Editora: LeYa
ISBN: 978-65-5643-003-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
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Sinopse: Ver Parte
I
Nossa
vocação diplomática é para a amizade pan-americana, para a cooperação e a boa relação
com nosso poderoso vizinho. Cooperação, entretanto, não exige subordinação, e essa
postura não significa que temos que antagonizar os norte-americanos: trata-se simplesmente
de construir uma relação bilateral que afirme nossos interesses, independência e
soberania.
Nossa
política externa em relação aos EUA tem que levar em consideração o histórico de
intervenções que eles patrocinaram no Brasil e na América Latina nos últimos cem
anos, não podendo ser ingênua. O governo de Michel Temer não reagiu às negociações
do Governo Macri para permitir a instalação de uma base norte-americana na tríplice
fronteira, permitiu o uso da Base de Alcântara pelos EUA e realizou com esse país
exercícios militares conjuntos em plena Amazônia, abrindo o território nacional.
Isso é um gravíssimo precedente, contrário a todas as nossas tradições diplomáticas
e que eleva as desconfianças e a tensão de toda a região.
Mas
o Governo Bolsonaro, nos poucos meses que antecederam a versão final deste livro,
levou a subordinação brasileira aos interesses norte-americanos a um patamar inédito
de humilhação internacional. O presidente brasileiro que grita USA e bate continência
para a bandeira dos EUA entregou, sem qualquer contrapartida, a Base de Alcântara
a esse país e, com ela, a soberania sobre parte do território nacional. Da mesma
forma, está expandindo fortemente as importações norte-americanas de derivados (enquanto
um terço de nossa capacidade de refino está paralisado), autorizou uma importação
imensa de etanol subsidiado dos EUA, constrangendo ainda mais o setor sucroalcooleiro
brasileiro, que já está em agonia, concedeu uma cota de importação de 750 mil toneladas
de trigo norte-americano subsidiado que tem potencial de destruir a já incipiente
produção de trigo brasileira, e prometeu renunciar ao status de país “em desenvolvimento”
do Brasil na OMC (Organização Mundial do Comércio), em troca de uma promessa de
apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico). Tudo isso, vale repetir, sem nenhuma contrapartida, destruindo empregos
no Brasil e financiando com nossos poucos tostões empregos nos EUA. Ou seja, trocou
algo concreto, que nos permite realizar políticas de compras governamentais internas
e um prazo de dez anos para nos adaptar a acordos feitos dentro da organização,
por uma promessa de status simbólico que em nada favorece nossa luta por desenvolvimento.
Só para se ter ideia do tamanho dessa aberração, a China, o maior país emergente
do mundo sob o ponto de vista industrial, não abriu mão desse status. Se isso não
fosse terrivelmente grave, seria possível brincar que Bolsonaro é semelhante a Trump.
Trump busca proteger os interesses dos EUA, Bolsonaro também.
Em 1964,
um sorridente embaixador brasileiro representando um governo golpista que era títere
dos EUA disse a famosa frase: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Acho
que nem mesmo uma criança de dez anos acredita nisso. O que é bom para os EUA é
bom para os EUA. O que é bom para o Brasil é bom para o Brasil. Às vezes essas coisas
são boas juntas, às vezes não. Um governo brasileiro realmente patriota é aquele
que negocia as primeiras e se recusa a alinhar-se às segundas.”
“HÁ
CONDIÇÕES NECESSÁRIAS AO ÊXITO CIVILIZATÓRIO?
Em meu
período de estudos em Harvard me dediquei a investigar esse problema. Analisando
dados sobre todos os países que alcançaram desenvolvimento econômico e social (o
Brasil do pós-guerra ao fim da década de 1970 experimentou basicamente desenvolvimento
econômico, acumulando imensa dívida social), busquei identificar algum padrão nessas
experiências. Ou seja, me perguntei se por detrás das imensas diferenças entre as
nações haveria algo em comum que explicasse por que algumas são desenvolvidas e
outras não. Acredito que encontrei três:
1. Alto
nível de formação bruta de capital – O fator principal de explicação do desenvolvimento
de um país não é o crédito cíclico que ele tenha com a comunidade internacional,
mas sim sua taxa interna de poupança. Ele precisa ter como sustentar com seus próprios
recursos o investimento necessário para crescer e se modernizar. O crédito é também
bem-vindo, mas será tanto melhor e mais barato quanto mais alto for o nível de poupança
interna de um país. Nenhuma nação sustenta seu desenvolvimento com dinheiro dos
outros. A única exceção a essa condição são os EUA posteriores à quebra do padrão-ouro,
porque têm o dólar e podem simplesmente emitir moeda em larga escala para trocar
por mercadorias com outros países, porque ela é a moeda aceita nas trocas internacionais.
