terça-feira, 10 de maio de 2016

A Cidade de Deus (Livro I) – Santo Agostinho

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian

ISBN: 978-97-2310-543-8

Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 194

Sinopse: Santo Agostinho (354-430) nasceu em Tágaste, pequena cidade do norte de África, filho de mãe cristã (Santa Mônica) e de pai não cristão (Patrício). Fez a sua educação literária em Milão embora também Roma e Cártago hajam sido testemunhas de algumas dissipações da sua juventude. O pensamento platônico fascinou o seu espírito sensível e não foi indiferente para a evolução intelectual do futuro bispo de Hipona. Precursor do Humanismo do Renascimento, Santo Agostinho consubstancia já na sua obra o propósito de conciliação entre a ética greco-latina e a mensagem evangélica. A preconização que recomenda de um conhecimento não superficial do hebraico, do grego e do latim para um entendimento profundo dos textos sacros anuncia o projeto cultural que o Renascimento humanístico havia de propor cerca de dez séculos depois. O De civitate Dei e as Confessiones são as suas obras mais conhecidas, mas escreveu ainda outras não menos importantes, sobretudo no domínio da hermenêutica novitestamentária. A leitura das Confissões está na origem da conversão de grandes figuras da história cultural antiga e moderna, a maior das quais foi certamente Francesco Petrarca (1303-1373). A sua obra exerceu uma profunda influência na cultura portuguesa, designadamente em autores como Gil Vicente, Sá de Miranda, Frei Heitor Pinto e Antonio Vieira. A sua estupenda modernidade toma-a tão atual que bem podemos considerar Santo Agostinho como um nosso contemporâneo.



“Conta-se que o ilustre romano Marco Marcelo, conquistador da bela cidade de Siracusa, chorou antes de a arruinar e que, antes do sangue dela, correram as lágrimas dele. Tem até o cuidado de respeitar o pudor que, mesmo num inimigo, se devia respeitar. De fato, antes de, como vencedor, ordenar o assalto da cidade, publicou um edito proibindo que se exercesse violência corporal sobre quem quer que fosse livre. Porém, a cidade foi arrasada, como acontece nas guerras, pilhagens, incêndios e tormentos, que se cometeram na recente catástrofe de Roma foram produto dos hábitos de guerra.”

 

 

“O que porém de insólito ali ocorreu (no saque de Roma pelos godos, em 410), ou seja, que, mudando o rumo dos acontecimentos de uma forma insuspeitada, a crueldade dos bárbaros se tenha tornado branda até ao ponto de estabelecer que, por escolha, o público enchesse as basílicas mais amplas, onde ninguém seria ferido, donde ninguém seria arrancado, para onde eram levados muitos que deviam ser libertados pelos misericordiosos bárbaros, donde não seriam retirados por inimigos cruéis os que tinham que ser reduzidos ao cativeiro — quem não vê que tudo isto deve ser atribuído ao nome de Cristo, ao cristianismo, é cego; quem o vê mas não o louva, é ingrato; quem se mostra contrário ao que louva, é insensato. É impossível alguém de perfeito juízo atribuir isto à ferocidade dos bárbaros. Quem encheu de terror as mentes ferocíssimas e sanguinárias, quem os foi refreando e miraculosamente os abrandou, foi Aquele que, muito tempo antes, pelo profeta havia dito:

Castigarei com uma vergasta as suas iniquidades, e à chicotada as suas culpas; todavia, não lhes retirarei a minha misericórdia. (Salmo LXXXVIII, 33-34)”

 

 

“O homem bom nem se envaidece com os bens temporais, nem se deixa abater com os males. Pelo contrário, o homem mau sofre na infelicidade, porque se corrompe na felicidade. Mas é na distribuição de bens e de males que Deus mais vezes patenteia a sua intervenção. De fato, se ele desde já castigasse qualquer pecado com penas manifestas, julgar-se-ia que nada reserva para o último juízo. E, pelo contrário, se desde já deixasse impunes todos os pecados, julgar-se-ia que a Providência divina não existe. O mesmo se passa com as coisas prósperas: se Deus não as concedesse com toda a largueza a quem lhas pede, diríamos que tal não está no seu poder; e, se as concedesse a todos os que lhas pedem, julgaríamos que só se deve servir, na mira de tais recompensas, e servir assim, em vez de nos tornar santos, tornar-nos-ia mais ambiciosos, mais avaros.”

