Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-97-2310-623-7
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Introdução e notas: Alexandre Fradique Morujão
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 682
Sinopse: Crítica
da razão pura, principal obra de Immanuel Kant, divide a história da
filosofia em duas: antes e depois da Crítica. Num momento em que a
filosofia se dividia em racionalistas
de um lado e empiristas
de outro, procurou Kant demonstrar que o nosso conhecimento é, necessariamente,
tanto empírico como racional, inaugurando, com isso, uma posição singular no
debate filosófico, criando as bases para a Teoria do Conhecimento como
disciplina filosófica. Entrar no universo da Crítica da razão pura é
aceitar o desafio, colocado pelo próprio Kant, de evitar o dogmatismo sem cair
no relativismo; evitar o absoluto sem cair no nada.
“Não há acréscimo, mas desfiguração das ciências,
quando se confundem os seus limites.”
“A razão só entende aquilo que produz segundo
os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam
os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas
interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações
feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária,
que a razão procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios,
únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de leis e, por outro,
a experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da
natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que
aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções,
que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta. Assim, a
própria física tem de agradecer a revolução, tão proveitosa, do seu modo de pensar,
unicamente à ideia de procurar na natureza (e não imaginar), de acordo com o que
a razão nela pôs, o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber;
só assim a física enveredou pelo trilho certo da ciência, após tantos séculos em
que foi apenas simples tateio.
O destino não foi até hoje tão favorável que permitisse
trilhar o caminho seguro da ciência à metafísica, conhecimento especulativo
da razão completamente à parte e que se eleva inteiramente acima das lições da experiência,
mediante simples conceitos (não, como a matemática, aplicando os conceitos à intuição),
devendo, portanto, a razão ser discípula de si própria; é, porém, a mais antiga
de todas as ciências e subsistiria mesmo que as restantes fossem totalmente subvertidas
pela voragem de uma barbárie, que tudo aniquilasse. Na verdade, a razão sente-se
constantemente embaraçada, mesmo quando quer conhecer a priori (como tem
a pretensão) as leis que a mais comum experiência confirma. É preciso arrepiar caminho
inúmeras vezes, ao descobrir-se que a via não conduz aonde se deseja; e no que respeita
ao acordo dos seus adeptos, relativamente às suas afirmações, encontra-se a metafísica
ainda tão longe de o alcançar, que mais parece um terreiro de luta, propriamente
destinado a exercitar forças e onde nenhum lutador pôde jamais assenhorear-se de
qualquer posição, por mais insignificante, nem fundar sobre as suas vitórias conquista
duradoura. Não há dúvida, pois, que até hoje o seu método tem sido um mero tateio
e, o que é pior, um tateio apenas entre simples conceitos.”
“A crítica não se opõe ao procedimento dogmático
da razão no seu conhecimento puro, enquanto ciência (pois esta é sempre dogmática,
isto é, estritamente demonstrativa, baseando-se em princípios a priori seguros),
mas sim ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas
com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico), apoiado em princípios,
como os que a razão desde há muito aplica, sem se informar como e com que direito
os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma
crítica prévia da sua própria capacidade. Esta oposição da crítica ao dogmatismo
não favorece, pois, de modo algum, a superficialidade palavrosa que toma a despropósito
o nome de popularidade, nem ainda menos o cepticismo que condena, sumariamente,
toda a metafísica. A crítica é antes a necessária preparação para o estabelecimento
de uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há-de desenvolver-se
de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte
escolástica (e não popular). Exigência inevitável em metafísica, considerando que
esta se compromete a realizar a sua obra totalmente a priori, portanto para
completa satisfação da razão especulativa. Na execução do plano que a crítica prescreve,
isto é, no futuro sistema da metafísica, teremos então de seguir o método rigoroso
do célebre Wolff, o maior de todos os filósofos dogmáticos. Wolff foi o primeiro
que deu o exemplo (e por esse exemplo ficou sendo o fundador do espírito de profundeza
até hoje ainda não extinto na Alemanha) do modo como, pela determinação legítima
dos princípios, clara definição dos conceitos, pelo rigor exigido nas demonstrações
e a prevenção de saltos temerários no estabelecimento das consequências, se pode
seguir o caminho seguro de uma ciência. Mais do que qualquer outro se encontrava
apto para colocar nessa via uma ciência, como a metafísica, se lhe tivesse ocorrido
preparar primeiro o terreno pela crítica do respectivo instrumento, isto é, da própria
razão pura; uma falta que, mais do que a ele, é imputável à maneira dogmática de
pensar da sua época e de que não podem acusar-se uns aos outros os filósofos do
seu tempo, nem os dos tempos anteriores. Os que rejeitam o seu método e ao mesmo
tempo o procedimento da crítica da razão pura não podem ter em mente outra coisa
que não seja desembaraçar-se dos vínculos da ciência e transformar o trabalho
em jogo, a certeza em opinião e a filosofia em filodoxia.”
