segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Sociedade Feudal (Parte I), de Marc Bloch

Editora: Edipro

Opinião: ★★★★☆

Tradução e prefácio: Laurent de Saes

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ISBN: 978-85-7283-957-0

Páginas: 464

Sinopse: Nesta obra pioneira e monumental, Marc Bloch — um dos mais renomados historiadores do século XX — extrapola os limites alcançados pelos estudos medievalistas e desvenda o que está além das instituições e dos poderes político, jurídico e religioso:

·        o feudalismo como força viva;

·        o homem, a partir de seu modo de viver e de pensar;

·        os principais traços da civilização europeia entre a metade do século IX e o início do século XIII.

Adotando um enfoque interdisciplinar, o autor supera os limites das abordagens restritas ao estudo técnico e cumpre seu objetivo de decompor a estrutura da sociedade feudal — desde as origens e a natureza do feudo, passando pelas relações familiares e as relações de dependência, seus rituais, hábitos e costumes sociais — e desnudar o percurso que conduziu as sociedades feudais ao que viriam a se tornar os Estados-nação.

Bloch significou um verdadeiro tour de force para a escrita histórica. Nesta obra, expressa com clareza o teor de sua contribuição para a história medieval, a variedade de fontes empregada em seus estudos e o rigor de sua análise.

Modelo que permanece ainda hoje amplamente utilizado por historiadores e pesquisadores das novas gerações.



“No entanto, o próprio Norte ia-se cristianizando pouco a pouco. É uma civilização que, lentamente, aceita uma outra fé: o historiador não conhece nenhum fenômeno que se preste a observações mais apaixonantes, especialmente quando, como é o caso, as fontes, apesar das lacunas irremediáveis, permitem seguir-lhe as vicissitudes bastante de perto para que tal constitua uma experiência natural, capaz de explicar outros movimentos do mesmo tipo. Mas um estudo minucioso ultrapassaria o âmbito deste livro. Alguns pontos de referência devem ser suficientes.

Não seria exato dizer-se que o paganismo nórdico não opôs uma séria resistência, pois foram precisos três séculos para o abater. Todavia, distinguem-se algumas das razões internas que facilitaram a derrota final. A Escandinávia não opunha qualquer grupo análogo ao clero, fortemente organizado, dos povos cristãos. Os chefes de grupos consanguíneos ou de povos eram os únicos padres. Sem dúvida os reis, especialmente, podiam recear, se perdessem os seus direitos à prática dos sacrifícios, arruinar, por isso, um elemento essencial da sua grandeza. Mas, como veremos mais tarde, o cristianismo não os obrigava a renunciar a toda a sua dignidade sagrada. Quanto aos chefes de famílias ou de tribos, podemos crer que as mudanças profundas da estrutura social, correlativas simultaneamente às migrações e à formação dos Estados, vibraram um rude golpe no seu prestígio sacerdotal. À antiga religião não faltava apenas a estrutura de uma Igreja; parece que, ao tempo da conversão, ela apresentaria, em si própria, os sintomas de uma espécie de decomposição espontânea. Os textos escandinavos referem bastantes vezes verdadeiros descrentes. Com a continuação, este cepticismo grosseiro levaria menos à ausência, quase inconcebível, de qualquer fé, do que à adopção de uma nova fé. Finalmente, o próprio politeísmo abria um caminho adequado à mudança de obediência. Os espíritos que ignoram toda e qualquer crítica do testemunho, não são nada propensos a negar o sobrenatural, venha donde vier. Quando os cristãos se recusavam a rezar aos deuses dos diversos paganismos, geralmente, não era por lhe negarem a existência; eles consideravam-nos como demônios, perigosos, sim, mas, no entanto, mais fracos do que o único Criador. Do mesmo modo, numerosos textos no-lo comprovam, quando os Normandos aprenderam a conhecer Cristo e os seus santos, rapidamente se habituaram a tratá-los como divindades estrangeiras, as quais, com o auxílio das próprias divindades, podiam ser combatidas e escarnecidas, mas cujo obscuro poder era demasiado temível para que a sensatez, noutras circunstâncias, não fosse propiciá-las e respeitar a misteriosa magia do seu culto. Não é certo que, em 860, um viking, doente, fez uma promessa a São Riquier? Pouco mais tarde, um chefe islandês, sinceramente convertido ao cristianismo, não deixava por isso de invocar Thor, nas situações mais difíceis28. Do reconhecimento do Deus dos cristãos como sendo uma força temível a aceitá-lo como Deus único, a distância era constituída por etapas quase insensíveis.

Entrecortada por tréguas e conversações, as expedições de saque só por si exerciam a sua ação. Mais do que um marinheiro do Norte, no regresso das suas lides guerreiras trazia para o lar a nova religião, como se fosse mais um despojo. Os dois grandes soberanos que converteram a Noruega, Olavo, filho de Trygvi, e Olavo, filho de Haraldo, tinham ambos recebido o baptismo — o primeiro, ministrado em solo inglês, em 994, em terras de França, em 1014, o segundo — no tempo em que, ainda sem reinos, comandavam hostes de Vikings. Estas passagens para a lei de Cristo multiplicavam-se, à medida que, ao longo do caminho, os aventureiros vindos de além-mar vinham encontrar um número cada vez maior de compatriotas estabelecidos de modo permanente em terras anteriormente cristãs e, na sua maioria, conquistados pelas crenças das populações dominadas ou vizinhas. Por sua vez, as relações comerciais, anteriores aos grandes empreendimentos guerreiros e que estes não lograram interromper, favoreciam as conversões. Na Suécia, a maior parte dos primeiros cristãos foram mercadores, que haviam frequentado o porto de Durstede, ao tempo o nó principal das comunicações entre o Império franco e os mares setentrionais. Uma velha crônica gotlandesa diz dos habitantes da ilha: “Eles viajavam com as suas mercadorias por toda a região...; entre os cristãos, viram os hábitos cristãos; alguns batizaram-se e levaram padres com eles.” Na verdade, as comunidades mais antigas de que encontramos vestígios formaram-se em povoados de comércio: Birka, junto do lago Mälar, Ripen e Schleswig nas duas extremidades do caminho que, de um mar até outro, atravessava a istmo da Jutlândia. Na Noruega, nos começos do século XI, segundo a penetrante observação do historiador islandês Snorri Sturluson, “a maioria dos homens que habitavam ao longo das costas tinha recebido o baptismo, enquanto que nos vales do interior e nas extensões montanhosas, o povo se conservava absolutamente pagão”29. Durante muito tempo, estes contatos entre os homens, ao acaso das migrações temporárias, para a fé estrangeira dos agentes de propagação, foram singularmente mais eficazes do que as missões dirigidas pela Igreja.”