 

 

“Lá porque é assim — que os bons e maus sofrem as mesmas provas — nem por isso vamos negar a distinção entre uns e outros porque distinto não é o que uns e outros sofrem. Mantem-se, na realidade, a diferença dos que sofrem, mesmo na semelhança dos sofrimentos. Ainda que estejam a sofrer do mesmo tormento, a virtude e o vício não se identificam. Assim, sob um só fogo, o ouro rebrilha e a palha fumega; sob o mesmo trilho, a palha tritura-se e o grão limpa-se; assim como a água ruça não se confunde com o azeite embora saiam espremidos da mesma prensa, — o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe-nos à prova, purifica-os, afina-os e condena, arrasa, extermina os maus. Daí que, na mesma aflição: — os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um. Agitados com o mesmo movimento — a imundícia exala um fedor insuportável, e o unguento, um suave perfume*.”

* N. T.: Deus faz brilhar o sol e faz chover sobre os bons e sobre os maus. Mais que isso: parece preferir os maus aos bons na distribuição desses e demais bens materiais.

É esta uma situação que sempre na vida dos homens, através de todas as gerações, vem sendo posta com angústia e escândalo. Já os Judeus sobre ela meditavam no Eclesiástico e em Jó.

Santo Agostinho apresenta várias soluções que, no fim de contas, se vêm a unificar:

Esses bens são concedidos mesmo aos santos — para que se não pense que não são bons esses bens: são bens, embora de valor inferior aos bens do espírito, à virtude.

São também concedidos aos maus — para que os santos não pensem que são os bens supremos. Em relação a outros, são bens de inferior categoria, que até aos maus podem ser concedidos — e por isso os bons não devem ter apego a eles e por causa deles perder de vista os bens não temporais.

Concedem-se aos maus, porque não são tão maus que não mereçam qualquer recompensa por algum bem que pratiquem. Concedem-se aos bons, para que não percam a coragem em se converterem com receio de os perderem.

Na desolação e adversidade, a divina Providência não deixa o justo sem a consolação desses bens, não vá ele esmorecer; na prosperidade prova-o, retirando-lhos, não vá com eles corromper-se.

Mas a felicidade dos maus detentores desses bens é aparente: o remorso rói-lhes a alma. Não há motivo para invejá-los.

Os bens temporais são concedidos a todos — aos maus, porque é a sua paga por algum bem que façam; aos bons, para que não receiem a conversão sem eles. Se, porém, fossem concedidos somente aos bons, julgar-se-ia que só por eles se tomariam bons. Se fossem concedidos somente aos maus, os bons não se converteriam, porque receariam perder o que afinal não deixa de ser um bem.

Se não fossem retirados senão aos bons — os débeis não se converteriam aos bens mais altos, com receio de perder os bens da Terra; se não fossem retirados senão aos maus, julgar-se-ia que nisso e só nisso consistiria toda a sua pena.