“Ora o que permanece não pode ser uma intuição
em mim, pois os fundamentos de determinação da minha existência, que se podem encontrar
em mim, são representações e, como tais, necessitam de algo permanente distinto
delas e em relação ao qual possa ser determinada a sua alteração e, consequentemente,
a minha existência no tempo em que elas se alteram. Poder-se-ia talvez
objetar a esta prova que apenas tenho consciência imediata daquilo que está em mim,
ou seja, da minha representação das coisas exteriores e que, por consequência, fica
ainda indeciso se algo que lhes corresponda está ou não fora de mim. Contudo, tenho
consciência da minha existência no tempo (portanto, também da faculdade que
esta possui de ser determinável nele) pela minha experiência interna e esta é mais
do que a mera consciência empírica da minha representação; porém, é idêntica à consciência
empírica da minha existência, que só é determinável em relação a algo que
existe fora de mim e está ligado à minha existência. Esta consciência da
minha existência no tempo está, pois, igualmente ligada à consciência de uma relação
a algo exterior a mim; é, pois, experiência e não ficção, sentido e não imaginação,
que liga indissoluvelmente o exterior ao meu sentido interno, pois o sentido externo
é já em si relação da intuição a algo real fora de mim e cuja realidade, à diferença
da imaginação, consiste apenas em estar indissoluvelmente ligado à própria experiência
interna, como à condição dessa possibilidade, o que aqui sucede. Se à consciência
intelectual da minha existência na representação “eu sou”, que acompanha todos
os meus juízos e atos do entendimento, pudesse juntar, ao mesmo tempo, uma determinação
da minha existência pela intuição intelectual, então a consciência de uma
relação a algo existente fora de mim não pertenceria necessariamente a esta determinação.
Ora, essa consciência intelectual precede, sem dúvida, mas a intuição interna, pela
qual somente a minha existência pode ser determinada, é sensível e ligada à condição
do tempo; e esta determinação, e por conseguinte também a própria experiência interna,
depende de algo de permanente, que não está em mim e que, portanto, só pode ser
exterior a mim e com o qual tenho de me considerar relacionado. Assim, a realidade
do sentido externo está necessariamente ligada à realidade do sentido interno para
possibilitar a experiência em geral, quer dizer, tenho tão segura consciência de
que há coisas exteriores a mim, que se relacionam com o meu sentido, como tenho
a consciência de que eu próprio existo no tempo. Porém, quanto a saber a que intuições
dadas correspondem objetos fora de mim e que, por consequência, pertencem ao sentido
externo, ao qual devem ser atribuídos e não à imaginação, é o que terá de decidir-se
em cada caso particular, de acordo com as regras segundo as quais a experiência
em geral (mesmo a interna) se distingue da imaginação, tendo sempre como fundamento
o princípio de que há realmente experiência externa. Podemos a este propósito acrescentar
ainda a seguinte observação: a representação de algo permanente na existência
não é idêntica à representação permanente, porque esta pode ser muito variável
e mutável, como todas as nossas representações, mesmo as representações da matéria,
e contudo refere-se a algo de permanente, que tem de ser uma coisa distinta de todas
as minhas representações e exterior a mim, cuja existência está incluída necessariamente
na determinação da minha própria existência, constituindo com ela uma única
experiência, que nem sequer poderia realizar-se internamente se não fosse (em parte)
simultaneamente exterior. Quanto ao como, também não podemos explicar neste lugar
como pensamos em geral o que subsiste no tempo e cuja simultaneidade com o variável
produz o conceito de mudança.”
