segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Sociedade Feudal (Parte II), de Marc Bloch

Editora: Edipro

Opinião: ★★★★☆

Tradução e prefácio: Laurent de Saes

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ISBN: 978-85-7283-957-0

Páginas: 464

Sinopse: Ver Parte I



“E isto não era tudo. A evolução da economia desencadeava uma verdadeira revisão dos valores sociais. Sempre tinha havido artesãos e mercadores. Individualmente, pelo menos estes últimos, tinham mesmo podido, aqui e além, desempenhar um papel importante. Como grupos, nem uns nem outros tinham qualquer importância. A partir do final do século XI, a classe artesã e a classe dos mercadores, que se haviam tornado mais numerosos e muito mais indispensáveis à vida de todos, afirmaram-se cada vez mais vigorosamente no contexto urbano, em especial a classe dos mercadores, pois a economia medieval, desde a grande renovação desses anos decisivos, foi sempre dominada, não pelo produtor, mas pelo comerciante. Não era para estas pessoas que, fundamentada num regime econômico onde elas apenas ocupavam um lugar medíocre, se tinha constituído a ossatura jurídica da época precedente. As suas exigências práticas e a sua mentalidade deviam naturalmente introduzir nela um fermento novo. Nascida numa sociedade de trama pouco apertada, em que as trocas pouco representavam e o dinheiro era raro, o feudalismo europeu alterou-se profundamente logo que as malhas da rede humana se apertaram e a circulação dos bens e do numerário se tornou mais intensa.”

 

 

“O homem das duas idades feudais, mais do que nós, estava próximo de uma natureza que, por sua vez, era muito menos ordenada e suave. A paisagem rural, onde os matos ocupavam espaços tão importantes, apresentava de um modo menos sensível a marca humana. Os animais ferozes, que apenas povoam os nossos contos para crianças, os ursos, os lobos, especialmente, vagueavam por todos os lugares desertos e por vezes até nos próprios campos cultivados. Além de ser um desporto, a caça era um meio de defesa indispensável e fornecia à alimentação um contributo quase igualmente necessário. A apanha dos frutos selvagens e a recolha do mel continuavam a praticar-se como nos primeiros tempos da humanidade. No que respeita aos utensílios, a madeira tinha um lugar preponderante. As noites, mal iluminadas, eram mais escuras, o frio, mesmo nas salas dos castelos, mais rigoroso. Numa palavra, havia por detrás de toda a vida social um fundo de primitivismo, de submissão aos elementos indisciplináveis, de contrastes físicos que não podiam ser atenuados. Não existe qualquer instrumento que permita avaliar a influência que tal meio circundante podia exercer nas almas. Como pensar, no entanto, que ele não tenha contribuído para a rudeza daquelas?

Uma história mais digna de tal nome do que os tímidos ensaios a que as nossas possibilidades nos limitam hoje teria em consideração as aventuras do corpo. É grande ingenuidade pretender compreender homens sem saber como passavam de saúde. Mas o estado dos textos, e ainda mais a insuficiente agudeza dos nossos métodos de investigação limitam as nossas ambições. A mortalidade infantil, incontestavelmente muito forte na Europa feudal, não deixava de embotar um pouco os sentimentos relativamente a lutos que eram quase normais. Quanto à vida dos adultos, mesmo independentemente dos acidentes de guerra, era em média relativamente curta: pelo menos, quanto podemos avaliar pelas personagens principais a que se referem os únicos dados, embora imprecisos, de que dispomos. Roberto, o Pio, morreu pelos sessenta anos; Henrique I, com 52 anos; Filipe I e Luís VI, com 56. Na Alemanha, os quatro primeiros imperadores da dinastia saxônica atingiram respectivamente 60 anos — ou perto disso — 28, 22 e 52 anos. A velhice parecia começar muito cedo, desde a idade madura. Aquele mundo que, como veremos adiante, se julgava muito velho, era de fato dirigido por homens jovens.

Entre tantas mortes prematuras, muitas eram devidas às grandes epidemias que frequentemente se abatiam sobre uma humanidade mal apetrechada para as combater; entre os pobres, além do mais, eram provocadas pela fome. Juntamente com as violências diárias, estas catástrofes davam à existência como que um sabor de precariedade perpétua. Residiu aqui, provavelmente, uma das razões primordiais da instabilidade de sentimentos, tão característica da mentalidade da era feudal, especialmente durante a sua primeira idade. A higiene, certamente medíocre, contribuía também para este nervosismo. Nos nossos dias, houve a preocupação de demonstrar que a sociedade senhorial não desconhecia os banhos. Há algo de pueril em ignorar, em favor desta observação, tantas condições de vida ingratas: nomeadamente, entre os pobres, a subalimentação e, entre os ricos, os excessos de comida. Finalmente, como se podem negligenciar os efeitos da espantosa sensibilidade às manifestações pretensamente sobrenaturais? Ela tornava os espíritos constantemente e quase doentiamente atentos a toda a espécie de presságios, de sonhos, de alucinações. Esta particularidade era sobretudo intensa nos meios monásticos, onde as macerações e o recalcamento acrescentavam a sua influência à de uma reflexão profissionalmente centralizada sobre os problemas do invisível. Nenhum psicanalista jamais perscrutou os seus sonhos com mais ardor do que os monges do X ou do XI século. No entanto, os leigos participavam igualmente da emotividade de uma civilização onde o código moral ou mundano não impunha ainda às pessoas bem educadas que reprimissem as lágrimas e os seus “desmaios”. Os desesperos, os furores, as decisões repentinas, as bruscas mudanças de atitude, apresentam grandes dificuldades para os historiadores, levados por instinto a reconstruírem o passado segundo as diretrizes da inteligência; elementos consideráveis de toda a história, sem dúvida, exerceram, sobre o desenrolar dos acontecimentos políticos, na Europa feudal, uma ação que não poderia deixar de mencionar-se, a não ser por uma espécie de pudor inútil.

