Editora: Global
ISBN: 978-85-260-1934-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 168
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Sinopse: Com a
exuberância de imagens e sentidos que marca sua produção literária, em
"Utopia Selvagem" Darcy Ribeiro pinta com tons fortes a beleza que
uma sociedade adquire ao ser composta por um mosaico de cores e culturas
diferentes. O autor nos traz a história do negro Pitum que, buscando o Eldorado
em meio à Guerra Guiana, é engolido por uma cortina branca e acaba capturado
pelas amazonas. No convívio indígena, Pitum transmuta-se, aprendendo a língua e
adaptando-se aos seus costumes. O mergulho num mundo que não lhe é familiar
funciona como uma janela que o autor nos abre para, ao seu lado, contemplarmos
o verdadeiro tesouro: a sociabilidade nativa.
Juntando elementos históricos e míticos, Darcy sugere que
a miscigenação é uma prática que remonta às origens da espécie humana e tece
uma fabulosa história na qual valoriza o hibridismo cultural vivenciado nas
terras americanas.
“(As amazonas) Não deixavam é nascer
pentelhos no preto. Nem o pelame do sovaco escapou. Na moda delas isso é nojo
inadmissível. Não tendo, de nascença, pentelhame nenhum no corpo, não querem
também nenhum fio nele.
– Nisso são impossíveis. Arrancam pela raiz
um a um e ainda passam cinza quente ni mim para não nascer mais.
Esta depelagem foi a primeira bruteza
selvagem que fizeram com o tenente.
– Me desgostei demais. Pela dor e pela
boçalidade. – De fato, a primeira vez foi terrível. Uma dúzia delas o
agarraram, imobilizaram, e aí lhe abriram as pernas e depois os braços para
examinar e tirar um por um cada pelo. Não deixaram nem os do rabo.
– Aliás, os mais doídos – queixa Pitum. –
Ainda mais que os pentelhos do saco que já doem demais.
Hoje Pitum entende que é questão de moda ou
costume. E moda não se discute. No princípio, achando que o estavam depelando
para carnear, assar e comer, pôs a boca no mundo. Quis pôr, aliás, porque as
manoplas delas, tapando sua boca, não consentiram. Só bufava pelo nariz e
chorava lágrimas quentes pelos olhos. Esguichadas de tão sofridas.”
“A verdade espantosa para Pitum é que elas
vivem sozinhas, completamente sós, sem homem nem menino de idade nenhuma.
Sós e autárquicas é como vivem estas diabas.
As malocas estão cheias de meninas de toda idade, desde criancinhas de leite
mamando no peito único da mãe, até gurias engatinhando. Daí por diante, há
fêmea de todas as idades juvenis e maduras até a velhice total de cara e corpo
de jenipapo maduro. Não se vê é um menino, um guri, um rapazinho, um homem que
seja. Nenhum. Sumiram. Escafederam-se.
– Só restei eu. Como não sou daqui, não
sobrei: aconteci. Que é que elas fazem ou fizeram com seus homens que as
prenharam e prenham? Cada uma delas há de ter tido o seu gerador e com ele pais
e avós dele e dela; bem como tios e sogros e, ainda, os filhos e sobrinhos e
genros de ambos. Além dos irmãos, primos e cunhados que toda gente tem.
– Cadê eles? Não ficou nenhum! Não terão
essas bichas comido todos os machos? Disso são bem capazes – acha Pitum.
– Comerão seus homens especados e assados
como meus guaribas, depois de bem prenhadas por eles? Comerão também os filhos
machos que decerto parem? Horror! – Pitum se apavora, assombrado, com o futuro
provável, dele próprio e de sua descendência.
– Um dia me comerão, assim como hoje eu como
meus macacos?
T’esconjuro! Desta Deus me livre. E o Capeta
também! Vendo até a alma para escapar dos dentes delas. – Por sorte Pitum não
crê. Não pode crer que elas sejam assim de perversas e assassinas.
