Editora: Unesp
ISBN: 978-85-3930-686-2
Tradução: Hilário
Franco Júnior (coord.)
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 704
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Sinopse: A
Idade Média deste dicionário não é de trevas, nem dourada; ela está próxima de
nós, e fez surgir problemáticas (o amor, o Estado, o trabalho, a cidade, a razão
e a fé) que ainda não conseguimos solucionar; mas também está distanciada pelo
tempo e pela história, exótica, enorme e delicada. Fruto de uma pesquisa em
andamento, este livro não termina aqui: deve inspirar um programa de reflexão permanente,
unindo os historiadores a seus leitores.
“Jerusalém e as cruzadas
Jerusalém ocupa lugar excepcional no espírito
dos crentes das três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo. Para os judeus, ela continua a ser a cidade de Davi, lugar de
eleição da realeza teocrática e centro político-religioso unificador do povo de
Deus. Quando os romanos a conquistaram no ano de 70, seus edifícios religiosos,
muralhas e o templo de Herodes foram destruídos a mando de Adriano, sendo a
cidade santa profanada e consagrada a Apolo. Com a diáspora, aos crentes
exilados restaram apenas lembranças dos vestígios intactos do Templo, isto é, das
fundações do muro de sustentação da esplanada mais conhecido como Muro das
Lamentações. Essa lembrança piamente conservada ligava-os às raízes e glórias
passadas, preservava sua identidade e projetava-os num futuro “restabelecimento
de Israel”, aspiração dos crentes de todas as épocas. Malgrado a dispersão e as
perseguições, a espera do tempo messiânico e a atenção meticulosa dedicada à
preservação das tradições garantem a continuidade de sua identidade étnico-religiosa.
Ligada a esses dois polos – o passado e o futuro – a peregrinação a Jerusalém
continua uma constante nas comunidades judaicas da idade Média, mesmo nas mais
integradas às sociedades dos países em que viviam.
Para os cristãos da Igreja primitiva, em sua maior
parte de origem judaica, Jerusalém acrescenta aos traços precedentes uma nova
sacralidade, vinda de Jesus. Ela suplanta a primeira, sem destruí-la, quando o
cristianismo, distanciando-se do judaísmo, tornou-se universal, supranacional e
multiétnico, comportando uma esmagadora maioria de fiéis oriunda do paganismo. Para
os cristãos, Jerusalém continua a ser a cidade de Davi, e, mais do que isso, a
cidade santa dos últimos dias, quando o Messias glorioso retornará a este mundo
para vencer Satã e o Anticristo antes de instaurar seu reino de justiça. Mas,
antes de tudo, ela é a cidade
de Jesus Cristo, onde ele surpreendeu os doutores do Templo pela sabedoria
de seus conceitos; onde pregou durante três anos com poder e milagres a fim de
conduzir o povo a Deus; onde celebrou a Santa Ceia com os doze apóstolos antes
que um deles o entregasse às autoridades judaicas e romanas; onde foi preso, condenado,
flagelado, desprezado, crucificado na parte mais alta da cidade, o Calvário; onde
morreu na cruz para a salvação de todos os que acreditavam que era seu
Salvador; onde seus restos mortais foram depositados num túmulo cavado na
rocha, de onde ressuscitou na aurora do primeiro dia da semana, o domingo de
Páscoa, que marca sua vitória sobre a morte que prefigura a de todos os fiéis
para os quais estará reservada, graças a ele, uma vitoriosa ressurreição no dia
do Juízo. Percebe-se bem o lugar fundamental de Jerusalém nas crenças cristãs,
principalmente naquelas relativas à pregação de Jesus, sua paixão e
ressurreição: o Templo (ou o que se acreditava que fosse); o Jordão, onde foi
batizado aos 30 anos, antes de seu ministério; o Calvário ou Gólgota; o túmulo
vazio, onde desde o princípio do século IV foi construída uma primeira igreja,
depois reconstruída e modificada várias vezes, a igreja do Santo Sepulcro.
Todos esses lugares santos tornaram-se pontos de peregrinação. Na
espiritualidade cristã, a sacralidade de Jerusalém é incomparável. Ela
ultrapassa infinitamente a de todos os demais santuários.
