Editora: Nova Cultural
ISBN: 85-13-00848-6
Tradução: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Confissões) e Ângelo Ricci
(De Magistro)
Consultor da
Introdução: José Américo Motta Pessanha
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: As Confissões
de Santo Agostinho estão entre os textos mais importantes da literatura cristã.
Marcadamente espiritual, mas profundamente filosófica e teológica, a obra
reflete a travessia pessoal de Agostinho rumo à sua libertação e ao encontro
com Deus. É obra referencial na mística cristã, escrita por um dos autores de
maior relevância e influência na história cristã e ocidental.
Confissões
“Na verdade, os que O buscam, encontrá-Lo-ão,
e aqueles que O encontram hão de louvá-Lo.”
“E como invocarei o meu Deus — meu Deus e meu
Senhor —, se, ao invocá-Lo, O invoco sem dúvida dentro de mim? E que lugar há
em mim, para onde venha o meu Deus, para onde possa descer o Deus que “fez o
céu e a terra”?¹ Pois será possível, Senhor meu Deus, que se oculte em mim
alguma coisa que Vos possa conter? É verdade que o céu e a terra que criastes e
no meio dos quais me criastes Vos encerram?
Será, talvez, pelo fato de nada do que existe
poder existir sem Vós, que todas as coisas Vos contêm? E assim, se existo, que
motivo pode haver para Vos pedir que venhais a mim, já que não existiria se em
mim não habitásseis? Não estou no inferno, e, contudo, também Vós lá estais,
pois “se descer ao inferno, aí estais presente”².
Por conseguinte, não existiria, meu Deus, de
modo nenhum existiria, se não estivésseis em mim. Ou antes, existiria eu se não
estivesse em Vós, “de quem, por quem e em quem todas as coisas subsistem”?
Assim é, Senhor, assim é. Para onde Vos hei de chamar, se existo em Vós? Ou
donde podereis vir até mim? Para que lugar, fora do céu e da terra, me
retirarei, a fim de que venha depois a mim o meu Deus, que disse: “Encho o céu
e a terra”?”
1: Gên 1, 1. / 2: Sl 138,8
“Ó Deus tão alto, tão excelente, tão
poderoso, tão onipotente, tão misericordioso e tão justo, tão oculto e tão
presente, tão formoso e tão forte, estável e incompreensível, imutável e tudo
mudando, nunca novo e nunca antigo, inovando tudo e cavando a ruína dos
soberbos, sem que eles o advirtam; sempre em ação e sempre em repouso;
granjeando sem precisão; conduzindo, enchendo e protegendo, criando, nutrindo e
aperfeiçoando, buscando, ainda que nada Vos falte.
Amais sem paixão; ardeis em zelos sem
desassossego; arrependeis-Vos sem ato doloroso; irais-Vos e estais calmo;
mudais as obras, mas não mudais de resolução; recebeis o que encontrais, sem
nunca o ter perdido.
Nunca estais pobre e alegrais-Vos com os
lucros; jamais avaro, e exigis com usura. Damo-Vos mais do que pedis, para que
sejais nosso devedor; mas quem é que possui coisa alguma que não seja vossa?
Pagais as dívidas, a ninguém devendo, e perdoais as dívidas, sem nada perder.
Que dizemos nós, meu Deus, minha vida, minha santa delícia, ou que diz alguém
quando fala de Vós?... Mas ai dos que se calam acerca de Vós, porque, embora
falem muito, serão mudos!”
“A minha alma é estreita habitação para Vos
receber; dilatai-a, Senhor. Ameaça ruína, restaurai-a. Tem manchas que ferem o
vosso olhar. Eu o reconheço e o confesso. Quem há de purificá-la? A quem hei de
clamar, senão a Vós? “Purificai-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoai ao
vosso servo os alheios¹!” Creio, e por isso falo. Vós o sabeis, Senhor. Não
confessei contra mim os meus crimes, e não “me perdoastes, meu Deus, a
impiedade do meu coração²”? “Não entro em razões convosco”, que sois a mesma
Verdade. Não me quero iludir “para que a minha iniquidade não se minta a si
mesma”³. Não quero entrar em razões convosco, porque, “se atendeis à
iniquidade, Senhor, Senhor, quem permanecerá?”4.”
1: Sl 13, 14. / 2: Sl 31,5. / 3: Sl 26,
12. / 4: Sl 129,3.
