terça-feira, 30 de julho de 2024

A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI (Parte I), de Bruno Paes Manso

Editora: Todavia

Opinião: ★★★☆☆

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ISBN: 978-65-5692-520-2

Páginas: 304

Sinopse: Depois de esmiuçar o mundo do crime no Rio de Janeiro em A república das milícias, Bruno Paes Manso volta com um mergulho em outra dimensão da criminalidade no Brasil. A partir de depoimentos de ex-criminosos que tiveram a vida transformada pelo contato com a religião, o autor desconstrói estigmas associados às novas denominações evangélicas e mostra como o crescimento desses grupos responde a anseios profundos de uma população exposta a todo tipo de violência.



“(...) Os religiosos chamam essa mudança de “metanoia”, termo que não fazia parte do meu vocabulário, mas que passei a ouvir com relativa frequência entre os evangélicos, assim como tantas outras palavras. O vocábulo tem origem grega e aparece no Novo Testamento, sendo normalmente traduzido como arrependimento. Essa adaptação, porém, é imprecisa e não contempla o significado em toda sua abrangência. A metanoia representa uma mudança de consciência e de comportamento que não acontece por ameaça de punição, nem por mera pressão social, mas por convicção pessoal, em decorrência de uma nova crença que faz o sujeito passar a enxergar o mundo de outra forma e a agir conforme ela. Depois da metanoia, é como se o indivíduo nascesse novamente ao acreditar em uma outra verdade e viver de acordo com ela. O processo é radical e quase sempre envolve uma religião. Para ocorrer, a pessoa deve ser capaz de abandonar as crenças que a definiam até então e seguir em direção a um novo futuro, modulado por outro programa mental. É como se um espírito diferente assumisse o controle do corpo convertido, mudando os comandos sobre seu raciocínio, sentimentos e ações. (...)

Havia um mecanismo mental sofisticado que permitia a viabilidade daquelas transformações, apoiado por um aparato discursivo, institucional e metafísico criado para legitimá-las. Envolvia arrependimento das pessoas em apuros, abandonadas, sozinhas, e a compreensão verdadeira de que sua postura inadequada diante da vida era uma das causas do seu infortúnio. As igrejas pentecostais abriam as portas para essas pessoas se integrarem a uma nova rede, ofereciam verdades para transformar os desencaixados em cidadãos de bem. Para os agraciados com o dom de acreditar nessas verdades, havia a chance de se reinventar de modo a seguir as regras e as expectativas da sociedade. A mudança, no entanto, não podia ser meramente cosmética. Dependia de um arrependimento verdadeiro que devia se transformar em ações concretas, como pedir perdão a Deus, aos que foram prejudicados pelos erros passados e perdoar a si mesmo. A veracidade desse sentimento era a garantia de que os erros não se repetiriam. Do ponto de vista formal, o perdão também servia para anistiar os pecados acumulados, aliviando assim a consciência e fortalecendo o amor-próprio. (...)

Acreditar, contudo, não é algo automático. Mesmo quando queremos, muitas vezes simplesmente não conseguimos. Em compensação, quando o contrário acontece, a realidade pode vir a ser enxergada de outra forma, como se a pessoa colocasse uma nova lente sobre os olhos e a partir de então processasse as informações em uma outra consciência. Na metanoia, a pessoa renasce e torna a viver uma encarnação no mesmo corpo, sem precisar morrer.”

 

 

“No geral, eu via todas essas mudanças com bons olhos. Quase sempre os convertidos se tornavam pessoas melhores, porque conseguiam diminuir a voracidade de seu ego para pensar no próximo. No mercado de crenças havia excelentes pacotes de conversões para reduzir o sofrimento e as angústias da vida. Essas transformações dependiam da capacidade das pessoas de acreditar cegamente na verdade sagrada: elas se libertavam da identidade que as fazia sofrer, mas se aprisionavam em outra. Uma das características dessas mudanças, contudo, era o foco nos indivíduos e a falta de atenção aos mecanismos do sistema que não paravam de produzir pecadores. Como se as engrenagens não demandassem reparos, o mundo não precisasse de reformas, apenas de conversões em massa. As mudanças deveriam acontecer na consciência de cada um, para que conseguissem suportar os inevitáveis dissabores da vida.