Para o islamismo, particularmente na época
medieval, a sacralidade de Jerusalém é bem menor. O primeiro de todos os
lugares santos, evidentemente, é Meca, centro da peregrinação à Caaba; depois
vem Medina, a cidade do Profeta, da qual Maomé teve que fugir. Pouco mencionada
pelo islamismo da Alta Idade Média, Jerusalém ocupava a terceira posição, com base
numa tradição tardia segundo a qual a viagem noturna do Profeta ao Céu teria
ocorrido a partir do lugar em que se situava a mesquita de Jerusalém, construída
por Omar após a conquista da cidade em 638. Nenhum lugar santo compara-se a
Meca, centro universal de peregrinações, embora Medina tenha lugar privilegiado
nessa hierarquia.
Além de cidade santa para todos,
estreitamente ligada à história de suas origens, Jerusalém é, para judeus e
cristãos, uma cidade de peregrinação com conotação religiosa e mística, com
ressonâncias soteriológicas e escatológicas.
As peregrinações a Jerusalém até o ano I000
A diáspora e a paganização forçada de
Jerusalém após a revolta nacionalista de I33 não puseram fim a seu prestígio
entre os judeus, menos ainda entre os primeiros cristãos. A antiga cidade
atraía visitantes desde a época da conversão do imperador Constantino, cuja
mãe, Helena, fez-se acompanhar até lá por uma expedição destinada a honrar os
lugares santos e procurar vestígios da vida e morte de Cristo. É ela que
reencontra a Verdadeira Cruz e outros instrumentos da Paixão, levando-os para
Constantinopla, a nova capital fundada pelo filho em 330. Edifícios religiosos,
como o do Santo Sepulcro (de longe o mais famoso), são construídos em Jerusalém
e suas imediações com o propósito de honrar e sacralizar tais lugares santos e
receber peregrinos.
Depois de Helena, outros personagens
importantes também vão aos lugares santos. Mas, na mentalidade religiosa da
época, a visita a tais locais repletos de história ainda não tem a dimensão que
ganharia posteriormente. Vai-se até lá por motivos ao mesmo tempo intelectuais
e místicos, para seguir os passos de Cristo em seu ministério terreno, para
encontrar uma atmosfera de espiritualidade, para reter na memória os fatos
mencionados nos textos bíblicos e evangélicos. Por razões intelectuais desse
tipo é que São Jerônimo deslocou-se à Palestina cercado de um grande número de discípulos
e de damas da alta sociedade romana. Pouco a pouco, entretanto, apesar das
forces reticências de vários Pais
da Igreja, ganha corpo a ideia de que as graças espirituais concedidas por
Deus aos fiéis em qualquer parte podiam ser encontradas com maior facilidade em
cercos locais repletos de espiritualidade, particularmente nos lugares sagrados
da Terra Santa. A voga das peregrinações aumenta então, nascida dessa aspiração
espiritual. A partir do século VII, ela está bem estabelecida e não se interrompe
com a conquista de Jerusalém em 638. Ela se amplia ainda mais sob Carlos Magno,
que obtém do califa Harun al-Rachid – com o qual estabeleceu boas relações
diplomáticas – autorização para ali construir diversos edifícios religiosos ou
de hospedagem, passando a considerar-se “protetor dos lugares santos”. Em
seguida, a lenda apropriou-se do fato, transformando o imperador em precursor
da Cruzada.
Pode-se admirar a pouca repercussão nos
textos contemporâneos da tomada de Jerusalém pelos muçulmanos. As razões são múltiplas.
No Oriente cristão, já bem distanciado do Ocidente por razões de língua,
cultura, práticas eclesiais e litúrgicas, Constantinopla, cidade imperial, sede
de um governo que se considerava lugar-tenente de Deus e investido da missão
universal de governar o inundo, ultrapassara largamente o prestígio de
Jerusalém. Em Bizâncio, a tônica era colocada no poder do Cristo ressuscitado,
e não em sua Paixão. Cristo reina. A Jerusalém celeste supera, portanto, a
cidade santa da Palestina. A noção de peregrinação era igualmente menos
desenvolvida no Oriente que no Ocidente. Jerusalém estava menos presente no
coração dos orientais do que dos ocidentais.