Essa é uma singularidade irrepetível.
Exceção
à parte, um alto nível de poupança doméstica vinculada ao investimento está presente
em todo experimento civilizatório bem-sucedido. Saindo do economês, poupança interna
é o quanto sobra entre o que o país produziu e o que o país consumiu e, portanto,
pode reinvestir. Pensemos num agricultor isolado que plantou milho a partir de uma
saca de grãos do produto e colheu seis sacas de grãos. Suponhamos ainda que a família
dele tenha consumido quatro delas em um ano. No caso, sobraram duas que ele poupou
e agora pode usar de insumo para a próxima safra, na expectativa de dobrá-la.
Enquanto
a média mundial de formação bruta de capital1 foi de 24,19% do PIB em
2015, a China poupou 45,4% e a Coreia do Sul, 28,9%. Já a União Europeia, estagnada,
poupou em 2015 19,8% do PIB. O Brasil poupou somente 17,4%. Em 2017, a situação
ainda ficou bem pior, com somente 15% de formação bruta de capital.2
Seria
bom avaliar aqui, para efeitos de síntese, os casos extremos. A China, país de maior
crescimento no mundo nos últimos dez anos, manteve no período uma taxa média de
formação de capital de 45,4% do PIB. Sua média desde o ano de 1970 até 2015 foi
de 38,5%. Já o Brasil, que alcançou o máximo de média de 22,9% durante o “milagre
econômico”, apresenta uma média a partir de 1980 de 19,67% do PIB de poupança interna.3
Compensamos por muito tempo nossa baixa taxa de formação bruta de capital com empréstimos
externos e emissão de moeda. Esta última é uma forma de poupança forçada imposta
à sociedade pelo Estado. Seu problema é que, quando provoca oferta maior do que
a que pode ser suprida pela capacidade ociosa da economia, tem efeito inflacionário.
As restrições trazidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal acabaram com esse expediente
heterodoxo no Brasil e ajudaram na estabilidade da moeda e sanidade fiscal, no entanto,
não foram acompanhadas do esforço correspondente para elevar as taxas de poupança
interna. Muito importante afirmar neste ponto que, ao contrário da retórica passiva
neoliberal, o nível de poupança e investimento de um país não é consequência fatalista
do acaso, e sim de arranjos institucionais que a política faz ou deixa de fazer.
Trata-se, na prática, de como cada país organiza seu sistema de impostos, seu sistema
de Previdência, seu mercado de capitais, ou como suas instituições estabelecem ou
não conexões entre a poupança de longo prazo da sociedade e o investimento de longo
prazo.
2. Coordenação
estratégica governo-empresariado-academia – Não há caso de desenvolvimento econômico
e social de uma nação no mundo que não conte com a coordenação de um governo, forte
e empoderado, com seus empreendedores e academia nacional. Nosso compromisso é inarredável
com a democracia, mas cabe dizer, a bem da verdade, que na história essa coordenação
veio indistintamente de governos autoritários ou democráticos. O caso chinês e o
coreano são exemplos de coordenações autoritárias, enquanto a recuperação europeia
do pós-guerra e o New Deal nos EUA são exemplos de coordenações democráticas.
No Brasil, igualmente, já tivemos coordenações dos dois tipos, sempre com resultados
muito fortes no PIB.
Nada
substitui um projeto nacional, e por sua natureza o mercado não pode oferecer a
gestão e a coordenação deste. É o Estado que tem que organizar as forças políticas,
econômicas e acadêmicas, criando as condições de investimento e trabalho para superar
os gargalos da economia em direção a metas. Deve fazer isso contando com uma academia
ocupada em encontrar as respostas tecnológicas aos problemas de desenvolvimento.
