizava requintados festins nos quais a carne devia parecer peixe, e o peixe, carne, e as frutas, verduras e vice-versa, pois a aparência mentirosa suscitava maravilha. Era o século dos mentirosos teatrais, Iago, dom Juan, Tartufo, mas também o século em que os arquitetos como Borromini mentiam com perspectivas enganadoras e ambíguas, o século em que contava mais a aparência do que o coração das coisas, pois era o século em que o olho e a visão transformaram-se em instrumentos de exploração do universo, o século em que um certo Giuseppe Battista propunha uma Apologia della menzogna (1673) na qual aparecem representações emblemáticas da fraude e da simulação.

Torquato Accetto, em sua Dissimulazione onesta (1641), não louva a simulação, que serve para mostrar aquilo que não se é, mas a dissimulação, que servia para não mostrar aquilo que se é — praticando aquela falsa modéstia que Kant, ao contrário, condenava. Para Accetto (em um século de intrigas, enganos, ameaças e ciladas),

o viver prudente se acompanha com a pureza do espírito [...] em uma via plena de obstáculos devemos proceder com passos cautelosos e lentos [...] o Evangelho nos convida a ser prudentes como serpentes e simples como pombas [...] quem não sabe fingir não sabe viver [...] e dissimular nada mais é que uma indústria de não deixar que vejam as coisas como são, é um véu composto de trevas honestas [...] da qual não se forma o falso, mas se dá algum repouso ao verdadeiro [...]. Se alguém usasse máscara todo dia, ficaria mais conhecido do que qualquer outro [...] enquanto dos excelentes dissimuladores que existiram e existem não se tem notícia alguma.

 

Apotegma tão verdadeiro que Accetto, que confessa a certa altura que publicou seu livro em um estilo distante “porque escrever sobre a dissimulação exigiu que eu dissimulasse”: teve tanto sucesso em sua intenção que ninguém lhe prestou atenção e teve de esperar que Croce viesse a redescobri-lo, esquecido em estantes poeirentas.

Por outro lado, se Descartes não fugia da fama, depois da condenação de Galileu resolveu não publicar o livro Le monde ou traité de la lumière, no qual trabalhava desde 1630, honrando assim o conhecido lema bene qui latuit, bene vixit*.

Seria fácil dizer que, se Accetto elogia a dissimulação, Baltasar Gracián em seu Oráculo manual e arte de prudência (1647) elogia a simulação. Mas as coisas não são fáceis assim, sobretudo para um jesuíta barroco. Gracián não cessa de afirmar que não se deve confundir a política com o engano, que “somente a verdade pode conferir autêntica reputação”; acusa Maquiavel de ser um valiente embustero, ou seja, um intrépido mentiroso, que “parece ter candura nos lábios e pureza na língua, mas cospe fogo infernal que inflama os costumes e incendeia as repúblicas”. À primeira vista, parece que aquilo que ele prega para sobreviver a seu tempo é a prudência, a discrição, a reserva — pois é preciso a “uma judiciosa cautela também ao dizer a verdade, que mesmo sem mentir, não deve ser dita toda de uma vez” e que “não há nada que exija mais cautela que a verdade; dizê-la é como fazer uma sangria no coração. Saber dizê-la exige tanta habilidade quanto a que é necessária para saber calá-la.”

Mas da discrição extrema à tímida simulação é só um breve passo. Gracián sabe (como já aconselhava Maquiavel) que é preciso vestir antes a pele da raposa que a do leão; que a sabedoria prática consiste em saber dissimular; que a astúcia vale mais que a força; que “as coisas não são consideradas pelo que são, mas pelo que parecem ser”; que “valer e saber mostrar que vale significa valer duas vezes”; que “aquilo que não se vê é como se não existisse”; que “jogar a descoberto não produz vantagem nem prazer”; que “não há perfeição que não corra o risco de parecer bárbara se não for assistida pelo esplendor do artifício”, que “não se deve agir sempre com franqueza, pois do contrário os outros perceberão essa constância e poderão prever e talvez frustrar nossas ações”; que é preciso apoiar os outros para obter o que se quer, não revelar as próprias fragilidades, saber imputar aos outros os próprios erros, nunca estar na companhia de quem pode nos diminuir, e que “uma boa pasta de dentes perfuma a boca e a grande sutileza da vida é ser capaz de vender o ar, pois é possível pagar a maior parte das coisas só com palavras...”.