“Qualquer exposição filosófica está sujeita a
ter pontos fracos (pois não pode ter armadura tão resistente como a da exposição
matemática), sem que, todavia, a estrutura do sistema, considerada na sua unidade,
corra perigo.”
“Em primeiro lugar, se encontrarmos uma
proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença
de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de
nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então
é absolutamente a priori. Em segundo lugar, a experiência não concede
nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade
suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria
dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções
a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade,
quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado
da experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica
é, assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade
dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na seguinte proposição: todos
os corpos são pesados. Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente,
uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do conhecimento,
a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa
universalidade são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são
inseparáveis uma da outra.”
“A experiência é, sem dúvida, o primeiro produto
que o nosso entendimento obtém ao elaborar a matéria bruta das sensações. Precisamente
por isso é o primeiro ensinamento e este revela-se de tal forma inesgotável no seu
desenvolvimento, que a cadeia das gerações futuras nunca terá falta de conhecimentos
novos a adquirir neste terreno. Porém, nem de longe é o único campo a que se limita
o nosso entendimento. É certo, que a experiência nos diz o que é, mas não o que
deve ser, de maneira necessária, deste modo e não de outro. Por isso mesmo não nos
dá nenhuma verdadeira universalidade e a razão, tão ávida de conhecimentos desta
espécie, vê-se mais excitada por ela do que satisfeita. Ora, semelhantes conhecimentos
universais, que ao mesmo tempo apresentam o carácter de necessidade interna, devem,
independentemente da experiência, ser claros e certos por si mesmos. Por esse motivo
se intitulam conhecimentos a priori; enquanto tudo aquilo que, pelo contrário,
é extraído simplesmente da experiência, é conhecido, como se diz, apenas a posteriori
ou empiricamente.
Agora se vê, o que é muito importante, que mesmo
às nossas experiências se misturam conhecimentos que devem ter uma origem a priori
e que talvez apenas sirvam para fornecer uma ligação às nossas representações
sensíveis. Com efeito, se dessas experiências retirarmos tudo o que pertence aos
sentidos, ainda ficam certos conceitos primitivos e os juízos deles derivados, conceitos
e juízos que devem ser formados inteiramente a priori, isto é, independentemente
da experiência, pois que, graças a eles, acerca dos objetos que aparecem aos nossos
sentidos se pode dizer ou pelo menos se julga poder dizer mais do que ensinaria
a simples experiência e essas afirmações implicam uma verdadeira universalidade
e uma rigorosa necessidade, que o conhecimento empírico não pode proporcionar.”
“1. O tempo não é um conceito empírico que derive
de uma experiência qualquer. Porque nem a simultaneidade nem a sucessão surgiriam
na percepção se a representação do tempo não fosse o seu fundamento a priori.
Só pressupondo-a podemos representar-nos que uma coisa existe num só e mesmo
tempo (simultaneamente), ou em tempos diferentes (sucessivamente).
2. O tempo é uma representação necessária que
constitui o fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo
em relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os fenômenos
do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível toda a
realidade dos fenômenos. De todos estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto
a condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido.
3. Sobre esta necessidade a priori assenta
também a possibilidade de princípios apodíticos das relações do tempo ou de axiomas
do tempo em geral. O tempo tem apenas uma dimensão; tempos diferentes não são simultâneos,
mas sucessivos (tal como espaços diferentes não são sucessivos, mas simultâneos).
Estes princípios não podem ser extraídos da experiência, porque esta não lhes concederia
nem rigorosa universalidade nem certeza apodítica. Poderíamos apenas dizer: assim
nos ensina a percepção comum, e não: assim tem que ser. Estes princípios valem,
por conseguinte, como regras, as únicas que em geral possibilitam as experiências
e, como tal, nos instruem antes de tais experiências, não mediante estas.
4. O tempo não é um conceito discursivo ou, como
se diz, um conceito universal, mas uma forma pura da intuição sensível. Tempos diferentes
são unicamente partes de um mesmo tempo. Ora, a representação que só pode dar-se
através de um único objeto é uma intuição. E também não se poderia derivar de um
conceito universal a proposição, segundo a qual, tempos diferentes não podem ser
simultâneos. Esta proposição é sintética e não pode ser unicamente proveniente de
conceitos. Está, portanto, imediatamente contida na intuição e na representação
do tempo.”