 

 

“Nessa catástrofe, que é que os cristãos padeceram que lhes não tenha servido de proveito, se a considerarmos com espírito de fé? Em primeiro lugar, ao pensarem com humildade nos pecados por causa dos quais Deus, indignado, encheu o mundo de tamanhas calamidades, embora estejam longe dos facínoras, dos dissolutos e dos ímpios, não se julgarão todavia tão isentos de faltas que se considerem a si próprios livres de sofrerem algum mal temporal por sua causa. Efetivamente, além do caso de que todo o homem, por mais louvável que seja a sua vida, por vezes cede à concupiscência da carne e, sem cair em crimes monstruosos, nem no abismo da devassidão, nem na abominação da impiedade, deixa-se todavia arrastar para certos pecados, quer raras vezes quer, quando são mais leves, com mais frequência, — além deste caso, encontrar-se-á, acaso com facilidade, alguém que, no final de contas, trate como deve a esses ímpios por cujo horrível orgulho, luxúria, cupidez, iniquidade e abomináveis sacrilégios, Deus esmagou a terra como já ameaçadoramente tinha predito? Quem é que vive com tais pessoas como deveria viver? A maior parte das vezes, quando devíamos adverti-las, instruí-las, e por vezes mesmo repreendê-las e corrigi-las, dissimulamos culposamente, quer porque nos custa o esforço, quer porque receamos ofendê-las, quer porque procuramos evitar inimizades que podem tornar-se um estorvo ou até um dano para os bens temporais que a nossa cobiça procura alcançar ou que a nossa fraqueza receia perder.

Mas há culpa quando as pessoas, que vivem de maneira diferente dos maus e aborrecem a sua conduta, são todavia indulgentes para com os pecados dos outros quando os deviam corrigir e exprobar. Têm o cuidado de os não ofenderem com medo de por eles serem lesados nos bens de que usam os bons, sem dúvida legítima e honestamente, mas mais avidamente do que convinha aos que peregrinam neste mundo e mostram a esperança da pátria superna. (...)

Estes adquirem com prazer muitos bens terrenos e temporais e perdem-nos com pesar. Por isso não se atrevem a ofender aqueles homens cuja vida tão contaminada e tão depravada lhes desagrada.

Trata-se também dos que mantêm um teor de vida superior, livres dos laços conjugais, que se servem de alimentação frugal e de vestuário simples, mas se abstêm de repreender os maus, com receio de que as insídias ou ataques deles ponham em perigo a sua fama ou segurança. E, embora não os temam tanto que cheguem a praticar ações idênticas, cedendo a qualquer das suas ameaças ou perversidades —, evitam porém censurar os desmandos que não cometem como eles, quando a sua censura poderia talvez corrigir alguns. Receiam pôr em perigo e perder a sua integridade e reputação no caso de falharem no seu intento — e isto, não porque as considerem indispensáveis para o serviço de ensinar os demais, mas sim em consequência daquela doentia fraqueza em que caem a língua e os juízos humanos quando se comprazem nas adulações e temem a opinião pública, os tormentos da carne ou da morte, isto é, por causa dos grilhões de certas paixões e não por causa do dever de caridade.

Parece-me pois que não é pequena a razão por que são castigados os bons juntamente com os maus quando apraz a Deus castigar, mesmo com penas temporais, os maus hábitos. Juntos são castigados, não porque juntos levem má vida, mas porque juntos amam a vida temporal, não igualmente mas juntamente. Os bons deviam desprezá-la para que os outros, repreendidos e corrigidos, alcançassem a vida eterna. E, se eles se recusam a acompanhá-los para a conseguirem, deveriam suportá-los, como inimigos, e amá-los porque, enquanto vivem, nunca se sabe se não se decidirão a mudar para melhor.”

 

 

“Os bons têm ainda outra razão para sofrerem os males temporais. É a mesma de Jó: que o homem submeta o seu próprio espírito à prova e comprove e conheça com que grau de piedade e com que desinteresse ama a Deus.”

 

 

“São estas as riquezas de Cristo com as quais o apóstolo se achava opulento.

É um grande lucro a religião, desde que nos baste. Nada de fato trazemos para este mundo, assim como dele nada poderemos levar. Devemos estar contentes, desde que tenhamos que comer e que vestir. Os que pretendem ser ricos caem em tentações, em armadilhas e em muitos e loucos desejos, que afundam os homens na ruína e na perdição. A avareza é de fato a raiz de todos os males. Os que se lhe prendem desviaram-se da fé e envolveram-se em múltiplas dores (Tim., VI, 10).”

