domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário Analítico do Ocidente Medieval – Volume II (Parte I), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-3930-686-2

Tradução: Hilário Franco Júnior (coord.)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 704

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Sinopse: A Idade Média deste dicionário não é de trevas, nem dourada; ela está próxima de nós, e fez surgir problemáticas (o amor, o Estado, o trabalho, a cidade, a razão e a fé) que ainda não conseguimos solucionar; mas também está distanciada pelo tempo e pela história, exótica, enorme e delicada. Fruto de uma pesquisa em andamento, este livro não termina aqui: deve inspirar um programa de reflexão permanente, unindo os historiadores a seus leitores.


 

Jerusalém e as cruzadas

Jerusalém ocupa lugar excepcional no espírito dos crentes das três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para os judeus, ela continua a ser a cidade de Davi, lugar de eleição da realeza teocrática e centro político-religioso unificador do povo de Deus. Quando os romanos a conquistaram no ano de 70, seus edifícios religiosos, muralhas e o templo de Herodes foram destruídos a mando de Adriano, sendo a cidade santa profanada e consagrada a Apolo. Com a diáspora, aos crentes exilados restaram apenas lembranças dos vestígios intactos do Templo, isto é, das fundações do muro de sustentação da esplanada mais conhecido como Muro das Lamentações. Essa lembrança piamente conservada ligava-os às raízes e glórias passadas, preservava sua identidade e projetava-os num futuro “restabelecimento de Israel”, aspiração dos crentes de todas as épocas. Malgrado a dispersão e as perseguições, a espera do tempo messiânico e a atenção meticulosa dedicada à preservação das tradições garantem a continuidade de sua identidade étnico-religiosa. Ligada a esses dois polos – o passado e o futuro – a peregrinação a Jerusalém continua uma constante nas comunidades judaicas da idade Média, mesmo nas mais integradas às sociedades dos países em que viviam.

Para os cristãos da Igreja primitiva, em sua maior parte de origem judaica, Jerusalém acrescenta aos traços precedentes uma nova sacralidade, vinda de Jesus. Ela suplanta a primeira, sem destruí-la, quando o cristianismo, distanciando-se do judaísmo, tornou-se universal, supranacional e multiétnico, comportando uma esmagadora maioria de fiéis oriunda do paganismo. Para os cristãos, Jerusalém continua a ser a cidade de Davi, e, mais do que isso, a cidade santa dos últimos dias, quando o Messias glorioso retornará a este mundo para vencer Satã e o Anticristo antes de instaurar seu reino de justiça. Mas, antes de tudo, ela é a cidade de Jesus Cristo, onde ele surpreendeu os doutores do Templo pela sabedoria de seus conceitos; onde pregou durante três anos com poder e milagres a fim de conduzir o povo a Deus; onde celebrou a Santa Ceia com os doze apóstolos antes que um deles o entregasse às autoridades judaicas e romanas; onde foi preso, condenado, flagelado, desprezado, crucificado na parte mais alta da cidade, o Calvário; onde morreu na cruz para a salvação de todos os que acreditavam que era seu Salvador; onde seus restos mortais foram depositados num túmulo cavado na rocha, de onde ressuscitou na aurora do primeiro dia da semana, o domingo de Páscoa, que marca sua vitória sobre a morte que prefigura a de todos os fiéis para os quais estará reservada, graças a ele, uma vitoriosa ressurreição no dia do Juízo. Percebe-se bem o lugar fundamental de Jerusalém nas crenças cristãs, principalmente naquelas relativas à pregação de Jesus, sua paixão e ressurreição: o Templo (ou o que se acreditava que fosse); o Jordão, onde foi batizado aos 30 anos, antes de seu ministério; o Calvário ou Gólgota; o túmulo vazio, onde desde o princípio do século IV foi construída uma primeira igreja, depois reconstruída e modificada várias vezes, a igreja do Santo Sepulcro. Todos esses lugares santos tornaram-se pontos de peregrinação. Na espiritualidade cristã, a sacralidade de Jerusalém é incomparável. Ela ultrapassa infinitamente a de todos os demais santuários.

