segunda-feira, 1 de julho de 2024

O lobo da estepe, de Hermann Hesse

Editora: Record

Opinião: ★★★★

Tradução e prefácio: Ivo Barroso

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ISBN: 978-85-0102-028-4

Páginas: 242

Sinopse: O lobo da estepe conta a história de Harry Haller, um homem de 50 anos que acredita que sua integridade depende da vida solitária que leva em meio às palavras de Goethe e às partituras de Mozart; um intelectual tentando equilibrar-se à beira do abismo dos problemas sociais e individuais, ante os quais sua personalidade se torna cada vez mais ambivalente e, por fim, estilhaçada.

A primeira parte do livro é o pesadelo do lobo Haller, sua depressão e sua incapacidade de se comunicar que está na base da crueldade e da destruição. Na segunda, o lobo se humaniza, através da entrada em cena de Hermínia, que tenta reaproximá-lo do mundo, no caso uma comunidade simplória, com salas de baile poeirentas e bares pobres.

O lobo da estepe foi escrito quando Hesse tinha 50 anos, como seu personagem, e estava profundamente influenciado pela psicanálise. O estilo adotado, altamente revolucionário para a época, foi elogiado por Thomas Mann, para quem, como novela experimental, O lobo da estepe era tão genial quanto Ulisses, de James Joyce.



Lembro-me, já nos últimos tempos de sua estada conosco, de um conceito dessa natureza, que nem chegou a ser mesmo um conceito, mas antes unicamente um olhar. Foi quando um célebre historiador e crítico de arte, de renome europeu, anunciou uma conferência na Universidade local e logrei persuadir o Lobo da Estepe a que fosse assisti-la, embora não me demonstrasse nenhum prazer em ir. Fomos juntos e nos sentamos um ao lado do outro no salão do auditório. Quando o orador subiu à tribuna e começou a elocução, decepcionou, pela maneira presumida e frívola de seu aspecto, a muitos de seus ouvintes, que o haviam imaginado algo assim como um profeta. E quando então começou a falar e, à guisa de introdução, endereçou aos ouvintes palavras lisonjeiras, agradecendo-lhes por haverem comparecido em tão grande número, nesse exato momento o Lobo da Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista, oh! um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e destruía a celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada; não, isso era o de menos. Havia nesse olhar um tanto mais de tristeza que de ironia; era na verdade, um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual traduzia um desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só transverberava com sua desesperada claridade a pessoa do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a disposição do público e o título um tanto pretensioso da anunciada conferência — não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: “Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!” E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas momices! (...)

Convenci-me de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido de várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era “o desprezo do mundo”, mas antes o desprezo de si mesmo, pois podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.

Devo acrescentar aqui uma observação psicológica: embora saiba muito pouco sobre a vida do Lobo da Estepe, tenho bons motivos para acreditar que foi educado por pais e professores bondosos, porém severos e muito devotos, desses que fundamentam toda a educação no “quebrantamento da vontade”. Tal destruição da personalidade e quebra do desejo não foram conseguidas com aquele aluno, de cuja prova saiu mais insensível e duro, orgulhoso e espiritual. Em vez ter sua personalidade destruída, ele conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo. Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira toda a genialidade de sua fantasia, toda a força de seu poderoso pensamento. Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade, cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heroicos e sérios para amá-los, para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o “Amarás teu próximo!” estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo”; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.”

 

 

“— O senhor está vindo do trabalho? É verdade que disso nada entendo; vivo um tanto à margem, o senhor compreende... Mas creio que também lhe interessem os livros e coisas assim; sua tia me disse que o senhor completou seus estudos e que era um bom estudante de grego. Esta manhã encontrei uma frase em Novalis... Permita-me que lha mostre? O senhor também há de gostar de vê-la.

Fez-me entrar no quarto, que recendia a forte cheiro de fumo, tirou um livro de uma pilha deles, folheou-o, à procura.

— Esta aqui também é boa, muito boa — disse. — Veja só esta frase: “O homem devia orgulhar-se da dor; toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe.” Magnífico! Oitenta anos antes de Nietzsche! Mas não é esta a passagem que eu pensava mostrar-lhe... Espere, aqui está. Ouça: “A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.” Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas, sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado.”

 

 

“A enfermidade anímica de Haller é, hoje o percebo, não o capricho de um solitário mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose daquela geração a que pertencia Haller, neurose que não atacava em absoluto os débeis e insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os mais fortes.

Estas anotações — e é indiferente saber se nelas existe uma grande ou pequena dose de realidade — são uma procura, não de vencer a enfermidade da época com rodeios ou paliativos, mas um intento de converter a própria doença em objeto de interpretação. Significam literalmente uma jornada pelo inferno, uma caminhada algumas vezes angustiosa, outras cheia de entusiasmo através do caos de um mundo anímico tenebroso, caminho percorrido com a vontade de atravessar o inferno, de oferecer a face ao caos, de padecer o mal até o fim.