3. Investimento
em gente – Trabalho técnico, empreendimento, gestão, avanço científico e tecnológico
são realizados por pessoas. Assim, parece evidente que outra condição sine qua
non do êxito civilizatório é o investimento em gente. Prioritariamente em educação,
óbvio, mas não é razoável pedir produtividade de uma nação que condena 200 mil cidadãos
à malária por ano em uma única região. E a história confirma essa dedução.
O experimento
coreano, por exemplo, tem trinta anos, e foi marcado por investimento maciço em
educação, assim como o chinês. Já as primeiras universidades europeias datam do
século XIII, as norte-americanas, do século XVII. Atualmente, com o nível de desenvolvimento
tecnológico e complexificação das atividades econômicas, um alto nível de escolaridade
é imprescindível até para a operação de máquinas, que dirá para a gestão da tecnologia.
Mais do que nunca é necessária uma educação que ensine a aprender, relacionar criticamente
informações e se adaptar às mudanças rápidas das tecnologias de produção, afastando-se
do paradigma fordista que ainda predomina no Brasil.”
1 Indicador
que representa quanto as empresas aumentaram seus bens de capital. “Bens de capital”
são os bens que usamos para produzir outros bens, como máquinas e equipamentos.
Sua relevância é indicar se a capacidade de produção de um país está crescendo ou
não.
2 World Bank Data. Gross capital formation.
Disponível em: http://data.worldbank.org/indicator/NE.GDI.TOTL.ZS?locations=CN-BR-KR-DE-EU
3 Idem.
“CONCEITO
DE “PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO”
Neste
termo, cada palavra tem um significado muito forte, e implica um conjunto potencial
de conflitos políticos. Significa, por exemplo, no concreto, abandonar de uma vez
por todas o equívoco da retórica neoliberal de que o desenvolvimento vai ocorrer
pelo espontaneísmo individualista das forças de mercado. Isso nunca aconteceu na
história da humanidade. Juntas, as palavras “projeto”, “nacional” e “desenvolvimento”
formam a essência daquilo que produziu os grandes experimentos civilizatórios da
humanidade.
Projeto
é um conjunto de metas para as quais se estabelecem prazos, métodos de execução,
supervisão, avaliação e controle, bem como orçamentação e definição de fontes de
recursos. Pressupõe recuperar a capacidade de planejamento de curto, médio e longo
prazos do país. Ele requer, no caso de um projeto nacional, uma visão de país hegemônica,
baseada num diagnóstico realista de que sociedade somos e queremos vir a ser. Só
o Estado pode coordenar um projeto nacional, e para tanto ele tem que ter capacidade
de planejamento e um corpo técnico competente. Para que mobilize a sociedade numa
democracia, um projeto nacional deve ser fruto de um profundo debate público, efetivando
uma aliança entre os trabalhadores, o mundo da produção e a academia.
O “nacional”
do termo lembra que não há um modelo universal a ser seguido, pois as condições
de empreender, produzir e trabalhar seguem dramaticamente nacionais e não globais.
Significa abrir mão da ideia mistificadora de globalização total. Acesso a matérias-primas,
parque instalado, geografia, poder militar, condições de financiamento, formação
de mão de obra, cultura e tantas outras características é algo radicalmente local
e exige a criação de um projeto de desenvolvimento adaptado àquela nação.
Por
“desenvolvimento” entendemos o aumento tanto da riqueza produzida por um país como
das capacidades e habilidades de seu povo, suas condições de vida e felicidade.
Para a superação do subdesenvolvimento não basta o crescimento econômico, é preciso
romper com os mecanismos de dependência, e que haja crescimento humano e justiça
social, boa distribuição de renda e serviços públicos de qualidade.”
“O retrato
do país desejado pelo povo brasileiro que emerge dessas pesquisas de opinião é flagrantemente
o de um Estado de bem-estar social, o chamado Welfare State. Consciente ou
inconscientemente, nosso modelo almejado de sociedade é o do desenho europeu (ou
canadense, ou japonês), baseado em serviços públicos universais, não o modelo dos
EUA.