Por causa disso, os temas morais é que tinham destaque, para os quais as leituras da Bíblia indicavam o caminho, e não os debates técnicos sobre políticas públicas e os rumos do país. É claro que existem diferentes abordagens, conforme a denominação e seu histórico, mas a chegada dos pentecostais transformou o debate, que passou a girar em torno das pautas de costumes que, em tese, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo privado. Nesse sentido, o que aconteceria se os evangélicos pentecostais se tornassem a maioria do eleitorado? A crença em tantas verdades absolutas poderia criar uma cisão entre eles e as pessoas que não professam a mesma fé? Eles poderiam ser manipulados por religiosos que levassem para o debate político temas morais explorando a ideia de uma guerra santa?”

 

 

“Autoridade, ordem, propósito, redes de apoio; de repente, uma nova forma de poder definia a direção do futuro do Brasil. Quanto mais popular e abrangente, mais a mensagem se normaliza e passa a fazer parte da cultura. Pode ser vista no show sertanejo ou na final do campeonato de futebol, na celebração dos gols e das vitórias mais importantes, quando o crente aponta os dedos indicadores para cima, como se compartilhasse com Deus os sucessos de sua vida.”

 

 

“Eu achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis. Os princípios gerais de amor ao próximo, no Antigo e no Novo Testamento, assim como os exercícios de orações e de jejum para controlar o ego e os desejos pessoais, na busca de uma vida em comunhão, me soavam um caminho seguro para a civilidade. Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando adversários.

A popularização das redes sociais e a fragilização do jornalismo tiveram papel importante nesse processo. As pautas de interesse público, que costumavam ser filtradas por uma elite em tese comprometida com princípios republicanos — e na prática também com os interesses econômicos de seus financiadores —, foram esvaziadas pela diversidade de assuntos e interesses vindos de influenciadores, agrupados nas mais diversas bolhas. Havia aspectos positivos na novidade, que permitia uma comunicação mais descentralizada e democrática. O modelo de negócio dos grandes conglomerados de tecnologia, contudo, ajudou a produzir efeitos colaterais importantes e a piorar a qualidade dos debates políticos. Os discursos mais radicais, que reforçam as crenças das bolhas, mesmo sem respaldo nos fatos, tornaram-se populares, mediados por algoritmos que os impulsionam. Eles seduzem não apenas por pregar o ódio a terceiros, mas por levar os participantes do grupo a acreditar que travam uma batalha decisiva, com propósitos definidos.11 O novo contexto das redes sociais afetou o debate dos evangélicos e religiosos. Discursos alarmistas, que enxergam o demônio em todos os cantos, passaram a se sobressair às mensagens de comunhão e pacifismo de Jesus Cristo. Até pregação armamentista ganhou respaldo nos textos sagrados.”

11. O papel das redes sociais na criação de propósito de luta é debatido com riqueza no livro de Max Fisher, A máquina do caos (São Paulo: Todavia, 2023).

 

 

“As ondas subsequentes ao processo de urbanização, que investigamos neste livro, seriam decorrência da tensão provocada pela mistura do passado brasileiro com a expectativa de futuro nas cidades. Diante dos desvalidos abandonados no meio do caminho por governos frágeis e ineficientes, a própria sociedade precisou descobrir maneiras de atenuar a miséria e sobreviver. Com o passar do tempo, duas soluções foram adotadas para organizar a vida caótica das cidades: a fé e o fuzil. Quanto à primeira, o fortalecimento da autoridade religiosa é representado pela curva do crescimento dos pentecostais, a partir dos anos 1950. Com relação à segunda, pelo aumento da violência policial e dos homicídios nos bairros urbanos pobres, a partir dos anos 1980, e pela disseminação das facções de base prisional e das milícias, a partir dos anos 1990 e 2000.