Este ofício de homem garanhão exercido,
agora, pelo tenente Carvalhall será um cargo fixo no sistema delas ou só
sucedeu com ele? É o que Pitum se pergunta.
– Serei eu o primeiro ou o derradeiro? Pelo
jeito, isso mais parece um sistema regulado, um uso tradicional. O lugar onde
armam a rede do preto em cada maloca, sempre o mesmo, bem no meio, entre dois
moirões, que ali estão pra isto, parece fixo e prescrito para o reprodutor
escalado: o sururucador oficial.
– A comida que me dão, sempre a mesma, sem
variação, e diferente da que elas mesmas comem, também parece prescrita.
O seu banho da manhã, obrigatório, naquela
algazarra com a criançadinha alegre e sem nenhum medo dele como deviam ter,
sendo Pitum um estranho e até de outra raça. Tudo isso reforça a suspeita de
que isso seja mesmo o reino das mulheres sem-marido. Autônomas. Autárquicas. Ou
quase.
– Está na cara que é assim! – acha Pitum, às
vezes, mas não se consola de que assim seja.
– É desnaturado demais – argumenta. Com
efeito, ele acha isto tão insensato como seria uma tribo complementar de homens
sós, soltos por aí, curtindo uma sodomia desbragada e um onanismo lascado. Que
é isto aqui? Como é que ele vai apurar? E, se assim é na verdade, o que é que
vai fazer?
– Como é que vou escapar?
O leitor talvez tenha lido o livro que uma
vez li de confissões de um alemão que viveu prisioneiro dos índios antigos do
Brasil. Lá ficou tempos, até casou, esperando as roças deles crescerem para a
festança em que iriam comê-lo. Escapou porque os índios, aqueles, que só comiam
heróis, se horrorizaram vendo a caganeira e o berreiro em que caiu o tal alemão
para não ser comido. Aqui é diferente. Se o sistema delas é mesmo comer o macho
já fodido, Pitum está perdido.
– Não há choro que me salve. Nem choro nem
vela.
O único consolo de Pitum é a boa vida que
leva, bem cuidado de dia, bem fodido de noite. Vida farta, forra, ociosa, até
gostosa. Qualquer um invejaria, se não fosse o futuro temido no moquém. Isto é
o que pensaria Pitum, se não se consolasse com ilusões: comigo não será
assim... mas duvida:
– Triste fim. Que será de mim?
Quando acordou, na primeira noite que passou
na maloca, Pitum sentiu logo que estava livre, mas não desatado. Acordando, se
achou na rede com o peso de uma dona, deitada em cima dele, requerendo serviço.
Sair da guerra diretamente pra sacanagem parece que não dá. Até que dá. Deu,
assim que ele entendeu o que ela queria.
Imaginando e temendo, ainda, que fosse alguma
tentação do demo, o maroto passou a mão nos fundos da dona pra saber se ela era
mesmo mulher furada ou se era só tentação tapada.
– Fêmea é sim, com racha e oco – verificou.
Não tinha é pentelho nenhum. Isso intrigou muito Pitum. Levantou a cabeça da
rede, se virou, olhou e viu, confirmou que a vergonha dela, exibindo um grelo
alto, era bochechuda mas peladíssima. A verga se assustou um pouco querendo murchar.
Felizmente reagiu logo, empinou. Pitum olhou o mulherio deitado ao redor, pra
ver se causava vexame cobrindo a dona ali.
– Ninguém olhava. Pareciam dormir.
Sururuquei. – Melhor diria que foi comido. Isto porque, enquanto assuntava, a
dona, que era sabida e fornida, se adiantou tanto que ele já se viu metido nela
com tudo dentro. E ela, em vez de remexer, lá ficou bem engatada, mas parada
como uma sapa, sentada em cima dele.
– Que é isto, moleca, se mexa – disse Pitum,
assumindo o comando fodetivo no estilo de quem gosta de se mexer no reco-reco
habitual. A dona não deixou. Queria ele era ali duro, parado, dentro dela.
