Editora: Hedra
ISBN: 978-85-7715-549-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 800
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Sinopse: Ver Parte
I
Conceito: O termo religião é
um conceito atualmente cercado de debates conceituais e teóricos, sem um
consenso uniforme na academia. Suas raízes no mundo romano clássico e cristão –
no sentido de culto e reverência aos deuses –, chegando ao racionalismo
iluminista, o tornam um conceito eminentemente relacionado à história
intelectual europeia, adaptado e transferido para outras culturas e épocas. No
mundo nórdico pré-cristão, a exemplo de outras áreas culturais, não existia um
termo linguístico específico para religião. Os escandinavistas contemporâneos
utilizam majoritariamente o termo Religião Nórdica Antiga para uma série de
crenças, práticas e rituais mantidos durante a Era Viking. O tradicional termo
paganismo nórdico vem sendo criticado devido a sua forte carga pejorativa nas
fontes primárias, enquanto a utilização do termo forn siðr (costume)
como substituto de religião pelos acadêmicos atuais foi efêmera. Para o
pesquisador Thomas DuBois, a religião durante o período pré-cristão era de
natureza étnica e teve um grande dinamismo, com variações sociais e regionais,
bem como múltiplas trocas e intercâmbios com culturas não escandinavas. Ainda
segundo ele, existiram comunidades de fé baseadas tanto em culturas quanto em
instituições sociais, sendo a experiência religiosa nórdica estruturada como
uma visão de mundo – classificando seres, paisagens e situações. Outros
acadêmicos vêm percebendo a Religião Nórdica Antiga como fortemente integrada
na vida social, econômica e política do Período Viking. Para o arqueólogo Mike
Parker Pearson, a Religião Nórdica Antiga pode ser percebida por duas
perspectivas: numa perspectiva continental (no contexto do ano mil d.C.), onde
ela imita muitos dos aspectos dos rituais da Idade do Ferro; e em outra
perspectiva, pré-histórica, na qual estas práticas podem ser percebidas como o
produto final de uma variação regional de um pan-paganismo, cuja prática se
estendia das Ilhas Britânicas até a Alemanha e Escandinávia.
Fontes: As fontes primárias
para o estudo da Religião Nórdica Antiga são literárias (as Eddas, as sagas
islandesas, as crônicas históricas e de colonização, crônicas estrangeiras e a
poesia escáldica) e arqueológicas (monumentos, pedras rúnicas, textos rúnicos e
latinos, esculturas, cenas de tapeçaria, depósitos funerários e cemitérios). Em
especial, as sagas islandesas contêm diversas referências à religiosidade
nórdica antiga, incluindo rituais, profecias, atos de piedade, práticas e
crenças mágicas, maldições, referências a templos e espaços sagrados, entre
outros.
Em algumas pesquisas
vêm sendo reempregados, para compensar certas lacunas e escassez de fontes
originais da área nórdica, alguns métodos comparativos com religiões de outras
culturas e áreas, como a finlandesa, a báltica, a celta, a oriental e a
euroasiática de forma geral.
Teologia e mitos: A teologia nórdica
envolvia uma série de divindades, divididas em dois grupos (Aesir e Vanir).
Algumas divindades femininas (dísir) ocupavam papel central no mundo
privado, enquanto forças sobrenaturais (álfar) eram seres inferiores em
conexão com os Vanir. Outras categorias são os jotnar (gigantes) e os dvergar
(anões). As narrativas mitológicas expressavam o complexo relacionamento entre
deuses, gigantes e homens. As comunidades acreditavam em vários deuses e seres
sobrenaturais, mas geralmente poucos ou somente uma única deidade recebia maior
atenção na esfera individual. A relação entre homem e divindade variava de
temor e medo a uma ligação de profunda amizade (ástvínr). Dentro do
contexto de uma religião sem dogmas, doutrinas, organização e centralização, os
mitos são a principal expressão religiosa de mundo, emoções, bem como de ideias
e valores sobre a natureza, as localidades divinas e o homem. Essas narrativas
orais acompanhavam os ritos e as dramatizações, além de serem incluídas na arte
e cultura material. Os mitos explicam as origens do universo e servem de modelo
tanto para os cultos quando para o comportamento dos indivíduos nos grupos.