Para o islamismo, particularmente na época medieval, a sacralidade de Jerusalém é bem menor. O primeiro de todos os lugares santos, evidentemente, é Meca, centro da peregrinação à Caaba; depois vem Medina, a cidade do Profeta, da qual Maomé teve que fugir. Pouco mencionada pelo islamismo da Alta Idade Média, Jerusalém ocupava a terceira posição, com base numa tradição tardia segundo a qual a viagem noturna do Profeta ao Céu teria ocorrido a partir do lugar em que se situava a mesquita de Jerusalém, construída por Omar após a conquista da cidade em 638. Nenhum lugar santo compara-se a Meca, centro universal de peregrinações, embora Medina tenha lugar privilegiado nessa hierarquia.

Além de cidade santa para todos, estreitamente ligada à história de suas origens, Jerusalém é, para judeus e cristãos, uma cidade de peregrinação com conotação religiosa e mística, com ressonâncias soteriológicas e escatológicas.

 

As peregrinações a Jerusalém até o ano I000

A diáspora e a paganização forçada de Jerusalém após a revolta nacionalista de I33 não puseram fim a seu prestígio entre os judeus, menos ainda entre os primeiros cristãos. A antiga cidade atraía visitantes desde a época da conversão do imperador Constantino, cuja mãe, Helena, fez-se acompanhar até lá por uma expedição destinada a honrar os lugares santos e procurar vestígios da vida e morte de Cristo. É ela que reencontra a Verdadeira Cruz e outros instrumentos da Paixão, levando-os para Constantinopla, a nova capital fundada pelo filho em 330. Edifícios religiosos, como o do Santo Sepulcro (de longe o mais famoso), são construídos em Jerusalém e suas imediações com o propósito de honrar e sacralizar tais lugares santos e receber peregrinos.

Depois de Helena, outros personagens importantes também vão aos lugares santos. Mas, na mentalidade religiosa da época, a visita a tais locais repletos de história ainda não tem a dimensão que ganharia posteriormente. Vai-se até lá por motivos ao mesmo tempo intelectuais e místicos, para seguir os passos de Cristo em seu ministério terreno, para encontrar uma atmosfera de espiritualidade, para reter na memória os fatos mencionados nos textos bíblicos e evangélicos. Por razões intelectuais desse tipo é que São Jerônimo deslocou-se à Palestina cercado de um grande número de discípulos e de damas da alta sociedade romana. Pouco a pouco, entretanto, apesar das forces reticências de vários Pais da Igreja, ganha corpo a ideia de que as graças espirituais concedidas por Deus aos fiéis em qualquer parte podiam ser encontradas com maior facilidade em cercos locais repletos de espiritualidade, particularmente nos lugares sagrados da Terra Santa. A voga das peregrinações aumenta então, nascida dessa aspiração espiritual. A partir do século VII, ela está bem estabelecida e não se interrompe com a conquista de Jerusalém em 638. Ela se amplia ainda mais sob Carlos Magno, que obtém do califa Harun al-Rachid – com o qual estabeleceu boas relações diplomáticas – autorização para ali construir diversos edifícios religiosos ou de hospedagem, passando a considerar-se “protetor dos lugares santos”. Em seguida, a lenda apropriou-se do fato, transformando o imperador em precursor da Cruzada.

Pode-se admirar a pouca repercussão nos textos contemporâneos da tomada de Jerusalém pelos muçulmanos. As razões são múltiplas. No Oriente cristão, já bem distanciado do Ocidente por razões de língua, cultura, práticas eclesiais e litúrgicas, Constantinopla, cidade imperial, sede de um governo que se considerava lugar-tenente de Deus e investido da missão universal de governar o inundo, ultrapassara largamente o prestígio de Jerusalém. Em Bizâncio, a tônica era colocada no poder do Cristo ressuscitado, e não em sua Paixão. Cristo reina. A Jerusalém celeste supera, portanto, a cidade santa da Palestina. A noção de peregrinação era igualmente menos desenvolvida no Oriente que no Ocidente. Jerusalém estava menos presente no coração dos orientais do que dos ocidentais.