Uma palavra de Haller deu-me a chave dessa compreensão. Disse-me ele, certa vez, quando falávamos a propósito das chamadas crueldades da Idade Média:

— Tais horrores na verdade não existiram. Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, têm sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças. O verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana reside ali onde se chocam duas culturas ou duas religiões. Um homem da antiguidade, que tivesse de viver na Idade Média, haveria de sentir-se tão afogado quanto um selvagem se sentiria em nossa civilização. Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam perdidos para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da mesma maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar sozinho e incompreendido, é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres humanos.”

 

 

“Não fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão somente um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de Adalbert Stifter e degolar-se com a navalha de barbear, era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia.

Quem havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque de gota, das dores malignas por detrás dos globos oculares, transformando a alegria de ver e de ouvir num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética, e quando tudo está concentrado e levado ao clímax do insuportável dentro de nosso próprio ser enfermo — quem já havia passado por aqueles dias infernais mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se sentava agradecido junto à estufa a ler os jornais, verificando satisfeito que não estalara nenhuma nova guerra, que não surgira nenhuma nova ditadura, que não se descobrira nenhum nauseante escândalo no mundo da política e das finanças, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranquilo semideus, um tanto anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semideus um tanto encanecido que cantava o salmo incolor pareciam gêmeos.”

 

 

“Mas, graças a Deus, havia também exceções, havia também, às vezes, pelo menos horas que me traziam grandes comoções, grandes dádivas, que me transportavam a mim, o extraviado, de volta ao vivo coração do mundo. Triste, embora excitado intimamente, procurei lembrar-me do último acontecimento dessa natureza. Fora um concerto; executavam música antiga e excelente, e então, entre dois compassos do piano, abriu-se para mim a porta do além, atravessei o céu e vi Deus em seu trabalho, sofri dores bem-aventuradas, deixei tombar minhas defesas e passei a não temer mais nada no mundo, a assentir a tudo e a tudo entreguei meu coração. Não durou muito, talvez um quarto de hora; mas, de novo, me voltou aquela sensação em sonhos, e desde então, através dos dias tristes, consigo captar um reflexo dela de quando em vez, ora claramente, por um instante, como dourada mancha divina caminhando através de minha vida, quase sempre impregnada de pó e de lodo, ora voltando a brilhar de súbito com raios de ouro, dando-me a impressão de que jamais a perderia, para logo ocultar-se de repente.

Uma noite aconteceu que, estando insone, comecei a declamar versos, versos muito mais belos e estranhos do que jamais teria sonhado escrever, versos que de manhã já havia esquecido, mas que permaneciam ocultos dentro de mim como um duro cerne sob a casca quebradiça. Outra vez, ocorreu-me isto com a leitura de um poeta, ou meditando um pensamento de Descartes, de Pascal; e numa outra, vi brilhar de novo a trilha dourada, que conduzia ao céu, quando me encontrava na presença de minha amada. Ah, é difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tantos anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”

 

 

Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.

De um salão de dança, diante do qual passei, me veio o ritmo de uma vívida música de jazz, como o odor bravio e quente da carne crua. Detive-me um momento; aquela espécie de música sempre tivera para mim um secreto encanto, apesar do muito que a detestava. O jazz me repugnava, mas me era cem vezes mais agradável do que toda a música acadêmica de hoje, me submergia profundamente no mundo dos impulsos com seu alegre e rude barbarismo e respirava uma ingênua e honrada honestidade.

Permaneci um momento no faro, a sentir o cheiro da música sangrenta e aguda, a olfatar malignamente cobiçoso a atmosfera daquela sala. Parte da música, a lírica, era pegajosa melíflua e cheia de sentimentalismo; a outra, selvagem, extravagante, cheia de força; no entanto, ambas as partes caminhavam juntas, ingênua e amistosamente, e formavam um todo. Era música decadente. Devia haver música assim na Roma dos últimos césares. Naturalmente era uma baboseira, comparada com Bach e Mozart e a música dos grandes mestres; mas assim também era toda nossa arte, todo nosso pensamento, toda nossa aparência de cultura, quando comparada com a verdadeira cultura. E esta música tinha a vantagem de possuir uma grande sinceridade, de ser sinceramente negroide, cheia de um humor alegre e infantil. Tinha algo dos negros e algo dos americanos, que a nós, europeus, parecem tão fortes e cheios de infantilidade. Chegaria a Europa a ser assim? Já estava a caminho disto? Éramos nós, velhos conhecedores e reverenciadores da verdadeira poesia de outros tempos, apenas uma minoria estúpida de complicados neuróticos, que amanhã seriam esquecidos e ridicularizados? O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente, nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?”

