domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário Analítico do Ocidente Medieval – Volume II (Parte III), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-3930-686-2

Tradução: Hilário Franco Júnior (coord.)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 704

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Sinopse: Ver Parte I


“Na patrística e no pensamento da Alta Idade Média. a contemplação da natureza herda e transforma certos temas da literatura helenística consagrados às “maravilhas” (mirabilia), bem como a transfiguração global da física em uma visão religiosa do cosmo: portanto, ela se destina essencialmente a apreender no mundo criado um sistema de símbolos, uma linguagem figurada de Deus, que recorda aos homens verdades de ordem ética e religiosa, segundo um estreito paralelismo com a Sagrada Escritura. Como recomenda Santo Agostinho, “que a página divina seja para você o livro que permite ouvir falar dessas coisas, e que a terra seja para você o livro que permite vê-las” (Enarrationes in psalmos, XLV, 7).

 

Natureza e símbolo

A exemplo da Escritura, a natureza constitui um livro “escrito pelo dedo de Deus”, como disse Hugo de Saint-Victor em seu De tribus diebus. Ela é um texto de sentido próprio, e não de sentido figurado, um texto ao qual se aplicam os instrumentos apropriados à exegese bíblica: os significados da Bíblia são também os do “livro das criaturas”, e o discurso “sobre a natureza” (de natura rerum) submete os seres criados a todas as transposições simbólicas, alegóricas, morais e tipológicas possíveis, porque, tomados no seu conjunto, eles constituem, segundo Pedro Damiano, um “símbolo sagrado [sacramentum] da inteligência espiritual” (De naturis animalium). Para Ricardo de Saint-Victor, “quer se interrogue a natureza, quer se consulte a Escritura, ambas expressam um único e mesmo sentido, de maneira equivalente e harmônica” (Benjamin major, V, 7). (…)

Essa perspectiva, na qual o cosmo se reveste de caráter sagrado, apoia-se em uma compreensão da natureza como expressão direta da vontade divina. Pode-se vê-la especialmente nas Etimologias, de Isidoro de Sevilha, e em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho: “Como a vontade do Criador é a natureza de cada coisa criada, a natureza [natura rerum] tem, ela mesma, sua própria natureza [natura], a saber, a vontade de Deus” (XXI, 8, 2). Agostinho ensina a ver, mesmo nos monstros, fenômenos e prodígios, sinais e “exemplos” (exempla) da pedagogia divina: nada é propriamente falado “contra a natureza”, já que tudo depende da vontade do Criador, que manifesta, através desses sinais, “o que está destinado a acontecer” (XXI, 8, 5).

A natureza e os seres singulares são imagens de um desígnio divino: segundo Hugo de Saint-Victor, “as criaturas singulares são como imagens que não foram inventadas para o prazer humano, mas instituídas pela vontade divina para manifestar a invisível sabedoria de Deus” (De tribus diebus). O mundo criado é, portanto, objeto privilegiado de uma “inteligência” e de uma leitura que se realizam “conforme a alegoria espiritual”, “segundo o símbolo místico”, “de maneira profética”. Nesse contexto, é o símbolo que constitui a realidade e que oferece dela uma interpretação autêntica. Compreende-se, então, o desabrochar desses animais que a mentalidade moderna julga fantásticos – fênix, sereias, “monstros” (monstra) –, mas que, para a mentalidade medieval, têm sua razão de ser na categoria de símbolos sagrados (sacramenta) e de sinais (signa) de uma ordem e de um desígnio divinos: não apenas “exemplos” (exempla) de verdades intemporais, mas “tipos”, “imagens”, ou seja, antecipações e prefigurações de momentos da história sagrada.

“A substância de todas as coisas sensíveis e inteligíveis nada mais é que a iluminação e a difusão da bondade divina” (Comentários sobre a hierarquia celeste de São Dioniso, o Areopagita, I, 2): eis como, no século IX, João Escoto Erígena, retomando certos ensinamentos fundamentais do Pseudo-Dioniso, faz muito logicamente do cosmo uma pura teofania divina.