No Ocidente, era a perenidade da peregrinação que importava. Ela foi assegurada pela tolerância dos muçulmanos para com as religiões reveladas, monoteístas. Os cristãos eram, em geral, autorizados a se deslocar aos lugares santos mediante o pagamento de uma taxa. Não quer dizer que a perda de Jerusalém e, de maneira geral, a derrota diante do Islã, tenham sido admitidas sem reclamações. Mas a própria amplitude e rapidez da vitória (em menos de um século, as conquistas do Islã estendiam-se dos Pireneus ao Indo) levou-os a considerá-la como vontade de Deus, como um castigo pelos pecados de seu povo. No Oriente e na Espanha, alguns escritos polêmicos relacionavam o islamismo com as calamidades do fim dos tempos, assimilando seu papel ao do Anticristo. Todavia, o Ocidente da época feudal, voltado para si mesmo, muito ocupado em proteger-se das invasões húngaras, sarracenas e sobretudo normandas, mergulhado em lutas frequentes e guerras privadas entre principados e senhorios vizinhos numa época em que o poder efetivo das monarquias declina, ignora tanto o Islã quanto Bizâncio, lançando-os num mundo de sonhos, de mito, revestindo-os de virtudes e vícios imaginários.

No entanto, viajantes não deixam de frequentar as rotas de Jerusalém. As peregrinações conhecem um prestígio crescente entre os cristãos do Ocidente. O primeiro impulso situa-se no século VIII com o desenvolvimento das penitências tarifadas. Para obter remissão plena dos pecados revelados em confissão, a Igreja exige a realização de uma penitência satisfatória. Esta pode ser a entrada do penitente num mosteiro, a abstinência alimentar ou sexual, o exílio, ou qualquer outra forma de sanção especificada nos penitenciais, que prescrevem para cada falta a correspondente punição. No caso das graves (assassinato, adultério, incesto), a Igreja exige cada vez mais como compensação a viagem até um lugar santificado, o túmulo de um santo por exemplo. Jerusalém é a peregrinação bem acima de todas, graças ao túmulo (vazio) do ressuscitado. As peregrinações são objeto de votos individuais, podem ter motivações pessoais diversas, ser voluntárias, intelectuais ou místicas. Elas contribuíram para perpetuar na mentalidade religiosa dos cristãos ocidentais o lugar privilegiado de Jerusalém.

 

Jerusalém e as peregrinações no século XI

A peregrinação ganhou considerável impulso no período feudal. Ela é facilitada pela conversão ao cristianismo, por volta do ano 1000, do reino da Hungria, que até então tornara perigosa ou mesmo impossível sua realização por via terrestre. Doravante, esse caminho está aberto aos peregrinos do centro e do noroeste da Europa, possibilitando assim as peregrinações em massa. Ela é muito mais barata que a efetuada por via marítima, além de menos perigosa, evitando naufrágios, piratas e incêndios que ameaçavam os navios. Vê-se então aparecer com frequência nos textos menções a peregrinações envolvendo grande número de pessoas pertencentes a todas as categorias sociais. O crescente sucesso explica-se também por uma mudança de mentalidade religiosa. A peregrinação corresponde perfeitamente bem à espiritualidade dos leigos que aspiram pela salvação, particularmente os guerreiros, os cavaleiros, que a Igreja manteve por muito tempo sob suspeita em razão de sua profissão. No século III, Hipólito de Roma, Orígenes, Tertuliano e muitos outros não admitem que um cristão possa atuar como soldado, e os que persistem devem ser excluídos da Igreja. Mesmo depois da cristianização do Império Romano, Santo Agostinho tem que recorrer ao seu talento oratório para persuadir os soldados que Deus aceitava a condição deles, que podiam servi-lo com o uniforme militar, que quem matava numa guerra justa, declarada por autoridade legítima com o fim de defender o império, restabelecer a justiça ou retomar terras e bens espoliados, não era verdadeiramente culpado do pecado de homicídio, devendo contudo realizar penitência por ter tirado a vida de uma criatura de Deus.

