domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário Analítico do Ocidente Medieval – Volume II (Parte II), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-3930-686-2

Tradução: Hilário Franco Júnior (coord.)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 704

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Sinopse: Ver Parte I



“À medida que se desenvolve, pode a justiça oficial e legal impor a paz? A pergunta coloca o problema em termos políticos. As decisões judiciárias têm impacto suficiente para reparar o tecido social? Os objetivos que a justiça medieval persegue são aparentemente claros: entregar a cada um o que lhe é devido. Ainda nisso, as definições teóricas são repetitivas. João Bouteiller as resume perfeitamente, ao dar esta definição de justiça: “Justiça, segundo a lei escrita, é uma constante e perpétua vontade que confere a cada um seu direito”. Decorre disso uma concepção retributiva da pena, quer dizer, o criminoso é, antes de tudo, punido porque cometeu um crime, mais do que para reprimir o crime ou preveni-lo. Contudo, a justiça ainda se exerce amplamente pelo exemplo e por meio de um terror coercitivo que o poder justiceiro pretende impor. A presença de cadáveres nas forcas tem um valor dissuasório. Os teóricos do final da Idade Média, como Cristina de Pisano, justificavam as virtudes de uma justiça exemplar: para que “os maus não ousem perseguir os bons”, porque “eles bem saberão que a justiça do príncipe os perseguirá”. Mas a justiça tem a eficiência que desejam os teóricos? A pena de morte é raramente aplicada e seu desenvolvimento precisa da adesão da população, que deve manifestar sua unanimidade diante da exclusão suprema, tanto ela a aterroriza. As condenações à morte podem ser, aliás, objeto de violentas críticas, conhecer tumultos populares que põem em causa a ação do juiz. Este, às vezes, é obrigado a mudar seu julgamento, estabelecendo uma multa honrosa sob pena de ver sua decisão ser considerada homicídio e tornar-se objeto de uma vingança. Essas ações contra a justiça oficial mostram que ela não é garantia total da paz e que a decisão do juiz ainda está longe de ser soberana.” (Justiça e paz – Claude Gauvard)

 

 

Liberdade e servidão

No início, tudo está claro. A barreira que, na Antiguidade, separava liberdade e servidão não apenas se mantém como até se reforça. Os códigos jurídicos (lei sálica, lei dos visigodos, dos lombardos etc.) que os soberanos do Ocidente promulgam entre os séculos VI e VIII fundam todas as suas prescrições sobre essa clivagem essencial. A liberdade continua sendo definida segundo as normas da tradição romana, como demonstram claramente as fórmulas de alforria de escravos usadas na época merovíngia: “Eu absolvo este escravo de todo laço de servidão para que doravante, como se tivesse nascido de pais livres, vá a qualquer lugar que deseje e, como os outros cidadãos romanos, leve uma vida livre”. O homem livre é aquele que pode circular livremente, que goza de capacidade jurídica alheia a entraves (poder de subscrever contratos, de transmitir herança...) e que, sobretudo, é protegido por um estatuto: ninguém pode castigá-lo arbitrariamente, posto que se submete apenas à jurisdição dos tribunais públicos. A essa concepção romana de liberdade acrescenta-se uma outra, de origem germânica: o homem livre é aquele que porta armas, participa das expedições guerreiras e é admitido na partilha do butim.