No Ocidente, era a perenidade da peregrinação
que importava. Ela foi assegurada pela tolerância dos muçulmanos para com as
religiões reveladas, monoteístas. Os cristãos eram, em geral, autorizados a se
deslocar aos lugares santos mediante o pagamento de uma taxa. Não quer dizer
que a perda de Jerusalém e, de maneira geral, a derrota diante do Islã, tenham sido
admitidas sem reclamações. Mas a própria amplitude e rapidez da vitória (em
menos de um século, as conquistas do Islã estendiam-se dos Pireneus ao Indo)
levou-os a considerá-la como vontade de Deus, como um castigo pelos pecados de
seu povo. No Oriente e na Espanha, alguns escritos polêmicos relacionavam o
islamismo com as calamidades do fim dos tempos, assimilando seu papel ao do
Anticristo. Todavia, o Ocidente da época feudal, voltado para si mesmo, muito
ocupado em proteger-se das invasões húngaras, sarracenas e sobretudo normandas,
mergulhado em lutas frequentes e guerras privadas entre principados e senhorios
vizinhos numa época em que o poder efetivo das monarquias declina, ignora tanto
o Islã quanto Bizâncio, lançando-os num mundo de sonhos, de mito, revestindo-os
de virtudes e vícios imaginários.
No entanto, viajantes não deixam de
frequentar as rotas de Jerusalém. As peregrinações conhecem um prestígio
crescente entre os cristãos do Ocidente. O primeiro impulso situa-se no século
VIII com o desenvolvimento das penitências tarifadas. Para obter remissão plena
dos pecados revelados em confissão, a Igreja exige a realização de uma
penitência satisfatória. Esta pode ser a entrada do penitente num mosteiro, a
abstinência alimentar ou sexual, o exílio, ou qualquer outra forma de sanção
especificada nos penitenciais, que prescrevem para cada falta a correspondente
punição. No caso das graves (assassinato, adultério, incesto), a Igreja exige
cada vez mais como compensação a viagem até um lugar santificado, o túmulo de
um santo por exemplo. Jerusalém é a peregrinação bem acima de todas, graças ao
túmulo (vazio) do ressuscitado. As peregrinações são objeto de votos
individuais, podem ter motivações pessoais diversas, ser voluntárias, intelectuais
ou místicas. Elas contribuíram para perpetuar na mentalidade religiosa dos
cristãos ocidentais o lugar privilegiado de Jerusalém.
Jerusalém e as peregrinações no século XI
A peregrinação ganhou considerável impulso no
período feudal. Ela é facilitada pela conversão ao cristianismo, por volta do
ano 1000, do reino da Hungria, que até então tornara perigosa ou mesmo
impossível sua realização por via terrestre. Doravante, esse caminho está
aberto aos peregrinos do centro e do noroeste da Europa, possibilitando assim
as peregrinações em massa. Ela é muito mais barata que a efetuada por via
marítima, além de menos perigosa, evitando naufrágios, piratas e incêndios que
ameaçavam os navios. Vê-se então aparecer com frequência nos textos menções a peregrinações
envolvendo grande número de pessoas pertencentes a todas as categorias sociais.
O crescente sucesso explica-se também por uma mudança de mentalidade religiosa.
A peregrinação corresponde perfeitamente bem à espiritualidade dos leigos que
aspiram pela salvação, particularmente os guerreiros, os cavaleiros, que a
Igreja manteve por muito tempo sob suspeita em razão de sua profissão. No
século III, Hipólito de Roma, Orígenes, Tertuliano e muitos outros não admitem
que um cristão possa atuar como soldado, e os que persistem devem ser excluídos
da Igreja. Mesmo depois da cristianização do Império Romano, Santo Agostinho tem
que recorrer ao seu talento oratório para persuadir os soldados que Deus
aceitava a condição deles, que podiam servi-lo com o uniforme militar, que quem
matava numa guerra justa, declarada por autoridade legítima com o fim de defender
o império, restabelecer a justiça ou retomar terras e bens espoliados, não era
verdadeiramente culpado do pecado de homicídio, devendo contudo realizar
penitência por ter tirado a vida de uma criatura de Deus.