“Se abstrairmos do nosso modo de nos intuirmos
internamente a nós próprios e de, mediante tal intuição, abarcarmos também todas
as intuições externas na nossa faculdade de representação, e se, por conseguinte,
considerarmos os objetos como podem ser em si mesmos, então o tempo não é nada.
Tem apenas validade objetiva em relação aos fenômenos, porque estes já são coisas
que admitimos como objetos dos nossos sentidos; mas perde essa realidade
objetiva se abstrairmos da sensibilidade da nossa intuição, por conseguinte do modo
de representação que nos é peculiar e falarmos de coisas em geral. O tempo
é, pois, simplesmente, uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (porque
é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados pelos objetos) e não
é nada em si, fora do sujeito. Contudo, não é menos necessariamente objetivo em
relação a todos os fenômenos e, portanto, a todas as coisas que se possam apresentar
a nós na experiência. Não podemos dizer que todas as coisas estão no tempo, porque
se faz abstração, no conceito de coisas em geral, de todo o modo de intuição das
mesmas e porque a intuição é, propriamente, a condição própria pela qual o tempo
pertence à representação dos objetos. Mas, se a condição for acrescentada ao conceito
e dissermos: todas as coisas, enquanto fenômenos (objetos da intuição sensível),
estão no tempo, o princípio adquire a conveniente validade objetiva e universalidade
a priori.
As nossas afirmações ensinam, pois, a realidade
empírica do tempo, isto é, a sua validade objetiva em relação a todos os objetos
que possam apresentar-se aos nossos sentidos. E, como a nossa intuição é sempre
sensível, nunca na experiência nos pode ser dado um objeto que não se encontre submetido
à condição do tempo. Contrariamente, impugnamos qualquer pretensão do tempo a uma
realidade absoluta, como se esse tempo, sem atender à forma da nossa intuição sensível,
pertencesse pura e simplesmente às coisas, como sua condição ou propriedade. Tais
propriedades, que pertencem às coisas em si, nunca nos podem ser dadas através dos
sentidos. Nisto consiste pois a idealidade transcendental do tempo, segundo
a qual o tempo nada é, se abstrairmos das condições subjetivas da intuição sensível
e não pode ser atribuído aos objetos em si (independentemente da sua relação com
a nossa intuição), nem a título de substância nem de acidente.
Esta idealidade, porém, tal como a do espaço, não se deve comparar com as sub-repções
das sensações, porquanto nestas se pressupõe que o próprio fenômeno, a que são inerentes
esses predicados, tem realidade objetiva, que aqui falta totalmente a não ser enquanto
meramente empírica, isto é, enquanto considera o objeto como simples fenômeno.
O tempo é, sem dúvida, algo real, a saber, a forma
real da intuição interna; tem pois realidade subjetiva, relativamente à experiência
interna, isto é, tenho realmente a representação do tempo e das minhas determinações
nele. Não deve ser, portanto, encarado realmente como objeto, mas apenas como modo
de representação de mim mesmo como objeto. Todavia, se pudesse intuir-me a mim mesmo
ou se um outro ser me pudesse intuir, sem esta condição da sensibilidade, as mesmas
determinações que agora nós representamos como mudanças, proporcionariam um conhecimento,
no qual de modo algum interviria a representação do tempo e, portanto, a de mudança.
Subsiste, pois, a realidade empírica do tempo como condição de todas as nossas experiências.
Só a realidade absoluta lhe não pode ser concedida, como acima referimos. É apenas
a forma da nossa intuição interna*. Se lhe retirarmos a condição particular da nossa
sensibilidade, desaparece também o conceito de tempo; o tempo, pois, não é inerente
aos próprios objetos, mas unicamente ao sujeito que os intui.”
*: É certo que posso dizer: as minhas representações
sucedem-se umas às outras; mas isto significa que temos consciência delas como uma
sucessão temporal, ou seja, segundo a forma do sentido interno. O tempo nem por
isso é algo em si próprio ou qualquer determinação inerente às coisas.
“Será necessário, antes de mais, explicarmo-nos
tão claramente quanto possível acerca da nossa opinião a respeito da constituição
do conhecimento sensível em geral, a fim de prevenir qualquer interpretação errônea
sobre este assunto.