Estes homens, submetidos em redor e neles próprios a tantas forças espontâneas, viviam num mundo cujo decorrer se escapava tanto mais às suas tentativas quão imperfeita era a sua maneira de o medir. Dispendiosos e pouco cômodos pelo seu tamanho, os relógios de água existiam apenas em pequeno número de exemplares. As ampulhetas parecem terem sido pouco usadas correntemente. A imperfeição dos relógios de sol, especialmente sob céu nublado, era flagrante. Deste fato derivaram curiosos artifícios. Preocupado com a ideia de regular o curso de uma vida nômada em grande escala, o rei Alfredo tinha imaginado fazer transportar, para toda a parte para onde fosse, velas de comprimento igual que fazia acender uma após outra62. Esta preocupação de uniformidade, na divisão do dia, era naquele tempo excepcional. Contando geralmente, como na Antiguidade, doze horas de dia e doze de noite, fosse qual fosse a estação, as pessoas mais instruídas habituavam-se a ver cada uma destas fracções, consideradas uma por uma, crescer e diminuir constantemente, conforme a revolução anual do sol. Isto devia acontecer até ao momento em que, pelo século XIV, os relógios de pesos proporcionaram, finalmente, com a mecanização do instrumento, a duração.”

62 ASSER, Life of King Alfred. ed. Stevenson, c. 104, Um sistema semelhante, se acreditarmos em L. REVERCHON, Petite histoire de l’horlogerie, p. 55, teria sido ainda empregue por Carlos V. 66 GISLEBERT DE MONS, ed. Pertz, pp. 188-189 (1188). 67 P. VIOLLETT, Les Établissements de Saint Louis, 1881-1886 (Soc. da História de França) t. III, p. 165, n.º 8. 67 Pastoral Care, ed. Sweet, p. 6.

 

 

Aos olhos de todas as pessoas capazes de reflexão, o mundo sensível não era mais do que uma espécie de máscara atrás da qual se passavam todas as coisas verdadeiramente importantes, uma linguagem, também encarregada de exprimir, por sinais, uma realidade mais profunda. Tal como a aparência de um tecido, em si, pouco interesse tem, desta atitude resultava que a observação era geralmente descuidada em favor da interpretação. (...)

Este mundo de aparências era também um mundo transitório. Em si mesma inseparável de qualquer representação cristã do Universo, raramente a imagem da catástrofe final aderiu tão fortemente às consciências. Meditavam sobre ela; calculavam-lhe os sintomas precursores. Universal entre todas as histórias universais, a crônica do bispo Otão de Freising, que começa na Criação, acaba com a descrição do Juízo Final. Diga-se que com uma inevitável lacuna: de 1146 — data em que o autor cessou de escrever — até ao dia da grande derrocada. Certamente que Otão a considerava de pouca extensão: “nós, que fomos colocados no fim dos tempos”, diz ele por várias vezes. Era esta a maneira de pensar corrente, em seu redor e antes dele. Não se diga que eram ideias dos clérigos, pois seria esquecer a interpenetração profunda dos dois grupos, o clerical e o leigo. Até entre aqueles que, como São Norberto, não iam ao ponto de considerar a ameaça tão próxima que a geração presente não se extinguiria sem assistir a ela, ninguém ignorava a sua iminência. Em cada príncipe que consideravam mau, as almas piedosas julgavam ver a marca do Anticristo, cujo reinado atroz precederá a chegada do Reino de Deus.”

 

 

“As “gestas” épicas, em princípio, não eram destinadas à leitura. Eram feitas para serem declamadas ou antes salmodiadas. De castelo em castelo, ou de praça pública em praça pública, eram assim transportadas por recitadores profissionais, aos quais se chamava “jongleurs” (menestréis). Os mais modestos, de fato, sustentavam-se de moedas que cada ouvinte retirava “da fralda da camisa”77, e aliavam ao ofício de contadores ambulantes de histórias o de dançarinos. Outros, mais felizes, tendo obtido a proteção de algum senhor importante, que os mantinha na sua corte, tinham assim assegurado um ganha-pão menos precário. Era entre estes executantes que eram recrutados também os autores dos poemas. Os menestréis, por outras palavras, umas vezes reproduziam oralmente as composições de outrem, outras, tinham eles próprios “encontrado” os cantos que recitavam. Entre um e outro extremo, existia, aliás, uma infinidade de variedades. Raramente o “inventor” o era de toda a matéria; e raramente o intérprete se abstinha de qualquer arranjo. Um público muito variado, na sua maioria iletrado, quase sempre incapaz de avaliar a autenticidade dos fatos, muito menos sensível, aliás, à veracidade do que ao divertimento e à exaltação de sentimentos familiares; como criadores, homens habituados a remodelar continuamente a substância das suas narrativas, votados, por outro lado, a um género de vida mediocremente favorável ao estudo, mas no entanto em situação de frequentar os grandes, de tempos a tempos e desejosos de lhes agradarem; era este o pano de fundo de tal literatura. Pesquisar de que modo tantas recordações exatas se infiltraram nela equivale a perguntar quais as vias pelas quais os menestréis foram postos ao fato dos acontecimentos ou dos nomes.”

77 Huon de Bordeaux, ed. Guessard et Grandmaison, p. 148.

 

 

“Em toda literatura, uma sociedade sempre contempla sua própria imagem.”

 

 

“Por muitas características, o homem das proximidades do ano 1200, nas classes superiores da sociedade, assemelha-se ao seu antepassado das gerações anteriores: tem o mesmo espírito de violência, as mesmas variações bruscas de humor, a mesma preocupação com o sobrenatural, maior ainda, talvez, no que respeita à obsessão das presenças diabólicas, graças ao dualismo que, mesmo nos meios ortodoxos, era espalhado pela vizinhança das heresias dos maniqueus, tão prósperas ao tempo. No entanto, há dois pontos em que difere dele profundamente: é mais instruído e mais consciente.”