O escravo não tem estatuto. A escravidão não é uma condição, mas um estado. Sua definição só poderia ser negativa: inteiramente submetido ao poder de seu senhor, o escravo (servus, ancilla, mancipium) não possui recurso algum contra aquele que pode castigá-lo impunemente. Ademais, ele está ao mesmo tempo totalmente alienado em suas funções de produção (não pode possuir e; portanto, os frutos de seu trabalho escapam-lhe totalmente) e de reprodução (não pode escolher seu cônjuge e não detém poder algum sobre seus filhos, dos quais seu senhor dispõe à vontade. Longe de atenuar-se, a condição dos escravos parece, na verdade, agravar-se no decorrer dos séculos V e VI. A Igreja, de fato, encoraja as alforrias, mas ela própria não as pratica, coibindo-as no interior de seus domínios: libertar os escravos implicaria reduzir o patrimônio de Deus, repetem em uníssono os concílios da época. Pela voz de seus doutores (Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha...), proclama ainda a legitimidade e a necessidade da escravidão, concebida como meio providencial de redenção da humanidade através da penitência. No âmbito da sociedade civil, o escravo é deliberadamente rebaixado ao nível de um animal. Nas leis dos séculos VI a VIII, as cláusulas relativas à venda de escravos encontram-se em meio àquelas que se referem ao comércio do gado. O mesmo acontece em relação aos furtos: na lei sálica, o roubo (ou o assassinato, pois o dano é equivalente) de um escravo é punido com uma multa de 35 soldos, maior do que a estabelecida para o caso de um porco (I5 soldos), porém menor do que a relativa a um cavalo ou touro (45 soldos). Tal assimilação ao gado redunda em consequências diversas para a mão de obra escrava, dentre as quais a mais importante consiste em um processo de dessocialização, fenômeno observado em todas as sociedades escravistas: o homem livre reduzido à escravidão perde, por exemplo, todo vínculo familiar, e sua mulher pode casar-se novamente ao fim de um ano como se fosse viúva. Decorrem daí também todos os tipos de proibições de caráter sexual: as uniões entre mulheres livres e homens escravos são comparadas às práticas de bestialidade e reprimidas com a pena capital. Com relação aos castigos, o chicote e o porrete são recursos costumeiros. O direito de vida e morte do senhor sobre o escravo foi abolido apenas no reino visigótico da Espanha, mas mesmo lá a situação dele não melhorou: os senhores privados do direito de matar seus escravos recalcitrantes, submetem-nos com frequência a terríveis mutilações.” (Liberdade e servidão – Pierre Bonnassie)

 

 

“No domínio literário, como em outros, a Idade Média ocidental é para nós desconcertante, porque nos é, ao mesmo tempo, estranha e familiar. Nessa e em outras áreas, não há outra escolha, de início, que recusar uma familiaridade sempre fundada em mal-entendido. É preciso convencer-se de que o objeto é opaco para que se faça clara a necessidade de uma hermenêutica. Mas, especialmente no âmbito da literatura, o familiar resiste e é inútil fingir que ele não existe. Isso também seria mau método. Não se pode, à leitura de um texto, pretender abstrair-se da própria sensibilidade e economizar na fruição, sob pena de enganar-se ainda mais. Não temos outra escolha senão confiar em nós mesmos, sabendo que nos enganamos, e corrigir nossa recepção por aquela que o cotejo e o encadeamento das obras permitem reconstituir ao longo dos séculos. Se é verdade que a Idade Média “durou desde o século II ou III de nossa era para morrer lentamente aos golpes da Revolução Industrial” (J. Le Goff), como nos impedir de ouvir ecos, alguns ainda próximos de nós? E por que nos privarmos? Nesse e noutros casos, como encontrar a distância correta?” (Literatura (s) – Michel Zink)

 

 

“O domínio do mar supõe o conhecimento das costas: os portos de descanso, Pola, Messina, Penmarch, Audierne, fornecem pilotos que conhecem as dificuldades, as correntes, os fluxos e refluxos das águas, bem como os locais de refúgio. As coleções de cartas marítimas, desde Bakri no século XI, permitem precisar a localização e, no século XIII, os portulanos, acompanhados de um mapa, permitem a navegação em alto-mar com a ajuda da bússola: seguem-se os ângulos que desembocam em um litoral que se reconhece pela descrição dos livros.

Os equipamentos costeiros, faróis, diques, portos escavados, conservam alguns traços da técnica romana. A preparação de portos é retomada nos litorais muçulmanos no século X, desenvolve-se na Apúlia no século XIII, multiplicam-se os molhes (Gênova, Maiorca em 1270, Nápoles em I302) levantados com pedras, depois com caixotes, e logo tornados comuns: San Remo, Palermo, Barcelona, Valência, Alicante. São os arquitetos meridionais, sicilianos e genoveses, que generalizam o equipamento com faróis, sinalizadores e cais de madeira. Sabe-se, enfim, escavar portos artificiais, como em Aigues-Mortes.