Enfim, “labuta é a vida do homem, contra a malícia do homem. A astúcia luta com estratagemas bem estudados: não age nunca do modo previsto; ela acena, sim, um movimento, mas para induzir ao erro; esboça destramente um gesto no ar e opera em seguida em uma situação inesperada, sempre pronta a desmentir a intenção mostrada. Acena um propósito [...] depois faz exatamente o contrário, saindo vencedora graças à surpresa que suscita”.

Certo, Gracián não é Accetto, e por isso suas máximas desfrutaram de grande sucesso nos séculos sucessivos.”

*: Quem soube viver discretamente, viveu bem.

 

 

“Tanto um quadro de Rafael quanto aquele de Twombly poderiam corresponder a esta definição da forma artística feita por Luigi Pareyson em Estética (1954):

Na obra de arte, as partes estabelecem um duplo tipo de relação: de cada uma com as outras e de cada uma com o todo. Todas as partes estão ligadas entre si em uma indissolúvel unidade, de modo que cada uma é necessária e indispensável e tem uma colocação determinada e insubstituível, a tal ponto que uma falta dissolveria a unidade e uma variação traria a desordem Se a alteração das partes é a dissolução da unidade e a desintegração do todo, isso ocorre porque o próprio todo preside à coerência das partes entre si e faz com que conspirem todas juntas para formar o inteiro. Neste sentido, as relações que as partes estabelecem entre si nada mais fazem que refletir a relação que cada parte tem com o todo: a harmonia das partes forma o inteiro porque o todo funda sua unidade.

Então, duas seriam as formas de imperfeição possíveis de imputar a uma obra de arte: a ausência de algumas partes que o todo exigiria ou a presença de algumas partes a mais. Tem certamente pouco a Vênus de Milo, mutilada há séculos. Muitos imbecis tentaram fazer com que voltasse a ser perfeita, mais uma daquelas, com ambos os braços; vi uma delas em um museu de cera californiano com uma legenda “assim como era quando foi criada por um escultor desconhecido”.

Mas por que julgamos tola a tentativa de aperfeiçoar a Vênus de Milo? Porque, ao contemplá-la, o que nos fascina é continuar imaginando aquele todo que se perdeu. E a este sentimento vem se juntar um outro gosto, nascido no século XVIII, geralmente resumido pelo termo estética das ruínas.”

 

 

“Deveria começar dizendo que aquilo que gostaria de dizer tem grande importância, mas é um segredo, e por isso devo ficar de boca fechada. Fazendo isso, granjearei grande prestígio e todos ficarão convencidos de que, como dizia Já’far al-Sadiq, sexto Imã, “Nossa causa é um segredo dentro de um segredo, o segredo de alguma coisa que permanece velada, um segredo que só um outro segredo pode explicar, um segredo sobre um segredo que se satisfaz em um segredo”.”

 

 

“Um dos casos em que a síndrome da conspiração desenvolveu-se com maior fantasia é o da destruição das Torres Gêmeas, complô invariavelmente atribuído aos planos secretos de Bush, aos judeus e assim por diante.

Busquem na internet: verão que New York City tem onze letras; Afghanistan tem onze letras; Ramsin Yuseb, terrorista que tinha ameaçado destruir as torres, tem onze letras; George W. Bush tem onze letras; as Torres Gêmeas formam um 11; Nova York é o décimo primeiro estado dos Estados Unidos; o primeiro avião a se chocar contra as torres era o voo número 11, que levava 92 passageiros e 9 + 2 = 11; o voo 77, que também se chocou contra as torres, levava 65 passageiros e 6 + 5 = 11; a data 9/11 é igual ao número de emergência americano, 911, cuja soma interna dá 11; o total das vítimas de todos os aviões desviados foi 254, cuja soma interna dá 11; 11 de setembro é o dia 254 do calendário anual e a soma interna de 254 é 11. E assim por diante, cabalando.

Quais são as objeções a estas coincidências aparentemente prodigiosas?