Considerados
os critérios usados pela pesquisa Datafolha, a grande maioria dos brasileiros, 76%,
acha que o investimento do Estado é que deve ser o motor do desenvolvimento econômico,
contra 20% que atribuem esse papel à iniciativa privada.6 Da mesma forma,
consideram como fato dado que saúde e educação são deveres do Estado, e esperam
desses serviços gratuidade e qualidade. Uma maioria esmagadora de 90,5% dos brasileiros
considera a distribuição de renda do país muito injusta (45%) ou injusta (45,5%),
contra somente 6,6% que a consideram justa.7 Esses dados se harmonizam
perfeitamente com outra pesquisa, a Oxfam-Datafolha, que revelou que 91% dos entrevistados
concordam que, no Brasil, “poucas pessoas ganham muito dinheiro enquanto muitos
ganham pouco”.8 Além disso, 72% dos brasileiros apoiam o aumento de carga
tributária sobre a renda das pessoas de altíssima renda. Aspiramos, para nós e nossos
filhos, a um padrão geral de renda e consumo característicos da classe média.
Então
as bases do país que a grande maioria dos brasileiros quer estão dadas. Um Estado
de bem-estar que garanta saúde e educação públicas e de qualidade para seu povo,
que tenha capacidade de planejamento e investimento na economia, que garanta uma
distribuição mais justa da riqueza e uma sociedade civil mais rica, com uma economia
baseada na livre-iniciativa.
No entanto,
apesar de os valores almejados serem similares aos da socialdemocracia europeia,
os caminhos para construirmos a sociedade sonhada pela maioria dos brasileiros terão
que ser próprios, terão que ter seus pés bem calcados na realidade de um país latino-americano
no século XXI. Temos que traçar nossas metas a partir da nossa realidade objetiva.
E sejam
quais forem nossos caminhos, para viabilizar esse país que queremos não há alternativa
que não seja voltar a crescer, e a crescer muito, porque ainda não produzimos riqueza
suficiente para sustentar nossas aspirações.”
6 Datafolha.
Esquerda-direita 2017. Op. cit.
7 Latinobarômetro 2015. Disponível
em: http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp
8 “Pesquisa Oxfam Brasil/Datafolha
revela a percepção sobre desigualdades no Brasil.” Oxfam Brasil. Disponível
em: https://oxfam.org.br/noticias/pesquisa-oxfam-brasil-datafolha-revela-a-percepcao-sobre-desigualdades-no-brasil/
“O BRASIL QUE TEMOS
O Brasil
que temos é muito diferente do que queremos. Ele é pobre, brutalmente desigual e
ainda tem a proporção de gasto estatal deprimida em todos os serviços públicos.
A desigualdade
é a maior tragédia brasileira. Somos simplesmente um dos dez países mais desiguais
do mundo, só conseguindo ficar atrás de África do Sul, Namíbia, Haiti, Botsuana,
República Centro-Africana, Zâmbia, Lesoto e nossos vizinhos Colômbia e Paraguai,9
mesmo depois de quatorze anos de governos autorreferidos de “esquerda”.
Estudo
de 2015 mostra que a concentração de renda brasileira supera a de qualquer outro
país com informações disponíveis. A décima parte mais rica de nossa população apropria-se
de 52% da renda das famílias brasileiras, o centésimo mais rico, de 23,2%, o milésimo
mais rico, de 10,6%, e, pasmem, o meio milésimo mais rico, de 8,5% de nossa renda.
São índices incríveis e terríveis. Como termo de comparação, o meio milésimo mais
rico no Uruguai se apropria de 3,3% da renda, e na Noruega, de 1,7%.10
Já o
discurso midiático do Estado inchado no Brasil é o que se chama uma meia-verdade.
Tem muita distorção e desperdício, e, por outro lado, muito menos Estado onde ele
é necessário. O tamanho médio do Estado brasileiro é a metade do tamanho do Estado
nos países desenvolvidos. Enquanto a proporção de trabalhadores empregados no serviço
público nos países da OCDE em 2013 foi de 21,3%, no Brasil, segundo a mesma organização,
a proporção foi de 12,11.11 Os EUA, frequentemente citados como modelo
pelos defensores da diminuição do Estado, têm 15,3% dos empregados no governo, enquanto
países escandinavos como a Dinamarca e a Noruega, nossas referências de serviço
público, têm 35% de servidores. Na prática, esqueça as estatísticas e pense você:
o Brasil tem mais ou menos polícia do que precisa? O Brasil tem mais ou menos professores
do que precisa? O Brasil tem mais ou menos médicos do que precisa?
A alegação
de que apesar de poucos nossos funcionários públicos são caros também é uma meia-verdade.