 

O mar nutridor

Tudo repousa inicialmente na pesca costeira. Até o século XII, numa conjuntura demográfica reduzida, ela se faz apenas em estuários e lagoas. Mas o consumo estimula a seguir a exploração dos ricos litorais mediterrâneos e a pesca dos peixes azuis, da sardinha e do atum, na rota das desovas; também estimula a pesca oceânica em alto-mar e a comercialização em toda a Europa no século XV do arenque do Mar do Norte e do bacalhau salgado e seco.

No Mediterrâneo, a pesca baseia-se num patrimônio de saberes e técnicas: redes fixas e móveis, combinadas com a lâmpada;1 redes atiradas da terra; linhas de fundo; almadravas, grandes armações fixas em canais e rios para reter o peixe ou para capturar anádromos como o sável, que sobem os cursos d’água.

A demanda sazonal de peixe no mundo cristão, às sextas-feiras e por ocasião da Quaresma, gera tensão entre consumidores e salgadores, estes últimos acusados de monopolizar os peixes frescos. Com efeito, uma cultura alimentar formada no garum antigo, aprecia o sabor do peixe salgado, das ovas de peixe, do arenque salgado e defumado, e faz do peixe fresco uma necessidade: nas aldeias, ele é transportado às pressas, de noite. A hierarquia dos sabores e preços exalta inicialmente os grandes peixes “reais” (esturgão, lampreia), depois o peixe gordo, baleia, marsuíno, enfim o peixe branco e o peixe azul.” (Mar – Henri Bresc)

I No original francês, lamparo: palavra de origem provençal ingressada apenas no século XX no vocabulário francês, para indicar a modalidade de pesca na qual se utiliza uma lâmpada para atrair os peixes. [HFJ]

 

 

“Porém, para o homem medieval, o maravilhoso exerce, sobretudo, uma função de realização, não de evasão. Ele dilata o mundo e a psique até as fronteiras do risco e do desconhecido. Inserindo-se no natural e no real, ele o amplia e o complementa. Faz do surpreendente e do extraordinário o motor do saber, da cultura e da estética da Idade Média. Estimula a abrir bem os olhos para a criação e o imaginário. Inspira uma cultura do surpreendente. Faz acreditar na criatividade e na audácia infinitas de Deus e de sua criatura, o homem. E sabe mesmo extrair o mel das fantasmagorias diabólicas. O maravilhoso amplia a realidade vista e conhecida até as fronteiras do universo e da alma humana, consolando de suas frustrações a criatura decaída pelo Pecado Original, o cristão medieval, a quem entreabre uma janela para os segredos de Deus e da Criação.” (Maravilhoso – Jacques Le Goff)

 

 

“A noção de marginalidade fez sua entrada no campo das pesquisas antes da Primeira Guerra Mundial através da sociologia americana. Esses escudos definiam o “homem marginalizado” como um ser que se recusava a participar da vida social, ou que dela estava excluído. O marginal funcionava na junção de duas culturas, uma universalmente reconhecida, outra seja enraizada no passado (no caso dos imigrantes), seja engendrada por oposição aos valores dominantes. Depois, quando se começou a considerar a marginalidade um fenômeno ligado à conjuntura, ela foi associada à desclassificação.

As pesquisas dos historiadores da marginalidade e da exclusão seguiram duas direções: de uma parte, a análise dos processos de marginalização e evolução dos marginais; de outra parte, a análise do olhar que a sociedade possui sobre si mesma. Os trabalhos dessas duas correntes ligam a ideologia da exclusão e os processos de marginalização às transformações das estruturas ·econômicas, sociais e culturais.

A marginalização, voluntária ou involuntária, tem como causa principal, na grande maioria dos casos, a desclassificação. O marginal não participa dos privilégios materiais e sociais, da divisão do trabalho e das funções sociais, das normas e da ética social em vigor no conjunto da sociedade. A preponderância de elementos negativos nessa descrição decorre do fato de que ela se refere a uma realidade da sociedade global na qual as instituições definem o que constitui sua margem. Essas instituições da ordem estabelecida procedem à marginalização dos grupos e indivíduos considerados como inúteis à ordem comum. Elas reforçam o modelo estabelecido e reprovam a recusa de nele participar. Cada época produz seus marginais.” (Marginais – Hanna Z. Aremska)

 

 

“É possível abordar esses inúmeros sentidos de memoria por meio de três tipos de pesquisa histórica. Assim, pode-se estudar a memória social considerando-a como o processo que permite à sociedade renovar e reformar sua compreensão do passado a fim de integrá-lo em sua identidade presente. Nesse sentido, a memória social compreende a memoria litúrgica, a historiografia, a genealogia, a tradição oral e outras formas de produção e de reprodução culturais por intermédio das quais os indivíduos e os grupos vivem com o passado. A história da memória compreende a memória educada, quer dizer, as técnicas mnemônicas que os intelectuais utilizavam para armazenar e encontrar informações. Um último aspecto importante dessa história é a teoria da memória, e particularmente as teorias platônicas e aristotélicas que constituem partes essenciais da psicologia, da epistemologia e da teologia medievais.