Seria um erro restringir essa interpretação simbólica da natureza à esfera do imaginário; pelo contrário, estamos diante de um sistema coerente de interpretação da realidade e de uma forma de conhecimento que obedecendo a uma lógica simbólica, encontra nas técnicas da tradição exegética os instrumentos adequados para atingir a verdade do discurso revelado por Deus na Criação. Com o efetivamente sustenta João Escoto Erígena, “é de dupla maneira que a luz eterna se manifesta no mundo: através da Escritura, evidentemente, e através da Criação [creaturam] ·· (Hom. in prol. Evang. sec. Johannem).” (Natureza – Tullio Gregory)

 

 

“A Idade Média continua a viver no contexto de uma natureza que é tecida de símbolos e discurso divino figurado (bem cedo transposto para representações pictóricas e escultóricas). Mas a experiência da natureza conhecerá profunda transformação entre os séculos XII e XIII, em um novo contexto econômico e político: das zonas fronteiriças da Europa – oriundas sobretudo da Itália meridional e da Espanha- começam a afluir traduções de textos científicos e filosóficos gregos e árabes que, sem dificuldade, encontram acolhida nos novos meios escolásticos do século XII, impondo-se em seguida nas universidades. No espaço de aproximadamente um século, vê-se constituir uma biblioteca de textos até então desconhecidos de física, astronomia, medicina, alquimia e magia, permitindo descobrir a riqueza perdida da especulação aristotélica, helenística e árabe. Trata-se de textos que, produzidos antes da tradição religiosa cristã ou fora dela, propõem uma concepção do mundo e do homem, uma filosofia natural e uma metafísica estranhas à modesta enciclopédia das artes liberais conhecida pela Alta Idade Média. Nesse contexto racional, desponta uma ideia de natureza desligada de transposições e interpretações simbólicas, fora da esfera do sagrado, dotada de uma consistência ontológica própria e de uma habilidade causal ligada mais diretamente à vida cotidiana do homem. O sucesso imediato dos textos de medicina, astrologia e magia indica muito bem o campo de novos conhecimentos que de repente se abriu. É significativo que se tenha tomado consciência, desde a primeira metade do século XII, da radical importância dessa “ciência dos árabes que nasce quase inteiramente do quadrivium (Daniel de Morley, Philosophia) e que ·vem satisfazer um velho “desejo insaciável de filosofar” (Hugo Sanctallensis).

A cultura europeia compreendeu imediatamente a profunda originalidade dessa descoberta da tradição filosófica grega e árabe: o homem é inserido em um sistema físico onde a natureza não mais se define por suas referências simbólicas, como linguagem de Deus, mas pelo fato de que foi criada por Deus segundo uma “lei” que funda e garante a própria natureza dos seres (“é essa lei que chamo ‘natureza’”, escreve Daniel de Morley), e que cada ser cumpre de maneira inviolável. Essa “natureza” define-se como uma “ordem”, um “encadeamento” (nexus), uma “série” de “causas”, um “laço” (vinculum) e uma “regra” do mundo, como objeto próprio de uma “razão natural” até então desconhecida. Com relação a isso, é exemplar a posição sustentada por Adelardo de Bath nas Quaestiones naturales. Pioneiro da nova cultura, tradutor dos Elementos, de Euclides, e do Centilequim, do Pseudo-Ptolomeu, Adelardo recupera a “razão” aprendida com os “mestres árabes” para opor, ao estabelecimento da relação direta entre fenômenos naturais e vontade de Deus, uma busca precisa de causas: “Examine [as coisas] mais de perto, considere, além disso, as circunstâncias especiais, destaque as causas em vez de admirar os efeitos” (Quaestiones naturales, 6, 64).” (Natureza – Tullio Gregory)

 

 