28 MABILLON, AA. SS. ord. S. Bened., saec. II, ed. de 1733, t. II, p. 214 - Landnamabók, III, 14, 3.

29 Saga d’Olaf le Saint, c. LX, cf. tradução SAUTREAU, 1930, p. 56.

 

 

Teria sido a sua conversão que persuadiu os Escandinavos à renúncia dos seus hábitos de pilhagem e de migrações longínquas? Conceber as deslocações dos Vikings como uma guerra de religião desencadeada pelo fervor de um implacável fanatismo pagão é uma explicação que, tendo sido pelo menos esboçada, por vezes, contraria demasiado o que sabemos a propósito de almas propícias a respeitar todas as magias. Pelo contrário, podemos acreditar nos efeitos de uma profunda mudança de mentalidade, sob a ação da mudança de crença? Decerto que a história das navegações e das invasões normandas seria incompreensível sem este apaixonado amor à guerra e à aventura que, na vida moral do Norte coexistia com a prática de artes mais calmas. Os mesmos homens que frequentavam os mercados da Europa, como hábeis comerciantes, desde Constantinopla até às portas do delta do Reno, ou que, sob a inclemência do gelo, desbravaram as solidões da Islândia, não conheciam maior prazer nem fonte mais digna para alcançar a fama do que “o tinir do ferro” e o “entrechocar dos escudos”: são testemunho disso os muitos poemas e narrações escritos somente no século XII, mas nos quais ressoa ainda o eco fiel da idade dos Vikings; são testemunhos, também, as estelas, pedras funerárias ou simples cenotáfios que, sobre as colinas da terra escandinava ao longo dos caminhos ou junto dos lugares de reunião, erguem ainda hoje as suas runas, gravadas a vermelho vivo sobre a pedra cinzenta. Na sua maior parte, não celebram, como acontece com grande número de túmulos gregos ou romanos, os mortos pacificamente adormecidos na terra natal; o feito que elas relembram é, quase exclusivamente, o dos heróis feridos no decurso de alguma expedição sangrenta. Não é menos evidente que esta tonalidade de sentimento pode parecer incompatível com a lei de Cristo, entendida como ensinamento de mansidão e de misericórdia. Mas, como teremos mais adiante ocasião de constatar, entre os povos ocidentais, durante a época feudal, a fé mais ardente nos mistérios do cristianismo associou-se, sem dificuldades aparentes, ao gosto pela violência e ao saque e até mesmo com a mais consciente exaltação da guerra.

Seguramente que os Escandinavos comungaram daí para o futuro com os outros membros católicos no mesmo credo, alimentaram-se das mesmas lendas piedosas, seguiram as mesmas rotas de peregrinação, leram, ou ouviram ler, por muito fraco que fosse o seu desejo de se instruírem, os mesmos livros nos quais se refletia, mais ou menos deformada, a tradição romano-helênica. No entanto, a unidade profunda da civilização ocidental também nunca impediu as guerras intestinas. Quando muito, admitir-se-á que a ideia de um único Deus, omnipotente, aliada às concepções novas do outro mundo, tenha desferido, com o tempo, um rude golpe a esta mística do destino e da glória, tão característica da velha poesia do Norte e na qual mais do que um Viking, sem dúvida, bebeu a justificação das suas paixões. Quem poderá julgar que isto era bastante para fazer desaparecer completamente nos chefes o desejo de seguir as pisadas de Rolão e de Svein, ou para os impedir de recrutar os guerreiros necessários para corporizar as suas ambições?

Na verdade, o problema, tal como foi posto atrás, enferma de um enunciado incompleto. Como podemos procurar por que motivo um fenômeno se extinguiu, sem perguntarmos primeiro qual a razão por que se produziu? Neste caso, tal não é mais do que fazer recuar a dificuldade: pois o começo das migrações escandinavas não é, de modo algum, menos obscuro do que as causas da sua suspensão. Não se trata, aliás, de nos demorarmos a perscrutar longamente as razões da atracção que exerciam sobre as sociedades do Norte as terras, geralmente mais férteis e civilizadas há mais tempo, que se estendiam para o sul dos seus territórios. A história das grandes invasões germânicas e dos movimentos de povos que as precederam não fora já a história de uma longa caminhada em direção ao sol? A própria tradição das pilhagens pela via marítima era antiga. Por um notável acordo, Gregório de Tours e o poema do Beowulf trouxeram até nós a lembrança da expedição que, cerca de 520, um rei dos Götar empreendeu nas costas da Frísia; outras tentativas semelhantes escapam-nos apenas certamente por lacunas dos textos. Não é menos verdade que, assaz bruscamente, no final do século VIII, estas longas deslocações atingiram uma amplitude até então desconhecida.

Deveremos então acreditar que o Ocidente, mal defendido, fosse naquele tempo uma presa mais fácil do que o fora no passado? Mas além de esta explicação só poder se aplicar a fatos exatamente paralelos no tempo, tais como o povoamento da Islândia e a fundação dos reinos varegos* junto dos rios da Rússia, cairíamos num paradoxo ao pretender que o Estado merovíngio, durante o seu período de decomposição, fosse mais temido do que a monarquia de Luís o Pio, e até dos seus filhos. É evidente que é no estudo dos próprios países do Norte que devemos procurar a explicação dos seus destinos.

A comparação das naves do século IX com alguns dos outros achados, provenientes de épocas mais distantes, prova que, durante o período imediatamente anterior à época dos Vikings, os marinheiros da Escandinávia tinham aperfeiçoado muito a construção das suas embarcações. Não se duvida de que sem estes progressos técnicos as expedições longínquas através dos oceanos teriam sido impossíveis. Mas seria verdadeiramente pelo prazer de utilizarem barcos melhor construídos que tantos Normandos decidiram ir em busca da aventura para longe da sua terra? Melhor se acreditará que eles se preocuparam com o aperfeiçoamento dos seus utensílios navais justamente para se lançarem mais longe no mar.