Quieto. O pau de Pitum, desacostumado ainda dessa copulação estática, quis
desanimar. A dona não deixou. Com um movimento ou dois, chupeteando, reativou o
danado que, reanimando, quis mais mamação no lesco-lesco de costume. Ela não
consentiu.
– Só aí compreendi o que ainda estou pra
entender: em lugar de comer, eu estava sendo comido. Bem comido, é verdade, mas
comido no estilo delas. Até hoje é assim que Pitum se sente: um prostituto,
pau-mandado de mulher.
– Não reclamo que seja ruim. Digo apenas que
é diferente. – Diferente demais de todo o sabido e falado nesse assunto tão
debatido.
Desde então, na noite de cada dia é uma dona
que o come, sempre do mesmo modo, retardando o jorro o quanto pode. Pitum
acabou se habituando com o jeito delas.
– Agora acho até um fracasso quando gozo. – É
também do gosto das donas que, finda a operação, ele fique dentro, um bom
tempo, esperando o pau murchar por si mesmo até sair sozinho.
Outro uso destas donas é não falar nadíssima
durante a longa transa silente. Quando, no princípio, Pitum – mal habituado nos
puteiros de Pelotas – quis saber se elas estavam gozando, ou dizer, carinhoso,
que a dona, aquela, era boa demais, o que recebeu foi mãozadas para se calar.
– Foda, aqui, é assunto seríssimo. Que
pensarão elas enquanto o mantêm teso lá dentro? Fantasiarão sacanagens? Serão
santarronas, pensando na perpetuação da espécie? – Nunca saberei: é tabu.
Estas donas que só trepam uma vez na vida
outra na morte encontraram este jeito de estirar o gozo. Em lugar dos
descaramentos manuais e bocais dos prazeres prologais, optaram por esta
transação longuíssima, de durar a noite inteira, se o macho der. Luxúrias de Amazona.
– Isso é o que querem, aspiram: um pau de
ferro. – A arte erótica delas, pelo visto, não reside nos enfeites do deboche e
sim nessa esticação desnaturada da dura presença lá dentro rigidamente contida.
Das donas de ao redor, silenciosas, não digo o mesmo. – Elas, nas suas redes
armadas ao longo das paredes do malocão, à igual distância de onde está o
prenhador, certamente olharão afogueadas, emocionadíssimas, a fornicação
silenciosa. Mais gozarão elas, só vendo lá de longe, com o pai de todos embutido
dentro, parado, do que a sortuda, escalada. Pitum gosta de pensar que cobrindo
sua dama da noite, de fato, está servindo a todas elas.
– Só me dói suspeitar que hoje como quem,
amanhã, me comerá. Na forma de paçoca ou de pirão? – Sem sal e muito apimentado
isto ele sabe bem.
– Canibalas!”
“Pitum sabe, sente, adivinha que, sem
qualquer dúvida, estas bizarras donas vivem inquietas. Se preocupam demais com
alguma ameaça muito temida.
– Que será? – O ar assombrado com que tapam a
boca e abrem os olhos, aterradas, quando se toca certos assuntos, fala alto
destes temores. Tanto medo, nesta gente cubana de valente, é estranho demais.
– Por que será? De que será? De quem será? –
Sabe-se lá. Pitum supõe – mas isto é mero palpite – que elas têm medo é da
volta dos homens. É do retorno à hegemonia natural dos machos. É do fim deste
sistema desnaturado de viverem umas donas sempre sós, a vida toda sem marido.
Mas duvida.
– Lá pode ser? – Muitas delas decerto até
gostariam de um machão, limpando a goela ruidoso pra infundir respeito, fedendo
suor, roncando na rede e fodendo diário. Não têm é coragem, nem meios de se
rebelar.
Coitadas! Crescendo aqui, debaixo da opressão
deste sistema desumano, treinadas desde meninas pra guerreiras, têm de se
conformar. Que jeito?
– De onde este sistema desumano delas tira
sua força? – é o que pergunta Pitum, sem alcançar resposta satisfatória. Será,
como no Exército, a hierarquia severa, a disciplina rígida – regimentária –,
com suas penas de prêmios e castigos, o que aqui mantém a ordem?
