Editora: Nova Cultural
Consultoria: Carlos Lopes de Mattos
Tradução e notas: Ângelo Ricci
Opinião: Monológio: ★★★☆☆ / Proslógio: ★★★☆☆ / A verdade: ★☆☆☆☆ / O gramático: ★☆☆☆☆
Páginas: 170
Monológio
“Para qualquer um que queira prestar atenção, é
certo e evidente que todas as coisas, entre as quais haja uma relação de mais
ou de menos ou de igualdade, são assim em virtude de “algo” que não é
diferente, mas o mesmo, em todas elas, não interessando se aquilo que se
encontra nas coisas esteja em proporção igual ou desigual. Com efeito, todas as
coisas que são ditas justas entre si ou, mais ou menos justas, em relação a
outras, não podem ser entendidas dessa forma a não ser em relação à justiça,
que não é algo diferente nas diferentes coisas. Sendo, portanto, certo que
todas as coisas, quando comparadas entre si, apresentam-se boas no mesmo grau
ou em grau diferente, é necessário que elas sejam boas por um “algo” que é o
mesmo em todas, embora às vezes pareçam sê-lo umas por um motivo e, outras, por
outro. Um cavalo, por exemplo, parece ser bom por dois motivos: por ser forte e
por ser veloz. Mas, embora o cavalo seja bom pela força e pela velocidade, não
parece, com isso, que a força e a velocidade possam ser o mesmo. Ainda: se o
cavalo é bom enquanto é forte e veloz, então por que um ladrão, forte e veloz,
é mau? Evidentemente deve-se dizer que o ladrão é mau porque danoso e o cavalo
bom, porque útil. Na verdade, nada sói julgar-se bom senão por alguma
utilidade, como acontece com a saúde e aquilo que lhe diz respeito; ou por sua
honestidade, como é o caso da beleza e daquilo que a fomenta. Mas, como esta
demonstração não pode ser destruída por nenhum meio, é necessário deduzir,
também, que tudo o que é útil e honesto, se realmente é bom, é bom por aquilo
pelo qual é bom tudo o que é bom.”
“Com efeito, tudo o que existe ou provém de algo ou
deriva do nada. Mas o nada não pode gerar nada e sequer é possível pensar que
algo não seja gerado senão por algo. Portanto, tudo o que existe só pode
existir [gerado] por algo.”
“Se, portanto, todas as coisas que existem derivam
dessa mesma causa, não há dúvida de que ela é única; e que existe por si. E, se
tudo o que existe procede de uma causa única, é necessário que ela exista por
si e o resto derive a sua origem de outra. Mas tudo o que se origina de outro é
menor do que a causa que produz todos os seres e que só existe por si. Assim, o
que existe por si mesmo é superior a todas as coisas. Há, pois, uma causa que,
única, é superior a todas as coisas existentes.
Mas, aquilo que é superior a todas as coisas, e que
comunica o ser, a bondade e a grandeza a tudo o que é bom e grande, torna-se
necessário que seja sumamente bom e grande e que esteja soberanamente acima de
todas as coisas que existem. Conclui-se, assim, que deve haver um ser
perfeitamente bom e grande; enfim, superior a todas as coisas, quer se denomine
ele essência, substância ou natureza.”
“Igualmente não é possível pensar que tenha sido
feita do nada porque é completamente incompreensível que algo exista pelo poder
criador do nada. Mas, vamos supor que derive do nada: derivaria, então: ou por
si, ou por outro ser ou pelo nada. É evidente, porém, que do nada nada emana.
Logo, deveria ter saído do nada ou por sua própria força ou pela força de outro
ser. Se fosse pela sua própria força, esta existiria anteriormente àquela
natureza e tornaria esta natureza anterior a si mesma. Mas, já o demonstramos,
a natureza suprema não pode ser anterior a si mesma e, assim, ela não pode ter
saído do nada por sua própria virtude. Se, depois, quiséssemos admitir que fora
criada do nada pela ajuda de outro ser, então ela não seria a máxima entre
todas as coisas e, sim, inferior, pelo menos a uma; e não existiria por si
mesma, mas devido a outra.