Autoridades
religiosas: Não existiam sacerdotes profissionais, como os druidas dos povos
celtas ou o sacerdócio hereditário dos indo-iranianos. Funções ritualísticas de
diversos tipos eram realizados por pessoas de diferentes ocupações e papéis na
sociedade. Reis e líderes eram conhecidos por suas importantes ocupações em
banquetes sacrificiais públicos. Na Islândia, existia a instituição do goði,
um papel de liderança que combinava funções políticas, jurídicas e religiosas.
Outro tipo de personalidade que tinha algum tipo de função religiosa era o Þulr
(orador). Nos atos de comunicações com o além, tanto homens quanto mulheres
desempenhavam papéis importantes, mas as mulheres possuíam mais valor no
tocante às previsões do futuro. A völva era a profetisa que
frequentemente era requisitada para atender situações reais de infortúnios e crises
sociais.
Reis (konungar)
e nobres (jarlar) tinham performance central em festivais cerimoniais e
em santuários. Em Hákonar saga, Snorri descreve um ritual efetuado em
Trøndelag, conduzido pelo jarl Sigurd Hlada. Durante o cerimonial,
Sigurd abençoou o fogo no local e brindou aos deuses, invocando a fórmula Til
árs ok friðar (“Para uma boa estação e a paz”). Essa ideia de que a
autoridade real era fundamentada em elementos religiosos foi denominada de
realeza sagrada e vem sendo questionada e debatida intensamente. Mais
recentemente, a pesquisadora Gro Steinsland vem demonstrando a ligação entre
mito e rito nos papéis de liderança política, com especial interesse na
hierogamia entre Freyr e Gerd e suas ressignificações na cultura material (plaquetas
de ouro com imagens destes personagens míticos foram encontrados em salões
reais). A giganta Gerd seria uma representação do território assumido pelo rei.
Ela seria a força primitiva, enquanto que o rei encarnaria o papel de
fertilizador e de mantenedor da ordem (como o deus Freyr).
Ritos e cultos: O culto, no mundo
pré-cristão, tinha um papel de mediação e estruturação da unidade coletiva.
Existiam diversos tipos de rituais. Os banquetes sacrificiais (blótveizlur)
ocupavam um papel proeminente nos grandes festivais sazonais, contando com a
participação de um grande número de pessoas. Os rituais familiares eram
frequentemente feitos em fazendas, a exemplo do álfablót, sendo os
ancestrais os mais antigos temas de adoração nas regiões nórdicas. Outros tipos
de ritos eram frequentes em certas épocas da vida das pessoas e das
comunidades, como nascimentos, iniciações, casamentos e funerais. Uma grande
quantidade de vestígios de poços de cozinha, datados da Idade do Bronze até o
ano 1000 d.C. foram encontrados na Escandinávia, utilizados em banquetes e
rituais tanto de famílias quando da comunidade de forma mais ampla. Na área
islandesa eram frequentes a utilização do consumo de carne de cavalo. Outros
tipos de atividades com implicações ritualizadas eram lutas entre guerreiros,
salto sobre fogo, hóquei, natação, arremesso de objetos, andar sobre remos,
competições de canto, danças com máscaras etc.
As pesquisas
arqueológicas também encontraram uma grande quantidade de vestígios de rituais
relacionados com a construção ou inauguração de habitações, bem como com
construções variadas na Escandinávia do Período Viking. Os rituais consistiram
na consagração com bebidas e o depósito dos vasilhames (potes, vasos e copos)
em áreas com fogo (aqui identificado com o seu poder sobrenatural e
transformador). As áreas mais ricas desse tipo de material são o sul da Suécia
e o norte da Dinamarca, algumas delas associadas com depósitos de cerâmica e
construções.
Analisando diversos
tipos de vestígios materiais obtidos na tradição ritualística nórdica, Anne
Carlie considerou diversas mudanças diacrônicas: inicialmente, na Idade do
Bronze, temos depósitos agrários, com diversos machados, cerâmicas e ossos
animais. Posteriormente, no período das migrações (séculos VI a VIII d.C.),
surgem depósitos não agrários, com vestígios de armamentos e sepultamentos. No
início da Era Viking até o final do medievo, aumentam os depósitos mágicos:
objetos antigos (como machados neolíticos e fósseis) são encontrados junto a
ossos animais e humanos, moedas e pingentes/amuletos com símbolos odínicos
(aves e serpentes).
Os rituais funerários
são muito pesquisados atualmente pelos escandinavistas, devido à sua riqueza de
material arqueológico. Eles são expressões de atividades específicas (guerra,
negociações, caça, atrações pessoais), funcionando também como elementos de
identidade social em uma rede de relações híbridas. Muitos são conectados
diretamente aos cultos odínicos, a exemplo do funeral descrito por Idn Fadlan.