– Mas qual hierarquia, se elas nem reconhecem
chefias? – Qual disciplina, se o gozo delas é sofrer castigos?
Deixando de pensar porque cansa e dói, Pitum
sonha.
– Bom mesmo – fantasia – era trazer aqui meu
regimento, cercar uma maloca destas de noite e cair em cima delas de madrugada.
Com a tesão acumulada desta Guerra Guiana, numa manhã, meus homens amestrariam outra
vez estas donas. Com o sol do meio-dia elas todas estariam domesticadas. Ia ser
uma beleza.”
“Aqui entre nós, leitor, eu digo que estas
sisudas donas são nada mais nada menos que as primeiras revolucionárias da
história. São as pioneiras da revolução feminista permanente: trotskistas.
Para mim isso começou nos idos em que, aqui
nos trópicos, por força da Revolução Agrícola – resultante da domesticação do
milho e da mandioca – o nível do desenvolvimento das forças produtivas
ultrapassou o das relações de produção. Criaram-se, assim, condições objetivas
para a gestação de uma nova formação econômico-social cuja expressão
sociojurídica seria o matriarcado.
Deu-se, então, o inevitável salto dialético:
a quantidade se converteu em qualidade. Em consequência, a classe predominante
do novo modo de produção – encarnada pelas lavradoras que produziam a maior
parte dos alimentos – assaltou e assumiu o poder político, iniciando a
transformação revolucionária da vida social.
Em consequência, as mulheres sujigaram os
homens ao seu domínio, subvertendo a ordem social e a natural. Para garantir
sua hegemonia, fizeram o que fazem todas as classes vitoriosas: tomaram para si
as armas, desapropriaram os adornos, monopolizaram as sinecuras e acabaram com
o lazer dos homens, para submetê-los pelo cansaço.
Quando o poderio mulheril se consolidava, eis
que surge a contrarrevolução machista, cuja liderança histórica é atribuída ao inominável
Jurupari. Foi ele, na verdade, o herói inconteste de todo uma suja guerra
contrarrevolucionária.
Jurupari, segundo reza a tradição, seria o
filho de uma moça chamada Amaru, nascida de uma mulher que transou com uma
cobra. Tal mãe, tal filha, uma vez que esta, por sua vez, brincando com uns
macacos no mato, derramou o sumo de não sei que fruta lá no rego dela e se
prenhou.
Jurupari, antes de nascer, já saía da madre
da mãe para espairecer. Assim é que topou e se entendeu com Sol, que lhe deu
poderes de feiticeiro. Novato no ofício de encantador, querendo criar um
gavião, o que criou foram bandos de morcegos, corujas e outros feios bichos
noturnos. Depois de muito labutar, criou, afinal, seu gavião, e montado nele
foi ver Lua. Ela é que deu a Jurupari a pedra do poder de disciplinar o
mulherio que estava imponente demais. Aí, ele próprio fez a besteira: contou
seu segredo a uns velhos que, seduzidos por uma dona, denunciaram a intentona.
O golpe de Jurupari era renunciar à
Presidência, deixando em seu lugar, como garantia do poder macho, a sua voz de
mando, encanada dentro dos tubos das flautas de paxiúba. As mulheres, sabendo disto
pelos velhos, roubaram as flautas e impuseram o despotismo.
Jurupari teve de voltar. Para se impor de
novo, instituiu o jejum total, transformou aqueles velhos em lacraias, sapos e
cobras e castigou as mulheres, por ambiciosas e viciosas, com surras e com
curras.
Assim, dizem, começou Ele a instituir a ordem
vigente, destinada a permitir que surjam mulheres perfeitas, dignas de um dia
desposar Sol.
Com base nesse manifesto-programa, Jurupari,
apelando para toda sorte de táticas psicodélicas, apavorou e seduziu as
mulheres, compelindo-as a aceitar a ordem divinal da machitude. Esta se funda
em três princípios basilares:
• O do culto feminino das virtudes da
virgindade, da fidelidade, da frugalidade e da discrição.