Quisemos, pois, dizer, que toda a nossa intuição
nada mais é do que a representação do fenômeno; que as coisas que intuímos não são
em si mesmas tal como as intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas
como nos aparecem; e que, se fizermos abstração do nosso sujeito ou mesmo apenas
da constituição subjetiva dos sentidos em geral, toda a maneira de ser, todas as
relações dos objetos no espaço e no tempo e ainda o espaço e o tempo desapareceriam;
pois, como fenômenos, não podem existir em si, mas unicamente em nós. É-nos completamente
desconhecida a natureza dos objetos em si mesmos e independentemente de toda esta
receptividade da nossa sensibilidade. Conhecemos somente o nosso modo de os perceber,
modo que nos é peculiar, mas pode muito bem não ser necessariamente o de todos os
seres, embora seja o de todos os homens. É deste modo apenas que nos temos de ocupar.
O espaço e o tempo são as formas puras desse modo de perceber; a sensação em geral
a sua matéria. Aquelas formas, só podemos conhecê-las a priori, isto é, antes
de qualquer percepção real e, por isso, se denominam intuições puras; a sensação,
pelo contrário, é aquilo que, no nosso conhecimento, faz com que este se chame conhecimento
a posteriori, ou seja, intuição empírica. As formas referidas são absoluta
e necessariamente inerentes à nossa sensibilidade, seja qual for a espécie das nossas
sensações, que podem ser muito diversas. Mesmo que pudéssemos elevar esta nossa
intuição ao mais alto grau de clareza, nem por isso nos aproximaríamos mais da natureza
dos objetos em si. Porque, de qualquer modo, só conheceríamos perfeitamente o nosso
modo de intuição, ou seja, a nossa sensibilidade, e esta sempre submetida às condições
do espaço e do tempo, originariamente inerentes ao sujeito; nem o mais claro conhecimento
dos fenômenos, único que nos é dado, nos proporcionaria o conhecimento do que os
objetos podem ser em si mesmos.”
“Para confirmação desta teoria da idealidade do
sentido externo, bem como do interno, por conseguinte, de todos os objetos dos sentidos,
enquanto simples fenômenos, pode ser particularmente útil a observação seguinte:
tudo o que no nosso conhecimento pertence à intuição (com exceção do sentimento
de prazer ou desprazer e a vontade, que não são conhecimentos) contém apenas simples
relações; relações de lugares numa intuição (extensão), relações de mudança de lugar
(movimento) e leis pelas quais esta mudança é determinada (forças motrizes). O que,
porém, está presente no lugar ou age nas próprias coisas, fora da mudança de lugar,
não nos é dado pela intuição. Ora, simples relações não fazem conhecer uma coisa
em si; eis porque bem se pode avaliar que, se o sentido externo nos dá apenas representações
de relações, só poderá conter, na sua representação, a relação de um objeto com
o sujeito e não o interior do objeto, o que ele é em si. O mesmo se passa com a
intuição interna. Não só nela as representações dos sentidos externos constituem
a verdadeira matéria de que enriquecemos o nosso espírito, mas o tempo, em que colocamos
essas representações, e que precede a consciência que temos delas na experiência
é, enquanto condição formal, o fundamento da maneira como as dispomos no espírito;
o tempo, portanto, contém já relações de sucessão, de simultaneidade e do que é
simultâneo com o sucessivo (o permanente). Ora, aquilo que, enquanto representação,
pode preceder qualquer ato de pensar algo, é a intuição e, se esta contiver apenas
relações, é a forma da intuição; e esta forma da intuição, como nada representa
senão na medida em que qualquer coisa é posta no espírito, só pode ser a maneira
pela qual o espírito é afetado pela sua própria atividade, a saber, por esta posição
da sua representação, por consequência, por ele mesmo, isto é, um sentido interno
considerado na sua forma. Tudo o que é representado por um sentido é sempre, nesta
medida, um fenômeno; e, portanto, ou não se deveria admitir um sentido interno,
ou então o sujeito, que é o seu objeto, só poderia ser representado por seu intermédio
como fenômeno e não como ele se julgaria a si mesmo se a sua intuição fosse simples
espontaneidade, quer dizer, intuição intelectual. Toda a dificuldade consiste aqui
em saber como se pode um sujeito intuir a si mesmo interiormente; mas esta dificuldade
é comum a toda a teoria. A consciência de si mesmo (a apercepção) é a representação
simples do eu e se, por ela só, nos fosse dada, espontaneamente, todo o diverso
que se encontra no sujeito, a intuição interna seria então intelectual. No homem,
esta consciência exige uma percepção interna do diverso, que é previamente dado
no sujeito, e a maneira como é dado no espírito, sem espontaneidade, deve, em virtude
dessa diferença, chamar-se sensibilidade. Se a faculdade de ter consciência de si
mesmo deve descobrir (apreender) o que está no espírito, é preciso que este seja
afetado por ela e só assim podemos ter uma intuição de nós próprios; a forma desta
intuição, porém, previamente subjacente ao espírito, determina na representação
do tempo a maneira como o diverso está reunido no espírito. Este, com efeito, intui-se
a si próprio, não como se representaria imediatamente e em virtude da sua espontaneidade,
mas segundo a maneira pela qual é afetado interior mente; por conseguinte, tal como
aparece a si mesmo e não tal como é.