Outro cronista árabe, Ibn Rustah, também mencionou uma elaborada câmara
sepulcral de um líder nórdico da Rússia, com depósitos de comida, bebidas,
vasilhames e moedas. Segundo esse cronista, a esposa do chefe foi colocada viva
dentro da sepultura. Para o arqueólogo britânico Neil Price, os funerais
nórdicos não consistiam apenas de rituais, mas também de performances e
dramatizações de narrativas míticas. Esses atos passavam ao público presente
várias mensagens de cunho social e religioso. Mesmo os animais presentes –
geralmente sacrificados e dispostos no local – executam papéis em um drama
funerário. Embora os atores não estivessem presentes na cena final, desempenham
o papel principal: o de confirmarem a sepultura como uma moradia.
Espaço ritual: Locais de culto
envolviam diversos tipos de sítios naturais, como montanhas, arvoredos,
campinas, ilhas, lagos e rios. Nesses locais, diferentes tipos de construções e
monumentos tinham intenções religiosas: alinhamentos de pedras em forma de
embarcações ou círculos; pedras erigidas com runas; lareiras para propósitos
cultuais. Sacrifícios, invocações, bênçãos e ações de graças eram efetuadas em
lugares reservados para tais fins. A única palavra em nórdico antigo que
possuía uma inequívoca denotação de local de culto é vé, mas também
existiam outras com sentido semelhante, como lundr, akr e hof.
Templos e locais
sagrados: A famosa descrição do templo pagão de Uppsala (Suécia), realizada por
Adão de Bremen, conteve diversos referenciais cristãos. Escavações
arqueológicas no local indicaram que não existiu um grande templo como descrito
pelo cronista, mas um grande salão real, utilizado para fins cerimoniais.
Locais muito semelhantes foram também encontrados em Mære (Noruega), Järrestad
(Suécia) e Helgö (Suécia). Apesar de tradicionalmente os pesquisadores
argumentarem que não existiram templos ou construções especializadas para fins
rituais na Era Viking, recentes descobertas vêm demonstrando que, além dos
praticados ao ar livre, cultos ocorriam também nesses espaços fechados. Em Borg
(Noruega), uma pequena casa foi encontrada, situada numa elevação rochosa,
construída com soleiras e paredes de madeira. Ela foi erigida junto a um jardim
pavimentado, cobrindo uma área de cerca de 1.000 m². A redor dessa construção
foram encontrados inúmeros ossos de animais (cachorros, cavalos e javalis) e
também amuletos circulares de metal, ligados com pingentes do martelo do deus
Thor.
Recentemente outro
templo foi escavado, no sítio de Uppåkra (Suéca), entre os anos de 2000 e 2004.
As pesquisas revelaram uma construção utilizada entre os séculos VI e X, com
forma e estrutura muito semelhante às posteriores igrejas de aduelas da Noruega
do período cristão. No local, foram encontrados vestígios de bracteatas, gullgubber
(placas de ouro com representações humanas, associadas à hierogamia entre o
deus Freyr e a giganta Gerd), e diversos vestígios de armamentos quebrados,
como escudos e pontas de lança. Essa última prática também foi verificada nos
pântanos dinamarqueses da Idade do Ferro, indicando uma continuidade de práticas
religiosas na Escandinávia. Mas os achados mais espetaculares do templo foram
um copo de prata e bronze com ornamentos de ouro e uma sofisticada bacia de
vidro.
Vestígios de sítios
rituais ao ar livre foram encontrados em Frösön (Suécia). Entre os ossos de
animais domésticos e selvagens, foram achados vários remanescentes de ursos –
um animal associado diretamente à marcialidade e ao deus Odin, o que levou os
pesquisadores a acreditarem que se tratava de um sítio sacrificial,
possivelmente uma sepultura. Os corpos foram depositados junto a árvores que
cresciam na época dos sacrifícios, o que conduz a uma comparação direta com o
relato de Adão de Bremen e a Tapeçaria de Oseberg, que apresenta imagens de
enforcados numa grande árvore.