 

 

“Também, por outras razões ainda, a palavra propriedade, aplicada a um imóvel, teria sido vazia de sentido. Ou pelo menos deveria dizer-se — como facilmente irá acontecer mais tarde, quando se dispuser de um vocabulário jurídico melhor elaborado — propriedade ou posse deste ou daquele direito sobre a terra. Com efeito, sobre quase todas as terras e sobre muitos homens, pesava, naquele tempo, uma multiplicidade de direitos, diversos pela sua natureza, mas parecendo cada um deles, na sua esfera, igualmente respeitável. Nenhum apresentava esta rígida exclusividade, característica da propriedade, do tipo romano. O foreiro que — de pais para filhos, geralmente — amanhã a terra e colhe; o seu senhor direto, ao qual paga rendas e que, em alguns casos, saberá apanhar de novo a gleba; o senhor desse senhor e assim por diante, ao longo de toda a escala feudal: quantas personagens poderão dizer “o meu campo”! todas com a mesma razão! E isto, não considerando tudo, pois as ramificações estendiam-se tanto horizontalmente como de cima para baixo e deveria considerar-se também a comunidade da povoação, a qual, geralmente, recupera o uso de todos os terrenos cultivados, logo que estes fiquem livres de colheitas; também deveríamos contar com a família do foreiro, sem a concordância da qual os bens não poderiam ser alienados; bem como com as famílias dos sucessivos senhores. Este emaranhado hierarquizado dos laços entre o homem e solo provinha, sem dúvida, de origens muito remotas. Não fora a propriedade possuída por vários parceiros, indivisamente, em grande parte da própria Romania, apenas uma fachada? O sistema, no entanto, desenvolveu-se nos tempos feudais com vigor incomparável. Uma semelhante compenetração das posses, sobre uma mesma coisa, não continha nada capaz de ferir os espíritos bastante pouco sensíveis à lógica da contradição e talvez que, para definir este estado de direito e de opinião, o melhor fosse pedir emprestada à sociologia uma fórmula célebre, dizendo: mentalidade de “participação” jurídica.”

 

 

“Refletir sobre uma mudança é sempre arriscar-se a renunciar a ela.”

 

 

“Ser “o homem” de outro homem: no vocabulário feudal, não existia aliança de palavras mais difundida do que esta, nem mais rica de sentido. Comum aos falares românicos e germânicos, servia para exprimir a dependência pessoal, em si. E isto, fosse qual fosse, aliás, a natureza jurídica exata do vínculo e sem ter em conta qualquer distinção de classe. O conde era “o homem” do rei, tal como o servo o era do senhor da sua aldeia. Por vezes, era até no mesmo texto que, com poucas linhas de intervalo, condições sociais radicalmente diferentes eram assim evocadas, uma após outra: tal como, cerca do final do século XI, a petição de monjas normandas que se queixavam de que os seus “homens” — isto é, os seus camponeses — fossem obrigados por um alto barão a trabalhar nos castelos dos “homens” deste: entenda-se, os cavaleiros, seus vassalos144. O equívoco não era chocante pois apesar do abismo entre as camadas sociais, a acentuação exercia-se sobre o elemento fundamental comum: a subordinação de indivíduo a indivíduo.”

144 HASKINS, Norman institutions, Cambridge (USA), 1918, Harvard Historical Studies, XXIV, p. 63.

 

 

No entanto, a menos que caíssem, como este, nas mãos do clero, nem os alódios usurpados, nem os de antiga e autêntica origem, estavam destinados a conservar por muito tempo a sua qualidade. Era uma vez, conta um cronista, dois irmãos, chamados Herroi e Hacket, que, depois da morte do pai, rico senhor em Poperinghe, tinham dividido os alódios. Sem demora, o conde de Bolonha e o conde de Guines esforçaram-se por os obrigar a prestar-lhes homenagem, mediante essas terras. Hacket. “receando os homens mais do que Deus”, cedeu às intimações do conde de Guines. Herroi, pelo contrário, não querendo submeter-se a nenhum dos seus perseguidores, levou a sua parte da herança ao bispo de Thérouanne e retomou-a deste como feudo166. Relatada tardiamente e como um simples “diz-se”, a tradição não está muito segura nos pormenores. Fundamentalmente, fornece, com certeza, uma imagem justa do que podia ser a sorte destes pequenos senhores de alódios, pressionados entre as ambições rivais dos altos barões vizinhos. Igualmente vemos, na crônica exata de Gilbert de Mons, os castelos, erguidos nas terras alodiais da região do Hainaut, reduzidos, pouco a pouco, à condição de feudos, pelos condes de Hainaut ou de Flandres. Como o regime feudal, que se definiu essencialmente sob as espécies de uma rede de dependências, nunca atingiu, mesmo nas regiões onde nasceu, o estado de um sistema perfeito, os alódios sobreviveram sempre. Mas, muito abundantes ainda no tempo dos primeiros Carolíngios — a tal ponto que a posse de um deles, que se situasse no próprio condado, era então a condição necessária para poder ser designado como “defensor” de uma igreja, ou seja, o seu representante leigo —, o seu número, a partir do século X, foi decrescendo rapidamente, enquanto o dos feudos aumentava sem cessar. O solo caía em sujeição com os homens.”