• O do respeito ao resguardo masculino chamado
couvade, comprobatório de que o importante na procriação é a paternidade, uma vez
que a mulher é um mero saco em que o homem deposita sua semente.
• E, finalmente, o princípio da obediência ao
marido e ao chefe e do direito do homem à poligamia.
Esta nova ordem afiançadora do caráter
sagrado da hegemonia masculina se assenta em dois pilares. Ideologicamente, ela
é sacralizada e legalizada pelo culto das flautas e das máscaras de Jurupari,
reforçado por todo um corpo de crenças e normas éticas e estéticas.
Socialmente, é garantida pelo cansaço decorrente da imposição da dupla jornada
de trabalho a que as mulheres são submetidas, na roça e na maloca.
Mas é assegurada, material e efetivamente,
desde então, pelo aparato repressivo implantado na Casa dos Homens de cada
aldeia com sua corporação de machos curradores.
Para exemplar o poderio da hegemonia macha, a
própria Amaru, mãe de Jurupari, foi a primeira mulher a morrer currada.
Estas trotskas silvestres foram as únicas
mulheres que não se deixaram embair pela mistificação ideológica, nem
aterrorizar pelas compulsões fisiológicas. Em lugar de se submeterem ao jugo
masculino, enfrentaram seus machos rebelados, mataram e comeram todos eles para
se fortalecerem física e espiritualmente e assumiram elas próprias a celebração
– sacrílega – dos ritos de Jurupari. Desse modo fizeram cumprir o império do determinismo
econômico que os homens haviam tergiversado e obstaculizado. A seguir,
organizaram-se como uma classe para si: androfágica, autárquica, hegemônica e soberana.
Esta é – salvo melhor juízo ou ulterior
revisão científica à luz de novas fontes etc. – a pré-história desse abominável
mundo mulheril onde caiu, para desgraça dele e vergonha geral, o inocente macho
tenente.”
“O que mais ofende a Pitum é ser tido e
havido como babaca. Vê claramente pelo desprezo com que as donas olham para ele
que o consideram um moleirão dengoso.
– Vejam só – reclama o preto, com toda razão
–, eu, o tenente G. Carvalhall do glorioso Exército Nacionall, aqui sou chamado
Pitum e tido como maricas. Pode lá ser?
Ele tem suas razões, pudera! Diante destas
machas ninguém se apruma. Elas são estoicas. Disso Pitum dá testemunho, com a
certeza de quem tem provas às carradas.
– Assim é, efetivamente – diz ele. – Numa
cerimônia de debutantes com que inauguram as moças que menstruam pela primeira
vez, dão provas provadas deste estoicismo. As noviças, estas, depois de meses
de reclusão numa choça, são retiradas, lavadas, pintadas e adornadas para
receberem a tortura atroz. Postas no meio de uma roda movente formada por todas
as donas da maloca, recebem sobre o ventre uma esteirinha em forma de peixe, feita
de talas trançadas como peneira, com um marimbondo dos mais doídos em cada
loca. Quando encostam aquele instrumento de dor na barriga da pobre,
instantaneamente todos os marimbondos espetam os ferrões que têm na bunda lá na
barriga da coitada. Algumas desfalecem de dor. Todas fecham a cara em rictos de
dor insuportável.
– Nenhuma dá um pio.
Numa outra cerimônia que fazem, parece que só
pelo gosto de sofrer, as donas já meio velhuscas metem o braço numa cumbuca
cheia de formigas tocandira, dessas mais peçonhentas. A mão sai, meia hora
depois, com o dobro do tamanho de tão inchada. O braço incha como um balão
soprado. Uma íngua cresce, instantânea, no sovaco. A dor deve ser atroz.
– Nem um pio, neste rito também.
Pois essas heroínas insensatas fazem ainda
pior: cortam fora, sem grito nem faniquito, com lascas de taquara, o peitinho
direito, mal ele acaba de crescer.
– Taradas – gritava Pitum vendo umas
ex-noviças se despeitar.