 

 

“O que sem dúvida reprova nas riquezas é a cupidez e não a posse.”

 

 

“Que importa o gênero de morte que acabará com esta vida — quando ao que morre não se obrigará que morra de novo? A cada mortal o ameaçam mortes de todos os lados. Nos quotidianos azares desta vida, enquanto durar a incerteza acerca de qual das mortes surgirá, eu pergunto se não será preferível suportar uma morrendo, a ser por todas ameaçado vivendo. Não ignoro quão depressa preferimos viver longos anos sob o temor de tantas mortes, a morrermos de uma vez e já não temermos diante de nenhuma. Mas uma coisa é o que o sentido carnal, fraco como é, repele por medo — e outra o que a razão, convenientemente esclarecida, convence. Não deve considerar-se má a morte que uma vida virtuosa precede. Na verdade, o que torna má a morte mais não é que o que à morte se segue. Àqueles que necessariamente hão-de morrer não deve preocupar muito o que acontecerá para que morram, mas antes para onde terão de ir irremediavelmente depois da morte. Os cristãos sabem que foi muito melhor a morte do pobre piedoso entre os cães que o lambiam, do que a do ímpio rico entre púrpuras e linhos. Em que podem então prejudicar aos que viveram sem mácula as formas horríveis de morrer?”

 

 

“Que sensibilidade humana se recusará a desculpar as religiosas que se suicidaram* para evitarem tal ultraje (de serem estupradas pelos invasores da cidade de Roma)? E se alguém acusar as que se não quiseram suicidar para evitarem com este pecado o delito alheio — esse mesmo não se livrará da acusação de estupidez. Sabemos que não há rei que consinta que se tire a vida, inclusive ao culpado, por iniciativa privada e, portanto, quem a si próprio se mata é homicida. E é tanto mais culpado ao suicidar-se quanto mais inocente era a causa que o levou à morte. Se justificadamente detestamos o caso de Judas; se a Verdade decide que, ao suspender-se do laço, ele, longe de expiar, mais agravou a vilania da sua traição, pois que, desesperando da misericórdia de Deus, fechou com um funesto remorso todo o caminho a uma salutar penitência — muito mais se deve abster do suicídio quem nenhuma culpa teve a expiar com tal suplício. Porque Judas, ao matar-se, matou um celerado e, todavia, acabou a sua vida réu não somente da morte de Cristo, mas também da sua própria morte. Suicidou-se por causa do seu crime e ao seu crime juntou mais outro crime. Porque é, pois, que o homem que nenhum mal causou, contra si o vai causar? Porque é que com a sua própria morte vai ele executar um inocente para não suportar um culpado? Porque é que vai cometer na sua própria pessoa um pecado próprio para evitar que nela se cometa um pecado alheio?

*: Perante certos casos de suicídio, cometido em certas circunstâncias por pessoas a quem a Igreja presta culto — tais como os referidos por Eusébio de Cesareia na sua “História Eclesiástica” (I, 8, 34), o de Santa Apolônia, o dos Santos Bernice, Prosdoce e Domnina, o de Santa Pelágia (P. G. 579-785 e P. L. XVI, 229, S. Ambrósio in “De Virginitate” III, 7, 33) — Santo Agostinho prudentemente declara: “não me atrevo a afirmar temerariamente nada acerca delas” (de his nihil temere audeo judicare (v. De Civ. Dei L. I cap. XXVI). A celeberrima veneratio (De Civ. Dei. L. I cap. XXVI) em que eram tidas pela Igreja católica impedia-o de formar um juízo que não fosse o de que essas pessoas não agiram por qualquer ilusão humana mas por inspiração ou mandato divino.

 

 

“(Os adeptos da religião politeísta romana eram) adoradores de deuses falsos mas não falsos adoradores, que, com toda a sinceridade, por eles juravam.”

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