De acordo com relatório do Banco Central Europeu, a média dos gastos com salários
de servidores públicos na zona do euro era de mais de 10% do PIB em 2008.12
No Brasil, o gasto com salários de servidores em 2013 foi de 4% do PIB.13
E não custa lembrar que o PIB per capita europeu é em média três vezes maior do
que o nosso. Como se não bastasse, mais uma vez no Brasil os valores médios escondem
nossa brutal desigualdade. Para uma correta avaliação do gasto salarial com servidores
no Brasil é preciso comparar os vencimentos entre os Poderes e dentro do próprio
Executivo. Em 2013, a despesa salarial mensal média do Executivo federal foi de
R$6.968, ou seja, menos da metade da vigente no Legislativo (R$14.069) e no Judiciário
(R$13.276). Dentro do Executivo ainda há fortes assimetrias. A média salarial do
Banco Central, por exemplo, era de R$20.113, quase três vezes maior que a média
do Executivo e duas vezes maior que a das empresas públicas, que era de R$10.776.14
Distorções injustas precisam ser eliminadas, porém mais uma vez é preciso deixar
claro, sem demagogia, que não será daí que poderá sair o dinheiro que tão desesperadamente
nos falta para investir. Ou alguém em sã consciência pode achar que o salário de
R$2.415,89 de um professor da prefeitura da cidade mais rica do Brasil, a cidade
de São Paulo, é salário de marajá?
E ao
contrário da propaganda liberal sobre a falta de retorno do serviço público a nossos
impostos, a verdade é que com os recursos que efetivamente chegam aos sistemas de
educação e saúde o Brasil opera milagres. Eu compreendo a revolta da classe média
brasileira com a falta de retorno dos impostos, pois ela paga dobrado para viver
ao ser descontada na fonte pelo imposto de renda, sem ter como dele se evadir, e
por não acreditar nos serviços públicos paga por saúde, educação e segurança privadas.
Evidentemente, apesar disso, nossos serviços públicos estão muito aquém dos oferecidos
pelo Japão, Canadá e estados europeus, padrão desejado pela população brasileira
e cobrado por sua imprensa. Os motivos principais são basicamente três, e não são
nem a incompetência, nem a corrupção, nem o desperdício, apesar de maus exemplos
existirem.
Esses
motivos são muito simples de entender para quem não quer simplesmente odiar a educação
e a saúde públicas: somos hoje em média três vezes mais pobres que os países europeus
e ainda pagamos menos impostos sobre a riqueza total produzida do que eles. Como
se não bastasse, de nosso pobre orçamento saem centenas de bilhões (cerca de 10%
dele) todo ano para o pagamento de juros exorbitantes. Não há mágica que possa compensar
esse subfinanciamento.
Sim,
apesar da propaganda desinformativa, nossa carga tributária é menor do que a europeia.15
Como ela está concentrada nas costas dos pobres e da classe média, a maioria dos
eleitores costuma se indignar quando esse mero fato é lembrado. Meu dever, no entanto,
é fugir da demagogia, e tentar explicar a verdade ao povo brasileiro.
A carga
tributária média na Europa em 2014 foi de 41,5% do PIB.16 Para citar
alguns dos países europeus de melhor nível de vida e suas cargas naquele ano, temos
a Bélgica com 47,9%, a Dinamarca com 50,8%, a Alemanha com 39,5%, a França com 47,9%,
a Itália com 43,7%, a Noruega com 38,9% e a Finlândia com 44,0%. Já no Brasil, segundo
o Tesouro Nacional, a carga tributária em 2017 foi de 32,36% do PIB.17
E nossos
impostos incidem sobre uma base média de riqueza muito, muito menor. Em 2016, nosso
Produto Interno Bruto per capita ajustado por paridade de poder de compra, ou seja,
o índice que mede o quanto produz em média cada cidadão brasileiro, foi de US$15.127,81.
O da Finlândia foi de US$43.052,72; Bélgica, US$46.383,23; Alemanha, US$48.729,59;
Dinamarca, US$49.695,96; França, US$41.466,26; e Noruega, US$59.301,67.18
Para
resumir, enquanto o Estado dinamarquês tem em média US$25.245,54 para gastar anualmente
por cidadão para prover saúde, educação, segurança, Judiciário e Previdência, o
Estado brasileiro tem US$4.904,43 para os mesmos objetivos. Exigir serviços da mesma
qualidade é inaceitável e mais do que irrealista. Sobretudo se lembrarmos que gastamos
hoje o equivalente a 25% de nossa arrecadação com juros de nossa dívida interna.19
O fato de estarmos pagando esses juros com mais dinheiro emprestado não diminui,
mas aumenta essa tragédia transferindo seus custos para o futuro.