Metida num pau-de-arara uma dona dessas
resistia mais de que comunista fanático. Só diria o que quisesse. Mas quem é
que teria a doida ideia de torturar essas índias? Selvagens e cruéis elas são;
mas inocentes também são de toda perversão subversiva. Como índias são até
tuteladas do Estado, na sua condição de cidadãs relativamente incapazes.
Perante a lei brasileira são equiparadas, para todo efeito, às mulheres
casadas, aos menores de idade e aos idiotas. Irresponsáveis são, portanto. Por
pior que seja o crime que cometam, por maior que seja a virtude que ostentem,
não merecem penas nem glórias.
Além do estoicismo, outras virtudes não se
sabe se elas têm. Pecados têm demais – acha Pitum. – Serem assim autárquicas,
sem homens fixos, delas, há de ser pecado cabeludo. Não há nem pode haver
depravação maior que esta de umas mulheres viverem sem macho fornicador
próprio, acasalado.
– Só tendo reprodutor ocasional, como é que
satisfazem seus desejos bestiais? – No meio desta abstinência compulsória hão
de florescer os piores vícios. Depravadas!”
“Cumpre assinalar aqui, por oportuno, que a
sobrevivência das amazônidas coloca problemas cruciais diante do Brasil. Num
plano humanístico há e sobreleva a questão da antropofagia, denigrante judiação
dietética que nenhum povo civilizado pode consentir que se perpetue no seu solo
nem em solo algum. Exceto se se comprovar o caráter meramente ritual e até evangélico
como ocorre com a antropofagia brasílica. E é isto que salva nossa honra.
Mesmo a prática come-homem destas donas seria
dessa espécie uma vez que, presumivelmente, se junta o mulherio de todas as
malocas, para comer um macho só. A cada uma, neste caso, caberia absorver uma
pilulazinha hostial.”
“O debate secreto sobre as verdadeiras razões
causais da Guerra Guiana se trava aceso todo dia. Cada vez que dois oficiais se
encontram – mas nunca mais de dois, que ninguém é de ferro – quem estiver ali
escondido, escutando, ouvirá as versões mais desencontradas pra explicar a
Guerra Guiana.
Para o capitão Mameluco, esta seria uma
guerra psicológica. Concentrando, num abscesso de fixação, toda a agressividade
nacional, ela permitiria ao povo brasileiro viver em paz. Muitos negam essa
hipótese acoimada de psicologística. Todos reconhecem, não obstante, que no
Brasil o convívio humano melhorou muito depois da guerra. Nas Guianas só piora.
Muito batalhão mais parece um magote de
drogados do Exército ianque no Vietnã.
Para o major Xipaio toda guerra é bélica e
política. Esta também. Seu propósito seria criar um alvo inimigo,
extrabrasileiro, capaz de atrair a atenção e o interesse dos generais,
almirantes e brigadeiros, sequiosos de se sentar na cadeira presidencial. Todo
militar aspira tanto ser Presidente Civil do Brasil que foi indispensável inventar
esta guerra pródiga de condecorações e promoções.
– Mas que é que os guianenses têm com o pato?
Melhor é a explicação atribuída ao coronel
Jenizaro: esta é uma guerra estratégica, diz ele. Seu objetivo é evitar que a
Venezuela – já tão rica em petróleo –, tomando as Guianas, cresça
desmesuradamente e acabe engolindo a gente. Como os brasileiros não têm peito
para tomar mais terras – pra não aumentar mais nossa má fama de nação
expansionista –, fica-se nesse toma lá dá cá. Qualquer dia as tropas param com
as Guianas nas mãos e fixam as fronteiras nacionais nas praias do mar Caribe.
– Ali bem na frente de Fidel – vixe Maria! –
diz Eunuco.
Este é o objetivo real, aparteia o comandante
Emir: esta é uma boa guerra anticomunista. Uma vez plantados nas praias do
Caribe, vamos juntar coragem pra invadir a Ilha pelo sul, enquanto os gringos
invadem pelo norte. Juntos, vencemos o comunismo e acabamos com o despotismo
cubano. Ninguém pode mais com essa ilha de merda, com sua meia dúzia de gatos pingados,
libertando áfricas e ásias.”