Apesar dessa defesa, a interdição feita ao
clero de derramar sangue e de manter relações sexuais exprime a desconfiança da
Igreja com respeito aos dois polos de atração dos leigos, principalmente dos
cavaleiros: o amor e a guerra. Não obstante a crescente promoção da atividade militar
e o interesse da Igreja em sacralizar pela liturgia se não toda a cavalaria,
pelo menos aquela que se colocava a serviço de estabelecimentos eclesiásticos (como
protetores ou defensores de mosteiros e bispados), subsiste ainda nos séculos
XI e XII forte prevenção nesse sentido. Para eminentes autores cristãos, militia
(milícia) rima com malitia (malícia), não se podendo jamais exercer
o ofício da guerra sem pecado. Apenas seriam puros e alcançariam o Paraíso
aqueles que combatessem em nome de Deus pela prece, nas fortalezas da fé que
são os mosteiros.
Ao mesmo tempo, a aspiração dos leigos à salvação
e a necessidade que a Igreja tem de defensores armados para sua proteção e de
guerreiros para fazer sua causa triunfar, levam-na a franquear o acesso ao
reino de Deus àqueles que, no perigoso estado de guerreiro, levem uma vida
honrada. Por volta de 930, o abade Eudes de Cluny traça o retrato de um leigo
que ele dá como modelo aos monges: Geraldo de Aurillac, príncipe e santo apesar
da sua condição e o uso da espada. Como veremos um século mais tarde, a
valorização dos guerreiros irá muito mais longe, mas desde já os cavaleiros podem
esperar, na sua condição, um acesso possível ao reino de Deus.
Isto se no exercício de sua profissão militar
não infringirem as proibições da Igreja, lembradas pelas instituições de paz
desde o fim do século X. Com a incapacidade das autoridades civis,
particularmente na França, em assegurar a ordem, paz e proteção das igrejas,
dos clérigos e das populações desarmadas, a Igreja, não podendo proibir, tentou
limitar as guerras privadas entre os cavaleiros. Tais conflitos não se
enquadram na categoria de guerras justas: não são promulgados por autoridade
legítima e quase sempre tem como causa interesses particulares, desejos de
vingança (faide) ou a busca da vanglória (como será mais tarde o caso do
torneio); pior ainda, dão lugar a pilhagens, massacres, abusos diversos em que
as vítimas são os inermes, os que não portam armas. Frequentemente lembradas
nos concílios de paz que se multiplicam após o de Charroux (989), na Aquitânia,
depois em todo o Sul da França e em toda a Europa ocidental, as prescrições da
paz de Deus tentam interditar aos cavaleiros, sob pena de excomunhão, que
roubem, ataquem, raptem ou exijam resgate de pessoas desarmadas. As prescrições
da trégua de Deus buscam proibir toda ação guerreira da tarde de sexta-feira à
manhã de segunda-feira, em memória da paixão de Cristo, bem como por ocasião
das principais festas litúrgicas. Por esses meios, a Igreja quer se proteger de
exações impostas por cavaleiros saqueadores e limitar os prejuízos causados às
populações civis.
Entretanto, a própria frequência dos
concílios de paz indica a existência de inúmeras infrações. A peregrinação era
um dos meios empregados na reabilitação dos contraventores, sendo também
prescrita a adúlteros, homicidas e para a maior parte das faltas graves ligadas
ao sexo e ao sangue, às quais os cavaleiros estavam em geral expostos.
Assumindo temporariamente a condição de penitente, vestido com traje
característico, andando descalço (pelo menos na partida e na chegada), o
cavaleiro abandonava por algum tempo o uso das armas e o exercício do poder,
pegando as estradas para orar nos santuários indicados, tocar o túmulo de um
santo, impregnar-se com a graça emanada dos eflúvios do perdão.