A formação do primeiro tsunami, o processo caótico de urbanização do Brasil, está associada à história rural do país, uma espécie de feudalismo empobrecido que antecede a modernização capenga que viria depois. Durante as primeiras décadas da República, os donos de engenhos e casas-grandes herdadas do período colonial e escravista se reinventaram para manter a influência dos coronéis no centro da política nacional. Apoiados pelos governadores da República, eles continuaram fortes com suas milícias formadas por capangas. Travavam disputas violentas com outras parentelas, donas de fazendas vizinhas, mantendo o poder como algo a ser sustentado à base das balas. As rixas transcendiam gerações em rivalidades movidas por ciclos de vingança que se perpetuavam na defesa da honra familiar.6

Nos arredores das fazendas, uma população miserável de trabalhadores sazonais sobrevivia vagando pelas grandes propriedades como parceiros, arrendatários ou agregados. Moradores de casas de taipa ou de palha, estavam sujeitos aos favores e à boa vontade dos poderosos numa relação de dependência com eles. Os vaqueiros e tropeiros formavam a chamada “civilização do couro”, cuja renda também vinha dos donos de terra e de gado. A maioria das pessoas comia o que produzia em suas roças, como milho, mandioca e feijão. O dinheiro quase não circulava e as alternativas de trabalho eram restritas à terra. A monocultura, a elevada concentração de propriedade, as técnicas de produção ultrapassadas e o mercado incipiente tornavam a fome, a mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida alguns dos problemas mais graves da região.

Existia, porém, um legado ainda mais cruel deixado pelo regime escravista: a deterioração do imaginário na relação entre patrão e empregado, entre classes e raças, que transformava o trabalhador braçal em mero objeto, propriedade para produzir riqueza. A cor da pele era um elemento importante na construção do estigma, assim como a baixa educação formal. O uso da violência se tornou sinônimo de autoridade nas relações de poder, como um instrumento para domesticar e criar obediência — quase sempre de pessoas pobres, parcamente alfabetizadas e negras.7

No universo agrário nordestino, o catolicismo mediava o duro convívio entre quem mandava e quem obedecia. Legitimava a autoridade dos poderosos, preservava a tradição, fortalecia os laços familiares e de vizinhança por meio dos seus sacramentos e festas. A Igreja viabilizava a caridade, aliviando a consciência dos cristãos que doavam, ao mesmo tempo que diminuía o desespero e criava um sentimento de gratidão dos que recebiam. A Igreja também ajudava o Estado, proporcionando educação nos colégios religiosos, saúde no atendimento das santas casas, ordem por meio da catequização indígena e dos registros de nascimento, batismo, casamentos e óbitos.

O poder girava em torno das paróquias e das fazendas, com os capelães se subordinando aos donos das terras, dependentes dos coronéis para realizar suas obras e festas. Os festejos católicos tinham um papel importante nessa acomodação cultural. Celebravam os santos, reunindo o povo nas praças, em procissões e novenas, como nas festas juninas de são João, são Pedro e santo Antônio, que persistiram como as mais populares do Nordeste. Os santos de devoção e as festas ainda podiam ser associados a entidades indígenas e africanas, resultado do sincretismo próprio do catolicismo nacional, como nas festas de Nosso Senhor do Bonfim e de Iemanjá, em Salvador.