“– Estão atolados no atraso, estes bugres.
Vivem na fartura curtindo preguiça. – Para ele, o ofício real dos Galibis é
viver convivendo e pecando inocentemente na sua comunidade solidária. Os
homens, uns malandros, é verdade que caçam e pescam em duras jornadas; mas
depois descansam dias, balançando na rede, cafungando, filosofando e rezando.
As mulheres são mais ativas. Fora da aldeia, plantam roça e colhem, apanham
água e lenha, carregam carga. Dentro de casa, cozinham e amamentam, fornicam e mexericam.
– Não querem outra vida, estes bugres –
conclui Pitum. – Nem eu.”
“Ouvindo as absurdidades que as monjas contam
do Brasil lá delas, Pitum vai chegando à conclusão de que a doidice bem pode
ser delas. A seu tempo, o leitor verá, bestificado, que o preto talvez até
tenha razão.
– Não pode haver um Brasil assim – diz ele. –
Certamente não há mesmo. Será invenção delas. – E se pergunta: – para que
fantasiam tanto? Que é que lucram com isso? A quem é que querem enganar? (...)
Quando brigam muito, o ex-tenente passa uns
dias ressabiado, embolado com os homens lá no clube. Mas como não pode viver
calado, acaba voltando. Vem cordialíssimo, requerendo fala e carinho. Elas
aproveitam pra cair numa arguição severa sobre as doiduras do Brasil dele.
Agora que decidiram que Orelhão é pirado da bola, já não se irritam tanto. Até
se divertem com as suas fantasias de maluco.
Pitum – agora Orelhão –, que já deu o que
tinha e o que não tinha, continua falando, se entregando. Não se emenda. Teve
de desmentir e ainda está desmentindo tudo o que disse. Mas continua falando de
novos espantos que tem, depois, de desdizer. É tão fluente como inverossímil.
Discorre horas, respondendo às perguntas das donas sobre toda sorte de coisas
do contraditório Brasil lá dele:
• a mocidade permissiva e a velhice
debochada;
• a machitude crepuscular e a bichice
florescente;
• o feminismo salvacionista e o autarquismo
sexual;
• a Funai perseguindo índios pra sustentar
ex-coronéis;
• a queimada das matas e o movimento
ecológico;
• a negritude emergente e a branquitude
ressentida;
• a contaminação industrial e a qualidade de
vida;
• o militarismo civilista e a democratização
autoritária;
• a majestade da justiça e os esquadrões da
morte;
• o pau-de-arara nordestino e o boia-fria
sulino.”
“As pobres monjas estão entaladas no impasse.
Assuntos pios, missionais, enchem os índios. Chateiam demais. Casos míticos
provocam discussões. Dão em disparate. O outro assunto, único, que interessa a
eles é a Civilização, mas resulta sempre em arguições perturbadoras.
Apesar das confusões, este é o tema de que
mais falam. Os índios de tudo querem notícia. O diabo é que, não sabendo,
ainda, que são selvagens, são inteiramente incapazes de entender o que é
Civilização. Se acham civilizados, os idiotas.
Aliás, isso de Civilização é também o maior
interesse de Orelhão. Estando completamente por fora do Brasil lá delas, ele se
aproveita das conversas para informar-se. Cada vez mais ele se convence, pelo
que ouve, de que se trata de outro Brasil. O país delas é outro de que ele
nunca ouviu falar. De fato, não tem nenhum jeito de ser o Brasil dele, normal.
Seja o do passado. Seja o do presente.
As conversas com os índios sobre a
Civilização são enredadas, longas. Pra explicar como é uma cidade, as monjas
levam horas. Primeiro comparam, dizendo que são formigueiros de gente. Enormes
formigueiros com muita formiga-gente andando daqui prali, dali praqui. Explicam,
depois, que esse formigueiro fica num descampado, sem nenhuma árvore, mas com
muitos caminhos paralelos e cruzados, com casas dos dois lados. Casas quase sempre
amontoadas umas sobre as outras, subindo pro céu.