Diversos tipos de
pesquisas vêm apontando implicações cosmológicas em estruturas e localidades
nórdicas. Para Lars Larsson, o templo de Uppåkra foi construído representando
aspectos cósmicos e sociais: seus depósitos de pontas de lanças invocava o
salão do Valhalla (repleto de guerreiros renascidos), enquanto os postes
centrais são uma alusão à árvore Yggdrasill. Um desses postes foi recoberto com
figuras de ouro, conectando simbolicamente o local com o bosque de Glasir e o
Valhalla. Outro local, a fortificação de Ismantorp (Suécia), foi identificado
pelo arqueólogo Andres Andrén como também possuindo conotações cosmológicas:
seus nove portões seria uma alusão ao número sagrado de Odin e aos nove mundos,
enquanto o poste central teria sido uma referência à Yggdrassill. Tendo um
caráter de legitimação de uma nova ordem militar no final do período de
migrações, Ismantorp também foi integrada à uma nova concepção de liderança
política, que se utilizou de referenciais mitológicos e religiosos.
A arqueóloga Lotte
Hedeager também acredita em implicações cosmológicas na estrutura arquitetônica
do sítio de Gudme (Dinamarca): ele teria sido um modelo paradigmático de
Asgard, ou seja, um centro de culto ao deus Odin. Sua arquitetura seria baseada
(em termos de imaginário artístico) ao que se acreditava ser a moradia dos
deuses. Do mesmo modo que o trono de Odin (Gladsheim), o trono do rei ficava em
uma posição central e mais elevada no centro de Gudme. Nesse caso, o objeto
também servia como suporte para a autoridade real.
Sacrifícios: A forma mais comum
de imolações na Escandinávia é a utilização de animais domésticos e selvagens.
Eles são vistos como um meio de comunicação com alguma divindade e cada animal
geralmente é conectado a diferentes seres divinos. Assim, bois, porcos e javalis
são sacrificados para Freyr e Freyja, enquanto cabras e bodes para Thor. Os
porcos simbolizavam o poder bem-sucedido das reproduções e da fertilidade em
geral (mesmo as humanas). Já o bode representava tanto o humor quanto a imagem
sagrada do sexo na imaginação pré-cristã. Outros animais sacrificados são
imediatamente consumidos em banquetes, como os cavalos na Islândia (conectados
a Odin e ao mundo da nobreza). Esse ato possuía um significado de ratificação
de leis ou funcionava como agregador das relações entre as comunidades. Outro
animal odínico é o urso, relacionado aos ancestrais míticos dos clãs e
identificado à bravura dos guerreiros, os quais se transformam no animal em
diversas sagas, demonstrando a popularidade do urso enquanto ser portando poder
animista.
A presença de
sacrifícios humanos, especialmente associados a funerais, não é fácil de ser
detectada diretamente, mas, apesar disso, diversos vestígios foram encontrados
e são debatidos pelos especialistas. Grande número de sepulturas da Era Viking
contém indivíduos que foram claramente decapitados, esfaqueados ou enforcados
com as mãos amarradas. Exemplos famosos são o homem enterrado em Stengade
(Dinamarca), abaixo de outro corpo masculino coberto com uma pesada lança.
Outro exemplo é uma sepultura de Birka (Suécia), com o corpo de um jovem ao
lado de um homem de idade avançada também coberto com lanças. As fontes
clássicas (como Tácito e Diododo da Sicília), já descreviam sacrifícios de
guerreiros, capturados pelos antigos germanos e dedicados a Mercúrio
(possivelmente Wotan). Os sacrifícios eram realizados pelo trespassar de uma
lança ou enforcamento, ambos relacionados com o auto-sacrifício do próprio
Odin, que utilizou esses dois métodos conjugados. Em outro sítio, Borg
(Suécia), foram encontrados depósitos junto ao grande salão, datados da Era
Viking, com vestígios de ossos animais, incluindo dez cachorros decapitados. O
escavador do local, A. Nielsen, concluiu que se tratava de um templo dedicado a
Freyr ou Freyja. Em Trelleborg (Dinamarca), um fosso revelou ossos de crianças
junto a porcos, vacas, cabras e cachorros. Em Repton (Inglaterra), ao redor do
chefe morto, foram encontrados ossos de vítimas jovens. A fonte mais famosa
sobre sacrifícios em funerais é a do árabe Ibn Fadlan, que relatou uma imolação
durante os funerais de um líder dos nórdicos situados na área do Volga, durante
o século X d.C.