“O movimento amplia-se e acelera-se com o que a maioria dos medievalistas chama de “crise da Baixa Idade Média”. A expressão é vaga e ambígua. Entre outras distinções, ela exige antes de tudo a de “nobres” e·”nobreza”. Dificuldades de todo tipo sitiam as linhagens tradicionais. As mais graves são de ordem econômica e financeira. A depressão demográfica provoca abandono de terras e uma evolução divergente dos preços das produções de cereais por um lado, da mão de obra e materiais de exploração agrícola por outro – Wüstungen e Preisschere que apressadamente se atribuiu a todo o Ocidente, enquanto pouco afetaram as regiões. Queda dos aluguéis e multiplicação dos atrasos de pagamento reduzem as rendas fundiárias.

O Estado, assim como as comunidades urbanas e rurais, mais organizadas, desfalcam o rendimento dos direitos banais. As despesas aumentam, suntuosas e frequentemente suntuárias, para respeitar as obrigações da classe, nas fortificações e no armamento, no nível de vida, com as festas e os funerais já mencionados. Esse desequilíbrio dos orçamentos, frequentemente aprofundado pela ausência de uma política familiar e patrimonial, força empréstimos, penhoras, vendas. Nos turbilhões do tempo, a nobreza mostra-se incapaz de – salvo exceção, como a da Baixa Auvergne – continuar assumindo a missão de proteção que tinha justificado seus privilégios, suas exigências e sua consideração. A substituição, através de operações imobiliárias, das linhagens ancestrais por estrangeiros ao território, enfraquece ou até suprime o apego das pessoas pelo senhor local. A guerra, na qual a cavalaria guarda a primazia tática, e os torneios, importam muitos combatentes. Grande número de casas nobres, talvez a maioria, decaem e desaparecem, pelo menos dos textos. Outras se mantêm, embora tenham que abandonar o campo pela cidade e a carreira militar pelos negócios. Algumas até reforçam sua posição, especialmente as mais altas, como os Croy, os Nassau, os Hornes dos Países Baixos borguinhões; elas compram domínios dos mais fracos e garantem-se os altos cargos. Simultaneamente e ao inverso, o serviço público e os “lucros gordos” das batalhas favorecem a ascensão e o sucesso de homens inteligentes, corajosos, ambiciosos.” (Nobreza – Léopold Génicot)

 

 

Pecado

Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado. A concepção do tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção de saber, a ideia de trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e visão de mundo do homem medieval giram em torno da presença do pecado.

O tempo histórico é um tempo pontuado pelo pecado: antes e depois da Queda, antes e depois da vinda de Cristo, antes e depois do Juízo Final. As fases da história da humanidade sucedem-se de acordo com os acontecimentos cruciais da história do pecado: o ato de desobediência a Deus de Adão e Eva assinala a passagem de um estado original de perfeição para uma condição dominada pela presença do pecado; a Encarnação desencadeia um processo de salvação, de libertação do pecado; o fim dos tempos assinala a condenação definitiva dos pecadores e a glória eterna dos não pecadores. O tempo individual situa-se no interior desse tempo histórico e começa no erro, quando, com o nascimento, o homem contrai o Pecado Original; continua após o batismo, quando o homem, liberto da mancha original, adquire capacidade de lutar contra os numerosos pecados que o cercam; e termina com a morte física, quando, dependendo dos pecados cometidos, ele será salvo ou condenado para a eternidade. Um tempo pontuado pelo pecado, que se desenrola, por sua vez, em espaços definidos e organizados pelo pecado: o Paraíso terrestre, onde não há absolutamente lugar para o pecado; a terra, que, pelo contrário, foi invadida por ele e onde é preciso construir um espaço de expiação, separado e protegido (o mosteiro); o Além, estruturado em espaços diversos (Paraíso, Inferno, Purgatório, Limbo), de acordo com o tipo e intensidade do pecado cometido.