Ainda outra explicação foi proposta, desde o século XI, pelo próprio historiador dos Normandos de França, Doon de Saint-Quentin. A causa das migrações, ele via-a apenas no superpovoamento dos países escandinavos, estando a origem deste na prática da poligamia. Deixemos esta última interpretação: independentemente de sabermos que só os chefes mantinham verdadeiros haréns, as observações demográficas nunca provaram — longe disso — que a poligamia seja particularmente favorável ao aumento da população. Até a hipótese do superpovoamento pode parecer suspeita, à primeira vista. Os povos vítimas de invasões quase sempre a mencionam em primeiro lugar, na esperança, bastante ingénua, de justificarem as suas derrotas pelo afluxo prodigioso de inimigos: assim acontece com os povos mediterrânicos, perante os Celtas, com os Romanos perante os Germanos. Aqui, no entanto, esta hipótese merece mais consideração: pois Doon recebera-a, provavelmente, não da tradição dos vencidos, mas da dos vencedores; especialmente por causa de certa verossimilhança intrínseca. Do II ao IV séculos, os movimentos de povos que finalmente provocariam a ruína do Império romano tinham decerto tido como efeito deixar grandes extensões despovoadas, na península escandinava, nas ilhas do Báltico, na Jutlândia. Os grupos que ali se conservaram puderam expandir-se livremente durante vários séculos, mas num dado momento, cerca do século VIII, certamente que o espaço começou a escassear: pelo menos se considerarmos o estado da sua agricultura.

A bem dizer, as primeiras expedições dos Vikings para o Ocidente tiveram menos como objetivo a conquista de locais onde se estabelecessem de modo permanente do que a busca de presas destinadas a serem levadas para casa. Mas esta era uma maneira de fazer face à escassez de terra. Graças aos despojos das civilizações meridionais, o chefe, preocupado com a exiguidade dos seus campos pastagens, podia manter o seu nível de vida e continuar a proporcionar aos seus companheiros as liberalidades necessárias ao seu prestígio. Nas classes mais humildes, a emigração evitava aos filhos mais velhos a mediocridade de uma família muito numerosa. Provavelmente mais do que uma família de camponeses seria semelhante àquela de que temos notícia por intermédio de uma pedra funerária sueca dos começos do século XI: de cinco filhos, o mais velho e o mais novo permaneceram na terra; os três outros morreram longe, um em Bornholm, o segundo na Escócia, o terceiro em Constantinopla30. Finalmente, uma daquelas questões ou “vendettas”, que a estrutura social e os costumes multiplicavam, obrigaria um homem a abandonar o “gaard” ancestral? A crescente escassez dos espaços vazios tornavam-lhe mais difícil do que outrora a busca de uma nova residência, na própria região; sem outra saída, muitas vezes não encontrava outro asilo senão no mar ou nas regiões distantes de que este era o acesso. Por maioria de razões se o inimigo de que fugia era um dos reis cujo ambiente, menos frouxo, lhe permitia alargar, sobre mais vastos territórios, um poder de comando mais eficaz. Com a ajuda do hábito e do êxito, em breve o prazer se juntou à necessidade e a aventura, que de um modo geral se previa frutuosa, tomou-se ao mesmo tempo um modo de vida e uma distração. Tal como acontece com o início das invasões normandas, seu termo não pode ser explicado pela situação dos poderes políticos nos países invadidos. Sem dúvida que a monarquia otoniana era mais capaz de proteger o litoral mais do que a dos últimos Carolíngios e Guilherme, o Bastardo, e os seus sucessores teriam constituído, em Inglaterra, adversários temíveis. No entanto, aconteceu, justamente, que nem uns nem outros tiveram algo a defender, ou pouco tiveram. E dificilmente se acreditará que a França, depois dos meados do século X e a Inglaterra no tempo de Eduardo, o Confessor, parecessem ser presas difíceis. Segundo tudo leva a crer, a própria consolidação das realezas escandinavas depois de, nas suas origens, ter incrementado as migrações, atirando para as rotas do Oceano muitos banidos e decepcionados, acabou finalmente por lhe pôr termo. Daí para a frente, as levas de homens e de navios eram monopolizadas pelos Estados, os quais, inclusivamente, tinham organizado com extremo cuidado a requisição dos barcos. Os reis, por outro lado, não favoreciam as expedições isoladas que alimentavam o espírito de turbulência e proporcionavam aos fora-da-lei e aos conspiradores, refúgios muito fáceis como o descreve a lenda de Santo Olavo – o meio de acumular as riquezas necessárias para realização dos seus sinistros projetos. Contava-se que Svein, quando se tornou dono da Noruega, as havia proibido. Pouco a pouco, os chefes habituaram-se ao ritmo de uma vida mais regular, na qual as ambições procuravam saciar-se na própria mãe-pátria, junto do soberano ou dos seus rivais. Para obterem novas terras, incrementaram desbravamento do interior. Restavam as conquistas monárquicas, como as que fez Knut e a que se abalançou Harald, o do Conselho Firme. Mas os exércitos reais eram máquinas pesadas, difíceis de j pôr em marcha nos Estados de estrutura tão pouco estável. A última tentativa de um rei da Dinamarca sobre a Inglaterra, no tempo de Guilherme, o Bastardo, falhou mesmo antes de a frota ter levantado a âncora, por causa de uma revolução palaciana. Depressa os reis da Noruega limitaram as suas ambições a reforçar ou a estabelecer seu domínio sobre as ilhas do Oeste, da Islândia até às Hébridas; os reis da Dinamarca e da Suécia, contentaram-se com a continuação de longas campanhas contra os seus vizinhos Eslavos, Letões e Finlandeses, as quais eram simultaneamente empreendimentos de represália — pois, em contrapartida, as piratarias destes povos perturbavam constantemente o Báltico — guerras de conquista e cruzadas, não deixando também de muito se assemelharem, por vezes, às expedições que durante tanto tempo as margens do Escalda, do Tamisa ou do Loire tinham suportado.

* Tribo escandinava que, nos finais do século IX, invadiu a Rússia. (N. da T.)