Outros tipos de
sacrifícios humanos detectados pela arqueologia são diversas imolações
encontradas em pântanos escandinavos. Os sacrifícios são datados da Idade do
Ferro e diversos especialistas acreditam que estavam conectados com o culto do
deus Wotan/Odin. Em crônicas históricas do medievo, também surgem descrições
semelhantes. No relato de Adão de Bremen, a respeito de práticas religiosas
pré-cristãs, menciona-se sacrifício periódico no templo de Uppsala, Suécia,
realizado a cada nove anos e contendo nove representantes de cada espécie,
incluindo seres humanos, que eram enforcados em uma árvore situada ao lado do
templo. No Heimskringla, Snorri Sturluson descreve o rei sueco Aun
sacrificando seus próprios filhos para aplacar um período de longa fome, fato
idêntico ao sacrifício do próprio rei Domaldi, descrito na mesma fonte.
Obviamente aqui temos algumas filtragens realizadas pelo cristianismo, que
mantinha um referencial moralista sobre estas antigas práticas.
Artefatos religiosos: Alguns dos
conhecidos objetos com intenções supostamente religiosas são estatuetas
antropomorfas de madeira e metal. Um dos mais famosos exemplos é o objeto de
bronze encontrado em Rallinge, com 7 cm, representando uma figura masculina com
pênis ereto (geralmente interpretado como sendo o deus Freyr). Outra estatueta
(Eyraland) representa um homem portando barba e um martelo, identificado com
Thor. Algumas figuras de barba também são associadas a esse deus, como as
encontradas em Suécia, Islândia e Ucrânia. Por sua vez, o deus Odin é
identificado a outras estatuetas e esculturas sem um dos olhos, como as de
Lindby, Tisso e Uppakra.
As pessoas utilizavam
amuletos contra doenças e perigos, bem como para proteção diante das
adversidades da vida. Muitas vezes esses objetos possuíam uma relação direta
com os poderes de alguma divindade. O martelo de Thor, por exemplo, era um
objeto comumente encontrado em sepulturas, fortificações e locais sagrados. Ele
continha significados mágicos e de proteção. Alguns pingentes em formato de
machado, feitos de âmbar, parecem ter sido utilizados em ritos funerários com
propósitos semelhantes. Miniaturas da lança de Odin, Gungnir, são conhecidas de
muitas localidades da Suécia. Outros objetos, como representações de
valquírias, também são atrelados ao culto de Odin e foram encontrados em
sepulturas de volvas. Muitos outros tipos de amuletos foram descobertos
na Escandinávia da Era Viking, como pingentes representando escudos com
espirais, tronos e serpentes. O primeiro possuiria ligação com o culto ao Sol e
a fertilidade, enquanto o segundo pode estar relacionado tanto a Thor como a
Odin (ambos possuem tronos). A serpente é um dos símbolos religiosos mais
difundidos entre os povos indo-europeus e entre os nórdicos possuía vários
significados, entre os quais o renascimento e a vida, sem esquecer de sua
relação com o xamanismo de Odin.
Religiosidade popular: Algumas expressões
da fé nórdica separam claramente a crença em seres superiores (os deuses e
deusas) dos seres conectados com o mundo rural, as regiões provincianas e os
espíritos da terra. Desse modo, algumas dessas expressões aproximam-se do
folclore, sendo especialmente relacionadas com os elfos, gigantes, anões e trolls.
De acordo com a visão
corrente sobre destino no mundo nórdico, cada indivíduo e família recebia certa
quantidade de sorte, em termos tanto materiais quanto abstratos. As ideias de
sorte e azar eram usadas para explicar as situações correntes, as
estratificações sociais e para entender porque uma família era mais rica do que
outra. Sorte era considerada um fato certo da vida, mas às vezes se tentava
obtê-la por meio mágico ou de encantamentos.
Influências
religiosas externas: Diversas pesquisas apontam influências estrangeiras na religião
nórdica, de um período que remonta ao início das migrações germânicas até o
final da Era Viking. Segundo Hilda Davidson, Anders Kalliff e Olof Sundqvist, o
culto ao deus Odin sofreu assimilações do culto oriental de Mitra, que penetrou
na área germânica com a expansão dos exércitos romanos. Ambos possuem uma
estreita ligação com alguns animais, como corvo, cachorro e serpentes, além de
estreita relação com a ideologia militar e aspectos da morte. O motivo
iconográfico da morte de um touro pelo deus, inexistente na Era Viking e
central ao mitraismo, tem sido identificado pelos pesquisadores como tendo
ocorrido no período das migrações e surgido, supostamente, em bracteatas, nas
quais algumas representações portam um touro junto a suásticas e uma figura
masculina com corvos e armas (Wotan/Odin).