Apesar dessa defesa, a interdição feita ao clero de derramar sangue e de manter relações sexuais exprime a desconfiança da Igreja com respeito aos dois polos de atração dos leigos, principalmente dos cavaleiros: o amor e a guerra. Não obstante a crescente promoção da atividade militar e o interesse da Igreja em sacralizar pela liturgia se não toda a cavalaria, pelo menos aquela que se colocava a serviço de estabelecimentos eclesiásticos (como protetores ou defensores de mosteiros e bispados), subsiste ainda nos séculos XI e XII forte prevenção nesse sentido. Para eminentes autores cristãos, militia (milícia) rima com malitia (malícia), não se podendo jamais exercer o ofício da guerra sem pecado. Apenas seriam puros e alcançariam o Paraíso aqueles que combatessem em nome de Deus pela prece, nas fortalezas da fé que são os mosteiros.

Ao mesmo tempo, a aspiração dos leigos à salvação e a necessidade que a Igreja tem de defensores armados para sua proteção e de guerreiros para fazer sua causa triunfar, levam-na a franquear o acesso ao reino de Deus àqueles que, no perigoso estado de guerreiro, levem uma vida honrada. Por volta de 930, o abade Eudes de Cluny traça o retrato de um leigo que ele dá como modelo aos monges: Geraldo de Aurillac, príncipe e santo apesar da sua condição e o uso da espada. Como veremos um século mais tarde, a valorização dos guerreiros irá muito mais longe, mas desde já os cavaleiros podem esperar, na sua condição, um acesso possível ao reino de Deus.

Isto se no exercício de sua profissão militar não infringirem as proibições da Igreja, lembradas pelas instituições de paz desde o fim do século X. Com a incapacidade das autoridades civis, particularmente na França, em assegurar a ordem, paz e proteção das igrejas, dos clérigos e das populações desarmadas, a Igreja, não podendo proibir, tentou limitar as guerras privadas entre os cavaleiros. Tais conflitos não se enquadram na categoria de guerras justas: não são promulgados por autoridade legítima e quase sempre tem como causa interesses particulares, desejos de vingança (faide) ou a busca da vanglória (como será mais tarde o caso do torneio); pior ainda, dão lugar a pilhagens, massacres, abusos diversos em que as vítimas são os inermes, os que não portam armas. Frequentemente lembradas nos concílios de paz que se multiplicam após o de Charroux (989), na Aquitânia, depois em todo o Sul da França e em toda a Europa ocidental, as prescrições da paz de Deus tentam interditar aos cavaleiros, sob pena de excomunhão, que roubem, ataquem, raptem ou exijam resgate de pessoas desarmadas. As prescrições da trégua de Deus buscam proibir toda ação guerreira da tarde de sexta-feira à manhã de segunda-feira, em memória da paixão de Cristo, bem como por ocasião das principais festas litúrgicas. Por esses meios, a Igreja quer se proteger de exações impostas por cavaleiros saqueadores e limitar os prejuízos causados às populações civis.

Entretanto, a própria frequência dos concílios de paz indica a existência de inúmeras infrações. A peregrinação era um dos meios empregados na reabilitação dos contraventores, sendo também prescrita a adúlteros, homicidas e para a maior parte das faltas graves ligadas ao sexo e ao sangue, às quais os cavaleiros estavam em geral expostos. Assumindo temporariamente a condição de penitente, vestido com traje característico, andando descalço (pelo menos na partida e na chegada), o cavaleiro abandonava por algum tempo o uso das armas e o exercício do poder, pegando as estradas para orar nos santuários indicados, tocar o túmulo de um santo, impregnar-se com a graça emanada dos eflúvios do perdão.