30 NORDENSTRENG, Die Züge der Wikinger, trad. I. MEYN, Leipzig, 1925, p. 19.

 

 

“Da tormenta das últimas invasões, o Ocidente saiu coberto de feridas. As próprias cidades não haviam sido poupadas, pelo menos pelos Escandinavos e, se muitas delas, após a pilhagem ou o abandono, se recompuseram mais ou menos das suas ruínas, esta cisão no curso normal das suas vidas deixou-as enfraquecidas durante muito tempo. Outras foram menos afortunadas: os dois principais portos do Império Carolíngio nos mares setentrionais, Durstede, no delta do Reno, Quentovic, na embocadura do Canche, desceram definitivamente, a primeira, à categoria de uma povoação medíocre e a segunda, à de uma aldeia de pescadores. Ao longo das rotas fluviais, as trocas tinham perdido toda a segurança: em 861, os mercadores parisienses, ao fugirem na sua frota, foram alcançados pelas embarcações normandas e levados como cativos. Os campos, especialmente, sofreram horrorosamente, ao ponto de ficarem por vezes reduzidos à condição de verdadeiros desertos. Na região de Toulon, depois da expulsão dos bandidos de Freinet, o solo teve que ser desbravado de novo; como os antigos limites das propriedades haviam desaparecido, segundo um documento, cada um “se apoderava da terra conforme podia”31. Na Touraine, tantas vezes percorrida pelos Vikings, um documento escrito, de 14 de setembro de 900, põe em cena um pequeno domínio em Vontes, no vale do Indre e uma aldeia inteira, em Martigny, no Loire. Em Vontes, cinco homens de condição servil “podiam usufruir da terra, se houvesse paz”. Em Martigny, os tributos são cuidadosamente enumerados. Mas, com referência ao passado, porque se ainda são mencionadas dezessete unidades de tenência elas já nada produzem. Dezesseis chefes de família apenas vivem nesta gleba empobrecida: um a menos, portanto, do que as unidades, enquanto que, normalmente, cada uma das partes destas poderia ser ocupada por duas ou três famílias. Dos homens, muitos “não têm mulher nem filhos”. E o mesmo trágico estribilho se faz ouvir. “Esta gente poderia usufruir da terra, se houvesse paz”32. Aliás, nem todas as devastações eram obra dos invasores. Pois, para vencer o inimigo, muitas vezes era necessário reduzi-lo à fome. Em 894, como um bando de Vikings tivesse sido obrigado a refugiar-se na velha fortaleza de. Chester, a hoste inglesa, segundo a crônica, “retirou todo o gado existente em redor do lugar, queimou as colheitas e pôs os cavalos a pastar nas cercanias”.

Evidentemente que os camponeses, mais do que qualquer outra classe, eram empurrados para o desespero, de tal modo que, por várias vezes, temos notícias deles, entre o Sena e o Loire e junto do Mosela, reunindo-se sob juramento e, num esforço de energia enorme, correndo atrás dos saqueadores. As suas hostes, mal organizadas, deixaram-se sempre massacrar33. Mas eles não eram os únicos a sofrer duramente com a destruição dos campos. As cidades, mesmo quando as suas muralhas resistiam, sofriam a fome. Os senhores, que retiravam os seus proveitos da terra, ficavam empobrecidos. Especialmente os domínios da Igreja viviam com dificuldades. Daqui resultou — como aconteceria mais tarde, depois da Guerra dos Cem Anos — uma profunda decadência das ordens religiosas e, como consequência, da vida intelectual. A Inglaterra, principalmente, foi atingida. No prefácio da Regra Pastoral de Gregório Magno, por ele mandada traduzir, o rei Alfredo evoca dolorosamente “o tempo em que, antes que tudo fosse devastado, ou queimado, as igrejas inglesas estavam recheadas de tesouros e de livros”34. Na verdade, foi o dobre de finados desta cultura eclesiástica anglo-saxônica cujo esplendor se havia expandido outrora pela Europa. Mas sem dúvida que o efeito mais duradoiro, por toda a parte, se resumiu num terrível desperdício de forças. Quando foi restabelecida uma relativa segurança, os próprios homens, reduzidos em número, encontraram-se diante de vastas extensões, outrora cultivadas, que haviam sido cobertas de novo pelo mato. A conquista do solo virgem, ainda tão abundante, foi retardada por isso mais de um século.

Mas estas devastações materiais não eram tudo: seria preciso poder igualmente avaliar o choque mental. Este foi tanto mais profundo quanto a tempestade, especialmente no Império Franco, sucedia a uma relativa calma. É verdade que a paz carolíngia não era muito antiga e a bem dizer nunca havia sido completa. Mas a memória dos homens é curta e a sua capacidade de ilusões é insondável. Isto é testemunhado pela história das fortificações de Reims, que aliás se repetiu, com algumas variantes, em mais do que uma cidade35. No reinado de Luís, o Pio, o arcebispo tinha solicitado ao imperador autorização para retirar as pedras da antiga muralha romana, para as utilizar na reconstrução da sua catedral. O monarca que, segundo diz Flodoardo, “desfrutava então de uma profunda paz e, orgulhoso do ilustre poderio do seu império, não receava qualquer invasão de bárbaros”, deu o seu consentimento. Ainda não eram decorridos cinquenta anos quando, tendo investido os “bárbaros” de novo, foi preciso construir novas muralhas a toda a pressa. Os muros e paliçadas que pela Europa de então começaram a erguer-se foram como que o símbolo visível de uma grande angústia. Naquele tempo, a pilhagem tinha-se tornado um acontecimento familiar que as pessoas prudentes previam nos seus contratos. Tal como naquele arrendamento rural dos arredores de Lucques que, em 876, estipulava a suspensão do aluguer “se a nação pagã queimasse ou devastasse as casas e o seu recheio ou o moinho”36; ou ainda, dezoito anos antes, o testamento de um rei de Wessex: as esmolas que os seus bens assegurarão serão pagas apenas se a terra assim onerada “continuar povoada de homens e de gado e não for transformada em deserto”37. Diferentes na sua aplicação, semelhantes no sentido, são as preces cheias de temor que alguns livros litúrgicos conservaram, equivalentes, de uma ponta à outra do Ocidente. Na Provença: “Trindade eterna... livra o teu povo cristão da opressão dos pagãos” (aqui, decerto, trata-se dos Sarracenos). Na Gália do Norte: “da feroz nação normanda, que devasta os nossos reinos, livrai-nos, ó Deus”. Em Modena, onde era invocado São Gemignano: “contra as flechas dos Húngaros, sede o nosso protetor”38. Tentemos, por momentos, imaginar o estado de espírito dos fiéis que, todos os dias, se associavam a estas preces. Não é impunemente que uma sociedade vive em estado de perpétuo alerta. É certo que as incursões árabes, húngaras ou escandinavas não detêm toda a responsabilidade da apreensão que pesava sobre os espíritos, mas cabia-lhes uma larga parte dela.”