Dessa forma, ao mesmo tempo que legitimava o status quo, paradoxalmente a religiosidade criava a sensação de pertencimento em uma sociedade marcada pelo abandono. Os santos e as entidades animistas tinham um papel importante na relação dos crentes com o sobrenatural. Eles e os fiéis formavam uma espécie de irmandade que se ajudava, com os primeiros prestando favores mágicos aos mais necessitados em troca de promessas, comidas, perfumes.8 Era uma relação sem cerimônia, que podia ser acessada para resolver problemas como falta de chuva, de comida, cura de doenças, questões sentimentais. As novenas para são José, por exemplo, eram associadas à garantia de chuvas e bonança na lavoura; a imagem de santo Antônio servia para as mulheres arrumarem marido; e as benzedeiras, com suas plantas e rezas, supriam o papel dos agentes de saúde diante de um Estado inexistente.

A Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, romperia com as elites agrárias e daria início ao processo de industrialização nacional. Em 1940, durante a ditadura do Estado Novo, Vargas concedeu anistia a todos os cangaceiros que se entregassem, e diversos deles baixaram as armas. O banditismo rural dos cangaceiros contra a opressão do sistema coronelista durou cerca de meio século. Diante da decadência no campo, não havia mais motivos para seguir lutando. Corisco, sobrevivente do bando de Lampião, não quis se entregar e foi executado por uma volante em uma fazenda no município de Barra do Mendes, na Bahia. Era o último da espécie. Depois de sua morte, o cangaço desapareceu do mapa para se eternizar nos livros de história e nos cordéis. Com o fim dessa era, novas ideias começavam a ser sopradas nos ouvidos dos brasileiros, que as escutavam com atenção. A violência redentora e a rebeldia do cangaço, a imobilidade do mundo agrário, o poder das oligarquias e as barreiras para a ascensão social podiam ser deixadas para trás. Outros caminhos para a vida estavam irrompendo e prometiam superação. Bastava comprar um lugar no pau de arara e enfrentar as centenas de quilômetros que separavam o campo das cidades do Sul e Sudeste do Brasil. Surgia uma janela para escapar da jaula que aprisionava os moradores pobres da zona rural a um futuro fadado a ser miserável e violento.”

6. A discussão política do período da República Velha está presente no livro Coronelismo, enxada e voto (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), de Victor Nunes Leal.

7. O papel da escravidão e da violência na história da formação do Brasil vem sendo tratado por Jessé Souza em sua releitura de clássicos como Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), Os donos do poder (Raymundo Faoro) e Casa-grande e senzala (Gilberto Freyre). Ver A elite do atraso (Estação Brasil, 2019) e “Elias, Weber e a singularidade cultural brasileira”. In: Leopoldo Waizbort. Dossiê Norbert Elias (São Paulo: Edusp, 1999). A relação entre o poder agrário e a religiosidade também é discutida no clássico Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, op. cit.

8. Em seu diálogo intelectual com Max Weber, em Raízes do Brasil (26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995), Sérgio Buarque de Holanda contrapõe a separação entre sagrado e profano, características do protestantismo ascético dos Estados Unidos, ao catolicismo brasileiro, popular, sincrético, rico em mediações entre o homem e Deus, reproduzindo uma situação análoga à estrutura de mediação de favores do cotidiano, que definiria o éthos cordial, plástico e emocional do brasileiro. Ver também “Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo”, de Faustino Teixeira, em Revista USP, São Paulo, n. 67, pp. 14-23, 2005.

 

 

“Nessa geração das periferias havia um vazio a ser preenchido que a colocaria em choque com a geração dos seus pais e avós. Os valores desses jovens nascidos em São Paulo não eram os mesmos dos migrantes que vieram para a capital acreditando nas oportunidades das cidades. A esperança forjada no ambiente rural não fazia mais a cabeça de Alexandre e de seus amigos, nascidos na realidade opressora e violenta das periferias. Eles negavam a cultura dos seus ancestrais. De que adiantava conhecer a terra, o clima, os ciclos das plantações, as tradições e as festas dos santos em São Paulo? Os hábitos e costumes rurais eram menosprezados, considerados anacrônicos. O estigma pesava sobre os nordestinos no Sudeste. “Baiano” e “paraíba”, respectivamente em São Paulo e no Rio, eram adjetivos associados à ignorância e ao atraso.