Ainda: se ela derivasse do nada por meio de alguma
coisa, esta coisa que lhe deu a existência deveria ser um grande bem por ter
causado um bem tão grande. Mas não pode haver nenhum bem anterior àquele sem o
qual não há bem; e este bem, sem o qual não existe bem nenhum, é evidente que
só pode ser a natureza suprema, de que estamos tratando.”
“O universo também não pode ter-se originado da sua
própria natureza porque ela, por sua vez, não existe por si. Se isso pudesse
acontecer, o universo, sob certo aspecto, existiria por si e, ao mesmo tempo,
por causa de uma outra coisa, diferente daquela que criou tudo. E, assim, o ser
que criou todas as coisas existentes não seria mais o único, o que é
completamente falso. Outrossim, tudo o que tem origem de alguma matéria é
constituído por algo diferente de si e é posterior a ela. Mas, como nada pode
derivar de si mesmo e ser posterior a si mesmo, decorre que não há coisas que
possam originar-se, materialmente, de si mesmas.”
“Assim sendo, ou melhor, por ser necessariamente
assim, devemos deduzir que lá, onde não se encontra a substância suprema, não
há nada.
Ela, portanto, encontra-se por toda parte e em
todas as coisas e por todas as coisas*. Mas, assim como seria absurdo pensar
que o universo possa superar a imensidade do seu criador, que o mantém em vida,
assim seria igualmente absurdo que o criador não pudesse absolutamente dominar
a universalidade das coisas que produziu. É evidente, portanto, que a essência
suprema é o esteio de todas as coisas, que as domina, as encerra e as penetra.
Consequentemente, se juntarmos as provas anteriores
a estas, devemos admitir que essa mesma substância se encontra em todas as
coisas e por todas as coisas, e que todas as coisas existem dela, por ela e
nela.”
*: Não devemos entender essas palavras do autor no
sentido em que a essência suprema se identifica com as coisas, o que seria
panteísmo; mas no sentido em que ela está presente nas coisas, enquanto as
conserva na existência. Conservação que poderíamos chamar de criação contínua.
“A natureza suprema é a única acima da qual não
pode haver, de forma alguma, nada melhor, e ela é a melhor de todas as coisas
que não sejam aquilo que ela mesma é.”
“A natureza simples, criadora e conservadora de
todas as coisas, como não recebeu a existência nem por si, nem por outro nem de
outro, nem pelo nada nem do nada, por conseguinte, ela não tem princípio de
maneira nenhuma.
Mas, nem terá fim. Se tivesse fim, não seria, pois,
nem sumamente imortal, nem sumamente incorruptível. Entretanto, já foi
demonstrado que é sumamente imortal e incorruptível. Logo, não tem fim.
Ainda. Se tivesse que ter fim, ela acabaria ou por
sua própria vontade ou contra a sua vontade. Porém, não seria, certamente, um
bem em si, aquele por cuja vontade fosse destruído o bem supremo. Ora, ela é o
bem verdadeiro e supremo e, por isso, é tão certo que não pode acabar por sua
própria vontade, como é certo que ela é o bem supremo. Se tivesse que acabar
contra a sua vontade, então não seria o ser sumamente poderoso e onipotente,
quando, através de um raciocínio necessário, foi demonstrado, ao contrário, que
ela é sumamente poderosa e onipotente. Logo, não acabará, também, nem contra a
sua vontade. Assim, se a natureza suprema não tem fim, nem por sua vontade nem
contra a sua vontade, ela não terá fim de maneira nenhuma.”
“Se, às vezes, ao referirmo-nos à essência suprema,
dizemos que se encontra no lugar e no tempo, usando, para ela, a mesma
expressão que empregamos para as naturezas locais e temporais devido ao uso da
linguagem, entretanto, o sentido dessas expressões é diferente por causa da
diferença das coisas. Para as coisas locais e temporais, a expressão tem dois
sentidos: que elas estão presentes naqueles lugares e tempos em que se indica
que estão presentes; e que essas naturezas são contidas por eles. Mas, para a
essência suprema, só é válido um destes sentidos, isto é, que está presente e
não que, também, está contida. Por este motivo, se o uso da linguagem o
permitisse, seria mais exato dizer que ela existe com o espaço
e com o tempo, do que no espaço e no tempo,
porque se queremos significar que uma coisa está contida na outra, é mais
próprio dizer que está em, do que com essa coisa.