31 Cartulaire de l’abbaye de Saint-Victor de Marseille, ed. Guérard, n.º LXXVII.

32 Bibl. Nat. Baluze 76, fol. 99 (900, 14 Setemb.).

33 Ann. Bertiniani, 859 (com a correção proposta por F. LOT, Bibl. Éc. Chartes, 1908, p. 32, n.º 2) REGINO DE PROM, 882. DUDON DE SAINT-QUENTIN, II, 22.

34 King Alfred’s West Saxon Version of Gregory’s Pastoral Care. ed. Sweet (S. E. S., 45), p. 4.

35 Cf. VERCAUTEREN, Étude sur les cités de la Belgique seconde, Bruxelas, 1934, p. 371, n.º 1: cf. para Tournai, V. S. Amandi, 111, 2 (Poetae aevi carol., t. III, p. 589).

36 Memorie e documenti per servir all’istoria del ducato di Lucca, t. V, 2, n.º 855.

37 Testamento do rei Aethelwulf, em Asser’s Life of King Alfred. ed. W. H. Stevenson, c. 16.

38 R. POUPARDIN. Le royaume de Provence sous les Carolingiens, 1901 (Bibl. Éc. Hautes Études, Sc. Histor., 131) — L. DELISLE, Instructions adressées par le Comité des travaux historiques... Littérature latine, 1890. p. 17 — MURATORI, Antiquitates, 1738, t. 1, col. 22.

 

 

“Que um punhado de bandidos, instalados numa colina provençal, tenha podido, durante quase um século, espalhar a insegurança ao longo de um imenso maciço montanhoso e quase cortar as estradas vitais da cristandade; que, durante mais tempo ainda, a pequenas hordas de cavaleiros da estepe tenha sido permitido devastar o Ocidente em todos os sentidos; que, ano após ano, desde Luís o Pio aos primeiros Capetos, e certamente em Inglaterra até Guilherme o Conquistador, as barcas do Norte tenham impunemente lançado bandos ávidos de pilhagem sobre as costas germânicas, gaulesas ou britânicas; que, para acalmar estes salteadores, fossem quais fossem, tenha sido preciso pagar pesados resgates e, aos mais temíveis, ceder por fim grandes extensões de terra: estes fatos são surpreendentes. Tal como os progressos da doença revelam ao médico a vida secreta de um corpo, assim, aos olhos do historiador, a marcha vitoriosa de uma grande calamidade assume, em relação à sociedade assim atingida, o valor de um sintoma.

Era pelo mar que os Sarracenos do Freinet recebiam os reforços; as suas ondas traziam até aos terrenos de caça familiares as embarcações dos Vikings. Impedir a sua navegação aos invasores teria sido, sem qualquer dúvida, o meio mais seguro de evitar as suas pilhagens. Provam-no os Árabes da Espanha ao impedirem a navegação das águas meridionais aos piratas escandinavos; mais tarde, as vitórias da frota criada finalmente pelo rei Alfredo; no século XI, a limpeza do Mediterrâneo levada a cabo pelas cidades italianas. Ora, pelo menos, os poderes de comando cristãos manifestaram a este respeito uma incapacidade quase unânime. Não vimos os donos desta costa provençal, onde hoje se aninham tantas aldeias de pescadores, implorar o socorro da longínqua marinha grega? Não se diga que os príncipes não tinham vasos de guerra. No estado em que se encontrava a arte naval, seguramente teria sido suficiente requisitar os barcos de pesca e de comércio, ou recorrer, conforme as necessidades, aos ofícios de alguns calafates, para ter alguns mais aperfeiçoados; qualquer população de marinheiros teria fornecido as equipagens. Mas o Ocidente parece ter-se encontrado então totalmente desabituado das coisas do mar e esta estranha carência não é a menos curiosa que nos oferece a história das invasões. No litoral da Provença, as povoações que outrora, sob o domínio romano, se localizavam à beira das baías, haviam-se retirado para o interior49. Alcuíno, na carta que escreveu ao rei e aos grandes da Nortúmbria, depois da primeira pilhagem normanda, a de Lindisfárnia, emprega uma expressão que faz pensar: “nunca”, diz ele, “se teria acreditado na possibilidade de tal navegação”50. E no entanto tratava-se apenas de atravessar o mar do Norte! Depois de um intervalo de quase um século, quando Alfredo se decidiu a combater os inimigos no seu próprio elemento, teve que recrutar uma parte dos marinheiros na Frísia, cujos habitantes, de longa data, se haviam especializado no ofício, quase abandonado pelos seus vizinhos, da navegação costeira ao longo das margens setentrionais. O serviço de mar indígena só foi verdadeiramente organizado pelo seu bisneto Edgar (959-975)51. A Gália mostrou-se ainda mais lenta em aprender a olhar para além das suas falésias ou das suas dunas. É significativo que, na sua fracção mais considerável, o vocabulário marítimo francês, pelo menos na frente oeste, seja de formação tardia e vá buscar palavras tanto ao escandinavo como ao próprio inglês.

Uma vez em terra, os bandos sarracenos ou normandos, como as hordas húngaras, eram especialmente difíceis de suster. Só é fácil vigiar em terrenos onde os homens vivem próximos uns dos outros. Ora naquele tempo, até nas regiões mais favorecidas, a população tinha apenas uma fraca densidade, comparada com a atual. Por toda a parte havia espaços vazios, matagais, florestas, que ofereciam percursos adequados às surpresas. Estes bosques densos e pantanosos que, um dia, encobriram a fuga do rei Alfredo, podiam do mesmo modo esconder o avanço dos invasores. Em suma, o obstáculo era o mesmo que ainda recentemente se deparava aos nossos oficiais quando se esforçavam por manter a segurança nos confins marroquinos ou na Mauritânia. Decuplicado, é óbvio, pela ausência de qualquer autoridade superior capaz de controlar eficazmente vastas extensões de erra.