Também existem
evidências de influências da área céltica, especialmente da Irlanda, onde
encontramos símbolos e narrativas que foram adicionadas à oralidade e
iconografia nórdica. Os especialistas tradicionalmente acreditavam que o mundo
escandinavo tinha influenciado os povos sámi e finlandeses, mas, atualmente, se
percebe que houve, assim como na área báltica, trocas culturais e religiosas
entre ambos, num movimento de circularidade frequente. Outra influência,
especialmente forte no final da Era Viking, são advindas do cristianismo.
Diversos acadêmicos acreditam que alguns indícios fortemente cristãos presente
nas fontes literárias como a Edda
Poética não tenham sido criados no momento que as narrativas foram
preservadas por escrito. Teriam, porém, penetrado na oralidade pagã ainda
quando esta era atuante e cercada de pessoas convertidas, o que se denomina
hoje de interpretativo norroena.” (Religião – Johnni Langer)
“Obviamente, qualquer
fonte sempre falará mais de seu tempo do que sobre tempo a que se refere.”
Sonatorrek é um poema escáldico
de lamentação composto por Egill Skallagrímsson (910-990 d.C.), o principal
poeta escáldico de origem islandesa. De acordo com Simek & Pálsson (1987,
p. 64), já na Idade Média, a reputação desse poeta era tanta que o próprio
historiador e político Snorri Sturluson (1179-1241 d.C.) compôs uma saga sobre
a vida dele, a Egills saga Skállagrímssonar. Em alguns dos manuscritos
dessa saga se encontra o presente poema.
Embora a primeira
estrofe esteja registrada nos principais manuscritos da Saga sobre Egill
Skallagrímsson (uma das únicas obras a conter esse poema) como, por
exemplo, no manuscrito AM 132 fol. (conhecido como Möðruvallabók,
Reykjavik, c. 1330-1370), apenas nos manuscritos AM 453 (conhecido como Ketilsbók,
por conta do copiador Ketill Jörundsson) e AM462 4to. encontra-se o poema por
completo. Para os exemplos dados neste artigo utilizamos as obras de Jónsson,
que apresentam os poemas na forma diplomática e interpretativa. Apresentaremos
as duas variações neste artigo. Jónsson utiliza o manuscrito AM453 em sua obra.
O nome do poema
significa “a perda árdua dos filhos”, cujo primeiro elemento sona e o
segundo elemento torrek significam “filhos” e “perda”, respectivamente.
No tocante ao segundo elemento, torrek, Magnússon afirma que é uma
composição entre o prefixo tor- “difícil” (compare com o adjetivo do
islandês moderno torleystur “difícil de desprender, solucionar”) e rek,
que seria provavelmente uma derivação do verbo reka (germânico antigo *wrekan),
no sentido de “empurrar, afugentar”.
O poema trata sobre a
difícil perda de dois filhos do poeta: Gunnar, que morreu de febre e Böðvarr,
que morreu em um naufrágio. Embora os nomes dos filhos não sejam citados no
poema, Snorri Sturluson os cita na saga: Egill hafði þá átt son er Gunnar
hét ok hafði sá ok andazk litlu áðr (p. 146) “Egill tinha tido um outro
filho que se chamava Gunnar e que morreu um pouco antes” e lauk þar svá at
skipit kafði undir þeim ok týndusk þeir allir. En eptir um daginn skaut upp
líkunum “ocorreu que o navio afundou e todos morreram. No dia seguinte os
corpos apareceram” (EINARSSON, Egills Saga, 2003, p. 145-146; trad.
nossa).
De acordo com
Turville-Petre (1976), o poema pode ser dividido em sete partes:
Entre as estrofes 1 e
4, o eu lírico se empenha para achar palavras que correspondam à sua tristeza.
Na primeira estrofe: era nü vænlegt um vidris þife [esa nú vænligt of
Viðurs þýfi] “agora há pouca esperança a respeito do roubo de Viður”. O “roubo
de Viður”, ou seja, o “roubo de Odin”, é um epíteto que faz referência à
poesia. Esse epíteto ocorre na obra Edda em prosa, capítulo Skáldskaparmál,
em que Odin rouba o hidromel da poesia do gigante Suttungr e, em seguida, cede
aos deuses e aos homens dotados de poesia: Þa braz hann iarnar ham og fláug
sem akafazt [...] En Svttvnga-mioð gaf Oþin asvnvm ok þeim monnvm, er
yrkia kvnv (transcrições do manuscrito Codex Regius por Finnur
Johnsson, 1931, p. 85). Uma versão padronizada foi realizada por Anthony
Faulkes: þá brásk hann í arnarham og flaug sem ákafast “e então se
transformou na forma de uma águia e voou” (trad. nossa) e en Suttung mjǫð gaf Óðinn Ásunum ok þeim mǫnnum, er yrkja kunnu “mas Odin cedeu o
hidromel de Suttungr aos æsir e aos homens que podiam fazer poesia”
(trad. nossa). Como o poeta estava triste naquele momento, havia pouca
esperança para compor um “roubo de Odin”.