Todos esses campos são, evidentemente, enriquecidos pelos conhecimentos da psicologia moderna sobre a memória, que a descreve como um processo dinâmico, criador e transformador. Lembrar-se e rememorar significam a comparação de novas mensagens com o que já se conhece, a organização e a transformação dessas experiências inéditas com a ajuda de modelos como imagens, analogias, etiquetas ou sequências lógicas que permitem compreendê-las e rememorá-las. Esses modelos formam, por outro lado, a estrutura da semântica da memória, que transforma as próprias recordações para permitir essa assimilação. (...)

A memoria litúrgica, no sentido de memorização da liturgia e da comemoração por meio da liturgia dos vivos e sobretudo dos defuntos, fazia dos profissionais da religião verdadeiros especialistas da memória dentro da sociedade medieval. No Império Otônida, essa responsabilidade era incumbência específica das cônegas. Na França, esse papel era desempenhado essencialmente pelos monges reformados. A maneira como eles exerciam essa função oferece-nos uma imagem exemplar do que era a memória medieval. Primeiro, ela era essencialmente oral e cerimonial: a memória exprimia-se em um contexto social. Segundo, apesar de sua característica oral o emprego de textos era importante e variado. Estes serviam de lembrete no caso das execuções musicais e nas recitações dos nomes dos defuntos no capítulo. Além de sua utilização local, os textos permitiam transportar e transmitir a memória: os neumas foram, talvez, introduzidos de início para facilitar a difusão de tradições musicais de um lugar para outro. Da mesma forma, os rolos mortuários que circulavam entre as comunidades religiosas permitiam a comemoração dos mortos não só nos costumes locais. Terceiro, a simples escrita do nome dos mortos garantia a presença espiritual deles, mesmo sem a leitura de seus nomes. Normalmente, os libri memoriales não eram lidos durante a liturgia. A presença deles sobre o altar era suficiente para que as pessoas cujos nomes ali figuravam se beneficiassem da missa. Por isso, certos monges ·escreviam ou gravavam seus nomes diretamente no altar, a fim de estarem presentes em todas as celebrações da missa feitas naquele local. ·Enfim, a memoria monástica não era uma atividade passiva, mas ativa: ela selecionava, corrigia e reinterpretava constantemente o passado em função das necessidades do presente. Tratando-se da comemoração dos protetores leigos, isto implicava uma relação estreita entre a lembrança das doações e os necrológios nos quais se evocava a memória dos doadores. Os dois tipos de textos fecundavam-se mutuamente, de maneira que a memória da terra e a memória dos homens formavam um todo.” (Memória – Patrick Geary)

 

 

“Essa interpenetração da memória escrita e da memória oral não caracterizava apenas a memória litúrgica monástica. Ela se encontra em outras formas de conservação e de evocação do passado. Na sociedade cristã laica, a memorização e a comemoração também eram feitas pela associação de dados orais e escritos. Recordava-se o passado por meio dos nomes e da terra, ambos perpetuados e renovados pela transmissão dos nomes no interior das linhagens, e pela transmissão de terras e direitos. Como na comemoração litúrgica, essa transmissão e renovação eram atos públicos e solenes aos quais os membros das comunidades locais não se contentavam apenas em assistir, mas dos quais participavam ativamente. O ato era facilitado pelo recurso a procedimentos mnemônicos como a aliteração, as fórmulas, os lais, os refrões etc., que estruturavam o passado e tornavam a recitação mais fácil. Sem que possamos falar de civilização puramente oral, as tradições genealógicas, as canções de gesta e os recenseamentos de terras e heranças eram conservados e transmitidos dentro de estruturas que, ao mesmo tempo, facilitavam e limitavam sua reprodução.