Jerusalém era o primeiro destino desses
peregrinos. As crônicas dos séculos X e XI mencionam inúmeros casos de
príncipes que procuravam no Sepulcro a remissão de seus pecados. Entre 1002 e
1039, Fulco, conde de Anjou, para lá se dirigiu três ou quatro vezes porque
tinha derramado muito sangue e temia o Juízo e a Geena que estariam por vir. Em
1035, encontrou-se com Roberto, o Magnífico, da Normandia, pai de Guilherme, o
Conquistador, que parece ter feito voto de peregrino após a acusação de ter
mandado envenenar o irmão. Os príncipes laicos não eram os únicos a se lançar
no caminho do Santo Sepulcro, pois sabe-se que, ao longo do século XI, vastos
grupos de peregrinos laicos e eclesiásticos pegaram a estrada juntos. Em I026,
Ricardo, abade de Saint-Vanne de Verdun, levou um grupo com quase setecentas
pessoas, entre as quais Guilherme Taillefer III, conde de Angoulême, com seus
aquitanos, Eudes de Déols com seus franceses, além de flamengos, picardos etc.
No caminho, ele é lapidado por realizar missa em terra muçulmana, mas sobrevive
e leva uma relíquia da Verdadeira Cruz dentro de um saquinho disfarçado e
pendurado no pescoço. Esse episódio ilustra bem o entusiasmo pela peregrinação
a Jerusalém e pelas relíquias (falsas e verdadeiras) que abundavam no Oriente,
e que o Ocidente desejava delirantemente para sacralizar seus santuários e suas
cerimônias. Algumas dessas relíquias estão diretamente relacionadas com o
Sepulcro e dão lugar, quando do retorno à França, à consagração de um santuário
ou de uma igreja destinada a abrigá-las, com frequência construída à semelhança
da do Santo Sepulcro. Segundo um cronista do Anjou, por ocasião de uma de suas
peregrinações, Fulco Nerra teria sido impedido por muçulmanos de entrar no
Sepulcro. Eles só autorizaram com uma condição: por derrisão, ele deveria
urinar no rochedo do Sepulcro. Piedoso, mas astuto, Fulco escondeu entre as
pernas um odre cheio de vinho e, simulando o gesto, conseguiu autorização para
orar naquele lugar. Ele teve sua recompensa: ao beijar o rochedo, sentiu-o
milagrosamente amolecido e arrancou um pedaço com os dentes, levando-o
escondido para o Anjou junto com um pedaço da Verdadeira Cruz que comprara no
caminho. Para guardar as relíquias e honrar o Santo Sepulcro, mandou construir
a igreja de Beaulieu.
Esses poucos exemplos bastam para ilustrar a
espiritualidade dos leigos, principalmente dos cavaleiros, no século que
precedeu a Cruzada. Violentos, mas em sua maior parte piedosos, de uma piedade
que pode nos parecer supersticiosa, cerimonial, formal, conscientes de praticar
uma atividade arriscada e ainda malvista pela Igreja, eles aspiram à
santificação, mas não querem trocar a couraça pelo hábito monacal. Sentindo-se
mal interiormente, divididos entre o sentimento de culpa e o sentimento de
orgulho por pertencer a uma condição social que veneram, estão dispostos a
expiar suas faltas em sua própria condição, sem abandonar seu estatuto, por
meio de obras piedosas, doações, fundação de igrejas e mosteiros, peregrinações
distantes. A guerra santa e a Cruzada fornecerão a eles a satisfação de acumular
de uma só vez, e sem abandonar as armas, as esperadas benesses espirituais para
a remissão dos pecados.” (Jerusalém e as cruzadas – Jean Flori)
“O que os poderes reprovam nas práticas
lúdicas (dos jogos)? Já se disse, as autoridades eclesiásticas veem nelas uma
encarnação do mal. Os jogos são perda de tempo, dom divino por excelência,
atividades geradoras de distúrbios morais e sociais diversos, eles afastam de
Deus e dos labores que se fazem ao serviço do próximo. Já que se revela
impossível extirpá-los, convém controlá-los e limitar seu uso: os clérigos
devem se esquivar deles e o leigos se limitar a uma prática moderada, entre
gente honesta e com apostas bastante reduzidas. Os jogos que permitem a
intervenção do azar, quer dizer, todos aqueles que podem aparecer ao mesmo tempo
como meios de tentar Deus e como atividade usurária, devem ser severamente
proscritos. Esse discurso global da Igreja, cuja argumentação é bastante pobre,
dificilmente convence, também em razão das fraquezas do próprio corpo eclesiástico
em face das seduções do jogo.