“Donde podia vir semelhante criatura, se não
de Vós, Senhor? Alguém pode ser artífice de si mesmo? Ou pode derivar-se doutra
parte algum manancial por onde corram até nós o ser e a vida, diferentes dos
que nos dais, Senhor — Vós, em quem o ser e a vida se equivalem, porque sois o
Ser supremo e a suprema Vida?”
“Neste período da infância, cujo perigo
temiam menos para mim do que o da adolescência, não gostava do estudo, e tinha
horror de ser a ele obrigado. Por meio desta coação faziam-me um bem — embora
eu procedesse mal —, pois não aprenderia se não fosse constrangido. Todavia,
contra a vontade, ninguém procede bem, ainda que a ação em si mesma seja boa.
(...)
Para aprender, é mais eficaz uma curiosidade
espontânea do que um constrangimento ameaçador.”
“Não Vos amava. “Prevaricava longe de Vós¹” e
em toda parte ressoavam aos meus ouvidos de luxurioso estas palavras: “Bravo!
Coragem!” A amizade deste mundo é adultério contra Vós. Proferem-se as palavras
“Bravo! Coragem!” para que o homem não se envergonhe de ser pecador. Não
chorava essas faltas, mas pranteava “a morte de Dido, que se suicidara com uma
espada²”. Segui atrás dos ínfimos objetos da vossa criação, abandonando-Vos;
como era terra, tendia para a terra.”
1: Sl 72, 27 / 2: Eneida, VI, 457.
“Como se, na realidade, se persuadisse haver
um inimigo mais molesto que o próprio ódio com que se irrita contra si mesmo;
ou como se alguém prejudicasse mais gravemente, a outrem, com perseguições, do
que ao próprio coração, com essa inimizade!”
“Foi então que os espinhos das paixões me
sobrepujaram a cabeça, sem haver mão que os arrancasse. Bem pelo contrário: meu
pai, durante o banho, vendo-me entrar já na puberdade e revestido da
adolescência inquieta, contou-o todo alegre a minha mãe, como se tal
verificação o fizesse saltar de prazer com a ideia de ter netos. Era uma
alegria, aliás, proveniente da embriaguez produzida pelo vinho invisível da sua
vontade perversa e inclinada às coisas baixas — embriaguez com que este mundo
esquece o Criador, para, em vez de Vós, Senhor, amar as criaturas. Porém, já
tínheis começado a edificar em minha mãe o vosso templo e os fundamentos da
vossa santa habitação. Meu pai era simples catecúmeno, recente ainda. Por isso,
minha mãe, com tal nova, agitou-se, levada de piedosa perturbação e temor.
Apesar de eu ainda não ser batizado, receou que enveredasse por caminhos
tortuosos, por onde andam “os que Vos voltam as costas e não o rosto¹”.
Ai de mim! Como me atrevo a dizer que
estáveis calado, quando continuamente me ia afastando de Vós! Guardáveis,
porventura, silêncio diante de mim? De quem eram, senão de Vós, aquelas
palavras que, por meio de minha mãe, vossa fiel serva, pronunciastes aos meus
ouvidos? Nenhuma delas, porém, desceu ao meu coração, para cumprir o que ela me
aconselhava. Lembro-me que, um dia, querendo que me abstivesse da luxúria e
sobretudo não cometesse adultérios, avisou-me em particular e com grande
solicitude.
Envergonhava-me de seguir tais conselhos, por
me parecerem só próprios de mulheres. Porém eram vossos, e eu sem o saber!
Julgava que nada me dizíeis, que só ela me falava; mas Vós dirigíeis-Vos a mim,
por sua boca. Éreis desprezado na sua pessoa por mim, sim, por mim, pelo filho
da vossa escrava, pelo vosso servo. Mas eu não sabia! Ignorante, precipitava-me
tão cegamente que, entre os companheiros da minha idade, me envergonhava de ser
menos infame do que eles. Ouvia-os jactarem-se de suas ignomínias, e tanto mais
se gloriavam quanto mais depravados eram. Assim, praticava o mal não só pelo
deleite da ação, mas ainda para ser louvado.
Que haverá mais digno de vitupério do que o
vício? E eu, para não ser vituperado, fazia-me cada vez mais vicioso! Se não
cometesse pecado com que igualasse os mais corrompidos, fingia ter cometido o
que não praticara, para que não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e
mais vil quanto mais casto.”