Portanto, falamos com propriedade quando dizemos que a essência suprema não se
encontra em nenhum lugar ou tempo, porque ela não está contida em nenhuma
coisa. Contudo, podemos também dizer que ela, à sua maneira, está em todo lugar
e todo tempo, porque tudo o que existe, afora ela, precisa da sua presença para
ser sustentado, a fim de não cair de novo no nada. Ela encontra-se em todo
lugar e tempo, porque não está ausente de nada; e não se encontra em nenhum
lugar, porque não possui nem lugar nem tempo e não admite, em si mesma,
distinção de lugar e de tempo; nem ela está aqui ou ali, nem em parte alguma;
nem no “então”, nem no “agora”, nem no “uma vez”. Nem existe segundo o
passageiro presente do qual nós desfrutamos; nem existiu nem existirá, segundo
o passado ou o futuro. Isso tudo é próprio das coisas circunscritas e mutáveis,
entre as quais ela se inclui. Todavia, é possível atribuir a ela estas
condições, porque está presente a todas as coisas circunscritas e mutáveis, até
parecer limitada pelo espaço e modificada pelo tempo.
Quanto foi dito mostra-se suficiente para dissipar
a contradição estridente, pela qual a suprema essência de todas as coisas
encontra-se por toda parte e sempre, e, no entanto, não se encontra em nenhuma
parte e nunca, isto é, em todo lugar e tempo e em nenhum lugar e tempo, segundo
a concorde verdade dos diferentes sentidos.”
“Pelo que acabamos de dizer, pode-se
clarissimamente compreender que a ciência humana não consegue entender de que
maneira esse espírito expressa e conhece as coisas. Ninguém, pois, duvida que
as substâncias criadas sejam em si mesmas bem distintas daquilo que elas são no
nosso conhecimento*.”
*: Estamos nos primórdios da Escolástica e já está colocado
claramente, por Anselmo, o problema que será o problema central da filosofia de
E. Kant. Anselmo, pois, afirma, com decisão, ainda que incidentalmente, que as
substâncias criadas são, em si mesmas, bastante diferentes daquilo que são no
nosso conhecimento. Nesta afirmação, está implícito o problema: As essências
das coisas são acessíveis à inteligência humana? — Kant responde que só podemos
conhecer o fenômeno das coisas, isto é, a simples aparência delas, não, porém,
a coisa em si (o noumeno), isto é, a essência. Kant não chega a
negar a existência do noumeno, ainda que sustente a sua
incognoscibilidade. Os escolásticos, ao contrário, embora admitam que o homem
não pode ter o conhecimento completo de nenhuma coisa, concordam em que, se o
homem não consegue ter um conhecimento intuitivo da essência, pode, entretanto,
deduzi-lo das aparências sensíveis, das propriedades, etc. Portanto, com certas
limitações, a inteligência humana, para os escolásticos, pode ter uma ideia
adequada de muitas essências, capaz de distinguir a coisa, em sua espécie, sem
confundi-la com nenhuma outra.
CAPÍTULO XLII
Que é próprio do espírito supremo ser genitor e pai e, do verbo, ser
gerado e filho
Gostaria e, talvez, poderia concluir que aquele [= espírito supremo] é verdadeiramente pai, e este [= o verbo], verdadeiramente filho, mas, como não há neles distinção de sexo, penso que não se deva deixar de examinar se é mais congruente para eles a denominação de pai e filho ou a de mãe e filha. Com efeito, se é conveniente chamar ao primeiro de pai e ao segundo de filho, porque ambos são espírito, por que, pela mesma razão, não poderia ser dito o primeiro mãe e o segundo filha, ainda mais que ambos são a verdade e a sabedoria? Será, talvez, porque, naqueles seres que têm diferença de sexo, a denominação de pai e filho convém mais ao sexo superior, e aquela de mãe e filha, ao inferior? Isto, na verdade, observa-se dentro da natureza em muitos casos. Entretanto acontece também o contrário, como em certas espécies de aves, onde o sexo feminino é mais importante e forte, e o masculino é menos importante e mais fraco.