O pecado também está na origem de uma série de práticas rituais, individuais e coletivas – o batismo, a confissão, o jejum, a punição corporal, a oração, a peregrinação –, instituídas com o claro intuito de limitar o poder e a extensão dos pecados do mundo. Além disso, o pecado domina toda a rede de relações nas quais o homem medieval se move e se representa: o Deus ao qual esse homem se dirige é um deus que se lhe manifesta para proibir, punir, perdoar todos os pecados; o Diabo do qual foge é um demônio que o tenta e seduz a fim de induzi-lo a pecar; a comunidade a que pertence é, antes de tudo, uma comunidade de pecadores. A vida social parece-lhe dirigida, em todos os níveis e em todos os seus mecanismos, por esse laço de solidariedade criminosa na qual está baseada: as relações entre homem e mulher são dominadas pela luxúria, o exercício do poder gera ambição e vaidade, a atividade econômica transforma-se em avareza, a corrente de subordinações alimenta a inveja.

Da coletividade, passemos ao indivíduo. O pecado estabelece a dinâmica das relações entre alma e corpo, que constituem a “pessoa medieval”. Tendo a maravilhosa perfeição da relação original sido destruída pelo pecado, a alma e o corpo vivem juntos no indivíduo em estado de contínua tensão, que, por sua vez, gera o pecado: aqui a carne concupiscente, fonte de impulsos dificilmente refreáveis; ali um espírito enfraquecido, assolado pelas paixões, incapaz de governar sozinho o corpo que habita e colhido em seu desejo de se voltar para o bem. O julgamento aplicado às atividades humanas faz parte dessa antropologia do pecado: por longos séculos, o trabalho será vivido como punição divina, expiação contínua de um corpo doravante frágil, obrigado a trabalhar penosamente para sobreviver; a atividade intelectual aparece como a louca curiosidade de um espírito tornado todo-poderoso diante da ignorância em que o precipitou o pecado. Com o tempo, a esses julgamentos vêm se opor outros, mais otimistas, dispostos a reconhecer a força, a habilidade, a criatividade técnica empregada pelo homem no trabalho e a olhar com admiração o esforço intelectual daquele que procura construir um saber. Mas o pecado não é esquecido; pelo contrário, é justamente na tentativa de remediar seus efeitos devastadores que as atividades manuais e intelectuais, as artes mecânicas e liberais, podem encontrar uma justificativa e uma possibilidade de redenção. (...)

Narrado como acontecimento, o pecado é analisado como entidade e, portanto, definido em sua natureza, dissecado em suas partes, interrogado quanto às suas causas, estudado em seus efeitos; é o discurso da teologia que o conclui em nível teórico, mas é também o discurso da teologia pastoral que o experimenta na prática e o propõe aos fiéis, os quais, por sua vez, o repetem no exame de consciência. Enfim, o pecado, nas palavras dos pregadores, nas páginas dos tratados, nas imagens pintadas e esculpidas no interior das igrejas, é representado: animais reais ou imaginários, doenças imundas e contagiosas tornam-se pouco a pouco símbolos de sua ação maligna; árvores vão se ramificando para ilustrar suas múltiplas manifestações; personagens históricos ou tipos ideais, graças ao talhe de suas vestimentas, aos gestos, às atitudes, representam suas características específicas; pecadores flagrados em pleno erro ou no momento do castigo mostram sua natureza e suas consequências.” (Pecado – Carla Casagrande e Silvana Vecchio)

 

 

“A pregação medieval reúne, nas principais datas do calendário cristão, os paroquianos em torno da palavra que busca a salvação individual e coletiva. Ela reúne, mas também estabelece uma divisão entre locutores e ouvintes, entre clérigos e leigos. Numa sociedade de illitterati, os sermões eram o meio básico de instrução dos leigos e meio privilegiado para uma verdadeira “aculturação cristã”. Pregar era, de fato, definir os contornos da verdadeira religião diante da heresia e da superstição, e propor (até mesmo impor) um modelo de cristianismo, uma visão do mundo cujos componentes políticos, sociais e religiosos encontravam-se estreitamente entrelaçados.” (Pregação – Marie-Anne Polo De Beaulieu)