Orelhão acha que elas deviam é dizer que a maioria
das tais casas é de aluguel; que o aluguel é caro demais e dobra cada seis
meses, com a inflação. A seu juízo, elas enchem os selvagens é de detalhes
inúteis sobre telhados de telha, chãos empedrados de pedra, lisas paredes
pintadas, janelas de vidro, torneira d’água, luz elétrica, WC e fogão a gás.
Até dos telefones dão notícia a eles.
Quando os idiotas já não entendem mais nada,
de tanta maravilha que ouvem, elas explicam que lá ninguém pesca, nem caça, nem
planta. Ou se pesca, caça e planta, faz cerâmica ou trança esteira, só faz isso
a vida inteira. Não confessam é que lá também tudo se compra na feira e custa dinheiro,
que é difícil de ganhar. Não há dúvida é de que elas se esforçam demais.”
“– O que nós loucos somos é isto: testemunhas
do impossível. O tempo é muitos tempos simultâneos. Impossíveis. O espaço
também. Quem atravessou a cortina branca sabe. Todo impossível é possível em
algum lugar. Até demais.”
“Só é de perguntar se será caridoso da parte
destas monjas tirar os Galibis da Inocência para lhes dar a palavra de Deus.
Pensando que dão de graça a Salvação, elas não estariam cobrando um preço
terrível? Não estariam abrindo pra esses pobres índios as portas do Inferno?
Enquanto foram Pagãos, ignorantes do Verbo
Revelado, sendo inscientes eles eram inocentes e, assim, incapazes de culpa e
de pecado. Depois de catequizados, não. Ao receberem a Boa Nova e, com ela, o
Saber e a Malícia, passam a ter méritos e culpas pelas virtudes e maldades que cometam.
A Redenção para eles será a Perdição. No estado natural do paganismo eles não
podiam ser nem Infiéis, nem Hereges, nem Apóstatas, porque Pagão não tem
competência para tanto. Convertidos, estão fodidos.”
“Explicam ao preto que, para os índios Galibis,
o sonho é a alma da gente que sai do corpo andando, esvoaçante, por aí, fazendo
estripulias. Assim sendo, o que acontece no sonho acontece mesmo, ainda que
seja no mundo dos sonhos. Tanto que eles pedem indenização se alguém os
prejudica nos sonhos. E dão, espontaneamente, a recompensa devida se eles
próprios, nos sonhos, andaram passando um companheiro pra trás.
Outro dia Calibã sonhou que a filha dele –
que ele não tem –, querendo parir seu neto, cagou um abacaxi para agradar a
Orelhão. As monjas precisaram dar ao preto, para que ele desse ao tuxaua, como
indenização, a melhor tesoura de costura que tinham.
– Saiba você, Orelhão, que o sonho é a
principal fonte de sabedoria dos Galibis. Todos aqui tomam Caapi para ter
sonhos que são treinamentos e ensinamentos. Assim, os meninos aprendem a caçar
e andar no mato. Assim, os homens sabem do que está acontecendo ou dos riscos
do que pode suceder.
Exagerada como é, Tivi afirma que o sonho é a
escola da vida. Sem sonhar, estes índios nem saberiam viver. Sonhando, aprendem
tudo. O sonho dá aos Galibis o que a TV Globo dá a nós, brasileiros: engabela,
seduz e consola. É até melhor porque não quer vender seguros nem sabão
português. E tem a vantagem de que todo programa é ao vivo e nele o próprio
índio se vê a si mesmo obrando maravilhas. Sem as ilusões da TV, brasileiro
morria de tristeza com a vida que tem. Índio também, sem sonhar,
destrambelhava.”
“Nestas circunstâncias só nos cabe o consolo
de recordar que, afinal, como dizem os sábios chineses, o inevitável é sempre o
melhor.”
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