 

 

No trabalho de fixação que pouco a pouco se processou, os juristas profissionais só desempenharam um papel tardio e, em suma, mediocremente eficaz. Não há dúvida de que, cerca de 1020, vemos o bispo Fulberto de Chartres, formado pelo direito canônico nos métodos da reflexão jurídica, abalançar-se a uma análise da homenagem e dos seus efeitos. Mas, interessante como sintoma da penetração do direito erudito num domínio que até ali lhe fora alheio, esta tentativa não conseguia elevar-se acima de uma escolástica bastante balofa. A ação decisiva, aqui, como noutros lugares, pertenceu ao direito consuetudinário, alimentado de precedentes e progressivamente cristalizado pela jurisprudência de cortes em que havia muitos vassalos. Depois, ganhou-se o hábito, cada vez mais frequente, de fazer passar estas condições, que antes eram puramente tradicionais, para o próprio acordo. Melhor do que as poucas palavras que acompanhavam a homenagem, o juramento de fé, que podia alongar-se à vontade, prestava-se às minúcias. Assim, uni contrato prudentemente pormenorizado substituiu a submissão do homem todo inteiro. Por um acréscimo de "precaução, que é bem significativo acerca do enfraquecimento do vínculo, o vassalo, geralmente, não promete só auxiliar. Deve também comprometer-se a não prejudicar. Na Flandres, desde o começo do século XII estas cláusulas negativas tinham revestido importância suficiente para darem lugar a um ato à parte: a “caução”, a qual, jurada depois da fé, autorizava, ao que parece, o senhor, em caso de incumprimento, a apoderar-se de determinado penhor. Evidentemente que, durante muito tempo, as obrigações positivas não deixaram de prevalecer.

O dever primordial era, por definição, o auxílio de guerra. O “homem de boca e de mão” deve, antes e acima de tudo, servir em pessoa, a cavalo e completamente equipado. No entanto, só raramente aparece sozinho. Além de os seus próprios vassalos, se os possui, se agruparem em torno do seu estandarte, as suas comodidades, o seu prestígio, o costume, por vezes, exige-lhe que se faça acompanhar pelo menos por um ou dois escudeiros. Em contrapartida, não havia, geralmente, infantaria, no seu contingente. O seu papel no combate é considerado demasiado medíocre, a dificuldade em alimentar massas humanas consideráveis é demasiado pesada para que o chefe do exército possa contentar-se com os peões camponeses fornecidos pelas suas próprias terras ou pelas das igrejas das quais, oficialmente, se constituiu protetor. Frequentemente, o vassalo está também sujeito a fazer guarda no castelo senhorial, seja só durante as hostilidades, seja — pois uma fortaleza não pode ficar sem vigilância — em qualquer tempo, por turnos, com os de categoria semelhante à sua. Se ele próprio possui uma fortaleza, deve pô-la à disposição do seu senhor.

Pouco a pouco, as diferenças de classe e de poder, a formação de tradições necessariamente divergentes, os acordos particulares e mesmo os abusos tomados como direitos introduziram nestas obrigações inúmeras variantes. Quase sempre, afinal, com vista a aliviar-lhes o peso.

Um grave problema nascia da hierarquização das homenagens. Súbditos e senhores ao mesmo tempo, vários vassalos, por sua vez, dispunham de vassalos. O dever que lhes ordenava que ajudassem o senhor com todas as suas forças parecia que deveria ditar-lhes que se apresentassem no exército senhorial rodeados da tropa inteira dos seus dependentes. O costume, todavia, cedo os autorizou a levarem consigo apenas uma quantidade de servos, fixa por uma vez e muito inferior ao número daqueles que podiam empregar nas suas próprias guerras. Vejamos, por exemplo, o bispo de Bayeux, nos finais do século XI. Mais de uma centena de cavaleiros devem-lhe o serviço das armas. Mas ele só é obrigado a fornecer vinte ao duque, seu senhor imediato. Pior ainda: se for em nome do rei, de quem a Normandia é mantida como feudo, que o duque reclama o socorro do prelado, o número de soldados, nesta escala superior, será reduzido para dez. Esta diminuição da obrigação militar, debaixo para cima — contra a qual a monarquia dos Plantagenetas, no século XII, se esforçou por reagir, sem grande sucesso — não se duvida de que foi uma das principais causas da total ineficácia do sistema vassálico, como meio de defesa ou de conquista nas mãos dos poderes públicos194.

Antes de mais nada, os vassalos, grandes e pequenos, aspiravam a não ficarem indefinidamente ligados ao serviço. Para limitar a duração deste, nem as tradições do Estado carolíngio, nem os costumes primitivos da vassalagem ofereciam precedentes diretos: o súbdito, tal como o guerreiro doméstico, ficava armado enquanto a sua presença parecesse necessária ao rei, ou ao chefe. Pelo contrário, os velhos direitos germânicos tinham largamente feito uso de uma espécie de prazo tipo, fixado em quarenta dias, ou, como mais antigamente se dizia, quarenta noites. Este não regulamentava apenas vários atos de procedimento. A própria legislação militar franca tinha-o adoptado, como limite do tempo de repouso a que os mobilizados tinham direito, entre duas convocações. Este número tradicional, que acorria naturalmente ao espírito, desde o final do século XI, forneceu a norma geral da obrigação imposta aos vassalos. Uma vez decorrido o prazo, eles eram livres de voltarem para as suas casas, na maior parte das vezes pelo período de um ano. Sem dúvida acontecia frequentemente que os viam, apesar disso, permanecer no exército. Alguns direitos consuetudinários procuravam fazer um dever desse prolongamento. Mas, daí em diante isso só podia acontecer a expensas do senhor e pagos por ele. O feudo, outrora salário do “satélite” armado, tinha de tal modo deixado de corresponder à sua função primitiva que era preciso completá-lo com outra remuneração.

Não era apenas para combater que o senhor chamava a si os vassalos. Em tempo de paz, ele reunia a sua “corte”, que, em datas mais ou menos regulares coincidentes, em geral, com as principais festas litúrgicas, convocava com grande aparato: sucessivamente, tribunal, conselho cuja moral política da época impunha ao senhor a opinião em todas as circunstâncias graves, e também serviço de honra. Aparecer aos olhos de todos rodeado por um grande número de dependentes; obter, por parte destes, que por vezes eram também de elevada categoria, o cumprimento público de alguns dos seguintes gestos de deferência — funções de escudeiro, de escansão, de criado de mesa — os quais, aos olhos de uma época sensível às coisas vistas, tinham um alto valor simbólico: poderia haver, para um chefe, manifestação mais retumbante do seu prestígio, ou meio mais delicioso de ele próprio tomar consciência disso?