Ou será que convém, com maior razão, que se chame
de pai ao espírito supremo porque a primeira e principal causa da prole
encontra-se no pai? Se a causa materna, de qualquer maneira, é sempre precedida
por aquela paterna, é, pois, completamente inconveniente aplicar o nome de mãe
àquele ao qual, para engendrar a prole, não se associa ou precede nenhuma
causa. É, portanto, certíssimo que o espírito supremo é pai da sua prole. Se,
ainda, um filho sempre é mais parecido com o pai do que uma filha, e se nenhuma
coisa é mais parecida com a outra do que, com o pai supremo, a sua prole, é
incontestável que esta prole não é uma filha, mas um filho.
Como, portanto, é próprio daquele verdadeiramente
gerar, e deste, ser gerado, assim é próprio daquele ser verdadeiramente
genitor, e deste, verdadeiramente gerado. E, como o primeiro é verdadeiro
genitor e o outro verdadeira prole, assim um é verdadeiro pai e o outro
verdadeiro filho.
“Com efeito, é certo que o filho é o verdadeiro
verbo, isto é, inteligência perfeita, ou perfeito conhecimento, ciência e
sabedoria de toda a substância do pai, vale dizer, ele conhece a essência mesma
do pai e tem ciência, conhecimento e intelecção dela. Portanto, neste sentido,
se chamarmos ao filho de inteligência, de sabedoria, de ciência, de
conhecimento, ou intelecção do pai, porque compreende, sabe e conhece o pai e a
sua sabedoria, de forma alguma estaremos nos afastando da verdade. Pode-se
dizer, com toda propriedade, que o filho é também a verdade do pai, não apenas
no sentido em que a verdade do pai é a mesma que aquela do filho, como já
demonstramos, mas também no sentido em que se encontra nele não uma certa
imitação imperfeita, mas a verdade completa da substância do pai, porque ele
outra coisa não é que aquilo que é o pai.”
“Pode-se, portanto, afirmar com bastante
propriedade que a mente humana é como o espelho em que se reflete, por assim
dizer, a imagem da essência suprema, que a mente não pode ver cara a cara. Com
efeito, se entre todas as coisas que foram criadas só a mente pode recordar-se
de si mesma, ser inteligente e amar, não vejo como se possa negar que existe
verdadeiramente nela a imagem daquela essência suprema que — mediante a memória
de si, a inteligência e o amor — constitui uma trindade inefável. Mas ainda
mais se mostra como imagem dela porque pode ter memória da essência suprema,
compreendê-la e amá-la. Com efeito, reconhecemos que ela é a mais verdadeira
imagem da essência suprema justamente por aquilo que possui de maior e de mais
semelhante com esta. E não resta dúvida que não é possível pensar que tenha
sido dado pela natureza à criatura racional algo mais excelente e mais
semelhante à essência suprema do que a faculdade de poder recordar, compreender
e amar aquilo que é o ser melhor e maior entre todas as coisas.
Por conseguinte, nenhuma outra coisa que apresente,
em tão alto grau, a imagem do criador foi concedida à criatura.”
“Quem, pois, negará que devemos sobretudo querer*
aquilo que podemos** de melhor? Outrossim, para uma natureza racional, a
propriedade da racionalidade outra coisa não é senão poder discernir o justo do
não justo, o verdadeiro do não verdadeiro, o bom do não bom, o melhor do menos
bom. Mas este poder seria para ela completamente inútil e supérfluo se não
amasse ou rechaçasse aquilo que distingue, segundo um juízo de verdadeiro
discernimento. Disto parece decorrer, com suficiente evidência, que todo ser
racional foi criado com a finalidade de amar mais ou de amar menos ou de
repelir as coisas, segundo as julgue, pelo discernimento racional, melhores ou
menos boas ou completamente más.
Nada, portanto, fica mais evidenciado do que a
criatura racional tenha sido feita para amar acima de todas as coisas a
essência suprema, que é o bem supremo; aliás, para que nada ame a não ser a
ela, ou por causa dela, porque ela é boa por si, e nada há que seja bom a não
ser por ela. Porém, não poderá amá-la se não se esforça para recordar-se dela e
para compreendê-la.
Fica claro, então, que a criatura racional deve
colocar todo o seu poder e querer para recordar, compreender e amar o bem
supremo, finalidade para a qual ela reconhece ter recebido a sua existência.”