Na segunda parte da
divisão de Turville-Petre, entre as estrofes 5 e 12, Egill se lamenta por conta
da morte de Böðvarr: Grimt var um hlid, þat er hraun um braut faudr mïns ä
frændgarde; veit eg ofullt ok opid standa sonar skard, es mier siär um vann
[Grimt vǫrum hlið, þat ‘s hrǫnn of braut fǫður míns á frændgarði; veitk ófult ok opit standa sonar skarð, es mér sær of vann] “Horrível foi a
pancada da onda, que abriu um buraco na cerca dos descendentes do meu pai; vejo
o não preenchido e a abertura que repousa; a fissura (falta) do filho que o mar
me causou”. No mesmo trecho, na estrofe 7, o eu-lírico afirma que Rán, deusa
que governa o mar, o devastou: miauk hefur rän riskt um mig [mjǫk hefr Rǫ́n of rysktan mik]; e também, se ele
se vingasse com sua espada, a vida dos forjadores da cerveja se acabaria: veiztü
um þä sauk, sverde of ræag var aulsmid allra tïma [veizt ef sǫk, sverði of rækak, vas ǫlsmið allra tíma]. Aqui o poeta
utiliza a palavra que corresponde ao tipo ale. O problema é que ele está
velho e não tem seguidores para apoiá-lo em tal propósito: þvïat alþiöd firi
algum verdr gamals þegns gengeleise [þvít alþjóð fyr augum verðr gamals
þegns gengileysi].
Na terceira parte,
entre as estrofes 13 e 19, a morte do irmão mais velho de Egill é lembrada: opt
kiemur mier mana biarnar ï birvind brædraleise [oft kømr mér mána brúðar
í byrvind bræðraleysi] “sempre vem a mim na brisa da navegação da noiva da
lua, a falta de meu irmão”. Neste trecho percebe-se que Jónsson corrige biarnar
“do urso” por brúðar “da noiva”. De acordo com Egillsson, “a noiva da
lua” é um kenning para “giganta” e a “brisa da navegação da giganta” é
um kenning para “mente”, portanto, “sempre vem a mim, na mente, a falta
de meu irmão”. Na quarta parte, entre as estrofes 20 e 21, o poeta lembra de
Gunnar, seu primeiro filho, que morreu de febre: Sizt son minn sottar brïme
heiptuglegr ür heime nam [Síz son minn sóttar brími heiptugligr ór heimi
nam] “desde que o fogo vingativo da doença tomou o meu filho desse mundo”.
Na penúltima parte,
entre as estrofes 22 e 24, o poeta ataca Odin, com quem ele tinha boa relação
até o deus quebrar os termos de amizade: Ätta eg gott vid geira drotinn
[Áttak gótt við geirs dróttin] “tinha boas relações com o senhor da
lança”; adr umat vagna runne sigur haufunde um sleit vid mig [áðr
vinan vagna rúni, sigrhǫfundr, of sleit við
mik] “até o confidente das carruagens, o senhor da vitória, quebrar a
amizade”. Os kenningar, “senhores da lança”, “confidentes das carruagens
e “senhores da vitória” fazem referência a Odin e mostram que Egill tem uma
devoção por Odin, o deus da poesia. No entanto, Odin compensou Egill com duas
habilidades: ïþrot ... vamme firda [íþrótt ... vammi firða] “arte
sem erros” e er ge giórda mier vïsa fiandr ad velaundum [es
gerðak mér vísa fjandr af vélǫndum] “me permitiu
desmascarar trapaceiros e transformá-los em inimigos públicos”, quer dizer, a “arte
de fazer poesia” e a “capacidade de desmascarar inimigos”. Na estrofe 25, a
última, Egill aceita em paz sua perda e espera a morte.
De acordo com North,
Egill adaptou sua tragédia a um gênero e não o gênero à sua tragédia; além do
mais, o poema mostra que a fé do eu lírico é solidamente pagã. Um elemento
pagão neste poema é a devoção de Egill a Ódin, deus da poesia, na estrofe 22.