 

 

“Como o próprio estudo histórico é parcialmente racional – no sentido estrito, que exige que as teorias sejam deduzidas a partir de provas –, a história da racionalidade inclui-se no âmbito da “reflexão sobre a reflexão”, um tipo particularmente vulnerável às falsas hipóteses. Ora, é precisamente uma hipótese sobre a racionalidade e sobre seus destinos mutáveis que subjaz a nossa tripartição tradicional da história. Concebemos os gregos e seus discípulos romanos como seres “racionais” à nossa semelhança; e essa racionalidade só volta a despertar na Renascença. Tudo o que se situa no exterior ou no intervalo é apenas barbárie, palavra grega que começa pelo som (bá-bá-) das línguas incompreensíveis. É, pois, uma acessibilidade implícita à razão que define a Terra Ferma da civilização. E, em virtude dessa definição, a Idade Média está dali excluída.

Tal ponto de vista pode ser ilustrado por uma célebre anedota. Costuma-se contar que os medievais discutiam para determinar “quantos anjos caberiam na ponta de uma agulha”. Essa história supostamente prova a vacuidade do raciocínio clerical medieval. E ela o provaria, se fosse verdadeira. Como ela é falsa, prova outra coisa... Só o que temos a respeito são vagos paralelos com debates especializados sobre o infinito – um tema que não deixou de ocupar a reflexão matemática desde aquele tempo até nossos dias. De fato, essa anedota é uma criação da mitologia da Renascença, o mais intenso questionamento de seu próprio ancien régime feito por uma civilização. Se ela nos ensina alguma coisa é sobre a Renascença, não sobre a Idade Média. Esse mito atravessou os séculos porque as hipóteses que o engendraram não foram postas em causa. O mito protege as hipóteses e vice-versa.

Essas hipóteses, e o esquema tripartido que as acompanha, começaram a erodir no curso das últimas gerações. Cada obra consagrada à História Antiga descobre um novo aspecto da irracionalidade grega e mostra que a “ordem” romana dissimula um precário equilíbrio de interesses, quase tão instável no interior quanto no exterior do Império. Na outra extremidade desse esquema, revisões análogas denunciam a superstição e a violência inerentes à Renascença e às Luzes, enquanto, para os tempos modernos, a tradição profética judaica – uma corrente não racional do mundo antigo, viva ainda hoje – revelou, através de Freud e Marx, que nem nossos espíritos (a herança grega), nem nossa sociedade (a herança romana) são verdadeiramente tão bem ordenados quanto esperávamos. Em outros termos, nós próprios não somos absolutamente “racionais”.” (Razão – Alexander Murray)

 

 

“A fusão das correntes racionais e antirracionais no cristianismo se fez também no contexto de uma fusão ainda mais radical, a de Deus e do homem em Cristo. Longe de ser um elemento acessório da fé cristã, essa fusão é indissociável e, depois que as definições foram solidamente estabelecidas – aproximadamente por volta do fim do século VII –, torna-se inextirpável. Fato que teve duas consequências definitivas para o cristianismo. Uma das consequências foi dolorosa, a outra, feliz. A consequência dolorosa foi que o cristianismo, enquanto religião, e cada um dos indivíduos que o professam, foram condenados a viver em perpétua tensão. O cristão, possuindo a razão, deve servir-se dela e estimá-la, mas não pode se apoiar nela. A razão é uma espécie de escada, que se deve dispensar quando se chega ao topo; uma lâmpada, que revela o quanto é limitado o campo que ilumina. Ela designa o eterno, mas é mortal. No entanto, malgrado essas tensões, é impossível rejeitá-la. Com efeito, só a razão é capaz de mostrar que Deus transcende a razão. Esse paradoxo foi enunciado, no século IV, com extrema clareza, por outro sírio, o Pseudo-Dioniso. Trata-se do paradoxo da docta ignorantia, para retomar o título do livro de um de seus numerosos discípulos medievais, Nicolau de Cusa, do século XV.