Nem os Sarracenos nem os Normandos se armavam melhor do que os seus adversários. Nos túmulos dos Vikings, as espadas mais belas têm a marca de fabrico franco. São os “gládios de Flandres” tantas vezes referidos nas lendas escandinavas. Os mesmos textos colocam habitualmente nas cabeças dos seus heróis, “elmos gauleses”. Vagabundos e caçadores da estepe, os Húngaros, provavelmente eram melhores cavaleiros, e melhores archeiros, sobretudo, do que os Ocidentais; nem por isso deixaram de ser vencidos por várias vezes em batalha alinhada. Se os invasores possuíam uma superioridade militar, esta era muito menos de natureza técnica do que de origem social. Como aconteceria mais tarde com os Mongóis, os Húngaros eram adestrados para a guerra pelo seu próprio modo de vida. “Quando as duas partes são iguais pelo número e pela força, a vitória cabe ao que estiver habituado à vida nômada”. Esta observação é do historiador árabe Ibn-Khaldun52. No mundo antigo, teve um alcance quase universal: pelo menos até ao dia em que os sedentários puderam dispor da ajuda dos recursos proporcionados por uma organização política aperfeiçoada e de um armamento verdadeiramente científico. E isto porque o nômada é um “soldado nato”, sempre pronto para partir para uma campanha com os seus meios habituais, o seu cavalo, o seu equipamento, as suas provisões; porque dispõe também de um instinto estratégico do espaço, geralmente desconhecido dos sedentários. Quanto aos Sarracenos e sobretudo aos Vikings, os seus destacamentos, desde início, eram feitos expressamente para a luta. Contra estas tropas fogosas, o que podiam fazer as levas de soldados improvisados, reunidas à pressa nos quatro cantos de uma terra já invadida? Basta comparar, nas descrições das crônicas inglesas, o ardor do here — exército dinamarquês — com a imperícia do fyrd anglo-saxão, milícia pesada, da qual apenas consegue obter-se uma ação mais ou menos prolongada se se permitir, por um sistema de fazer render cada homem, para que possa, periodicamente, ir à sua terra. Estes contrastes, na verdade, foram agudos, especialmente no início. À medida que os Vikings se tornavam colonos e os Húngaros, junto do Danúbio, se tornavam camponeses, novas preocupações vieram entravar os seus movimentos. Além disso, não tinha o Ocidente obtido também, cedo, uma classe de combatentes profissionais, com o sistema da vassalagem ou feudo? A incapacidade deste mecanismo, montado para a guerra, de fornecer, em resumo, os meios de uma resistência verdadeiramente eficaz é elucidativa sobre os seus defeitos internos.

Mas estes soldados por ofício consentiam realmente em se baterem? “Toda a gente foge” escrevia cerca de 862, ou pouco depois, o monge Ermentário53. Com efeito, até entre os homens que pareciam mais bem treinados, os primeiros invasores devem ter produzido uma impressão de terror pânico cujos efeitos paralisantes evocam irresistivelmente as narrativas dos etnógrafos sobre a fuga desvairada de certas tribos primitivas e, no entanto, bastante belicosas, diante de qualquer estrangeiro54: destemidas em face do perigo familiar, as almas rudes são geralmente incapazes de suportarem a surpresa e o mistério. O monge de Saint-Germain-des-Près que, pouco tempo depois do acontecimento, descreveu a subida do Sena, em 845, pelas embarcações normandas, repare-se o tom perturbado com que ele observa “que nunca se ouvira falar de coisa semelhante nem lido algo de parecido nos livros”55. Esta emotividade era alimentada pela atmosfera de lenda e de apocalipse que imbuía os cérebros. Nos Húngaros, narra Rémi d’Auxerre, “numerosas pessoas” julgavam reconhecer os povos de Gog e Magog, anunciadores do Anti-Cristo56. A própria ideia, universalmente espalhada, de que estas calamidades eram um castigo divino, predispunha a aceitá-las. As cartas que Alcuíno enviou para Inglaterra, depois do desastre de Lindisfárnia, mais não são do que exortações à virtude e ao arrependimento; nem uma palavra acerca da organização da resistência. No entanto, os exemplos de cobardia de que há provas datam do período mais antigo. Mais tarde, foi recuperada uma certa coragem.

A verdade profunda é que os chefes eram muito menos incapazes de combater se a sua própria vida, ou os seus bens, se encontravam em jogo, do que de organizar metodicamente a defesa e — com raras excepções — de compreenderem as ligações entre o interesse particular e o interesse geral. Ermentário tinha razão quando, entre as causas das vitórias escandinavas, colocava, a par da cobardia e do “torpor” dos cristãos, as suas “questiúnculas”. Que os terríveis salteadores do Freinet tenham visto um rei de Itália pactuar com eles; que um outro rei de Itália, Berengário I, tenha tomado Húngaros ao seu serviço e um rei da Aquitânia, Pepino II, Normandos; que os parisienses, em 885, tenham lançado os Vikings contra a Borgonha; que a cidade de Gaeta, durante muito tempo aliada dos Sarracenos do Monte Argento, tenha consentido em dar o seu apoio à liga constituída para expulsar esses bandidos, apenas em troca de terras e de ouro: estes episódios, entre muitos outros, lançam uma luz singularmente cruel sobre a mentalidade comum. E os soberanos, apesar de tudo, esforçar-se-iam por lutar? Demasiadas vezes a empresa acabava como terminou, em 881, aquela de Luís III que, tendo construído um castelo sobre o Escalda, a fim de cortar o caminho aos Normandos, “não conseguiu encontrar ninguém para ali montar guarda”. Não há nenhuma campanha real acerca da qual não possa repetir-se, pelo menos, o que, provavelmente não sem uma ponta de optimismo, um monge parisiense dizia da mobilização de 845: de entre os guerreiros convocados muitos vieram, nem todos57. Mas, sem dúvida, o caso mais revelador é o de Otão o Grande, que, poderoso entre todos os monarcas do seu tempo, nunca conseguiu reunir um pequeno exército cujo assalto teria posto termo ao escândalo do Freinet. Se, na Inglaterra, os reis do Wessex, até à derrocada final, conduziram valentemente e eficazmente, o combate contra os Dinamarqueses, se, na Alemanha, Otão agiu do mesmo modo contra os Húngaros, no conjunto do continente a única resistência verdadeiramente conseguida proveio antes dos poderes regionais, os quais, mais fortes do que as realezas, por estarem mais próximos da matéria humana e menos preocupados com ambições desmedidas, lentamente se constituíam acima da poeira dos pequenos poderes senhoriais.