Também é plausível que, assim como outros mercenários de seu tempo, Egill
olhava para Odin como um reflexo de sua vida poética e bélica. Nordal sugere
que Egill cresceu no culto islandês a Thor, deus da agricultura, antes de se
mudar para o exterior e começar a idolatrar Odin; no entanto, no final da vida
de Egill, Odin permitiu (ou causou) a morte de Böðvarr e, portanto, ocorreu uma
traição. O autor afirma que, a partir de então, se iniciou um antagonismo entre
Thor e Odin, mas apenas Odin parece ter sido culpado pela morte de Böðvarr,
sendo o mar visto como um capanga das ordens de Odin; também é possível que
Odin deliberadamente falhou em retirá-los do curso e, então, evitar o
afogamento. Além disso, o eu lírico percebe que nem poderia vingar a morte de
seu filho, pois, além de ele não ter mais seguidores, seria impossível
enfrentar Rán e Ægir, já que são entidades do mar. North questiona se essa
tragédia testa a fé do eu lírico, Egill. De fato, como é demonstrado no poema,
Egill sofreu uma crise em sua fé, uma vez que acusa Odin (na estrofe 22) de
quebrar a amizade entre eles; porém, apesar de a amizade ter acabado, as
obrigações ainda continuaram e o eu lírico até mesmo admite que Odin, em troca
pela perda do filho, o compensou com habilidades (p. 291-292). Portanto, o
autor afirma que Egill não tem nenhuma crise religiosa para enfrentar, pois
suas crenças pagãs são para ajudá-lo e não são questionáveis; elas também fazem
com que ele experimente a catarse da elegia, um gênero feminino, como uma
alternativa para a vingança.
No que diz respeito à
métrica do poema, ele está em kviðuháttr, cuja métrica tem nos versos
ímpares três sílabas e nos versos pares, quatro sílabas; e, além do mais, não
há rima interna (consulte o verbete Poesia Escáldica). Exemplificaremos com a
última estrofe do poema, a número 25: Nú erum torvelt // Tveggja
bága; njǫrva nipt // á nési
stendr; skalk þó glaðr // góðum vilja; ok ó-hryggr // heljar
bíða; com a seguinte tradução apenas do conteúdo proposta: “Agora está
difícil para mim. A irmã do inimigo do Tveggi está lá no promontório. Feliz,
com boa vontade e sem preocupação espero pela morte”. Há kenningar no
poema e, particularmente nesta estrofe: Tveggja bági “inimigo do Tveggi”
= [FENRIR]. Tveggi é um heiti para Odin (compare o poema
escáldico Óðins nöfn, estrofe 8; e Völuspá, estrofe 63). Portanto, nipt
tveggja bága “irmã do [FENRIR]” = [HEL], a deusa do reino dos mortos. Estas
interpretações tiveram como base Egillsson. Para saber mais sobre os kenningar,
consulte a entrada Kenning.” (Sonatorrek – Yuri Fabri Venancio)
“Outra questão é o
intenso hibridismo cultural derivado do contato dos nórdicos com os povos de
outras regiões, obtido pelas migrações sucessivas e originando novas
identidades. Os vikings da Rússia e Ucrânia fundiram-se aos elementos da
sociedade eslava, báltica e oriental, enquanto que na Normandia eles foram
rapidamente inseridos na cultura dos francos. Em Dublin a fusão das culturas
gaélicas e escandinava foi testemunhada pela onomástica, arte e religiosidade.
A hibridização cultural é uma das marcas do século X. Em outras áreas a
identidade viking persistiu por mais tempo, como a Islândia e as ilhas Faroé. A
Era Viking teve um impacto significante em muitas identidades locais da Europa
medieval. Ao mesmo tempo, porém, essa identidade viking foi ampla e multifacetada,
com muitas variações locais e algumas estruturas em comum, como a linguagem. As
pessoas que viviam na Escandinávia não tinham consciência de nossas
periodizações modernas e nem teriam considerado os vikings como fatores
cruciais em suas vidas, mas ao mesmo tempo a Era Viking testemunhou a diáspora
nórdica, bem como grandes transformações culturais, econômicas e políticas por
toda a Europa. O sucesso dos vikings como fenômeno estava relacionado com suas
habilidades de adaptação e modificação de acordo com as circunstâncias locais.”
(Viking – Johni Langer).
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