Todos
os gastos públicos no Brasil, à exceção do serviço da dívida, estão extremamente
deprimidos. Consideremos o exemplo da saúde. Caso pertencesse à OCDE, organização
de cooperação econômica entre os países desenvolvidos que ainda inclui o Chile e
o México, o Brasil seria simplesmente o antepenúltimo em gastos per capita em saúde,
atingindo menos de um terço da média da OCDE. Para piorar, teríamos igualmente a
terceira pior proporção de gastos públicos em saúde, ou seja, a maior parte desse
gasto per capita é privada. Com nossos 3,6% do PIB20 de gastos públicos
em saúde, ficaríamos somente acima de Turquia e México.
Então
tudo se resume ao fato de sermos muito mais pobres, pagarmos menos impostos e brutalmente
mais juros do que os europeus. Não é a corrupção ou a incompetência que nos faz
ter serviços públicos piores. O fato de, apesar de tudo isso, ainda oferecermos
um precário sistema universal de saúde e de educação é quase um milagre. Mas esse
“milagre” tem nome: o trabalho dos servidores do Estado. Esse reconhecimento não
desconsidera meu testemunho de que muitos brasileiros são maltratados em postos
de saúde, que muitos jovens brasileiros têm mais medo da polícia do que de bandidos
nas comunidades ou ainda que aqui e ali a exacerbação corporativista transforma
partes do serviço público em verdadeiras castas.”
9 Pnud.
Relatório de Desenvolvimento Humano 2015. Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr15_overview_pt.pdf
10 GOBETTI,
S.; ORAIR, R. “Tributação e distribuição da renda no Brasil: novas evidências a
partir das declarações tributárias das pessoas físicas.” IPC-IC, 2015. Disponível
em: http://www.ipc-undp.org/pub/port/OP312PT_Tributacao_e_distribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas_fisicas.pdf
11 OECD
iLibrary. Government at a Glance 2015. Disponível em: http://www.oecd-ilibrary.org/governance/government-at-a-glance-2015/employment-in-the-public-sector_gov_glance-2015-22-en
12 HOLM-HADULLA,
F.; KAMATH, K.; LAMO, A.; PÉREZ, J.; SCHUKNECHT, L. Public Wages in the Euro
Area Towards Securing Stability and Competitiveness. European Central Bank,
2010. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scpops/ecbocp112.pdf
13 FREIRE,
A.; PALOTTI, P. (Orgs.). “Servidores públicos federais: novos olhares e perspectivas.”
Brasília: Enap Cadernos, 2015. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2396/1/Caderno_42_Servidores%20p%C3%BAblicos%20federais_novos%20olhares%20e%20perspectivas.pdf
14 PALLOTI,
P. & FREIRE, A. “Perfil, composição e remuneração dos servidores públicos federais:
trajetória recente e tendências observadas.” Brasília: Consad, 2015. Disponível
em: http://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2237/1/009.pdf
15 Apesar
disso é alta se compararmos com os países emergentes. A carga tributária na China
em 2019 ficou em torno de 17,5%; na Rússia, 24,2%; e na Argentina, 30,2%. Os EUA
(cerca de 27%) e o Chile (cerca de 20%) devem ser comparados com ressalvas, pois
o primeiro, além de sustentar seu modo de vida imprimindo a moeda mundial, não tem
sistema público de saúde, e o segundo não oferece previdência.
16 Eurostat.
Total receipts from taxes and social contributions. Disponível em: http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/images/c/ca/Total_tax_revenue_by_country%2C_1995-2014_%28%25_of_GDP%29.png
17 Tesouro Nacional. “Carga tributária
bruta do Governo Geral foi de 32,36% do PIB em 2017.” Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/carga-tributaria-bruta-do-governo-geral-foi-de-32-36-do-pib-em-2017
18 World
Bank Data. Disponível em: https://datacatalog.worldbank.org/
19 O
cálculo é com base na estimativa de R$340,9 bilhões de pagamento de juros líquidos
da União em 2017 (BC) contra uma receita primária de R$1.342,4 trilhão no mesmo
ano (Receita Federal).