Essas tradições orais e esses rituais públicos davam igualmente um sentido às narrativas escritas do passado. Se fosse necessário preparar uma carta estabelecendo ou confirmando uma doação, uma venda, uma troca ou um outro direito, o conteúdo do documento tinha menos importância do que o ato de sua preparação e entrega. A tal ponto que o pergaminho relativo à transferência ou à confirmação reais podia estar em branco e ser redigido somente mais tarde. Por outro lado, nas contestações posteriores, a carta servia mais de lembrete do que de prova, e menos ainda de título legal no sentido moderno do termo. Dava-se muito mais importância ao testemunho sobre o que se passara durante esses atos solenes ou sobre o que fora renovado pelo exercício público da propriedade ou da suserania. Esses testemunhos eram pronunciados por pessoas juramentadas, cuja competência em contar o passado era reconhecida pelas duas partes.” (Memória – Patrick Geary)

 

 

“Durante a Idade Média, sob uma forma simplificada e empobrecida, essas perspectivas inspiram sem cessar os autores eclesiásticos, que, quando celebram os milagres de tal ou qual santo preferido, não deixam de opor ao caráter transcendente da graça divina a fraqueza do espírito humano, incapaz de alcançar a verdade por si só. Nos seus escritos afirma-se um sobrenaturalismo sem nuança, que resulta às vezes na dissociação implícita do milagroso e do espiritual. Assim, para Gregório de Tours, a realização de numerosos e gloriosos milagres constitui o principal critério da santidade de um confessor. Tudo se passa como se o bispado na época merovíngia tivesse buscado enquadrar os homens em uma rede de santuários taumatúrgicos junto dos quais podiam esperar encontrar ajuda e proteção nas suas provações. Pode-se perguntar que motivos incitaram os clérigos a fundamentar-se nos milagres, a ponto de lhes atribuir um lugar central na vida religiosa da época. Sem dúvida, essa atitude mostra uma certa “barbarização” das mentalidades, perceptível em outros campos, e um rebaixamento do nível cultural da sociedade. Mas ela só pode ser compreendida se admitirmos que a Igreja se confrontava naquele momento com a concorrência de um miraculoso não cristão que ela tentava derrubar: o do folclore pagão e de povos bárbaros superficialmente cristianizados. Um mundo de práticas pré-cristãs – que ia do simples porte de amuletos, filactérios ou talismãs até os ritos propiciatórios e a recitação de fórmulas de encantamento – permitia àquelas populações entrar em contato com o Além para obter, de acordo com a necessidade, chuva, paz ou saúde. De Isidoro de Sevilha aos penitenciais irlandeses e carolíngios, os autores eclesiásticos da época condenavam incessantemente tais atos, a seu ver censuráveis, e denunciavam-nos como sendo superstição ou magia. A cultura bíblica preparava os clérigos para essa confrontação: o livro do Êxodo conta que os mágicos do faraó eram rivais de Moisés nos milagres, os Atos dos Apóstolos descrevem o confronto entre São Pedro e o mago Simão, que seduzira o povo de Samaria com seus prodígios, o livro do Apocalipse ressalta que os do Anticristo, quando este se manifestar abertamente, enganarão até os eleitos. Conscientes do reduzido efeito das proibições, os clérigos procuraram sobretudo substituir o miraculoso pagão pelo miraculoso cristão, situando-o no mesmo nível de realismo e eficácia. As relíquias que, mesmo reduzidas a minúsculos fragmentos, conservavam todas as prerrogativas dos corpos santos, foram os principais instrumentos dessa pastoral elementar. Elas garantiram a ampla difusão e uma real democratização da santidade cristã. O sucesso dessa política deve-se ainda ao fato de ela ser acompanhada pela recuperação de certas práticas da medicina antiga, como a peregrinação terapêutica ou a incubação, isto é, o fato de dormir em um santuário para ser curado depois de alguns dias, após um sonho ou uma visão tida durante o sono. É nessa mesma perspectiva que se devem situar os progressos dos ordálios, que, apesar das reticências da Igreja romana, impuseram-se no campo jurídico em quase todos os lugares, entre os séculos IX e X. No âmbito de cerimônias que logo se tornaram rituais – particularmente o julgamento pela água ou pelo fogo –, pedia-se a Deus que designasse o culpado através de um sinal miraculoso. Tratava-se de uma verdadeira institucionalização do milagre, doravante posto no centro da vida social através do exercício da justiça.” (Milagre – André Vauchez)