 

 

Cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve.”

 

 

Ocorria a ele o que se dá com todos o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxuoso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença.”

 

 

“Nada sabia sobre a autenticidade de meus próprios sentimentos. É preciso que se viva no normal e no possível para que saiba algo de tais coisas.”

 

 

“Assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isto contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por isto que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo!”

 

 

E como tampouco pudesse aguentar, ao que parece, a solidão, como minha própria sociedade me odiasse tão indizivelmente e me tivesse horror, afogado que estava no espaço sem ar de meu inferno, que saída me restava? Nenhuma. Pensei em meu pai e minha mãe, na sagrada chama de minha juventude há tanto tempo extinta, nos milhares de alegrias e afãs de minha vida. Nada me restava de tudo aquilo, nem sequer o arrependimento, somente o tédio e a dor. Nunca me havia causado tamanha pena o simples fato de viver como naquela hora.

Numa afastada taberna de subúrbio descansei por uns momentos, bebendo água e conhaque, e depois continuei a correr, acicatado pelo diabo, indo pelas abruptas e tortuosas ruelas da cidade velha, pelas avenidas, até a praça da estação. “Viajar!” — pensei. Entrei na estação, consultei a lista dos trens pregada à parede, bebi um copo de vinho e tentei recobrar o ânimo. Comecei a ver cada vez mais se aproximando, cada vez mais claramente, o fantasma que tanto temia. A volta a casa, o voltar a encerrar-me no quarto, o ter de permanecer quieto diante do desespero! Não podia escapar a isso ainda que continuasse caminhando horas e horas: o regresso à minha porta, à minha mesa cheia de livros, ao divã com o retrato de minha amada pendurado em cima; não podia escapar ao instante em que tomaria a navalha e teria de cortar o pescoço. Esta imagem fazia-se cada vez mais clara diante de mim e cada vez mais precisa; sentindo o coração bater-me fortemente, provava a angústia maior de todas as angústias; o medo à morte! Sim, tinha um pavoroso horror à morte. Embora não vislumbrasse outra saída, embora o tédio, a dor e o desespero me tivessem sitiado, embora já nada me atraísse nem pudesse causar-me alegria ou dar-me esperanças, horrorizava-me indizivelmente a execução, o último instante, a fria ferida aberta na própria carne! Não enxergava nenhum caminho por onde pudesse escapar daquilo que tanto temia. Se na luta contra o desespero e a covardia esta última vencesse também hoje por acaso, amanhã e todos os dias seguintes estaria diante de mim o desespero, aumentado pelo desprezo de mim mesmo. Tantas vezes apanharia a lâmina para tornar a afastá-la, que uma vez decerto chegaria ao fim. Então era melhor fazê-lo logo, hoje! Falava comigo mesmo como se falasse com uma criança assustada, mas a criança não me ouvia, fugia dali, queria viver. Continuei minha caminhada inconstante pela cidade, fiz amplos círculos em torno de minha casa, com a ideia do regresso em mente, mas sempre procrastinando. Parava aqui e ali nas tabernas, enquanto esvaziava um copo ou dois; logo voltava a caminhar, em amplos círculos em torno da meta, em torno da navalha, em torno da morte. Às vezes, sentava-me, morto de cansaço, num banco, na borda de uma fonte, à beira da calçada; ouvia bater meu coração, limpava o suor da face, continuava meu trajeto, cheio de angústias mortais, cheio de vacilantes ânsias de viver.”

 

 

— Engraçada a ideia que você tem da vida! Sempre metido em coisas difíceis e complicadas, e não aprendeu as fáceis? Não teve tempo para isso? Tinha outras coisas para fazer. Bem, graças a Deus, não sou sua mãe. Mas agir assim, como se você já tivesse experimentado toda a vida e nela não encontrasse nada de interessante, isso não; isso não pode ser.

— Não ralhe comigo! — supliquei. —Já sei que estou louco.

— Espere aí, não me venha com esta história. O senhor não está louco, professor; até me parece que de louco não tem nada. É apenas racional de uma maneira estúpida, eis o que acho; exatamente como um professor.”