1: Jer 2, 27
“O furto é punido pela vossa lei, ó Senhor,
lei que, indelevelmente gravada nos corações dos homens, nem sequer a mesma
iniquidade poderá apagar. Ora, que ladrão haverá que suporte com gosto outro
ladrão, se até o rico não perdoa ao indigente que foi compelido ao roubo pela
miséria? E eu quis roubar; roubei, não instigado pela necessidade, mas somente
pela penúria, pelo fastio da justiça e pelo excesso da maldade. Tanto é assim
que furtei o que tinha em abundância e em muito melhores condições. Não pretendia
desfrutar do furto, mas do roubo em si e do pecado.
Havia, próximo da nossa vinha, uma pereira,
carregada de frutos nada sedutores, nem pela beleza nem pelo sabor. Alta noite,
pois tínhamos o perverso costume de prolongar nas eiras os jogos até essas horas,
eu com alguns jovens malvados fomos sacudi-la para lhe roubarmos os frutos.
Tiramos grande quantidade, não para nos banquetearmos, se bem que provamos
alguns, mas para os lançarmos aos porcos. Portanto, todo o nosso prazer
consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo fato de o roubo ser ilícito.
Eis o meu coração, Senhor, eis o meu coração,
que olhaste com misericórdia no fundo do abismo. Diga-Vos ele agora o que
buscava nesse sorvedouro, sendo eu mau desinteressadamente e não havendo outro
motivo para a minha malícia senão a própria malícia. Era asquerosa e amei-a.
Amei a minha morte, amei o meu pecado. Amei, não aquilo a que era arrastado,
senão a mesma queda. Que alma tão forte que se apartava do vosso firme apoio,
para se lançar na morte, apetecendo não uma parcela da desvergonha, mas a
própria desvergonha!
Ó podridão, ó monstro da vida e abismo da
morte! Como pode agradar-me o ilícito sem outro motivo que o de me ser
proibido?”
Que fruto nessa ocasião colhi eu, miserável,
das ações que agora, ao recordá-las, me fazem corar de vergonha, nomeadamente
daquele roubo, em que amei o próprio roubo e nada mais? Nenhum, pois o furto
nada valia, e, com ele, me tornei mais miserável. Sozinho não o faria —
lembro-me de que era esta a minha disposição, naquele momento; sim,
absolutamente só, não era capaz de o fazer. Portanto, amei também no furto o
consórcio daqueles com quem o cometi. Amei, por isso, mais alguma coisa do que
o furto. Mas não: não amei mais nada, porque a cumplicidade nada vale.
Que é esta, na realidade? Quem mo ensinará
senão Aquele que ilumina o meu coração, rasgando-lhe as sombras? Por que
ocorreu ao meu espírito estar aqui a inquirir, discutir e considerar tais
particularidades? Se então amasse os pomos que furtei e com eles me apetecesse regalar,
poderia tê-los roubado sozinho, se isso bastasse. Poderia ter cometido a
iniquidade por onde cheguei ao meu deleite, sem acender, com a fricção de almas
cúmplices, o prurido da minha cobiça. Mas porque não experimentava prazer
naqueles furtos, este consistia na própria falta que praticavam os pecadores
simultaneamente, em cumplicidade.
Que sentimento era aquele da minha alma? Sem
dúvida, um sentimento muitíssimo vergonhoso; e ai de mim que o mantinha! Mas,
enfim, que era ele? “Quem conhece todos os delitos?¹” Era um riso, como que a
fazer-nos cócegas no coração, provocado pelo gosto de enganar os que tinham
como impossível o nosso feito e vivamente o detestavam.
Qual o motivo por que me deleitava o não
estar sozinho, quando cometia o furto? Seria porque ninguém facilmente se ri,
quando está só? É certo que, sozinho, ninguém se ri facilmente. Mas, se alguma
coisa demasiado ridícula acode aos sentidos ou à imaginação, o riso vence por
vezes o homem, mesmo quando sozinho e sem ter ninguém presente. Ah! sozinho não
praticaria tal ação. Se estivesse absolutamente só, não a faria².