Em relação aos jogos, os poderes civis ocupam
uma posição ambígua. Ligados aos poderes eclesiásticos, eles se acham presos
entre a tentação de eliminar uma atividade reputada antissocial e imoral e o
desejo de controlar o que lhe escapa. Os jogos, com efeito, são perturbadores
da ordem social. Não somente transtornam a ordem pública devido às numerosas dissensões
que suscitam, mas, além disso, desviam das atividades úteis ao bem comum dando
a ilusão de ganhos fáceis, tendendo a apagar a frágil fronteira entre o tempo
do trabalho e o tempo do repouso, fronteiras pela defesa da qual resistem
príncipes, senhores e autoridades municipais. Por todas essas
características, o jogo é considerado subversivo.
Não tendo nem os meios, nem a vontade de
lutar eficazmente contra a paixão do jogo, os poderes públicos, cansados de
combater, encontram-se na obrigação de transigir. Já em I369, Carlos V
interdita todos os jogos com a finalidade de favorecer apenas um, o tiro com
arco. Essa medida, inspirada por disposições idênticas dos príncipes ingleses,
parece ainda se ligar à preocupação com o bem público, quer dizer, com a defesa
do reino. Em seguida, de uma atitude repressiva para com os jogos, os poderes
passam progressivamente a uma abordagem fiscal. Uma vez que os jogos existem e que
não é possível lutar contra eles, melhor tentar tirar proveito material ou moral.
Semelhante transformação explica a multiplicação das casas de jogos controladas
pelas autoridades. Os duques de Borgonha, mais tarde imitados por outros
príncipes, tornaram-se mestres na utilização das casas de jogos em seu proveito
exclusivo, quer seja material ou político. Com efeito, essas casas foram seu
instrumento preferido tanto para cobrir os déficits permanentes quanto para
recompensar ou assegurar-se sólidas fidelidades.
Mais numerosos, mais diversificados, regrados
e regulamentados, os jogos do Ocidente medieval traduzem a evolução geral da
sociedade. Sua transformação interna dá conta da vontade de reduzir o papel do
acaso, deixando-lhe, ao mesmo tempo, uma parte não negligenciável que permite
assumir as prudências aborrecidas da vida cotidiana. A ela se acrescenta o
êxito do gosto do risco nascido da emergência de práticas econômicas de
marcadas características agonísticas, a ponto de se expandirem pelo mundo
inteiro.
O futuro dos jogos é de início selado pelo
reconhecimento de suas aptidões pedagógicas. “De todo homem se pode fazer um
homem”, dirá Comenius no século XVII. Por recorrerem a práticas primitivas,
portanto instrutivas, por lembrarem a todo momento, ao mesmo tempo que os
eufemizam, um certo número de interrogações fundamentais para o homem (a vida
ou a morte, a graça ou a danação, a vitória ou a derrota), os jogos fazem parte
da formação do indivíduo. A evolução do reconhecimento de tais capacidades confunde-se
com a história dos jogos ao longo da Idade Média.
Tal história não pode ser separada da história
do lento nascimento do Estado moderno, que visa pacificar o espaço social
apoderando-se do controle dessa pacificação. Nesse sentido, a evolução dos
jogos medievais traduz perfeitamente o processo de civilização evidenciado por
Norbert Elias. Quando, no século XIII, os goliardos, clerici vagantes, celebravam
o jogo por provocação, iam de encontro aos valores da sociedade feudal. No
século XV, jogar é um gesto tolerado, se não reconhecido ou exaltado, que pode
fazer parte de uma sociabilidade aristocrática ou burguesa. “As ruas da cidade estarão
de novo cheias de homens jogando”, já dizia o profeta Zacarias. (Jogo – Jean-Michel Mehl)
“As regras da vingança privada
Um estudo atento dos modos de resolução dos
conflitos mostra que a vingança não tem livre curso sem suas próprias leis, que
conduzem também à paz. O crime mais frequente, o homicídio cometido para vingar
a honra ferida, é regulado pelo respeito a certo número de rituais que conduzem
à paz. Esse procedimento começa pela fuga do culpado, que demonstra, assim, aos
olhos de todos, a beleza de seu gesto – o homicídio é um “feito admirável” – e que
marca a reabilitação necessária da honra. Essa partida purifica também o
território que o sangue da vítima havia manchado. Permite, enfim, aos pais ou
parentes das duas partes reparar o tecido social que o crime rasgou. A fuga do
assassino é, portanto, o prelúdio necessário à instalação do processo de paz.