New York tem 11 letras se acrescentarmos City; Afghanistan tem 11 letras, mas os sequestradores não eram afegãos, e sim da Arábia Saudita, do Egito, do Líbano e dos Emirados Árabes; Ramsin Yuseb só tem 11 letras se usarmos especificamente uma determinada transliteração, se em vez de Yuseb transliterássemos Yussef o jogo deixaria de funcionar; George W. Bush só tem 11 letras com a middle initial; as Torres Gêmeas desenham um 11, mas também um 2 em algarismos romanos; o voo 77 não atingiu uma das torres, mas o Pentágono, e não transportava 65, mas 59 passageiros; o total das vítimas não foi 254, mas 265, e assim por diante.

Sempre na internet, informam que, juntando o nome do primeiro avião que se chocou com a primeira torre, Q33NY, com a sigla de Nova York, NYC, e colocando a fórmula obtida no computador sem usar a fonte habitual, como Times ou Garamond, mas uma outra mais ou menos cabalística chamada Wingdings, você obterá assombrosas mensagens secretas.

O único problema é que nenhum dos aviões que se chocaram contra as torres chamava-se Q33, e foi preciso inventar esta sigla para obter a pretensa mensagem secreta.

Há também alguns pretensos segredos que, quando revelados, se mostram muito decepcionantes. Temos, por exemplo, o caso do terceiro segredo de Fátima que, entregue em um envelope fechado em 1944 por irmã Lúcia, deveria ter sido aberto depois de 1960. Mas João XXIII e seus sucessores não acharam oportuno revelar seu conteúdo, que acabou sendo revelado, afinal, em 2000, por ordem de João Paulo II. Parece que Ratzinger era o único que já conhecia a mensagem e, com certo bom senso, havia aconselhado a deixá-lo quieto onde estava, pois não continha nada de interessante. Mas o fascínio do segredo tinha crescido além de qualquer medida. Aberta a mensagem, todos viram que eram descrições trágicas, sem dúvida, mas inspiradas nas imagens de alguns Apocalipses ibéricos, e se tinha alguma capacidade profética era a de dizer que nos anos que se seguiram à sua redação (mas também nos anos anteriores e justamente a dois passos de irmã Lúcia, na Espanha) aconteceriam coisas muito feias — que se podia saber ou imaginar sem precisar ter visto Nossa Senhora.

Ao contrário de muitos entusiastas de criptografia que tentariam encontrar significados recônditos na mensagem, inclusive supostas relações entre segredos de Fátima e segredos de Medjugorje, Ratzinger — então prefeito da Congregação pela doutrina da fé — tratando primeiro de precaver-se lembrando que uma visão particular não é matéria de fé e que uma alegoria não é um vaticínio, identificava explicitamente as analogias com o Apocalipse e observava: “A conclusão do ‘segredo’ recorda imagens que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé”. Sendo assim, em um capítulo que se intitula significativamente “A estrutura antropológica das revelações privadas”, ele escrevia que o vidente “vê com suas possibilidades concretas, com as modalidades que lhe são acessíveis de representação e de conhecimento”. O que, em palavras simples, queria dizer que irmã Lúcia havia visto em êxtase aquilo que havia lido nos livros de seu convento e em textos com mais de dois mil anos. O que o segredo de Fátima revelava já estava à venda havia muitíssimo tempo em todas as livrarias da Pia Sociedade de São Paulo.”

 

 

“Noto que há alguns anos falei sobre o absoluto (não é culpa minha se a Milanesiana retorna de modo um pouco obsessivo a assuntos intratáveis) e noto igualmente que o sagrado é comumente entendido como sentimento ou visão de algo que transcende nossa experiência, nnas dá a esta experiência um sentido. Alguém poderia dizer que o sagrado identifica-se com o absoluto, mas o absoluto é objeto de alguma filosofia ou religião e é um conceito filosófico, enquanto o sagrado é considerado uma força misteriosa que constitui a origem de todo pensamento ou sentimento religioso.”

 

 

“Existe um texto bastante desconcertante no qual Ockham diz que uma imagem tem de ser um signo que nos permita recordar algo que já conhecemos como entidade individual; do contrário, a imagem não seria, a nossos olhos, semelhante ao representado. Ou seja: a estátua de Hércules nunca me faria pensar em Hércules se eu já não tivesse visto Hércules (Quaest. in II Sent, Reportatio 12-13).