Eis perante Vós, ó meu Deus, uma viva
lembrança da minha alma. Sozinho, não cometeria aquele furto, em que me não
aprazia o que roubava, mas o ato de roubar, porque, completamente só, não
sentiria prazer em praticar o furto. Nem sequer o faria. Ó amizade tão inimiga,
ó sedução impenetrável da mente, avidez de perpetrar o mal por brincadeira ou
gracejo, ó apetite do dano alheio, sem lucro nenhum, sem paixão de vingança,
mas só porque sentimos vergonha de não ser desavergonhados, quando nos dizem:
“Vamos, façamos”.”
Quem entra em Vós penetra “no gozo do seu
Senhor³”, e não só não terá receio, mas também permanecerá soberanamente no bem
perfeito. Na adolescência, afastei-me de Vós, andei errante, meu Deus, muito
desviado do vosso apoio, tornando-me para mim mesmo uma região de fome.”
1: Sl 18, 13 / 2: Reconhece Santo Agostinho a
influência do ambiente na perpetração de crimes. O homem no meio dum grupo ou
da multidão deixa-se facilmente sugestionar. É todo receptividade psicológica.
A carga efetiva da coletividade galvaniza-o. Não reage como ser independente,
mas como parte dum todo. (N. do T.) / 3: Mt 25, 21
“O orgulho imita a altura, mas só Vós, meu
Deus, sois excelso sobre todas as coisas. Que busca a ambição senão honras e
glória, embora só Vós tenhais direito a ser honrado sobre tudo e glorificado
eternamente? A sevícia dos poderosos aspira a fazer-se temer; mas quem deve ser
temido senão Deus? Quando, onde, até onde e quem pode tirar ou subtrair alguma
coisa ao vosso poder? As carícias dos voluptuosos desejam a reciprocidade do
amor; mas nada há mais acariciante que a vossa caridade, nem se pode amar nada
mais salutar que a vossa verdade, a mais formosa e resplandecente de todas. A
curiosidade parece ambicionar o estudo da ciência, quando só Vós é que
conheceis plenamente tudo!
Até a própria ignorância e estultícia se
encobrem sob o nome de simplicidade e de inocência. Mas nada se encontra mais
simples do que Vós. Quem há mais inocente do que Vós, pois são as próprias
obras que prejudicam os pecadores? À preguiça parece apetecer apenas o
descanso; mas que repouso seguro há fora do Senhor? A luxúria deseja
apelidar-se saciedade e abundância; Vós, porém, sois a plenitude e a abundância
interminável da suavidade incorruptível. A prodigalidade cobre-se com a sombra
da liberalidade; mas o mais magnânimo dispensador de todos os bens sois Vós. A
avareza quer possuir muito; e Vós possuis tudo. A inveja litiga acerca da
“excelência”; mas que ser há mais excelente que Vós? A ira procura a vingança;
e quem se vinga mais justamente que Vós? O temor, enquanto vigia pela segurança
das coisas que ama, detesta os acontecimentos insólitos e inesperados que lhes
sejam adversos; porém, que há de insólito para Vós? Que há de inesperado? Quem
separa de Vós o que amais? E onde encontrar a firme segurança senão em Vós? A
tristeza definha-se com a perda dos bens em que a cobiça se deleita — porque
desejaria que nada, como a Vós, se lhe pudesse tirar.”
“Mas que ações pecaminosas Vos podem afligir,
a Vós, a quem a corrupção não atinge? Ou que pecados se podem levantar contra
Vós, a quem nada pode prejudicar? Punis o que os homens cometem contra si
próprios, porque, ainda mesmo quando Vos ofendem, agem impiamente contra as
suas almas. A própria iniquidade, se engana a si mesma, corrompendo-se e
pervertendo-se na sua natureza, feita e ordenada por Vós, quer servindo-se
imoderadamente das coisas que lhe são lícitas, quer ardendo na concupiscência
do ilícito, “no uso daquilo que é contra a natureza¹”.
1: Rom 1, 26.
“Oh! loucura que não sabe amar os homens
humanamente! Oh! que louco o homem que sofre, sem conformidade, os reveses
humanos! Assim era eu então. Por isso, inquietava-me, suspirava, chorava,
perturbava-me sem descanso nem circunspecção.