Efetivamente, no fenômeno, os objetos, e mesmo
as propriedades que lhes atribuímos, são sempre considerados algo realmente dado;
na medida, porém, em que esta propriedade apenas depende do modo de intuição do
sujeito na sua relação ao objeto dado, distingue-se este objeto, enquanto fenômeno,
do que é enquanto objeto em si.”
“O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais
do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade
das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objeto mediante estas
representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira é-nos dado um
objeto; pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como
simples determinação do espírito). Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos
de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição que de
qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar um conhecimento.
Ambos estes elementos são puros ou empíricos. Empíricos, quando a sensação
(que pressupõe a presença real do objeto) está neles contida; puros, quando
nenhuma sensação se mistura à representação. A sensação pode chamar-se matéria do
conhecimento sensível. Daí que a intuição pura contenha unicamente a forma sob a
qual algo é intuído e o conceito puro somente a forma do pensamento de um objeto
em geral. Apenas as intuições ou os conceitos puros são possíveis a priori,
os empíricos só a posteriori.
Se chamarmos sensibilidade à receptividade
do nosso espírito em receber representações na medida em que de algum modo é
afetado, o entendimento é, em contrapartida, a capacidade de produzir representações
ou a espontaneidade do conhecimento. Pelas condições da nossa natureza a
intuição nunca pode ser senão sensível, isto é, contém apenas a maneira pela
qual somos afetados pelos objetos, ao passo que o entendimento é a capacidade de
pensar o objeto da intuição sensível. Nenhuma destas qualidades tem primazia
sobre a outra. Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento,
nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos
são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes
o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las
aos conceitos). Estas duas capacidades ou faculdades não podem permutar as suas
funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela
sua reunião se obtém conhecimento. Nem por isso se deverá confundir a sua participação;
pelo contrário, há sobejo motivo para os separar e distinguir cuidadosamente um
do outro. Eis porque distinguimos a ciência das regras da sensibilidade em geral,
que é a estética, da ciência das regras do entendimento, que é a lógica.”
“O entendimento, falando em geral, é a faculdade
dos conhecimentos. Estes consistem na relação determinada de representações
dadas a um objeto. O objeto, porém, é aquilo em cujo conceito está reunido
o diverso de uma intuição dada. Mas toda a reunião das representações exige
a unidade da consciência na respectiva síntese. Por consequência, a unidade de consciência
é o que por si só constitui a relação das representações a um objeto, a sua validade
objetiva portanto, aquilo que as converte em conhecimentos, e sobre ela assenta,
consequentemente, a própria possibilidade do entendimento.”
“Há apenas uma experiência, onde todas
as percepções são representadas num encadeamento completo e conforme a leis, da
mesma maneira que apenas há um espaço e um tempo em que têm lugar
todas as formas do fenômeno e todas as relações do ser e do não-ser. Quando se fala
de experiências diferentes, trata-se apenas de outras tantas percepções, que pertencem
a uma única e mesma experiência. A unidade completa e sintética das percepções exprime,
com efeito, precisamente a forma da experiência e não é outra coisa que a unidade
sintética dos fenômenos segundo conceitos.”
“As categorias só servem para o conhecimento das
coisas, na medida em que estas são consideradas como objeto de experiência possível.
(...)