Jerusalém era o primeiro destino desses peregrinos. As crônicas dos séculos X e XI mencionam inúmeros casos de príncipes que procuravam no Sepulcro a remissão de seus pecados. Entre 1002 e 1039, Fulco, conde de Anjou, para lá se dirigiu três ou quatro vezes porque tinha derramado muito sangue e temia o Juízo e a Geena que estariam por vir. Em 1035, encontrou-se com Roberto, o Magnífico, da Normandia, pai de Guilherme, o Conquistador, que parece ter feito voto de peregrino após a acusação de ter mandado envenenar o irmão. Os príncipes laicos não eram os únicos a se lançar no caminho do Santo Sepulcro, pois sabe-se que, ao longo do século XI, vastos grupos de peregrinos laicos e eclesiásticos pegaram a estrada juntos. Em I026, Ricardo, abade de Saint-Vanne de Verdun, levou um grupo com quase setecentas pessoas, entre as quais Guilherme Taillefer III, conde de Angoulême, com seus aquitanos, Eudes de Déols com seus franceses, além de flamengos, picardos etc. No caminho, ele é lapidado por realizar missa em terra muçulmana, mas sobrevive e leva uma relíquia da Verdadeira Cruz dentro de um saquinho disfarçado e pendurado no pescoço. Esse episódio ilustra bem o entusiasmo pela peregrinação a Jerusalém e pelas relíquias (falsas e verdadeiras) que abundavam no Oriente, e que o Ocidente desejava delirantemente para sacralizar seus santuários e suas cerimônias. Algumas dessas relíquias estão diretamente relacionadas com o Sepulcro e dão lugar, quando do retorno à França, à consagração de um santuário ou de uma igreja destinada a abrigá-las, com frequência construída à semelhança da do Santo Sepulcro. Segundo um cronista do Anjou, por ocasião de uma de suas peregrinações, Fulco Nerra teria sido impedido por muçulmanos de entrar no Sepulcro. Eles só autorizaram com uma condição: por derrisão, ele deveria urinar no rochedo do Sepulcro. Piedoso, mas astuto, Fulco escondeu entre as pernas um odre cheio de vinho e, simulando o gesto, conseguiu autorização para orar naquele lugar. Ele teve sua recompensa: ao beijar o rochedo, sentiu-o milagrosamente amolecido e arrancou um pedaço com os dentes, levando-o escondido para o Anjou junto com um pedaço da Verdadeira Cruz que comprara no caminho. Para guardar as relíquias e honrar o Santo Sepulcro, mandou construir a igreja de Beaulieu.

Esses poucos exemplos bastam para ilustrar a espiritualidade dos leigos, principalmente dos cavaleiros, no século que precedeu a Cruzada. Violentos, mas em sua maior parte piedosos, de uma piedade que pode nos parecer supersticiosa, cerimonial, formal, conscientes de praticar uma atividade arriscada e ainda malvista pela Igreja, eles aspiram à santificação, mas não querem trocar a couraça pelo hábito monacal. Sentindo-se mal interiormente, divididos entre o sentimento de culpa e o sentimento de orgulho por pertencer a uma condição social que veneram, estão dispostos a expiar suas faltas em sua própria condição, sem abandonar seu estatuto, por meio de obras piedosas, doações, fundação de igrejas e mosteiros, peregrinações distantes. A guerra santa e a Cruzada fornecerão a eles a satisfação de acumular de uma só vez, e sem abandonar as armas, as esperadas benesses espirituais para a remissão dos pecados.” (Jerusalém e as cruzadas – Jean Flori)

 

 

“O que os poderes reprovam nas práticas lúdicas (dos jogos)? Já se disse, as autoridades eclesiásticas veem nelas uma encarnação do mal. Os jogos são perda de tempo, dom divino por excelência, atividades geradoras de distúrbios morais e sociais diversos, eles afastam de Deus e dos labores que se fazem ao serviço do próximo. Já que se revela impossível extirpá-los, convém controlá-los e limitar seu uso: os clérigos devem se esquivar deles e o leigos se limitar a uma prática moderada, entre gente honesta e com apostas bastante reduzidas. Os jogos que permitem a intervenção do azar, quer dizer, todos aqueles que podem aparecer ao mesmo tempo como meios de tentar Deus e como atividade usurária, devem ser severamente proscritos. Esse discurso global da Igreja, cuja argumentação é bastante pobre, dificilmente convence, também em razão das fraquezas do próprio corpo eclesiástico em face das seduções do jogo.