Trazia a alma despedaçada a escorrer sangue:
repugnava-lhe ser por mim conduzida, e eu não encontrava lugar onde a
depusesse. Não descansava nos bosques amenos, nem nos jogos e cânticos, nem em
lugares suavemente perfumados, nem em banquetes faustosos, nem no prazer da
alcova e do leito, nem finalmente nos livros e versos. Tudo me horrorizava, até
a própria luz. Tudo o que não era o que ele era (seu amigo
recém-falecido) tinha por mau e fastidioso, exceto os gemidos e lágrimas,
pois só nestas encontrava algum repouso. Mas apenas de lá arrancava a minha
alma, pesava sobre mim o grande fardo da desgraça.
Sabia, ó Senhor, que a devia erguer para Vós
a fim de ser curada, mas não queria nem tinha forças, tanto mais que, ao pensar
em Vós, não me parecíeis solidamente firme.
O meu Deus não éreis Vós, mas um fantasma
irreal e o erro. Se ali tentava colocá-la, para descansar, deslizava pelo vácuo
e ruía sobre mim, continuando eu a ser um lugar de infelicidade, onde não podia
permanecer e donde não podia afastar-me.
Para onde o meu coração fugiria do meu
coração? Para onde fugiria de mim mesmo? Para onde me não seguiria? Por isso
fugi da pátria. Os olhos procurariam menos esse amigo lá onde o não costumavam
ver. Da cidade de Tagaste vim para Cartago.
O tempo não descansa, nem rola ociosamente
pelos sentidos: pois produz na alma efeitos admiráveis. O tempo vinha e
passava, dia após dia. Vindo e passando, inspirava-me novas esperanças e novas
recordações. Pouco a pouco, reconfortava-me nos antigos prazeres, a que ia
cedendo a minha dor. Não se sucediam, é certo, novas dores, mas fontes de novas
dores. Mas por que me penetrava tão facilmente e até ao íntimo aquela dor,
senão porque derramei na areia a minha alma, amando um mortal como se ele não
houvesse de morrer?
Havia nos meus outros amigos prazeres que me
seduziam ainda o coração: conversar e rir, prestar obséquios com amabilidade
uns aos outros, ler em comum livros deleitosos, gracejar, honrar-se mutuamente,
discordar de tempos a tempos, sem ódio, como cada um consigo mesmo, e, por meio
desta discórdia raríssima, afirmar a contínua harmonia, ensinar ou aprender
reciprocamente qualquer coisa, ter saudades dos ausentes e receber com alegria
os recém-vindos. Estes e semelhantes sinais, procedendo do coração dos que se
amam e dos que pagam amor com amor, manifestam-se no rosto, na língua, nos
olhos e em mil gestos cheios de prazer, como se fossem acendalhas; inflamam-se
os corações e de muitos destes se vem a formar um só.”
“Entrega à Verdade tudo o que tens recebido
da Verdade, e não só não perderás nada, mas ainda a tua podridão reflorescerá,
as tuas fraquezas serão curadas, as tuas frouxidões serão reformadas,
rejuvenescidas e estreitamente unidas a ti, sem te colocarem na ladeira por
onde descem, mas ficando contigo e permanecendo junto do Deus sempre estável e
eterno.
Por que é que tu, perversa, segues a tua
concupiscência? Que ela te siga a ti, quando retrocederes. O que por ela sentes
constitui partes, e tu ignoras o todo formado por essas partes que ainda te
deleitam. Mas se a sensibilidade do teu corpo fosse apta para receber o todo —
e se na parte do todo não tivesses recebido, para teu castigo, a justa
limitação —, quererias que passasse o que presentemente existe, para que o
conjunto mais te deleitasse. Ora, tu ouves pelos mesmos sentidos carnais o que
pronunciamos, e certamente não queres que as sílabas parem, mas desejas que
voem para outras lhes sucederem, para assim ouvires o conjunto. Do mesmo modo
acontece com as partes que formam um todo sem que haja simultaneidade nas
partes de que consta o todo. Deleita mais o todo uno, quando pode ser
percebido, do que cada uma das partes. Mas quanto melhor que estas coisas é
Aquele que as fez todas, o nosso Deus, que não passa porque nada Lhe sucede!”
“Se te agradam as almas, ama-as em Deus
porque são também mudáveis, e só fixas n’Ele encontram estabilidade. Doutro
modo passariam e morreriam. Ama-as portanto n’Ele, arrebata-Lhe contigo todas
as que puderes e dize-lhes: “Amemo-Lo”. Ele, que não está longe¹, foi o criador
destas coisas. Não as fez para depois as deixar, mas d’Ele vêm e n’Ele estão.