 

 

“O modelo monástico que surgiu no início da época carolíngia desenvolveu-se sem contestação durante mais de três séculos. Sua característica determinante era litúrgica. Sua primeira razão de existir era manter uma série regular e contínua de celebrações litúrgicas. A significação essencial que se dava à religião era ritual, e onde o ritual era celebrado com grande regularidade, a religião deveria prosperar. Considerava-se também que “mais” era “melhor”, tendo em vista a escalada do número de salmos recitados. Bento deixara uma certa liberdade quanto à recitação dos salmos, contanto que todos os I50 salmos fossem cantados a cada semana. Contudo, nos costumes de Cluny compilados pelo monge Ulrico em torno de 1080, o número de salmos recitados cotidianamente era maior do que I50. O biógrafo do abade Odilon de Cluny notou que este sempre cantava os salmos corretamente e que, em seus sermões, sua primeira preocupação era repreender os monges que não o satisfaziam nesse ponto. Essa concepção da vida espiritual estava, aliás, tão difundida que vários bispos e cônegos imitaram-na, nos limites de suas obrigações pessoais. A organização da vida fora do santuário é igualmente reveladora, quando se consideram os rituais complexos que governavam atividades cotidianas como vestuário, higiene e refeições.” (Monges e religiosos – Lester K. Little)

 

 

“O tempo dos ancestrais

A despeito do crescente controle da Igreja sobre os modelos sociais e apesar das referências à ordem pública e ao direito romano que aparecem nos documentos escritos, as sociedades medievais, durante muito tempo, continuaram sendo sociedades consuetudinárias. O edifício carolíngio, na realidade, encobre comunidades regidas por regras de conduta não escritas, baseadas no uso, remetendo ao tempo dos ancestrais. As ações dos vivos deviam repousar sobre precedentes, a norma social era dada pelos ancestrais. Não é um acaso se, cerca do ano I000, e às vezes antes, as igrejas e as aldeias fixaram-se nos lugares onde se sepultavam os mortos, em torno desses pontos de enraizamento e de concentração que eram os cemitérios, onde repousavam os ancestrais e formava-se a memória do grupo.

Em seguida, no campo e nas cidades, os terrenos dos mortos continuaram sendo lugares de refúgio, asilo, reunião, regozijo, lugares onde se fazia justiça, se concluíam acordos, onde estavam os mercados. A “anarquia” e a falta de cuidado aparentes dos cemitérios medievais, o anonimato que frequentemente reinava ali, a mistura dos corpos e a abertura das sepulturas não reflete nem negligência nem desinteresse, mas remetem a uma maneira particular de encarar as relações entre vivos e mortos. Os funerais e o luto eram assunto das famílias. Mas, logo que os ritos de separação terminassem e os defuntos tivessem alcançado o mundo dos ancestrais, a manutenção da comunidade ancestral, ultrapassando as solidariedades carnais, fundamentando a unidade do grupo, era tarefa de todos. A memória dos mortos tinha, assim, uma dimensão consuetudinária.

Vários usos consuetudinários parecem ter tido a função de colocar a comunidade dos vivos em contato com a dos mortos. Como as danças folclóricas que, em certas ocasiões, aconteciam nos cemitérios: tocando com os pés os restos dos defuntos, os dançarinos sem dúvida procuravam um contato físico com os ancestrais, ao mesmo tempo que se esforçavam por mantê-los no seu lugar (J.-Cl. Schmitt). Entre a sociedade dos vivos e a dos mortos, alguns indivíduos – como o armier na aldeia de Moncaillou ou os benandanti do Friuli – serviam de intermediários, de forma um pouco semelhante aos xamãs de certas sociedades. Os mortos tinham, em especial, o poder de garantir a fertilidade.” (Morte e mortos – Michel Lauwers)

 

 

“Enquanto conseguia fazer das questões de aliança algo de sua competência e impor seu modelo matrimonial, a Igreja tornava-se também, pelo menos para a aristocracia, um intermediário obrigatório entre vivos e mortos. Os dois modelos funerários, laico e eclesiástico, cruzaram-se, as relações ligando os vivos a seus parentes defuntos foram assumidas e englobadas na comunidade espiritual forjada pelos clérigos. As parentelas laicas reconstituíam-se, é verdade, além da morte, mas nos cemitérios monásticos e depois de os senhores terem sido enterrados na familiaritas dos monges. Portanto, as comunidades religiosas construíam a memória dos mortos, mas também tinham o poder de desfazê-la, por meio do anátema, da exclusão dos necrológios e da recusa ao cemitério.