Destas cortes “plenárias, maravilhosas e importantes”, os poemas épicos de que elas são um dos ambientes familiares exageraram ingenuamente o esplendor. Mesmo relativamente àquelas em que os reis, segundo o ritual, figuravam de coroa na cabeça, o quadro é demasiado lisonjeiro. Com maioria de razão, se evocarmos as modestas reuniões em torno dos pequenos ou médios barões. Que nestas reuniões, no entanto, foram tratados muitos assuntos; que as mais brilhantes delas emprestaram a tudo um aparato de cerimônia e atraíram, além de uma assistência normal, uma multidão de aventureiros, de dançarinos, e até de ladrões de bolsas; que o senhor fosse levado, não só pelo uso como pelo seu interesse, bem entendido, a distribuir ali pelos seus homens os presentes de cavalos, de armas, de vestuário, que eram simultaneamente o penhor da sua fidelidade e o sinal da sua subordinação; que, finalmente, a presença dos vassalos cada um “cuidadosamente adornado, conforme a sua categoria”, como o prescrevia o abade de Saint-Riquier — nunca tenha deixado de ser ali exigida: tudo isto nos é confirmado pelos textos mais exatos. O conde, dizem os Usages de Barcelone (Costumes de Barcelona), quando reúne a sua corte, deve: “fazer justiça...; prestar auxílio aos oprimidos... à hora das refeições, fazê-las anunciar com o soar de trompas para que nobres e não nobres venham tomar parte nelas, distribuir mantos aos seus grandes; decidir sobre o exército que irá levar a devastação a terras de Espanha; armar novos cavaleiros”. Numa categoria mais baixa da hierarquia social, um pequeno cavaleiro da Picardia, declarando-se, em 1210, homem lígio do vidama de Amiens, prometia-lhe, de uma só vez, o auxílio na guerra durante seis semanas e “vir, quando me for dito, à festa que fará o dito vidama, para ali permanecer à minha custa, com a minha mulher, durante oito dias”195

Este último exemplo mostra, como muitos outros, de que modo, tal como acontecera com o serviço militar, o serviço da corte foi pouco a pouco regulamentado e limitado. O que, no entanto, não quer dizer que a atitude dos grupos vassálicos, perante as duas obrigações, tenha sido semelhante sob todos os pontos de vista. O serviço militar não passava de um encargo. A assistência à corte comportava, em compensação, muitas vantagens: dádivas senhoriais, belos banquetes, participação, também, no poder de comando. Por isso, os vassalos cada vez menos procuraram furtar-se a ela. Até ao fim da era feudal, estas assembleias, ao contrabalançarem, em certa medida, o afastamento nascido da prática do feudo, contribuíram para manter, entre o senhor e os seus homens, o contato pessoal, sem o qual não existe vínculo humano.

A fé impunha ao vassalo “ajudar” o seu senhor em todas as coisas. Com a sua espada, com o seu conselho: conforme era necessário. Chegou um momento em que se acrescentou: também com a sua bolsa. Nenhuma instituição revela melhor a unidade profunda do sistema de dependências sobre o qual se tinha construído a sociedade feudal do que a deste apoio pecuniário. Servo; foreiro, chamado “livre”, de um senhorio; súbdito, num reino; vassalo, finalmente: todo aquele que obedece deve ao seu chefe ou senhor o socorro nas suas necessidades. Ora, existirá maior mal do que a falta de dinheiro? Os próprios nomes da contribuição que o senhor, em caso de necessidade, estava autorizado a requisitar aos seus homens, pelo menos no domínio do direito feudal francês, foram semelhantes, do cimo ao fundo da escala. Dizia-se “auxílio”, simplesmente; ou ainda “taille” (talha), expressão feita por imagem do verbo “tailler”, à letra, tirar a alguém um pedaço da sua substância e, consequentemente, lançar um imposto196.”

194 HASKINS, Norman institutions, p. 15 — ROUND, Family origins, 1930, p. 208; CHEW, The English ecclesiastical tenants-in-chief and knight-service, especially in the thirteenth and fourteenth century; — GLEASON, An ecclesiastical barony of the middle ages. 1936. — H. NAVEL, lenquête de 1133, 1935, p. 71.

195 HARIULF, Chronique, III, 3, ed. Lot., p. 97. — Us. Barc. c. CXXIV — DU CANGE, Dissertations sur l’hisíoire de saint Louis, V, ed. Henschel, t. VII, p. 23.

196 Em Inglaterra, contudo, os termos acabaram por se hierarquizar, ficando o de “auxílio” reservado aos vassalos e “talha” aos dependentes mais modestos.

 

 

“Ao senhor, o costume, geralmente, não impunha qualquer compromisso verbal ou escrito que correspondesse ao juramento do vassalo. Estas promessas “de cima” só tardiamente apareceram e permaneceram sempre excepcionais. Não houve, assim, oportunidade de definir as obrigações do chefe com tanto pormenor como as do subordinado. Aliás, um dever de proteção prestava-se, muito menos do que os serviços, a tais minúcias. “Em relação e contra qualquer criatura que viva ou que morra”, o homem será defendido pelo seu senhor. Primeiro, e acima de tudo, no seu corpo. Nos seus bens também e mais particularmente nos seus feudos. Aliás, deste protetor feito juiz, como veremos, ele esperava boa e rápida justiça. Acrescentemos as vantagens, imponderáveis e, no entanto, preciosas, que, numa sociedade muito anárquica, assegurava, com ou sem razão, o patronato de um poderoso. Tudo isso estava longe de poder ser desprezado. O que não impedia que, no fim de contas, o vassalo, sem dúvida, devesse mais do que recebia. Salário de serviço, o primitivo feudo tinha restabelecido o equilíbrio. À medida que, praticamente transformado em bem patrimonial, a sua função original caiu no esquecimento, a desigualdade dos cargos tornou-se mais flagrante; e, por isso, tornou-se cada vez mais vivo o desejo de pôr cobro à situação, entre aqueles que ela desfavorecia.