*: Subentenda-se cumprir.
**: Subentenda-se fazer.
“Finalmente, de forma alguma pode parecer
verdadeiro que aquele que é justíssimo e potentíssimo não deva conceder nenhuma
recompensa a quem o ama com perseverança, visto que concedeu a ele, que não
podia amar, a existência, para que pudesse amá-lo. Se, realmente, não
recompensasse com nada a quem o ama, ele, que é justíssimo, não faria distinção
entre quem o ama e quem despreza aquilo que, ao contrário, deve amar acima de
tudo; nem amaria a quem o ama; nem valeria a pena ser amado por ele. Suposições
estas, porém, que estão em desacordo com ele, e, portanto, deve-se concluir que
recompensa quem persevera em amá-lo.
Mas em que consiste essa recompensa? Se a quem não
era nada ele deu uma existência racional para que se tornasse capaz de amar,
qual outra recompensa concederá a quem o ama, senão a de não cessar de amar? Se
o dom que tornou possível amar já é tão grande, como não haverá de ser grande
aquilo que é dado como recompensa pelo amor? E se essa é a base em que se apoia
o amor, qual não haverá de ser o salário do amor? Se, pois, a criatura
racional, que é um ser perfeitamente inútil para si mesmo sem este amor, está tão
acima de todas as criaturas, o prêmio deste seu amor não poderá ser senão algo
que está acima de toda criatura*.
Com efeito, este mesmo bem, que exige ser amado
assim, obriga aquele que o ama a desejá-lo com ardor não menor.
Por acaso alguém ama a justiça, a verdade, a
felicidade, a incorruptibilidade, sem desejar a sua posse? E que outra coisa a
bondade suprema poderá dar a quem a ama e a deseja, se não si mesma? Se ela,
pois, desse qualquer outra coisa, na verdade não recompensaria convenientemente,
porque não retribuiria o amor, nem consolaria quem a ama, nem saciaria aquele
que a deseja. Se ela quisesse ser amada e desejada para, depois, recompensar
com uma coisa diferente dela mesma, então deixaria de querer ser amada e
desejada por si mesma, mas por outra coisa, e quereria que se amasse não a ela,
mas a outra coisa, o que não se pode nem pensar.
Consequentemente nada há mais certo do que isto:
toda alma racional que se esforça, como e quanto deve, para desejar a
bem-aventurança suprema, com seu amor, um dia chegará a fruir dela e a
contemplará não como a vê agora, como que através de um espelho e debaixo de um
véu, mas cara a cara. E seria uma grande tolice recear que essa fruição tenha
fim, quando, ao fruir dela a alma não poderá sofrer inquietude por temores, nem
ser decepcionada por uma segurança falaz; e, por ter já experimentado a sua
falta, não poderá não amá-la, nem ela poderá abandonar a alma que a ama, nem
haverá nada bastante poderoso que separe uma da outra, contra a sua vontade.
Por isso, toda alma que tenha começado a fruir, uma
só vez, desta bem-aventurança, viverá feliz eternamente.”
*: A
criatura racional foi feita de forma a estar acima de todas as outras e isto
obriga-a a permanecer acima de todas as criaturas, amando a essência suprema
que a criou assim. Se ela, realmente, se esforçar para manter este privilégio
através do amor, como recompensa receberá um bem não escolhido na ordem das
criaturas. A recompensa deste seu amor será o próprio bem absoluto: o criador.
Proslógio
“Por que, então, ó Deus bom — bom para os bons e
para os maus —, por que salvas os maus, se isto não é justo? E tu não podes
cometer injustiça! Será que isso fica para nós oculto na luz inacessível que tu
habitas, pois a tua bondade é para nós incompreensível?
Realmente no profundíssimo segredo da tua bondade é
que se encontra a nascente donde mana o rio da tua misericórdia. Apesar de tu
seres absoluta e supremamente justo, também és benigno com os maus, justamente
porque és total e supremamente bom. Serias, pois, menos justo, se não fosses
benigno com os maus. De fato, é assaz mais justo aquele que é bom para com os
bons e com os maus do que aquele que é bom apenas com os bons. E aquele que é
bom, punindo e perdoando aos maus, é melhor que quem os pune apenas.