Os descendentes dos migrantes nordestinos, nascidos nas periferias, tinham o desafio de inventar para si uma nova identidade urbana em meio a uma sociedade violenta, implacável com quem não tinha dinheiro para sobreviver, uma verdadeira máquina de humilhação de pobres. O crime ofereceu um caminho para a criação dessa identidade masculina urbana e periférica. Permitia extravasar a raiva, responder com violência, na mesma moeda, à perversidade do sistema, e recusar ser atacado na honra e masculinidade, ainda que pagando com a vida e a liberdade. Eles morriam de cabeça erguida, ao contrário dos seus antepassados, que aceitavam as regras do jogo, sendo humilhados por pessoas que não reconheciam sequer sua humanidade.

O crime também era uma afronta ao sistema por oferecer um atalho para a aquisição de bens materiais aparentemente inacessíveis e prestígio social. Usando a violência, os criminosos podiam participar da sociedade de consumo, mesmo que por alguns instantes. Essa possibilidade se conectava aos valores hedonistas da sociedade burguesa sem religião; era um hedonismo violento, que não se preocupava com o que seus desejos podiam provocar nas vítimas de seus crimes.

A crise da religiosidade ajudava a aumentar o cinismo: se Deus não existe e o sistema pretende exterminar os pobres, por que não dar o troco? Sem as amarras religiosas, o que impediria alguém de roubar, trapacear, assaltar e se vingar da violência no mundo? Essa leitura da realidade e das leis, estimulada pelo ódio e pela cultura do crime, liberava moralmente muitos jovens para buscar o prazer em carros e motos potentes, roupas chiques, sexo e drogas, o que dificilmente conseguiriam com um emprego comum. O canto da sereia atraiu Alexandre e seus amigos. Para seguir esse caminho era preciso negar a humanidade do outro, o que era mais fácil para quem sentia a própria humanidade negada. Assim cresceram os adeptos da “vida louca”, os “bichos soltos”, sem remorso, que preferiam viver dez anos a mil em vez de mil anos a dez.

Quando o crime começou a crescer, principalmente depois da crise econômica dos anos 1980, houve um choque entre essas duas gerações: os migrantes, que chegaram do campo, e seus descendentes, nascidos nas periferias. Em São Paulo esse conflito foi representado por dois personagens: os justiceiros, que carregavam os valores dos primeiros; e os bandidos, que simbolizavam a revolta antissistema dos segundos. A absoluta maioria dos justiceiros era formada por pessoas vindas da zona rural, que diante do crescimento do crime organizaram-se para limpar seus bairros dos jovens que roubavam a vizinhança. Durante os anos 1980, segundo estimativas, os justiceiros chegaram a mais de mil, atuando em todos os cantos da metrópole. Matavam para defender o trabalhador e organizar seus bairros, varrendo quem não respeitava as regras.

Rivadávia Serafim da Silva liderou na zona norte um grupo suspeito de cometer duzentos homicídios entre 1983 e 1987. Nascido em Pena Forte, no Ceará, tinha 1,60 metro e pesava cinquenta quilos. Jonas Félix da Silva, que matava no Jardim Ângela e em outros bairros da zona sul, era de Limoeiro, em Pernambuco. Também eram pernambucanos Gilvam Brás da Silva e Francisco Alves de Souza, que atuavam em Guarulhos, e Ivanildo Gomes de Freitas, o Zoreia, que exterminava em Osasco. Francisco Vital da Silva, o Chico Pé de Pato, era de Campo Alegre de Lourdes, no sertão da Bahia. Recebeu o apelido porque andava com os pés abertos e ganhou status de herói ao dar entrevistas no programa de rádio de Afanásio Jazadji, que chegou a bater a marca de 1 milhão de ouvintes. Sua popularidade nos anos 1980 era tanta que o termo “pé de pato” se tornou sinônimo de justiceiro.