Para justificar o encargo dos ritos funerários e a constituição de necrópoles familiares dentro de seus estabelecimentos, os clérigos dos séculos XI e XII utilizaram bastante os trechos da Escritura relativos à sepultura dos Patriarcas (Gênesis). A partir do século XI, a Igreja passou igualmente a recolher e a compor numerosos relatos de fantasmas: quando seus sucessores não cumpriam suas obrigações, alguns defuntos voltavam a este mundo a fim de denunciá-los. Os defuntos trazidos à cena nos relatos monásticos atormentam os que queriam se desfazer de sua lembrança, vêm confirmar as doações feitas quando vivos às igrejas, exigem o respeito de suas últimas vontades. Assim, os clérigos da época senhorial utilizaram crenças e tradições com as quais o cristianismo da Antiguidade tardia havia rompido.

Além disso, os elos de fraternidade unindo as comunidades religiosas entre si estendiam e multiplicavam as redes de associação espiritual que cobriam o Ocidente. Imaginada pelos monges de Cluny, em torno de I030, a instituição de um dia de comemoração especial para todos os fiéis defuntos, o 2 de novembro, constituiu uma etapa importante no longo processo de “espiritualização” do culto dos mortos. A instauração na Igreja de uma festa de todos os finados, anual, marca a vontade de uniformizar o calendário e a liturgia. Graças à nova festa, mais nenhum defunto escaparia, pelo menos na teoria, do controle da Igreja. A data da celebração, o dia seguinte à festa de Todos os Santos, Iº de novembro, simboliza a distinção realizada pela Igreja entre os santos e os defuntos comuns, ao mesmo tempo que a “comunhão” entre eles.

Uma espécie de contrato social, implícito, instaurou-se entre os senhores e os eclesiásticos. Dando às comunidades religiosas uma parte de suas possessões, os senhores garantiam a salvação de si e de sua parentela: graças à intervenção dos monges-padres, seus bens terrestres transformavam-se em bens celestes. Em seguida, fazendo cultivar a recordação de seus” ancestrais” e associando-se a eles, os doadores lembravam que estes lhes haviam legado o poder que exerciam. Eles não tinham outra maneira de legitimar sua autoridade: transmitido no interior de famílias aristocráticas, o poder senhorial supunha que a memória dos ancestrais fosse conservada. A valorização da memória ancestral, a partir do ano I000, foi talvez favorecida pelo novo papel dado pela aristocracia à “linhagem”, à descendência paterna. Mas a invocação frequente dos “ancestrais”, mencionados coletivamente, remetendo ao conjunto dos membros defuntos da parentela, parece ter participado sobretudo de um sistema de autoridade baseado no costume. Aliás, onde as estruturas de controle encontravam-se mais dependentes do direito, escrito, como em certas regiões mediterrâneas, a conservação da memória ancestral parece ter tido menor importância.

Uma parte dos dons legados às instituições religiosas era destinada aos pobres. Considerada a partir da época de Agostinho como uma das maneiras de aliviar os defuntos no Além, a prática da esmola tornara-se o motor de um sistema generalizado de trocas, mantido pelo culto dos defuntos.

Dessa forma, o culto dos mortos participava da reprodução dos poderes senhoriais, da redistribuição dos bens na sociedade, da manutenção de um certo equilíbrio entre as duas vertentes da classe dominante, laica e eclesiástica, e da proteção da paz social. Desde o final do século X, sob influência dos movimentos da “paz de Deus”, o perímetro dos locais de inumação em volta das igrejas encontrava-se delimitado de maneira mais escrita, frequentemente balizado com cruzes e declarado inviolável. Protegidos e sagrados, os cemitérios foram os primeiros espaços isentos de violência.” (Morte e mortos – Michel Lauwers)

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