20 OCDE Brasil. Relatórios econômicos
da OCDE: Brasil 2015. Disponível em: http://www.oecd.org/eco/surveys/Brasil-2015-resumo.pdf
“Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Pnud, o Brasil
é um paraíso tributário para os super-ricos,40 onde 71 mil pessoas (0,05%
da população adulta brasileira, ou meio milésimo dela), além de se apropriarem de
8,5% da renda nacional, ainda se beneficiam de taxas de juros exorbitantes e de
uma isenção tributária sobre distribuição de dividendos e lucros que só é praticada
aqui e na Estônia.41 (...)
Diante
desse quadro se impõe uma reforma tributária que não só sirva ao aumento de produtividade,
à desoneração do investimento e à ampliação do emprego formal, mas que sirva também
para nos ajudar a abandonar a vergonhosa posição de décimo país mais desigual do
mundo.45
Gostaria
de explicitar os princípios que orientam meu esboço de sistema tributário. Acredito
que um bom sistema deva ser indutor do crescimento, além de progressivo, simples
e eficaz. Induzir o crescimento é estimular a poupança interna e não prejudicar
a competitividade dos produtos nacionais, isentando investimento, produção, exportações
e emprego e se concentrando na tributação do consumo, da renda e do patrimônio.
A progressividade é instrumento de distribuição de renda e justiça social: um sistema
tributário deve cobrar percentualmente mais de quem é mais rico e menos de quem
é mais pobre. A simplicidade é necessária para que os custos de cálculo e demonstração
de pagamento de impostos sejam baixos, o valor embutido dos impostos seja transparente,
as possibilidades de sonegação e litígio sejam minimizadas e as exigências de obrigações
assessórias significantemente diminuídas. Por fim, a eficácia é a efetividade em
arrecadar de forma fácil e segura os recursos necessários ao financiamento das atividades
que a sociedade exige do Estado.”
40 Pnud.
Relatório de Desenvolvimento Humano 2015. Op. cit.
41 GOBETTI, S. & ORAIR, R. Op.
cit.
45 Pnud. Relatório de Desenvolvimento
Humano 2015. Op. cit.
“(...)
Todas essas políticas aqui esboçadas não darão certo sem a estrutura geral que abordei
em itens anteriores: uma taxa de juros reais mais baixa que a rentabilidade média
dos negócios, a recuperação da capacidade de investimento do Estado, a manutenção
de uma taxa de câmbio realista, que evite o populismo fácil do consumo de importados
e dê segurança para os novos investimentos e, finalmente, uma forte coordenação
entre governo, empreendedores e uma academia dedicada a produzir os avanços tecnológicos
necessários para a criação de novos setores industriais nacionais.”
“Defendo convictamente que a principal habilidade a ser desenvolvida pela
educação no mundo atual é a capacidade de aprender a aprender e de lidar criticamente
com o excesso de informações. Num mundo com tecnologias em permanente mudança, o
brasileiro do presente e do futuro precisa ter uma capacidade adaptativa que só
o pensamento crítico genuíno, fonte de todo o conhecimento humano, pode dar. Não
existe mais lugar no mundo para o professor reprodutor de fórmulas e informações,
simplesmente porque um volume incomensurável de informações está à distância de
um clique. O professor, no entanto, retém seu papel fundamental de tutor de um aluno
perdido num mar de dados sem saber como avaliá-los ou relacioná-los, de interlocutor
individual capaz de identificar e intervir em dificuldades particulares de aprendizado,
mostrando ao aluno a falha particular de pensamento que o impede de dominar determinado
conteúdo ou habilidade. Enfim, cabe ao professor sempre ajudar a desenvolver no
aluno o genuíno espírito crítico que, bem longe de ser a doutrinação ideológica
que muitas vezes o termo esconde, é exatamente seu inverso: ensinar a abordar o
mesmo problema ou conteúdo de pontos de vista diferentes.”
“REVERTER A AGENDA DAS CONTRARREFORMAS
Já me
referi em outros momentos neste livro às duas reformas constitucionais levadas a
cabo pelo Governo Temer, mas chegou a hora de tratar delas especificamente.