És, portanto, certamente misericordioso porque és
total e supremamente bom. E como é evidente, por outra parte, o motivo por que
tu distribuis o bem aos bons e o castigo aos maus, no entanto, torna-se para
nós estranho e surpreendente que tu, completa e supremamente justo, sem
precisar de nada, concedas os teus bens igualmente aos maus e aos ruins.
Oh! a imensidão da tua bondade, Senhor! Vemos donde
brota a tua misericórdia, mas nossa visão não consegue ir mais além! Enxergamos
donde mana o rio e não conseguimos divisar a nascente. Tu és, pois,
misericordioso para com os pecadores devido à plenitude da tua bondade,
todavia, permanece, para nós, escondida, na profundez da tua bondade, a razão
por que és misericordioso.
Quando tu distribuis o prêmio aos bons e o castigo
aos maus, parece que tu estas seguindo a lei da justiça; porém, quando
dispensas aos maus os teus bens, porque assim o exige a tua suprema bondade,
toma-se estranho que um ser, sumamente justo, como és tu, possa ter desejado
isso. Oh! misericórdia, com que abundante suavidade e com que suave abundância
chegas até nós. Oh! imensa bondade de Deus, com que grande amor os pecadores
devem amar- te!
Com efeito, tu, Deus, salvas os justos com justiça
e liberas os pecadores ainda quando a justiça os condena. Uns devem a sua
salvação aos seus merecimentos, e outros a conseguem apesar das suas faltas. É
porque nos primeiros tu reconheces o bem que lhes doaste e nos segundos perdoas
o mal que odeias. Ó bondade imensa, que tanto excedes toda inteligência, faze
com que recaia sobre mim a tua misericórdia, que procede de tão imensa riqueza!
Que penetre em mim o que emana de ti: que a tua clemência me perdoe; e não te
vingues segundo a justiça!”
“Entretanto, é justo, também, que tu castigues os
maus. Haverá, pois, algo mais justo do que os bons receberem o bem e os maus o castigo?
Como, então, pode ser justo ao mesmo tempo que tu castigues os maus e lhes
perdoes? Ou será que, sob certo aspecto, tu castigas os maus com justiça e, sob
outro, lhes perdoas, igualmente, com justiça? Com efeito, é justo que tu
castigues os maus, pois o mereceram; mas é, também, justo que lhes perdoes, não
em virtude dos méritos, que não têm, e, sim, porque isso condiz com a tua
bondade. Ao perdoares aos maus, tu és justo em relação a ti mesmo, não a nós,
assim como és misericordioso em relação a nós, e não a ti.
Da mesma maneira és justo não porque tu tenhas
obrigações para conosco por alguma dívida, mas porque tu operas em virtude
daquilo que é condizente com a tua bondade suprema. Desta forma, portanto, não
há contradição em dizer que tu castigas e perdoas sempre com justiça.”
“Vamos, minha alma, aguça e eleva toda a tua
inteligência e pensa, com todas as tuas forças, qual e quão grande seja esse
Bem.
Se, pois, todos os bens são agradáveis, imagina e
considera quão agradável será este que encerra a causa da alegria de todos os
outros bens. Não uma alegria qualitativamente igual àquela que nós
experimentamos com as coisas criadas, mas tão diferente quanto imensamente
diferente é o Criador da criatura. Se a vida criada já é uma alegria, quão
agradável não será a vida criadora? Se a conservação da vida já foi feita
agradável, quanto mais não o será aquela vida que é o princípio de toda
conservação? Se é agradável o conhecimento das coisas que foram criadas, quão
agradável não será então a sabedoria que criou todas as coisas do nada? Em
suma, se as alegrias dispensadas pelas coisas criadas são muitas e grandes,
qual e quão grande não haverá de ser a alegria existente naquele que é a causa
de todas as coisas agradáveis?”
A verdade
“A verdade suprema é a retidão.”
Um comentário:
O capítulo XLII é citado apenas para que se exemplifique a misoginia da época.
Também constam do livro a objeção de Gaunilo - monge de Marmoutier - contra o Proslógio, alcunhada “Livro em favor de um insipiente”, e sua respectiva resposta de Anselmo. Ambas possuem classificação ruim.
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