Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-7827-145-9
Tradução: Maria E. A. P. Galvão (livro), André S. M. Da Silva (notas), Homero Santiago (introdução e análise),
Monica Stahel (revisão)
Introdução, análise e notas: Étienne Gilson
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 172
Sinopse: Muitas vezes brandido como uma bandeira, esse
texto tornou-se uma das obras emblemáticas da filosofia, e sua celebridade há muito
ultrapassou as fronteiras da filosofia propriamente dita. Primeiro livro da filosofia
francesa escrito em francês, essa obra inaugura a filosofia moderna e continua sendo
uma referência viva para a filosofia mais erudita, mas também para um público mais
amplo.
“Assim, a sabedoria
diferirá profundamente da erudição, pelo fato de esta última estar inteiramente
voltada para as coisas, ao passo que a primeira reside apenas no pensamento. Ora,
para que um pensamento seja capaz de tirar unicamente de seu próprio fundo todos
os conhecimentos úteis ao homem, é preciso estar de posse dos primeiros princípios
donde esses conhecimentos derivam-se, saber que todas as ciências humanas são rigorosamente
encadeadas e ser capaz de efetuar-lhes a dedução. A unidade do corpo das ciências
é evidente, porquanto as ciências, todas em conjunto, são constituídas apenas pelo
próprio espírito humano; aparentemente múltiplas quando nos colocamos no ponto de
vista dos objetos diferentes que estudam, elas são unas quando nos colocamos no
ponto de vista do sujeito pensante, porquanto permanece ele sempre idêntico a si
mesmo, seja qual for o objeto que considere. A única dificuldade para dar ao espírito
a posse dos verdadeiros princípios e torná-lo capaz de daí deduzir à vontade todas
as ciências é fornecer-lhe um método. Chama-se de método a ordem que o pensamento
deve seguir para alcançar a sabedoria e conforme à qual ele pensa em certo momento
que a alcançou.” (Étienne Gilson)
“O princípio fundamental
em que sua conduta deve inspirar-se é o seguinte: cada um de nós é uma pessoa separada
dos outros, e cujos interesses são por conseguinte distintos daqueles do restante
do universo, entretanto, como essa pessoa separada não conseguiria subsistir sozinha,
ela deve sempre subordinar seus interesses aos interesses legítimos do todo de que
ela faz parte.” (Étienne Gilson)
“A paz da alma, isto
é, a própria felicidade, é a recompensa de uma vida que se regra segundo as exigências
da razão.” (Étienne Gilson)
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“O bom senso é a coisa
mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que
mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam
desejar mais bom senso do que têm. Assim, não é verossímil que todos se enganem;
mas, pelo contrário, isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o
verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é
por natureza igual em todos os homens; e portanto que a diversidade de nossas opiniões
não decorre de uns serem mais razoáveis que os outros, mas somente de que conduzimos
nossos pensamentos por diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas.”
“A multiplicidade de
leis frequentemente fornece desculpas aos vícios, de modo que um Estado é muito
mais bem regrado quando, tendo pouquíssimas leis, elas são rigorosamente observadas;
assim, em vez desse grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei
que me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução
de não deixar uma única vez de observá-los.
O primeiro era de nunca
aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal;
ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus
juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito,
que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
O segundo, dividir
cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível
e necessário para melhor resolvê-las.
O terceiro, conduzir
por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais
compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que não se precedem naturalmente
uns aos outros.
E, o último, fazer
em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza
de nada omitir.”
“Como nossa vontade
é propensa por natureza a só desejar as coisas que nosso entendimento lhe apresenta
de algum modo como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que estão
fora de nós como igualmente afastados de nosso poder, não lastimaremos mais a falta
daqueles que parecem ser devidos a nosso nascimento, quando deles formos privados
sem nossa culpa, do que lastimamos não possuir os reinos da China ou do México;
e que, fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar
sãos, estando doentes, ser livres, estando presos, do que desejamos agora ter corpos
de uma matéria tão pouco corruptível como os diamantes, ou asas para voar como os
pássaros. Mas confesso que é necessário um longo exercício e uma meditação muitas
vezes reiterada para se acostumar a olhar desse ângulo todas as coisas; e creio
que é precisamente nisso que consistia o segredo daqueles filósofos que outrora
conseguiram subtrair-se do império da fortuna e, apesar das dores e da pobreza,
rivalizar em felicidade com seus deuses. Pois, ocupando-se sem cessar em considerar
os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiam-se tão perfeitamente
de que nada estava em seu poder além de seus pensamentos, que só isso bastava para
impedi-los de terem qualquer apego por outras coisas; e dispunham de seus pensamentos
de modo tão absoluto que isso lhes era uma razão para se considerarem mais ricos,
mais poderosos, mais livres e mais felizes que qualquer dos outros homens que, não
tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna,
nunca dispõem assim de tudo o que querem.”
“Notando que esta verdade
– penso, logo existo – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes
suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la
sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava.