Essas
contrarreformas são inconfessadamente motivadas pelo colapso do rentismo. Ao obrigar
o Governo Dilma a responder à queda de arrecadação causada pela recessão com alta
de juros, o baronato nacional causou um descontrole do déficit público sem precedentes,
e que só se agravou com a gestão de Henrique Meirelles na Fazenda.
Promovendo
um golpe de Estado que alçou ao poder um governo ilegítimo, que não tinha que prestar
contas eleitorais à população, a plutocracia brasileira cobrou sua fatura e obrigou
a classe política, acuada pela Lava Jato, a levar à frente sua agenda de destruição
do Estado. O objetivo fundamental é garantir a todo custo excedentes que mantenham
o pagamento dos juros reais mais altos do mundo controlando o galope da dívida.
O limite
de gastos
A reforma
do limite de gastos, que ficou conhecida como a “PEC da morte”, estabeleceu como
teto de reajuste do orçamento (excetuando juros e serviço da dívida) a inflação
do ano anterior. Uma vez que a população continua a crescer 0,8% ao ano, ao limitar
o reajuste dessas contas à reposição da inflação, essa reforma terá o efeito ineludível
de diminuir, ano após ano, os recursos per capita aplicados em saúde, educação,
segurança, ciência, cultura e investimentos federais. Foi um verdadeiro crime contra
a população e um garrote em nossos investimentos, algo que daqui a dois ou três
anos nos levará ao colapso1 de todos os serviços do Estado. A motivação
legítima para o teto de gastos é o entendimento, compartilhado por mim, de que o
Estado não pode existir só para pagar pessoal e aposentadorias. Ele precisa de recursos
para investir em saúde, educação, segurança e, diretamente, em produção e infraestrutura.
Mas, na prática, o teto só tem servido para cortar investimentos, pois os gastos
com previdência e pessoal continuam subindo um pouco acima da inflação. Do jeito
que se encontra hoje, ele só servirá para estrangular e sucatear a educação e a
saúde públicas, desmoralizando-as e preparando-as para a privatização. O Brasil
estará impedido de crescer além de taxas vegetativas enquanto vigorar essa reforma
inconstitucional que, na prática, revoga a Constituição de 1988. A obrigação primeira
de todo brasileiro que tem compromisso com a saúde da população, o futuro de nossas
crianças e o crescimento do país é revogá-la.
A reforma
trabalhista
Vendida
como fruto de uma aspiração legítima de modernização das relações trabalhistas,
encontrou no caos terreno fértil para avançar sobre direitos básicos conquistados
no início do século XX, através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de Getúlio
Vargas. O que deveria ter sido o instrumento de regulação do trabalho temporário
e da terceirização, na prática extinguiu a CLT com a aprovação do abuso inédito
no mundo da prevalência do acordado sobre o legislado. Submeter o trabalhador ao
jugo exclusivo do mercado sem limites de proteção trabalhistas sustentados por lei
é, na prática, o retorno ao século XIX. Já a terceirização universal tende, com
o tempo, a extinguir o trabalho formal tradicional através de demissões para recontratação
de terceirizados sem direitos, causando o colapso da Previdência. Não será possível
conter a queda contínua da arrecadação da Previdência causada pelo aumento da informalidade,
se não se revisarem os aspectos selvagens dessa reforma.
Tudo
isso foi aprovado açodadamente e sem debate com a sociedade por um governo ilegítimo
e um Congresso acuados por pilhas de denúncias de corrupção. Essas barbaridades
vieram como moeda de troca com aqueles setores da elite econômica que ainda possuem
alguma atividade produtiva, e estão com seus custos de produção estressados por
juros e moeda supervalorizada. Sua sanha de precarizar o trabalho retirando direitos
históricos foi uma tentativa desesperada de recuperar alguma produtividade sem perder
os ganhos pessoais na ponta do rentismo.
A população,
anestesiada pela avalanche de tragédias e pela propaganda midiática, ainda não entende
o que aconteceu, pois quem está empregado hoje está sob a vigência do contrato de
trabalho antigo. Mas aqueles hoje desempregados que firmarem novos contratos de
trabalho daqui para a frente aos poucos conhecerão uma vida sem férias, sem horas
extras e sem direitos. É uma verdadeira tragédia que se abateu sobre os nossos filhos
sem que tivéssemos a força necessária para impedi-la.”
1 O
colapso chegou antes, com a crise da Covid-19.
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