Não podemos pensar nenhum objeto que não
seja por meio de categorias; não podemos conhecer nenhum objeto pensado
a não ser por intuições correspondentes a esses conceitos. Ora, todas as nossas
intuições são sensíveis, e esse conhecimento é empírico na medida em que o seu objeto
é dado. O conhecimento empírico, porém, é a experiência. Consequentemente, nenhum
conhecimento a priori nos é possível, a não ser o de objetos de uma experiência
possível.
Mas este conhecimento, restrito apenas a objetos
da experiência, nem por isso é todo ele devido à experiência; tanto no que se refere
às intuições puras como aos conceitos puros do entendimento, trata-se de elementos
de conhecimento que se encontram em nós a priori. Mas há só duas vias pelas
quais pode ser pensada a necessária concordância da experiência com os conceitos
dos seus objetos: ou é a experiência que possibilita esses conceitos ou são esses
conceitos que possibilitam a experiência. O primeiro caso não se verifica em relação
às categorias (nem mesmo em relação à intuição sensível pura), porque as categorias
são conceitos a priori, portanto, independentes da experiência (a afirmação
de uma origem empírica seria uma espécie de generatio aequivoca). Resta-nos,
por conseguinte, apenas o segundo caso (por assim dizer um sistema de epigênese
da razão pura), ou seja, que as categorias contêm, do lado do entendimento,
os princípios da possibilidade de toda a experiência em geral.”
“Se os objetos, com que o nosso conhecimento tem
que ver, fossem coisas em si, não poderíamos ter deles nenhuns conceitos a priori.
Donde, com efeito, os deveríamos extrair? Se os extrairmos do objeto (sem mesmo
investigar aqui como este nos pode ser conhecido), seriam os nossos conceitos simplesmente
empíricos e não seriam conceitos a priori. Se os tirarmos de nós próprios,
aquilo que está simplesmente em nós não pode determinar a natureza de um objeto
distinto das nossas representações, isto é, não pode ser um princípio, pelo qual,
em vez de todas as nossas representações serem vazias, nelas deva existir uma coisa
à qual convém o que temos no pensamento. Pelo contrário, se não tivermos que nos
ocupar em parte alguma a não ser com fenômenos, não é somente possível, mas também
necessário, que certos conceitos a priori precedam o conhecimento empírico
dos objetos. Na verdade, como fenômenos, constituem um objeto que está simplesmente
em nós, pois uma simples modificação da nossa sensibilidade não se encontra fora
de nós. Ora, esta representação mesma exprime que todos estes fenômenos, portanto
todos os objetos com os quais nos podemos ocupar, estão todos em mim, isto é, são
determinações do meu eu idêntico; esta representação exprime, como necessária, uma
unidade completa dessas determinações numa só e mesma apercepção. Porém, é nesta
unidade da consciência possível que consiste, também, a forma de todo o conhecimento
dos objetos (pelo qual o diverso é pensado como pertencente a um objeto). O modo,
pois, como o diverso da representação sensível (intuição) pertence a uma consciência,
precede todo o conhecimento do objeto, como forma intelectual deste e ele próprio
constitui um conhecimento formal a priori de todos os objetos em geral, na
medida em que são pensados (categorias). A síntese desses objetos pela imaginação
pura, a unidade de todas as representações em relação à apercepção originária precedem
todo o conhecimento empírico. Os conceitos puros do entendimento são possíveis a
priori e, mesmo em relação à experiência, necessários, porque o nosso conhecimento
não trata com outra coisa que não sejam fenômenos, cuja possibilidade reside em
nós próprios, cuja ligação e unidade (na representação de um objeto) se encontram
simplesmente em nós, por conseguinte, devem preceder toda a experiência e, antes
de tudo, torná-la possível quanto à forma. E a partir deste princípio, entre todos
o único possível, é que foi conduzida a nossa dedução das categorias.”
Um comentário:
No livro segundo, “Dos raciocínios dialécticos da razão pura”, em seu capítulo III “O ideal da razão pura”, existem cinco seções particularmente interessantes, respectivamente:
3 - Dos argumentos da razão especulativa em favor da existência de um ser supremo / Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa
4 - Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus
5 - Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus
6 - Da impossibilidade da prova físico-teológica
7 - Crítica de toda a teologia fundada em princípios especulativos da razão
Infelizmente tais trechos não poderão ser citados por conta do tamanho, mas fica aqui o registro de sua particular importância.
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