Em relação aos jogos, os poderes civis ocupam uma posição ambígua. Ligados aos poderes eclesiásticos, eles se acham presos entre a tentação de eliminar uma atividade reputada antissocial e imoral e o desejo de controlar o que lhe escapa. Os jogos, com efeito, são perturbadores da ordem social. Não somente transtornam a ordem pública devido às numerosas dissensões que suscitam, mas, além disso, desviam das atividades úteis ao bem comum dando a ilusão de ganhos fáceis, tendendo a apagar a frágil fronteira entre o tempo do trabalho e o tempo do repouso, fronteiras pela defesa da qual resistem príncipes, senhores e autoridades municipais. Por todas essas características, o jogo é considerado subversivo.

Não tendo nem os meios, nem a vontade de lutar eficazmente contra a paixão do jogo, os poderes públicos, cansados de combater, encontram-se na obrigação de transigir. Já em I369, Carlos V interdita todos os jogos com a finalidade de favorecer apenas um, o tiro com arco. Essa medida, inspirada por disposições idênticas dos príncipes ingleses, parece ainda se ligar à preocupação com o bem público, quer dizer, com a defesa do reino. Em seguida, de uma atitude repressiva para com os jogos, os poderes passam progressivamente a uma abordagem fiscal. Uma vez que os jogos existem e que não é possível lutar contra eles, melhor tentar tirar proveito material ou moral. Semelhante transformação explica a multiplicação das casas de jogos controladas pelas autoridades. Os duques de Borgonha, mais tarde imitados por outros príncipes, tornaram-se mestres na utilização das casas de jogos em seu proveito exclusivo, quer seja material ou político. Com efeito, essas casas foram seu instrumento preferido tanto para cobrir os déficits permanentes quanto para recompensar ou assegurar-se sólidas fidelidades.

 

Mais numerosos, mais diversificados, regrados e regulamentados, os jogos do Ocidente medieval traduzem a evolução geral da sociedade. Sua transformação interna dá conta da vontade de reduzir o papel do acaso, deixando-lhe, ao mesmo tempo, uma parte não negligenciável que permite assumir as prudências aborrecidas da vida cotidiana. A ela se acrescenta o êxito do gosto do risco nascido da emergência de práticas econômicas de marcadas características agonísticas, a ponto de se expandirem pelo mundo inteiro.

O futuro dos jogos é de início selado pelo reconhecimento de suas aptidões pedagógicas. “De todo homem se pode fazer um homem”, dirá Comenius no século XVII. Por recorrerem a práticas primitivas, portanto instrutivas, por lembrarem a todo momento, ao mesmo tempo que os eufemizam, um certo número de interrogações fundamentais para o homem (a vida ou a morte, a graça ou a danação, a vitória ou a derrota), os jogos fazem parte da formação do indivíduo. A evolução do reconhecimento de tais capacidades confunde-se com a história dos jogos ao longo da Idade Média.

Tal história não pode ser separada da história do lento nascimento do Estado moderno, que visa pacificar o espaço social apoderando-se do controle dessa pacificação. Nesse sentido, a evolução dos jogos medievais traduz perfeitamente o processo de civilização evidenciado por Norbert Elias. Quando, no século XIII, os goliardos, clerici vagantes, celebravam o jogo por provocação, iam de encontro aos valores da sociedade feudal. No século XV, jogar é um gesto tolerado, se não reconhecido ou exaltado, que pode fazer parte de uma sociabilidade aristocrática ou burguesa. “As ruas da cidade estarão de novo cheias de homens jogando”, já dizia o profeta Zacarias. (Jogo – Jean-Michel Mehl)

 

 