Seguem-se discussões em que os ·pais” e os “amigos” das duas partes negociam o
acordo. Esse pode ser finalmente selado através de rituais que escapam em
grande parte ao historiador, em particular quando se trata de simples transação
que não deixou traços escritos. A paz é “acordada”, isto é, jurada ao final da
cerimônia, que quase sempre supunha a troca de uma refeição, de bebida, às
vezes um beijo na boca, com eventual promessa de casamento, que une os pais e
previne futuras guerras. O conhecido adágio dos antropólogos verifica-se aqui:
casa-se com seus inimigos. Essas cerimônias ritualizadas são geradoras de esquecimento,
de oscilação na direção do estado de paz, que cria o “bom amor” entre as
partes. Compreendem também uma indenização material em dinheiro ou presentes, cujo
significado não é apenas reparador. O preço do sangue é uma doação destinada a
fazer renascer entre as partes o amor que o crime havia destruído. Assim nasce
a transação, a paz privada entre as partes. Todos os tipos de delitos podem ser
objeto de transações: roubos, estupros, ruptura de salvo-conduto etc. Com
certeza, esse expediente não é obrigatoriamente rápido porque as palavras e as
discussões entre as partes demandam tempo. O certo é que, durante esse período
de espera, a paz é frágil, ameaçada pelas eventuais intervenções de “pais” e “amigos”,
que de um lado e do outro podem intervir para prolongar a vingança e
transformá-la em vendetta. Ainda assim, o conflito está em curso de
regularização. Para apressar, ou para proteger a paz ameaçada, as partes podem
recorrer a um ou a vários árbitros. A transação assume, então, a forma de
arbitragem. Quando a oficia, o árbitro não é um juiz, mesmo se frequentemente
acontece de ele exercer essas funções em outros lugares. Os árbitros são, em
geral, recrutados entre os boni homini, isto é, os notáveis da cidade,
entre homens em contato com o direito, ou juristas qualificados, ou simplesmente
entre os “especialistas” de fato, o taberneiro ou o pároco. Estes últimos
impõem-se seja pelo seu saber, seja por pertencerem a redes de sociabilidade
estreita, o que facilita a publicidade feita à paz privada. Nas cidades do
norte, os árbitros, chamados de “pacificadores” ou “fabricantes de paz”,
constituem tribunais paralelos aos da justiça urbana. A transação, como a
arbitragem, pode dar lugar à redação de um ato escrito, em geral passado diante
do notário. Essas fontes estão conservadas sobretudo nas cidades francesas
meridionais, mas são menos numerosas que na Itália ou na Espanha. Permanecem
raras no norte, se bem que o domínio dessas transações, que dependem daquilo
que os historiadores da época moderna chamam de “infrajustiça”, tenha sido totalmente
negligenciado pelos estudos medievais.
Conhece-se também muito mal os meios que os
indivíduos e as coletividades usam para prevenir os conflitos entre grupos
adversos, em particular a trégua. Trata-se da promessa que um indivíduo faz de
não atacar seu adversário, pessoalmente ou por meio de sua parentela. Romper
uma trégua implica infringir tanto a lei tácita, frequentemente retomada pela Justiça
oficial, como a palavra dada. Durante muito tempo, os historiadores acreditaram
que a trégua indicava uma prática empírica, que teria desaparecido no final da
Idade Média. Na verdade, um estudo atento dos atos do Parlamento de Paris
mostra que a trégua é um ato solene, praticado por todas as camadas sociais ao
menos até o fim do século XV: e que para ser válida deve obedecer a um ritual
que defina regras precisas, que variam segundo o costume da região concernente.
A trégua não é a paz entre as partes contrárias, mas tenta evitar novos
conflitos e pode chegar a uma paz privada quando as razões da desavença foram
acercadas entre as partes, que podem recomeçar a compartilhar refeição e
bebida.” (Justiça e paz – Claude Gauvard)
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