 

II. A vassalagem em lugar da linhagem

Todavia, se nos limitássemos a este balanço por meio de deve e haver, obteríamos apenas uma imagem singularmente sem vida da natureza profunda do vínculo. Fora como uma espécie de sucedâneo ou de complemento da solidariedade de linhagem, que se tornara insuficientemente eficaz, que as relações de dependência pessoal tinham feito a sua entrada na história. O homem que não tem um senhor, se a sua parentela não toma conta dele, segundo o direito anglo-saxão do século X, é um fora-da-lei198. O vassalo perante o senhor e o senhor perante o vassalo foram durante muito tempo como que um parente suplementar, facilmente comparado, tanto nos deveres como nos direitos, aos parentes pelo sangue. Numa das suas constituições de paz, Frederico Barba Ruiva diz que, quando um incendiário procurar asilo num castelo, o senhor da fortaleza será obrigado, se não quiser passar por cúmplice, a entregar o fugitivo, “a menos, no entanto, que este seja seu senhor, seu vassalo ou seu parente”. E não era por acaso que o mais antigo “coutumier” (consuetudinário) normando, quando se ocupa do assassínio do vassalo pelo senhor e do senhor pelo vassalo, classifica estes crimes, num mesmo capítulo, à mistura com os mais horríveis homicídios cometidos no seio da parentela. Deste caráter quase familiar da vassalagem derivariam vários traços duradoiros, não só nas regras jurídicas como nos costumes.

O primeiro dever de um membro de uma linhagem era a vingança. Igualmente, para aqueles que tinham prestado ou recebido homenagem. Uma velha glossa germânica não traduzia já, ingenuamente, o latim ultor — vingador — pelo alto-alemão mundporo: patrono199? Esta igualdade de vocação entre a parentela e o vínculo vassálico, iniciada pela “faide”, continuava diante do juiz. Desde que não tenha, pessoalmente, assistido ao crime, diz um “consuetudinário” inglês, do século XII, ninguém pode constituir-se acusador, em caso de assassínio, a menos que seja parente do morto, seu senhor ou seu homem, pela homenagem. Esta obrigação impunha-se com a mesma força ao senhor em relação ao seu vassalo e ao vassado para com o senhor. No entanto, marcava-se uma diferença de grau, bem conforme ao espírito desta relação de submissão. Se acreditarmos no poema de Beowulf, os companheiros do chefe assassinado, na antiga Germânia, teriam recebido a sua parte no “preço do sangue”. Já não acontecia o mesmo na Inglaterra normanda. O senhor participava da compensação paga por morte do vassalo; mas o vassalo nada recebia daquela que era devida pelo assassínio do senhor. A perda de um servidor tem preço; a do senhor, não.

O filho do cavaleiro só raramente era educado na casa paterna. O uso, respeitado enquanto os costumes feudais tiveram alguma força, mandava que o pai o confiasse, ainda muito novo, ao seu senhor, ou a um dos seus senhores. Junto deste chefe, o rapaz, enquanto desempenhava as funções de pajem, instruía-se nas artes da caça e da guerra, mais tarde, na vida da corte. (...)

Outras sociedades, na Europa medieval, conheceram práticas análogas, destinadas, ali também, a reavivar, por intermédio dos jovens, laços que o afastamento ameaçava constantemente afrouxar. Mas o “fosterage” da Irlanda parece ter servido principalmente para estreitar a ligação da criança com o clã materno e por vezes, para consolidar o prestígio pedagógico de uma corporação de padres letrados. Entre os Escandinavos, era ao fiel que cabia o dever de educar a posteridade do seu senhor: de tal modo que Harald da Noruega quis manifestar aos olhos de todos a subordinação que dizia existir do rei Aethelstan da Inglaterra para com ele, e não achou melhor maneira de o fazer, conta a saga, do que mandar colocar, de surpresa, o seu próprio filho no colo daquele homem feito pai contra vontade. A originalidade do mundo feudal foi ter concebido a relação de baixo para cima. As obrigações de deferência e de gratidão assim contraídas eram consideradas muito fortes. Durante toda a sua vida, o rapazito de outrora devia lembrar-se de que tinha sido o “nourri” (alimentado) do senhor — a palavra, como o seu conteúdo, data da época franca na Gália e encontra-se ainda nos escritos de Commynes200. — Certamente que aqui, como em outros lugares, a realidade desmentiu muitas vezes as regras da honra. No entanto, como recusar toda a eficácia a um costume que — ao mesmo tempo que colocava nas mãos do senhor um precioso refém — fazia reviver em cada geração de vassalos um pouco daquela existência à sombra do chefe, de quem a vassalagem tinha recebido a parte mais sólida do seu valor humano?