Muitas vezes havia protestos em frente aos fóruns ou delegacias quando eles eram presos, e, não raro, policiais e justiceiros faziam dobradinhas. Dizia-se que os pés de pato sabiam diferenciar os bandidos dos trabalhadores por morarem todos no mesmo bairro, o que evitava que os policiais, que associavam pobreza com a bandidagem e não sabiam diferenciar bandido de trabalhador, assassinassem inocentes. Também havia uma diferença entre a lógica de extermínio de policiais matadores e de justiceiros. Os homicídios da polícia eram em defesa de uma classe. Já os justiceiros defendiam os valores de sua geração, ligados ao trabalho duro. O inimigo de ambos, contudo, estava sintetizado no estigma do bandido.”

 

 

“As chacinas ganhavam destaque na imprensa paulista na década de 1990 e os casos eram contabilizados e investigados por uma delegacia especializada em múltiplos homicídios. Em 1994, foram registradas 34 ocorrências em toda a região metropolitana. No ano seguinte, 49, número que se manteve relativamente estável até 1998, quando saltou para 89, que se repetiu em 1999. O recorde de 95 ocorrências foi registrado no ano 2000.

Foi nessa época que comecei a investigar mais de perto os homicídios em São Paulo. Era o ano de 1999, e eu trabalhava na revista Veja, em que fui pautado para fazer uma matéria sobre chacinas. Entrevistando os matadores, compreendi que os assassinatos que eles praticavam não estavam associados meramente a ignorância, falta de autocontrole, maldade, loucura ou algum tipo de perversidade. A motivação para suas ações vinha de uma crença e um discurso que tinham sido formados no caos, na ausência de leis, no abandono institucional, no excesso de armas, e já tinham sido assumidos por pessoas que deixaram o mundo do trabalho para buscar o sustento no crime, apropriando-se de uma identidade marginal. Ademais, em um meio repleto de homicidas, matar era visto como uma ação necessária e legítima, e mesmo a vingança era entendida como uma maneira de impor respeito. Essa lógica tinha um efeito multiplicador implícito que vinha fazendo os assassinatos crescerem havia quarenta anos. Mais uma vez, foi preciso ouvi-los de igual para igual, escutá-los com atenção, levar em conta suas explicações para enxergar sua humanidade.

As longas conversas que tive com diversos matadores mostraram, para minha surpresa, que pessoas comuns, como Alexandre, Marcelinho, Edson e tantos outros, embarcavam nesses caminhos acreditando no propósito e no sentido de suas escolhas. Os autores de chacinas — alguns diziam ter perdido a conta de quantos mataram — também justificavam seus crimes a partir de uma ética local: como matadores rivais e criminosos nos arredores faziam o mesmo, não havia escapatória, eles precisavam entrar no conflito. Matar era a maneira mais eficiente de não morrer, e eles não matavam inocentes, apenas os que mereciam. A vida passava a girar em torno dessas disputas fatais das quais eles não conseguiam sair, como jovens guerreiros se autodestruindo na desordem.

Quando comecei as entrevistas, eu não esperava encontrar tamanha convicção em pessoas com tantos assassinatos nas costas. Eles acreditavam na justeza de seus atos. Numa conversa especialmente reveladora, pedi que o entrevistado informasse o apelido pelo qual gostaria de ser identificado, já que seu nome não poderia ser mencionado. Ele sugeriu “Wolverine”, o super-herói membro do grupo X-Men, criado e publicado pela Marvel, uma ficção darwinista sobre mutantes que ganham diferentes tipos de superpoderes no processo de evolução natural. O Wolverine da minha reportagem se chamava César, o que só descobri anos depois, quando ele já havia sido assassinado. Em 1999, o ano da entrevista, ele tinha 25 anos, morava no Grajaú, na periferia sul de São Paulo, e tinha iniciado sua vida de assassinatos no começo daquela década. Seus pais eram atenciosos, ele havia concluído o ensino médio e trabalhava com transporte alternativo. Era um jovem bonito, bem-vestido, vaidoso, que usava um brinco de brilhante na orelha.