Este texto aceita (como se houvesse um acordo geral sobre a questão) não termos condições de imaginar, a partir de um ícone, algo que nos fosse desconhecido até então. Isso poderia parecer contraditório com nossa experiência, pois as pessoas usam pinturas, fotografias ou identikit para poder reconhecer pessoas, animais ou coisas ainda desconhecidas, e mesmo nos tempos de Ockham os monarcas costumavam mandar imagens de sua filha ao primo de um outro país a quem ela era destinada como esposa. Existe uma explicação epistemológica para uma afirmação tão embaraçante. Para Agostinho, um signo era algo que fazia in cogitationem venire uma outra coisa, e para a tradição aristotélica, pelo menos até Tomás, o signo remetia imediatamente ao conceito, o qual era, por sua vez, imagem da coisa. Para Ockham, ao contrário, o verdadeiro signum da coisa é o conceito, não a palavra que a ela remete. Os conceitos são os signos naturais que significam as coisas, enquanto as palavras são impostas por relação direta com as coisas: “voces sunt signa secundario significantia illa quae per passiones animae primario importantur” (Summa logicae I, 1). As palavras significam as mesmas coisas significadas pelos conceitos, mas não significam os conceitos!

Se o único signo das coisas individuais é o conceito, e a expressão material (seja uma palavra ou uma imagem) é somente um sintoma da imagem interna, então, sem uma notitia intuitiva preliminar de um objeto, a expressão material não pode significar coisa alguma. As palavras ou as imagens não criam nem fazem nascer alguma coisa na mente do destinatário (como podia acontecer na semiótica agostiniana), se naquela mente já não existe o único signo possível da realidade experimentada, ou seja, o signo mental.

Ora, poderíamos objetar a Ockham que uma representação qualquer (como o identikit) estimula nossa mente a produzir um signo mental graças ao qual podemos reconhecer a coisa correspondente, e esta é a razão pela qual podemos imaginar Hércules ou Hitler mesmo sem nunca os ter encontrado. Mas o texto de Ockham faz surgir um problema interessante: nenhum policial poderia elaborar um retrato falado se a testemunha que lhe fornece o input não tivesse encontrado ou visto o indivíduo correspondente e Pietro Annigoni não teria podido fazer o retrato da rainha Elisabeth se não a tivesse visto diante de si. Como consequência incontestável, não pode existir imagem de algo que ninguém nunca tenha visto — a menos que, como no caso do centauro, se crie uma coisa desconhecida por composição de partes de coisas conhecidas. E é por isso que podemos fazer imagens de Hitler e até do Mickey, mas não podemos fazer imagens de um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma. A teoria ockhamista da imagem pode ser contestada no que se refere a imagens de coisas atingíveis na experiência, mas resiste perfeitamente quanto a imagens daquilo que transcende a experiência.”

 

 

“De fato, para o Pseudo-Dionísio Areopagita, Deus é inefável, e o único modo de falar dele adequadamente é o silêncio (A teologia mística, III, 412-413). Quando alguém fala, é para ocultar os mistérios divinos daqueles que não podem alcançá-los (Epístola IX, 1, 452).

Este comportamento mistérico é, no entanto, continuamente contestado pelo comportamento oposto, a persuasão teofânica de que, sendo Deus a causa de todas as coisas, todos os nomes lhe cabem, no sentido de que todo efeito remete à sua Causa (Dei nomi divini I, 7), de modo que a Deus são atribuídas forma e figura de homem, de fogo, de âmbar, e dele são louvadas as orelhas, os olhos, os cabelos, o rosto, as mãos, os ombros, as asas, os braços, o dorso, os pés, e para eles são forjados coroas, copos, crateras e outros objetos cheios de mistério (ibid. I, 8).

Contudo, o Pseudo-Dionísio adverte que estas nomeações por via simbólica nunca são adequadas. Daí a necessidade de que tais representações denunciem sua fraquíssima hiperbolicidade (se me permitem o oximoro): só se pode nomear o divino por similitudine dissimile ou dissimilitude inconveniente (por exemplo, A hierarquia celeste II, 2-3), de modo que a divindade é chamada às vezes “também pelos nomes das coisas mais baixas, como unguento fragrante, pedra angular e até lhe atribuem uma forma ferina, adaptando-lhe as características do leão e da pantera e dizendo que será como um leopardo e uma ursa enfurecida” (ibid, II, 5, 87), até chegar a dar a Deus a forma de um verme — e o caso máximo de dissimilitude é citado na Epístola IX, 5, que examina um trecho do Salmo 78 em que Deus apareceu tomado pela ira e “acordou como homem que dormia, / como valente embriagado pelo vinho”.