“As regras da vingança privada

Um estudo atento dos modos de resolução dos conflitos mostra que a vingança não tem livre curso sem suas próprias leis, que conduzem também à paz. O crime mais frequente, o homicídio cometido para vingar a honra ferida, é regulado pelo respeito a certo número de rituais que conduzem à paz. Esse procedimento começa pela fuga do culpado, que demonstra, assim, aos olhos de todos, a beleza de seu gesto – o homicídio é um “feito admirável” – e que marca a reabilitação necessária da honra. Essa partida purifica também o território que o sangue da vítima havia manchado. Permite, enfim, aos pais ou parentes das duas partes reparar o tecido social que o crime rasgou. A fuga do assassino é, portanto, o prelúdio necessário à instalação do processo de paz. Seguem-se discussões em que os ·pais” e os “amigos” das duas partes negociam o acordo. Esse pode ser finalmente selado através de rituais que escapam em grande parte ao historiador, em particular quando se trata de simples transação que não deixou traços escritos. A paz é “acordada”, isto é, jurada ao final da cerimônia, que quase sempre supunha a troca de uma refeição, de bebida, às vezes um beijo na boca, com eventual promessa de casamento, que une os pais e previne futuras guerras. O conhecido adágio dos antropólogos verifica-se aqui: casa-se com seus inimigos. Essas cerimônias ritualizadas são geradoras de esquecimento, de oscilação na direção do estado de paz, que cria o “bom amor” entre as partes. Compreendem também uma indenização material em dinheiro ou presentes, cujo significado não é apenas reparador. O preço do sangue é uma doação destinada a fazer renascer entre as partes o amor que o crime havia destruído. Assim nasce a transação, a paz privada entre as partes. Todos os tipos de delitos podem ser objeto de transações: roubos, estupros, ruptura de salvo-conduto etc. Com certeza, esse expediente não é obrigatoriamente rápido porque as palavras e as discussões entre as partes demandam tempo. O certo é que, durante esse período de espera, a paz é frágil, ameaçada pelas eventuais intervenções de “pais” e “amigos”, que de um lado e do outro podem intervir para prolongar a vingança e transformá-la em vendetta. Ainda assim, o conflito está em curso de regularização. Para apressar, ou para proteger a paz ameaçada, as partes podem recorrer a um ou a vários árbitros. A transação assume, então, a forma de arbitragem. Quando a oficia, o árbitro não é um juiz, mesmo se frequentemente acontece de ele exercer essas funções em outros lugares. Os árbitros são, em geral, recrutados entre os boni homini, isto é, os notáveis da cidade, entre homens em contato com o direito, ou juristas qualificados, ou simplesmente entre os “especialistas” de fato, o taberneiro ou o pároco. Estes últimos impõem-se seja pelo seu saber, seja por pertencerem a redes de sociabilidade estreita, o que facilita a publicidade feita à paz privada. Nas cidades do norte, os árbitros, chamados de “pacificadores” ou “fabricantes de paz”, constituem tribunais paralelos aos da justiça urbana. A transação, como a arbitragem, pode dar lugar à redação de um ato escrito, em geral passado diante do notário. Essas fontes estão conservadas sobretudo nas cidades francesas meridionais, mas são menos numerosas que na Itália ou na Espanha. Permanecem raras no norte, se bem que o domínio dessas transações, que dependem daquilo que os historiadores da época moderna chamam de “infrajustiça”, tenha sido totalmente negligenciado pelos estudos medievais.

Conhece-se também muito mal os meios que os indivíduos e as coletividades usam para prevenir os conflitos entre grupos adversos, em particular a trégua. Trata-se da promessa que um indivíduo faz de não atacar seu adversário, pessoalmente ou por meio de sua parentela. Romper uma trégua implica infringir tanto a lei tácita, frequentemente retomada pela Justiça oficial, como a palavra dada. Durante muito tempo, os historiadores acreditaram que a trégua indicava uma prática empírica, que teria desaparecido no final da Idade Média. Na verdade, um estudo atento dos atos do Parlamento de Paris mostra que a trégua é um ato solene, praticado por todas as camadas sociais ao menos até o fim do século XV: e que para ser válida deve obedecer a um ritual que defina regras precisas, que variam segundo o costume da região concernente. A trégua não é a paz entre as partes contrárias, mas tenta evitar novos conflitos e pode chegar a uma paz privada quando as razões da desavença foram acercadas entre as partes, que podem recomeçar a compartilhar refeição e bebida.” (Justiça e paz – Claude Gauvard)

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