César cometeu o primeiro homicídio para se vingar da morte de seu melhor amigo durante um jogo de futebol de várzea. Inconformado com a covardia no campo, acompanhou seus colegas matadores no justiçamento do assassino, mas precisou continuar no grupo para se proteger dos adversários e logo cometeu o segundo homicídio. Novas tretas e vinganças surgiram, e ele nunca mais parou. Nove anos depois, era incapaz de dizer quantos já tinha matado, inclusive em inúmeras chacinas. Com o tempo, percebi que os X-Men eram uma metáfora que ajudava a entender como esses matadores enxergavam o mundo. A disposição para matar era um superpoder que eles adquiriam, uma evolução que os tornava quase divinos. Os revólveres e as balas eram uma extensão do seu corpo, capazes de torná-los imbatíveis, como as garras e a força do Wolverine da ficção. Ao se transformar em matador, eles viravam ex-humanos, cuja vida passava a girar em torno da disputa com outros superpoderosos, também dispostos a matar. Era uma guerra entre ex-humanos mutantes.3 O resto da humanidade, os que precisavam conviver com eles em seus bairros, eram chamados de zé-povinho. (...)

Discursos e crenças homicidas como aquelas apareciam na desordem. A convicção desses guerreiros do caos surgia em um meio sem agências mediadoras capazes de garantir previsibilidade, o que costumava acontecer em um mercado ilegal, cheio de armas e altamente competitivo. Quanto à tolerância velada de parte da sociedade e das instituições a esses assassinatos, apareceram novas perguntas: Como reverter o quadro? Será que apenas o sistema de justiça e a punição dos homicidas poderia mudar essa situação? Seria possível produzir outras verdades, capazes de reprogramar as mentes e mudar os comportamentos homicidas? Por que as políticas de segurança pública e o sistema de justiça não estavam funcionando? Haveria espaço para mudar comportamentos a partir da construção de um discurso que convencesse os matadores a pararem de se matar? Um novo pacto era verdadeiramente viável ou mera ingenuidade utópica? Eu achava que essas perguntas levariam muito tempo para ser respondidas e fui para a academia, onde eu poderia pesquisar com o prazo menos apertado do que o de um jornal. Só não esperava ver as crenças mudarem e os assassinatos caírem enquanto eu pesquisava. Eu me sentia dentro de um laboratório gigante.

A transformação começou lentamente no ano 2000, com o registro das primeiras quedas nas taxas de homicídios no estado de São Paulo. Como podiam ser residuais, então era preciso aguardar mais. No ano seguinte, entrei no mestrado para estudar o crescimento da violência nos quarenta anos anteriores. Os homicídios paulistas, porém, não pararam mais de cair. Testemunhei o surgimento e o fortalecimento do PCC, que proibiu a vingança e criou formas de as regras do crime serem obedecidas. Ao mesmo tempo, assisti aos pentecostais crescerem mais do que nunca, promovendo milhares de conversões no mundo do crime. As metanoias me impressionaram justamente por apresentar novos propósitos e narrativas que eram aceitas e reproduzidas nas rádios e igrejas. A violência deixava de ser uma opção natural.

Tanto o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para os pobres, que produziam novos discursos capazes de reprogramar as mentes. O novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar. Elas nasciam da miséria, nas ruas esburacadas das periferias, nas igrejas evangélicas e nas prisões, e eram maneiras alternativas de gerar ordem e propósito, que, nas décadas seguintes, ajudariam a definir o futuro brasileiro.”

3. Por causa dessa metáfora, dei o nome do meu primeiro livro de O homem X: Uma reportagem sobre a alma do assassino em São Paulo (Rio de Janeiro: Record, 2005).

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