Por muito rico de ensinamentos que seja o estudo das últimas invasões, não se deve no entanto permitir que estes ensinamentos nos mascarem um fato ainda mais considerável: o termo das próprias invasões. Até ali, estas devastações feitas por bandos vindos do exterior e estas grandes movimentações de povos tinham verdadeiramente tecido o curso da história do Ocidente, como a do resto do mundo. Doravante, o Ocidente ficará livre delas. Diferentemente, ou quase, do resto do mundo. Nem os Mongóis nem os Turcos mais tarde fariam mais do que aproximar-se das suas fronteiras. Certamente que haverá discórdias, mas sem contato com o exterior. Daqui derivou a possibilidade de uma evolução cultural e social muito mais regular, sem a quebra de qualquer ataque exterior nem de qualquer afluxo humano estrangeiro. Veja-se, por contraste, o destino da Indochina, onde, no século XIV, o esplendor dos Chams e dos Khmers foi abatido sob as investidas dos invasores anamitas ou siameses. Veja-se sobretudo, mais perto de nós, a Europa Oriental, esmagada, até aos tempos modernos, pelos povos da estepe e pelos Turcos. Perguntemo-nos, por momentos, o que teria sido a sorte da Rússia sem os Polovtsi e sem os Mongóis. Nada nos impede de pensar que esta extraordinária imunidade, cujo privilégio apenas partilhamos com o Japão, tenha sido um dos fatores fundamentais da civilização europeia, no sentido profundo, no sentido exato da palavra.”

49 E. H. DUPRAT, À propôs de l’itinéraire mariíime: I, Citharista. La Ciotat, em Mem. do Instituto Histórico de Provença, t. IX, 1932.

50 Ep. 16, (Monum. Germ. E. E.), t. IV, p. 42.

51 Sobre esta lentidão do desenvolvimento marítimo da Inglaterra, cf. F. LIEBERMANN, Matrosentellung aus Landgütern der Kirch London um 1000 em Archiv fur das Studium der neueren Sprachen. t. CIV, 1900. A batalha naval travada, em 851, pelos habitantes de Kent é um fato isolado; igualmente neste setor do litoral, as relações com os portos, próximos, da Gália, tinham sem dúvida mantido uma vida marítima menos morosa do que noutros lugares.

52 Prolégomènes, trad. SLANE, t. I, p. 291. Sobre os Mongóis, ver as inteligentes observações de GRENARD, nos Annales d’hist. économ., 1931, p. 564, aos quais fui buscar certas expressões.

53 Monuments de 1’histoire des abbayes de Saint-Philibert, ed. Poupardin, p. 62.

54 Cf. por exemplo, L. LÉVY-BRUHL, La mentalité primitive. p. 377.

55 Analecta Bollandiana, 1883, p. 71.

56 MIGNE, P. L., t. CXXXI, col. 966.

57 Analecta Bollandiana, 1883, p. 78.

 

 

“O traço fundamental [da Primeira Idade Feudal] permanece a universal e profunda descida da curva demográfica. Incomparavelmente menos numerosos, em toda a superfície da Europa, do que nos parece, não apenas desde o século XVIII mas também desde o século XII, os homens eram também, segundo tudo leva a crer, nas províncias ainda há pouco submetidas à dominação romana, sensivelmente mais raros do que nos belos tempos do Império. Mesmo nas cidades, onde os mais importantes não ultrapassavam uns escassos milhares de almas, existiam por toda a parte terrenos baldios, jardins, e até por vezes campos cultivados e pastagens por entre as casas.

Esta ausência de densidade era ainda agravada por uma distribuição desigual. Certamente que as condições físicas, tal como os hábitos sociais, conspiravam para manterem, nos campos, profundas variedades entre os regimes de habitat. Por vezes, as famílias, ou pelo menos algumas, haviam-se fixado bastante longe umas das outras, cada uma no meio da sua própria exploração agrícola: assim era no Limosino. Doutras vezes, pelo contrário, como na Ilha de França, concentravam-se, quase todas, em aldeias. No entanto, no conjunto, a pressão dos chefes, sobretudo a preocupação com a segurança, eram outros tantos obstáculos para uma dispersão mais acentuada. As perturbações da Alta Idade Média tinham provocado frequentes concentrações. Nestes aglomerados, os homens viviam muito perto uns dos outros, mas os povoados eram separados por vários espaços desertos. A própria terra cultivável, da qual a aldeia retirava o seu sustento, tinha que ser, proporcionalmente ao número dos habitantes, muito mais vasta do que hoje. Pois naquele tempo a agricultura era uma grande devoradora de espaço. Nas terras lavradas, incompletamente cavadas e sempre privadas de adubos suficientes, as espigas não cresciam bem criadas nem muito bastas. Especialmente, nunca a propriedade apresentava colheitas simultâneas. Os sistemas de cultivo mais aperfeiçoados exigiam que, em cada ano, metade ou um terço do solo cultivado ficasse em repouso. Muitas vezes, até, o repouso das terras e o cultivo sucediam-se numa alternância sem tempo estabelecido, concedendo sempre um tempo mais longo à vegetação espontânea do que ao período de cultura; neste caso, os campos eram apenas provisórias e breves conquistas sobre os baldios. Assim, no próprio seio dos terrenos, a natureza, sem cessar, tendia a sobrepor-se. Para além dos terrenos amanhados, envolvendo-os e penetrando-os, desenrolavam-se florestas, matos e charnecas, imensas zonas selvagens, das quais o homem raramente estava de todo ausente, mas que, sendo carvoeiro, pastor, eremita ou fora-da-lei, habitava apenas à custa de um longo afastamento dos seus semelhantes.”

 

 

“É de crer que a moeda, no Ocidente “feudal”, nunca esteve totalmente ausente das transações, mesmo nas classes camponesas e acima de tudo ela nunca deixou de desempenhar o papel de padrão das trocas. O devedor pagava muitas vezes em mercadorias; mas em mercadorias geralmente “apreciadas” uma por uma, de maneira que o total destas avaliações coincidisse com um preço estipulado em libras, soldos e dinheiros. Evitemos, portanto, a expressão, demasiado sumária e demasiado vaga, de “economia natural”. Vale mais falar simplesmente de carência monetária. A penúria de espécies era ainda agravada pela anarquia da cunhagem das moedas, resultado, ela própria, ao mesmo tempo do retalhamento político e da dificuldade das comunicações: pois cada mercado importante tinha que ter a sua oficina local, sob pena de miséria. Feita excepção à imitação das moedas exóticas e algumas ínfimas peças pequenas, postas de lado, apenas se fabricavam dinheiros, que eram moedas de prata, de valor bastante fraco. O ouro circulava apenas sob a forma de moedas árabes e bizantinas ou suas cópias. A libra e o soldo eram somente múltiplos aritméticos do dinheiro, sem suporte material que lhe fosse próprio. Mas os diversos dinheiros, sob uma designação comum, tinham um valor metálico diferente, segundo a sua proveniência. E o que é pior ainda, num mesmo local, cada emissão, ou pouco menos, acarretava variações no peso ou na liga empregada. Ao mesmo tempo rara, no total, e incômoda, por via dos seus caprichos, a moeda circulava além do mais lentamente e demasiado irregularmente para que alguém pudesse sentir-se seguro por obtê-la, em caso de necessidade. E isto por causa da falta de trocas suficientemente frequentes.