Mas aqui também se faz alusão ao sagrado inexprimível através de representações de coisas alcançáveis na experiência — que não são mais que tentativas de antropomorfização da divindade (Deus com barba e com auréola triangular), sem falar no procedimento de animalização do Espírito Santo.

E então, sem poder elaborar verdadeiramente uma teologia negativa que diga somente o que Deus não é, e tentando uma contraditoriamente positiva, acaba-se por aceitar representações de Deus como se fosse um de nós. O que aparece até no início do Gênesis: se Deus fez o homem à própria imagem e semelhança, isso significa que o homem pode imaginar Deus à sua própria imagem e semelhança.

De certa forma, o cristianismo superou esta impossibilidade ao falar de uma divindade encarnada. A encarnação seria o artifício semiótico através do qual Deus se faz pensável e representável, compreensível também para os humildes — não apenas através da imagem de Jesus, mas também por meio da aparência daqueles que foram de certo modo mediadores do sagrado, como a Virgem e os santos.

Mas o predicamento ockhamista ressurge também nestes casos, pois nenhum dos que pintaram ou esculpiram retratos de Jesus ou da Virgem já os viu — pois a retratística de personagens evangélicos nasce séculos depois da morte de Cristo — e (caso se pretenda dar fé a estes achados) também o Mandylion, o linho da Verônica ou o Sudário aparecem em época bastante tardia.

Ora, se existe alguém que teve a experiência direta de Deus, este alguém são os místicos e, justamente por fidelidade à ideia de não perceptibilidade do sagrado e de impossioilidade de traduzi-lo em imagem, eles sempre descrevem a experiência do divino sob a forma da escuridão, da noite escura, do vazio e do silêncio.

Todos os grandes místicos afirmaram que, também na visão mística, que no entanto é dom inefável, pode haver imagem de Deus. Deus para o místico aparece como um Grande Nada.

Diz Dionísio, o Cartuxo: “O, Deus amabilíssimo, tu mesmo és a luz e a esfera da luz, onde teus eleitos vão suavemente repousar, onde adormecem e dormem. És como um deserto amplíssimo, perfeitamente plano e incomensurável, no qual o coração verdadeiramente pio, purificado de qualquer amor particular, iluminado do alto e pleno de ardor, erra sem se perder, sucumbe beato e ao mesmo tempo se cura”.

Mestre Eckhart fala do abismo sem modo e sem forma da divindade silenciosa e deserta e quer entrar no fundamento simples, no deserto silencioso onde nunca se viu diversidade, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo, no íntimo onde ninguém se encontra em casa; lá, aquela luz se apaga, lá ela é mais una que em si mesma, pois este fundamento é um silêncio simples que é imóvel em si. Só assim a alma atinge a suprema beatitude, lançando-se na divindade deserta onde não há obra nem imagem.

Johannes Tauler escreve nas Prédicas:

O espírito purificado e clarificado mergulha nas trevas divinas, num silêncio mudo e numa união incompreensível e inefável, e neste mergulhar perde-se qualquer igualdade e qualquer desigualdade, e neste abismo o espírito perde-se a si mesmo e não sabe nem de Deus nem de si mesmo, não conhece nem igual nem desigual, nem o que quer que seja, pois mergulhou na unidade de Deus e esqueceu todas as diferenças.

 

E diz que se chega à verdadeira simplicidade por meio dos sentidos fechados, da ausência das imagens e do desprezo de si mesmo. Em todo evento e em todo ato externo é preciso dominar os próprios sentidos, pois na verdade os sentidos levam o homem para fora de si e provocam nele imagens estranhas. Há o exemplo de um padre de vida santa que, tendo de sair de sua cela no mês de maio, tapou os olhos com o capuz da túnica. Quando lhe perguntaram por que fazia isso, ele disse: “Defendo meus olhos da visão das árvores, para não ser impedido nas visões do meu espírito. Ó queridos filhos, se a visão do bosque selvagem já causava impedimento àquele homem, quanto nos deve ser danosa a variedade das coisas mundanas e frívolas!”

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