Depois, examinando
atentamente o que eu era e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo e que
não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse, mas que nem por isso
podia fingir que não existia; e que, pelo contrário, pelo próprio fato de eu pensar
em duvidar da verdade das outras coisas, decorria muito evidentemente e muito certamente
que eu existia; ao passo que, se apenas eu parasse de pensar, ainda que tudo o mais
que imaginara fosse verdadeiro, não teria razão alguma de acreditar que eu existisse;
por isso reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é
pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa
alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é
inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele e mesmo se
o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”
“Nunca observei que
através das discussões que se praticam nas escolas se haja descoberto alguma verdade
que antes se ignorasse; pois, enquanto cada um procura vencer, esforça-se muito
mais em fazer valer a verossimilhança do que em pesar as razões de uma e de outra
parte; e os que foram por muito tempo bons advogados nem por isso são depois melhores
juízes.”
3 comentários:
Algo a se lamentar neste livro é o excesso com relação aos textos e notas de Étienne Gilson. A despeito de uma ou outra ideia interessante (como as transcritas aqui no blog), houve uma falha grotesca em permitir que este autor comentasse de maneira tão descomedida a presente obra de Descartes.
Para que se tenha uma ideia, como se não bastasse uma introdução de quase cinquenta páginas, Étienne ainda deixa incríveis 362 notas nas 126 páginas de livro que são propriamente o discurso do método, sendo que várias destas notas possuem espaço na página maior do que o do próprio objeto do livro. Em resumo, os textos e comentários de Étienne se não superam, chegam perto da metade do tamanho do livro. A questão é que a obra desejada é a de Descartes, e não a de Étienne, que entre uma ou outra nota adequada, muitas vezes divaga, floreia, interpreta de maneira bem particular, etc.
Algumas das notas chegam até a querem fazer a vez de dicionário de sinônimos, um feito ridículo, pois as palavras que ele tenta “traduzir” são de facílimo entendimento.
Creio que seria interessante ler diretamente uma obra de Étienne do que ler uma obra de Descartes conjuntamente com outra de Étienne, como foi o caso.
Sobre alguns dos floreios e divagações feitas por Étienne, utilizo o próprio Descartes como saída:
“Quanto à utilidade que os outros tirariam da comunicação de meus pensamentos, não poderia ser também muito grande, visto que ainda não os levei tão longe a ponto de não haver necessidade de acrescentar-lhes muitas coisas antes de pô-los em prática. E penso poder dizer sem vaidade que se há alguém que seja capaz disso, este alguém deve ser antes eu do que qualquer outro; não que não possa haver no mundo muitos espíritos incomparavelmente melhores que o meu, mas por não podermos conceber tão bem uma coisa e incorporá-la, quando o aprendemos de algum outro, como quando nós mesmos a descobrimos. Isso é tão verdadeiro nesta matéria que, embora tenha explicado muitas vezes algumas de minhas opiniões a pessoas de ótimo espírito, e que pareciam entendê-las muito distintamente enquanto lhes falava, notei que, quando as repetiam, as mudavam quase sempre de tal forma que eu já não podia dizer que fossem minhas. Quero aproveitar a oportunidade para rogar a nossos pósteros que nunca acreditem que são minhas as coisas que lhe disserem, quando eu mesmo não as tiver divulgado. E de modo algum me espanto com as extravagâncias atribuídas a todos esses antigos filósofos cujos escritos não temos, nem julgo por isso que seus pensamentos tenham sido muito desarrazoados, visto terem sido os melhores espíritos de seu tempo, mas somente julgo que nos foram mal transmitidos. Como também se vê que quase nunca ocorreu de um de seus seguidores os ter ultrapassado; e estou certo de que os mais apaixonados dos que agora seguem Aristóteles se julgariam felizes se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele teve, mesmo que sob a condição de nunca terem mais que ele. Eles são como a hera, que não tende a subir mais que as árvores que a sustentam e até, muitas vezes, torna a descer depois de ter chegado ao cimo; pois parece-me também que eles tornam a descer, isto é, tornam-se de certa forma menos sábios do que se se abstivessem de estudar e, não contentes em saber tudo o que está inteligivelmente explicado em seu autor, querem, ademais, encontrar nele a solução de muitas outras dificuldades das quais ele nada disse, e nas quais talvez nunca tenha pensado. Todavia, esse modo de filosofar é muito cômodo para os que têm apenas espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem é a causa de poderem falar de todas as coisas tão ousadamente como se as conhecessem e de sustentarem tudo o que dizem contra os mais sutis e mais hábeis, sem que haja meio de os convencer. Nisso me parecem iguais a um cego que, para lutar sem desvantagem contra alguém que enxerga, levasse-o para o fundo de um porão muito escuro.”
Gostei do teu texto! Muito bacana!
Escrevi um sobre Descartes, descontraído e informal.
Legal a tua postagem,! deem também uma olha na nossa em http://nerdwiki.com/2014/01/12/o-discurso-do-metodo-rene-descartes/ Obrigado.
Legal os trechos do blog e do primeiro comentário feito.
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