Ele está onde se saboreia a Verdade. Está no íntimo do coração, mas o coração
errou longe d’Ele.
“Voltai, ó pecadores, ao coração”², e
ligai-vos Àquele que vos criou. Firmai-vos n’Ele e estareis firmes. Descansai
n’Ele e descansareis. Para onde ides por caminhos escabrosos? Para onde ides? O
bem que amais d’Ele procede. Mas só é bom e suave quando para Ele é dirigido.
Pelo contrário, será justamente amargo, se se ama injustamente o que d’Ele
provém, abandonando a Deus.
Por que andar de contínuo por caminhos
difíceis e trabalhosos? Não há descanso onde o procurais. Procurais a vida
feliz na região da morte: não está lá. Como encontrar vida feliz onde nem
sequer vida existe?
Ele, a nossa vida, desceu até nós. Suportou a
nossa morte e matou-a pela abundância da nossa vida. Com voz de trovão clamou
que voltássemos para Ele, para o lugar escondido donde veio a nós, descendo
primeiro ao seio da Virgem onde se desposou com Ele a natureza humana, a carne
mortal, para não ficar eternamente mortal. E de lá, “como um esposo que sai do
tálamo, deu saltos como um gigante para percorrer o seu caminho”³. Não se
deteve, mas correu clamando com palavras, com obras, com a própria morte, com a
vida, com a descida (ao Limbo), com a Ascensão, clamando sempre que a Ele
voltássemos.
Fugiu dos nossos olhos para que entremos no
coração e aí O encontremos. Sim, separou-se de nós, com relutância, mas ei-Lo
aqui. Não quis estar conosco muito tempo, mas não nos abandonou.”
1: At 17,27. / 2: Is 46, 8. / 3: Sl 18, 6.
“Vi claramente que todas as coisas que se
corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se
poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente
boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas
que se corrompesse.
De fato, a corrupção é nociva, e, se não
diminuísse o bem, não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica — o
que não é aceitável — ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum
bem. Isto não admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o
bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser
alteradas, seriam melhores porque permaneciam incorruptíveis. Que maior
monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder
todo o bem?
Por isso, se são privadas de todo o bem,
deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. Portanto,
todas as coisas que existem são boas, e aquele mal que eu procurava não é uma
substância, pois, se fosse substância, seria um bem. Na verdade, ou seria
substância incorruptível, e então era certamente um grande bem, ou seria
substância corruptível, e, nesse caso, se não fosse boa, não se poderia
corromper.”
“A luxúria provém da vontade perversa; enquanto
se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se resiste a um hábito,
origina-se uma necessidade.”
“Quem sou? Como sou eu? Que malícia não houve
nos meus atos; ou, se não a houve nos meus atos, nas minhas palavras; ou, se
não a houve nas minhas palavras, na minha vontade!
Vós, porém, Senhor bom e misericordioso,
olhastes para a profundeza da minha morte e, com a vossa direita, exauristes do
fundo do meu coração o abismo de perversidade. E agora tudo era não querer
aquilo que eu queria, e querer o que Vós queríeis.
Mas onde esteve durante tantos anos o meu
livre arbítrio? De que profundo e misterioso abismo foi ele chamado num momento
a fim de inclinar a minha cerviz ao vosso suave jugo e os meus ombros ao vosso
fardo tão leve, ó Cristo Jesus, “minha ajuda e redenção¹”? Quão suave se me
tornou de repente carecer de delícias fúteis! Receava perdê-las, e agora já
sentia prazer em abandoná-las! Vós, a verdadeira e suprema Suavidade, as
afastáveis de mim. Vós as afastáveis, e em vez delas entráveis Vós, mais doce
que todo prazer — mas não para a carne e o sangue —, mais resplandecente que
toda a luz, mas mais oculto que todo segredo, mais sublime que toda honra, mas
não para aqueles que se exaltam em si mesmos.
Já o meu coração estava livre de torturantes
cuidados, de ambição, de ganhos, e de se revolver e esfregar na sarna das
paixões. Entretinha-me em conversa convosco, minha Claridade, minha Riqueza,
minha Salvação, Senhor, meu Deus.”
1: Sl 18, 15.
Nenhum comentário:
Postar um comentário