 

 

“Havia convidado a admirável jovem do Águia Negra para a noite de terça-feira, e não me foi fácil esperar que chegasse aquele dia; quando por fim chegou a terça-feira, tive perfeita noção da importância que tinham para mim as relações com aquela moça, uma simples desconhecida, e isso me encheu de espanto. Só pensava nela, e esperava tudo dela, estava disposto a sacrificar-lhe tudo e pôr tudo a seus pés, embora não estivesse em absoluto enamorado dela. Bastava imaginar que não compareceria ao encontro ou que dele se houvesse esquecido, para ver claramente o que ela representava para mim; o mundo me parecia então novamente vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltava a envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída daquele inferno silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada agradável para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror. Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem, como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um verdadeiro paraíso. Conhecia meu estado com plena e brutal clareza e reconhecia que a tensão insuportável entre o não poder viver e o não poder morrer era o quem e fazia dar tanta importância à desconhecida, à linda bailarina do Águia Negra. Era a única janela, a luminosa e diminuta abertura em minha sombria e angustiosa caverna. Era a salvação, o caminho para a liberdade. Haveria de ensinar-me a viver ou ensinar-me a morrer, haveria de tocar com sua mão firme e formosa meu coração transido, para que ele, em contato com a vida, de novo florescesse ou se tornasse em cinzas. De onde tirava ela essa força, de onde lhe vinha a magia, de que profundos abismos se elevava até ela essa profunda significação que tinha para mim? Não sabia e não me importava sabê-lo. Bastava-me saber de sua existência. Nenhuma ciência, nenhum conhecimento me importara tanto; estava saciado deles, precisamente nisto consistia a ignomínia e o tormento mais agudos de que eu padecia: ver tão claramente meu próprio estado, ter perfeita consciência dele. Via a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão. Poderia dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a concatenação e os motivos do meu padecimento, da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso.”

 

 

“— Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim; em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo.”

 

 

“— Estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim mesma quanto você; e, como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem conformar-se com sua estupidez e crueldade.”

 

 

“— Quero dizer-lhe hoje uma coisa que já sei há muito e que você também sabe, mas que talvez nunca a confessou a si mesmo. Quero dizer-lhe agora o que sei de mim, de você, de nosso destino. Você, Harry, sempre foi um artista e um pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre ao encalço do grande e do eterno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais foi despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado destino, nada pôde ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura. Não é verdade, Harry? Não é este o seu destino?

Eu assentia, assentia e assentia.

— Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heroico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote. Pois bem, meu amigo, comigo também foi assim! Eu era uma jovem bem dotada, com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesma e para realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a esposa de um rei, a amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de um mártir. E a vida só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que já se vai tornando bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu. Fiquei algum tempo desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma. A vida, pensava eu, sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos sonhos, pensava, era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais. Mas isso não me valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além disso, fosse curiosa, examinei a vida com certa atenção, observei meus vizinhos e conhecidos, mais de cinquenta pessoas e destinos, e percebi então, Harry, que meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim como os seus. Mas a vida, a realidade, não tinha razão. O fato de uma mulher da minha classe não ter alternativa senão envelhecer de uma maneira insensata e pobremente junto a uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou casar-se com ele por seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era tão injusto quanto o de um homem como você, solitário, tímido e desesperado, ter de recorrer à navalha de barbear. Talvez a miséria em mim fosse mais material e moral, e em você mais espiritual; mas o caminho era o mesmo. Pensa que eu não pude reconhecer sua angústia diante do foxtrote, sua repugnância pelos bares e pelos dancings, sua hostilidade para com a música de jazz e tudo o mais? Compreendia e muito bem, como compreendia seu horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a conduta irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da guerra, as passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa! Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo...”

 

 

“Todo verdadeiro humor começa quando a pessoa deixa de se levar a sério.”

 

 

— Você seria capaz de atirar contra aquele homem e fazer-lhe um buraco na nuca? Por Deus que eu não conseguiria.

— Isso porque não te ordenaram — grunhiu meu amigo.”

 

 

— Em minha juventude — observei com tristeza — esses dois músicos eram tidos como os mais extremos contrastes que se podia conceber. Mozart sorriu.

— Sim, é sempre assim. Tais contrastes, vistos a pequena distância, sempre tendem a apresentar sua crescente similitude. A instrumentação excessiva não foi, na verdade, uma falha pessoal de Wagner ou de Brahms; era um defeito de sua época.

— Como? E tiveram de pagar tão duramente por isso? — exclamei em tom de protesto.

— Naturalmente. A lei segue seu curso. Depois de pagar a culpa de seu tempo, ver-se á se a culpa pessoal merece alguma redenção.

— Mas nenhum dos dois teve culpa?

— Certamente que não. Não tiveram culpa, como tampouco Adão teve culpa de haver comido a maçã e nem por isso deixou de pagar pelo pecado.

— Mas isso é terrível.

— Sem dúvida, a vida é sempre terrível. Nada podemos fazer em contrário e, não obstante, somos responsáveis. Mal se nasce já se é culpado. O senhor deve ter recebido instrução religiosa muito particular para desconhecer tais dogmas.”

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