Numa sociedade em que o indivíduo pertencia tão pouco a si próprio, o casamento, que, como já vimos, punha tantos interesses em jogo, estava longe de se assemelhar a um ato de vontade pessoal. A decisão, acima de tudo, pertencia ao pai. “Ele quer ver o filho casado enquanto for vivo; portanto, compra-lhe a filha de um nobre”: assim se exprime, sem rodeios, o velho Poema de Santo Aleixo. Ao lado do pai, algumas vezes, mas especialmente se ele já não existia, intervinham os parentes. Mas também, no caso do órfão nascido de um vassalo, intervinha o senhor. E até, quando se tratava de um senhor, os vassalos também. Neste último caso, em verdade, a regra nunca ultrapassou o alcance de um simples uso de conveniência; em todas as circunstâncias graves o barão devia consultar os seus homens; nesta, também, entre outras. De senhor para vassalo, pelo contrário, os direitos fizeram-se muito mais precisos. A tradição recuava às origens mais longínquas da vassalagem. “Se o soldado privado (buccellarius) deixa apenas uma filha — diz uma lei visigótica do século V — mandamos que ela fique sob as ordens do senhor, o qual lhe arranjará um marido de condição igual. Se, porventura, ela escolhe um esposo, contra a vontade do patrono, terá que restituir-lhe os bens que seu pai tiver recebido daquele.”201. A hereditariedade dos feudos — já presente, aliás, neste texto, sob uma forma rudimentar — fornece aos senhores mais um motivo, e muito poderoso, para vigiar as uniões que, quando a terra caía em poder de uma mulher, lhes impunham um fiel estranho à primitiva linhagem. Os seus poderes matrimoniais, contudo, só se desenvolveram plenamente em França e na Lotaríngia, verdadeiras pátrias do sistema vassálico, e nos feudalismos de importação. Certamente que as famílias de condição cavaleiresca não foram as únicas a sofrerem tais ingerências, nesse setor; na verdade, muitas outras se encontravam submetidas a uma autoridade de natureza senhorial, mediante outros vínculos, e os próprios reis, nessa qualidade, consideravam-se por vezes no direito de disporem da mão, pelo menos das suas súbditas. Mas em relação aos vassalos — algumas vezes, também aos servos, outros dependentes pessoais — considerava-se quase universalmente como legítimo o que, em presença de subordinados de graus diferentes, passava por um abuso de força. “Não casaremos as viúvas e as filhas contra sua vontade — promete Filipe Augusto aos habitantes de Falaise e de Caen — a menos que elas detenham, no todo ou em parte, um feudo nosso “de loriga” (entenda-se: um feudo militar, caracterizado pelo serviço com cota de malhas). A boa regra queria que o senhor se pusesse de acordo com os membros das linhagens: colaboração que, no século XIII, por exemplo, um costume de Orleães se esforçava por organizar e que é revelado, no reinado de Henrique I, de Inglaterra, por uma curiosa carta real202. Quando o senhor, no entanto, era poderoso, conseguia ultrapassar todos os rivais. Na Inglaterra dos Plantagenetas, esta instituição, oriunda de princípios tutelares, degenerou finalmente num comércio estranho. Os reis e os barões sobretudo os reis — vendiam a quem dava mais, órfãos ou órfãs para casar. Ou até, na iminência de ter que aceitar um marido que lhe não agradava, a viúva pagava bem, e de contado, a permissão de o recusar. Apesar do afrouxamento progressivo do vínculo, a vassalagem, como se vê, nem sempre escapou àquele outro perigo cuja sombra ameaça quase todos os regimes de proteção pessoal: transformar-se num mecanismo de exploração dos fracos pelos fortes.”

198. Cf. atrás, p. 258.

199 Steinmeyer e SIEVERS, Althochdeutschen Glossen, 1, pp. 268 e 23.

200 FLODOARD, Hist. Remensis eccl.. III, 26, em SS., t. XIII, p. 540: cf. já Actus pontificum Cenomannensium, pp. 134 e 135 (61): “nutritura”. — COMMYNES, VI, 6 (ed. Mandrot, t. II, p. 50).

201 Codex Euricianus. c. 310. Pelo contrário, o vassalo, casado pelos seus dois senhores sucessivos, caso revelado pelo sínodo de Compiègne de 757, é, de acordo com o primeiro sentido da palavra, um simples escravo e não nos interessa aqui.

202 Ordonnances. t. XII, p. 295. — Et. de Saint Louis, I, c. 67. — STENTON, The first century of English feudalism (1066-1166), pp. 33-34.

 

 

“Para além dos problemas específicos, tão numerosos, que levanta a história da vassalagem europeia, existe um grande problema humano que os domina a todos: qual foi, nos atos e nos corações, a verdadeira força deste cimento social? Na verdade, a primeira impressão que acerca disso nos dão os documentos é a de uma estranha contradição, perante a qual convém não tergiversar.

Não é necessário procurar muito nos textos para recolher uma impressionante antologia em louvor da instituição vassálica. (...)

O primeiro dever do bom vassalo, naturalmente, é saber morrer pelo seu chefe, com a espada na mão: sorte digna de inveja entre todas, pois é a de um mártir e abre as portas do paraíso. Quem fala deste modo? Os poetas? Sem dúvida, mas a Igreja também. Um cavaleiro havia sido obrigado a matar o seu senhor: “Deverias ter aceitado a morte em lugar dele — declara um bispo, em nome do concílio de Limoges, em 1031 — a tua fidelidade teria feito de ti um mártir de Deus.”207

Era um vínculo de tal ordem que não o reconhecer era o mais horrível dos pecados. Escreve o rei Alfredo que, quando os povos da Inglaterra se tornaram cristãos, estabeleceram, para a maior parte das omissões, tarifas de compensação, “exceptuando a traição do homem para com o seu senhor, não ousando, perante tal crime, usar dessa misericórdia... tal como Cristo não a concedeu aos que o entregaram à morte”. “Não há redenção para o homem que matou o seu senhor”, repete, com mais de dois séculos de intervalo, na Inglaterra já feudalizada segundo o modelo do continente, a compilação de costumes chamada Leis de Henrique Primeiro; “para ele, a morte nas torturas mais atrozes”. Contava-se, no Hainaut, que um cavaleiro, tendo morto, em combate, o jovem conde da Flandres, seu senhor lígio, fora ao encontro do Papa, em penitência. Tal como o Tannhäuser da lenda. O pontífice ordenou que lhe cortassem as mãos. No entanto, como elas não tremessem, comutou-lhe a pena, mas com a condição de expiar durante o resto da sua vida, o seu crime, num claustro. No século XIII, o senhor de Ybelin, ao ser-lhe proposto mandar assassinar o Imperador, que se tornara o seu pior inimigo, dirá: “Ele é meu senhor; faça dele o que fizer, manteremos o nosso juramento.”208