Neste ponto, também, evitemos uma fórmula demasiado simples: a de economia fechada, pois ela nem às pequenas explorações rurais se aplicaria exatamente. Sabemos da existência de mercados onde os camponeses certamente vendiam alguns produtos dos seus campos ou das suas capoeiras: à gente da cidade, aos clérigos, aos homens de armas. Era assim que eles arranjavam os dinheiros dos foros. E muito pobres eram aqueles que nunca compravam algumas onças de sal ou de ferro. Quanto à “autarcia” dos grandes senhores ela faria supor que eles tivessem passado sem armas e sem joias, nunca bebessem vinho, se por acaso as suas terras não o produzissem, e se tivessem contentado com terem por vestuário os tecidos grosseiros tecidos pelas mulheres dos seus rendeiros. Portanto, não eram apenas as insuficiências da técnica agrícola, as perturbações sociais, as intempéries, finalmente, que contribuíam para alimentar um certo comércio interior: pois, quando acontecia que as colheitas não eram produtivas, se muitos, literalmente, morriam de fome, a população inteira não ficava reduzida a tais extremos e sabemos que dos países mais favorecidos para aqueles que eram atingidos pela fome se estabelecia um tráfico de trigo que se prestava a muitas especulações. As trocas não eram, portanto, inexistentes; pelo contrário, eram irregulares ao último grau. A sociedade daquele tempo não desconhecia evidentemente nem a compra nem a venda, mas não vivia, como a nossa, da compra e da venda.

Também o comércio, ainda que sob a forma de troca, não era o único, nem talvez o mais importante dos canais pelos quais se processava então a circulação dos bens, través das camadas sociais. Um grande número de produtos passava de mão em mão a título de foros, pagos a um chefe como remuneração pela sua proteção, ou como reconhecimento do seu poder. O mesmo acontecia com essa outra mercadoria que é o trabalho humano: o trabalho gratuitamente fornecido ao senhor fornecia mais mão de obra’ do que o trabalho remunerado. Numa palavra, a troca, no sentido estrito, ocupava menos lugar na vida econômica, sem dúvida, do que a prestação de serviços; e porque a troca era, assim, rara e por isso só os pobres deviam resignar-se a subsistir apenas à custa da sua própria produção, a riqueza e o bem-estar pareciam inseparáveis do comando.

Todavia, uma economia constituída deste modo à disposição dos próprios poderosos só lhes proporcionava, afinal, meios de aquisição singularmente restritos. Quem diz moeda diz possibilidades de reservas, capacidade de espera, “antecipação dos valores futuros”: coisas que, reciprocamente, a penúria de moeda tornava extremamente difíceis. Certamente que as pessoas procuravam amealhar sob outras formas. Os barões e os reis acumulavam nos seus cofres baixelas de ouro ou de prata e joias; as igrejas amontoavam peças litúrgicas de ouro. Se se fazia sentir a necessidade de um gasto imprevisto, vendia-se ou empenhava-se a coroa, a taça ou o crucifixo; ou mandavam-se fundir na oficina de cunhagem de moeda mais próxima. Mas este recurso, justamente por causa da lentidão das trocas nunca era cômodo nem de resultados e os próprios tesouros, no total, não atingiam uma importância muito considerável. Grandes e pequenos viviam o dia a dia, obrigados a limitarem-se aos recursos do momento e quase constrangidos a gastarem-nos imediatamente.

A atonia das trocas e da circulação monetária tinha uma outra consequência ainda e das mais graves; reduzia ao mínimo o papel social do salário. Este, com efeito, supõe do lado do patrão um numerário suficientemente abundante e cuja origem não corra o risco de cessar de repente; por parte do assalariado, a certeza de poder empregar a moeda assim obtida para obter os mantimentos necessários ao seu sustento. Todas estas condições não existiam na primeira idade feudal. Em todos os graus da hierarquia, quer se tratasse, para o rei, de assegurar os serviços de um grande oficial, ou para o fidalgo de província, de contratar um criado de armas ou de quinta, era forçoso recorrer a um modo de remuneração que não se fundamentasse no pagamento periódico de uma quantia em dinheiro. Ofereciam-se duas soluções: albergar o homem em casa, alimentá-lo, fornecer-lhe aquilo que se chamava “cama e mesa”; ou então ceder-lhe, em paga do seu trabalho, uma terra que, por exploração direta ou sob a forma de foros pagos pelos cultivadores da terra, lhe permitisse prover ele próprio à sua manutenção.

Ora, qualquer destes sistemas concorria, ainda que em sentidos opostos, para estabelecer laços humanos muito diferentes do salariado. Do criado mantido em casa ao patrão, à sombra do qual aquele vivia, como se não existisse uma relação mais íntima do que a que se cria entre um patrão e um empregado que, uma vez terminada a sua tarefa, é livre de se retirar com o dinheiro no bolso? Pelo contrário, esta relação, quase necessariamente, tornava-se mais distante desde que o subordinado estivesse estabelecido numa terra, a qual, pouco a pouco, por um impulso natural, tinha tendência a considerar como sua, esforçando-se ao mesmo tempo por diminuir o peso dos seus serviços. Acrescente-se que, num tempo em que a incomodidade das comunicações e a anemia das trocas tornavam difícil manter uma casa com muita gente numa relativa abundância, o regime de dar o sustento aos criados era, no total, susceptível de bem menor extensão do que o sistema das remunerações por meio do pagamento de imposto sobre a terra. Se a sociedade feudal oscilou permanentemente entre estes dois polos, a estreita relação de homem para homem e o laço frouxo da concessão do amanho de terras, a responsabilidade cabe, por um lado, ao regime econômico que, pelo menos na sua origem, lhe impede o salariado.”

Um comentário:

Doney disse...

Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
Desta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.