Esta ligação era sentida como sendo tão poderosa que a sua imagem se projetava sobre todos os outros laços humanos, mais antigos do que ela e que teriam podido parecer mais veneráveis. A vassalagem, assim, impregnou a família. “Nos processos de pais contra filhos ou de filhos contra pais — decide a corte condal de Barcelona —, no julgamento, os pais deverão ser tratados como se fossem senhores e os filhos, como seus homens, entregues pelas mãos.” Quando a poesia provençal inventou o amor cortês, concebeu o juramento do perfeito amante sobre o modelo da dedicação vassálica. E isto, tanto mais facilmente, aliás, quanto o adorador, de fato, era muitas vezes de categoria menos elevada do que a dama dos seus pensamentos. A assimilação foi levada a tal extremo que, por uma estranha volta de linguagem, o apelido ou o cognome da bem-amada era facilmente dotado do género masculino, como convém a um nome de chefe: Bel Senhor, “mon beau seigneur”, só conhecemos sob este pseudônimo uma daquelas a quem Bertrand de Born entregou o seu volúvel coração. No seu sinete, por vezes, o cavaleiro mandava gravar a sua imagem com as mãos entre as mãos juntas da sua Dulcineia. Do mesmo modo — provavelmente reanimado, no tempo do primeiro romantismo, por uma moda arqueológica — a lembrança deste simbolismo, de uma ternura muito feudal, não sobrevive ainda, nos nossos dias, nas regras de civilidade que nos prescrevem o emprego quase unilateral da palavra homenagens, bem descolorida já? Até a própria mentalidade religiosa se enfeitou com estas tintas emprestadas. Entregar-se ao diabo, era tornar-se seu vassalo; juntamente com os sinetes amorosos, as cenas de entrega de si mesmo ao Demônio contam-se entre as melhores representações da homenagem que possuímos. Para o anglo-saxão Cynewulf, os anjos são os thegns de Deus; para o bispo Eberhard de Bamberg, o Cristo é o vassalo do Pai. Mas, sem dúvida que não existe testemunho mais eloquente da omnipresença do sentimento vassálico do que, nas suas vicissitudes, o próprio ritual da devoção: substituindo a atitude antiga dos que oravam, de mãos estendidas, o gesto das mãos postas, imitado da “commendise” (proteção), tornou-se, para todos os católicos, o gesto da oração, por excelência209.

Diante de Deus, no íntimo da sua alma, o bom cristão via-se como um vassalo, dobrando os joelhos perante o seu senhor.

Todavia, era impossível que a obrigação vassálica não entrasse algumas vezes em conflito com outras obrigações: a do subordinado, por exemplo, ou do parente. Mas quase sempre triunfava das suas rivais, não apenas na prática, mas também conforme o direito. Quando Hugo Capeto, em 991, retomou Melun, o visconde, que havia defendido a fortaleza contra ele, foi enforcado, com a sua mulher: menos, sem dúvida, por rebelião para com o seu rei do que por um crime mais atroz: tinha ao mesmo tempo faltado à lealdade para com o conde, seu senhor direto, presente no campo real. Em contrapartida, os homens de Hugo exigiram o perdão dos cavaleiros do castelo: como vassalos do visconde, ao tornarem-se cúmplices da sua revolta, não haviam apenas manifestado a sua “virtude”, como diz o cronista? Quer dizer: a sua fidelidade à homenagem, a qual se sobrepunha, então à fidelidade para com o Estado210. Os próprios laços de sangue, que decerto pareciam muito mais sagrados do que os do direito público, eram ultrapassados pelos deveres da dependência pessoal. Em Inglaterra, as leis de Alfredo determinam: “Podem-se empunhar armas por um parente, injustamente atacado. Exceto, no entanto, contra o seu senhor: isso, não o permitimos.” Numa passagem célebre, a crônica anglo-saxônica põe em cena os membros de uma linhagem que a “vendetta” de dois senhores diferentes, entre os quais se repartia a sua obediência, lança uns contra os outros. Eles aceitam esta sorte: “nenhum parente nos é mais caro do que o nosso senhor”, dizem eles. Palavras graves, com a qual faz eco, em pleno século XII, e na Itália respeitadora das leis, a frase do Livro dos Feudos: “Contra todos, os vassalos devem ajudar o senhor: contra os seus próprios irmãos, contra os seus filhos, contra os seus pais.”211

207 Por exemplo, Girart de Roussillon. trad. P. MEYER, p. 83; Garin le Lorrain. ed. P. Paris, t. II, p. 88. — Concilio: MIGNE, P. L., t. CXLII, col. 400.

208 Alfred. em LIEBERMANN. Die Gesetze der Angelsachsen, t. I. p. 47 (49, 7); Leges Henrici, 75, 1. — GISLEBERT DE MONS, ed. Pertz. p. 30. — PHILIPPE DE NOVARE, ed. Kohler, p. 20.

209 The Christ of Cynewulf. ed. A. S. Cook, v. 457. — MIGNE, P. L. t. CXCIII, col. 523 e 524. — L. GOUGAUD, Dévotions et pratiques du moyen ãge, 1925, p. 20 e seg.

210 RICHER, IV, 78. Outros exemplos (até ao século XIII) JOLLIFFE. The constitutional history of medieval England, p. 164.

211 Alfred, XLII, 6. — Two o) the Saxon chronicles, ed. Plummer, t. 1, pp. 48-49 (755). — K. LEHMANN, Das Langobardische Lehnrechl: Vulgata. II, 28, 4.

Um comentário:

Doney disse...

Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
Desta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.