Essa consequência dolorosa é acompanhada de outra, esta feliz. Operando a fusão entre as duas correntes, o cristianismo evita se deixar levar por uma ou por outra até a posição extrema que ela encarna. Não se deixa levar, ou nunca por muito tempo e sem que prontamente se chame à ordem, em direção a um racionalismo árido, sofista, como aquele de que os reformadores zombam observando certos desvios da escolástica tardia; nem em direção a uma condenação radical da razão, como certas seitas “estusiastas”. Essa fusão era ao mesmo tempo uma garantia e um princípio moderador. Enquanto tal, deu à cultura intelectual cristã sua qualidade histórica mais marcante: sua extraordinária receptividade.

De fato, um exame minucioso da cultura cristã revela... sua inexistência. Como as línguas de que ela se serve, a cultura cristã é herdada ou emprestada, trazida do exterior, o que não deprecia o cristianismo, bem pelo contrário. Da mesma maneira e pela mesma razão, pode-se dizer o mesmo de um organismo vivo que, em presença de outros organismos, ocupando eles também seu lugar na hierarquia dos seres vivos, examina-os, transforma-os, depois os reúne por uma química sutil num único organismo, mais poderoso. Do mesmo modo, o cristianismo examinou e digeriu tudo que julgou bom nas tradições que encontrou.

Contentemo-nos em lembrar um único episódio. Nos últimos séculos da Antiguidade, os Pais da Igreja cristã teriam podido cometer O “crime perfeito”. No que concernia às principais doutrinas cristãs, eles já haviam emprestado da filosofia grega tudo de que precisavam. Bastava que cruzassem os braços, esperando a desaparição do restante de sua herança pagã. Mesmo encarnada em milhares de livros, esse gênero de herança não tem uma vida muito durável. Somente algumas gerações mais tarde, no século VII, o governador muçulmano de Alexandria perguntou ao califa muçulmano Omar o que convinha fazer com a célebre biblioteca de Alexandria, repleta de papiros gregos, a maior biblioteca do mundo. E o relato da resposta do califa circulou por muito tempo nas terras islâmicas: os livros contidos na biblioteca, respondeu o califa, só podem ou confirmar o Alcorão, e portanto são supérfluos, ou contradizer o Alcorão, e portanto são errôneos. Deveriam, pois, ser queimados. Os fornos de Alexandria foram alimentados com eles durante seis meses. Os Pais Latinos, por mais gélidos que fossem, não teriam precisado recorrer a tais extremos para destruir tudo que não fosse cristão. Bastaria que deixassem a cultura clássica perecer. O que fizeram? O contrário. Seguindo o projeto exposto por Agostinho na De doctrina christiana, Orósio, Boécio, Cassiodoro e outros esforçaram-se muito para preservar o saber antigo sob formas que iam servir de ponto de partida para a renascença medieval.

Eis por que os monges podiam refletir sobre problemas de lógica e de técnica durante o ofício noturno. Com certeza, essas reflexões podiam ser uma distração, obstruindo a opus Dei à qual “nada deve ser preferido”. O equilíbrio entre o escudo e a prece sempre foi um problema para os religiosos cristãos, como, de resto, no sentido mais amplo da palavra “estudo”, para todos os cristãos. Era a consequência dolorosa, a tensão do sistema. Mas a própria existência dessas reflexões e os frutos intelectuais muito variados que elas produziram, dizem respeito à natureza das crenças que estavam no núcleo da cultura medieval, crenças que deveriam abrir lugar à razão e encorajá-la, sempre insistindo sobre o fato de que a maior parte das verdades que ela ensina permanecem, e muito, fora de seu alcance.

Dante é intemporal. Mas viveu, fisicamente, numa época em que a escolástica já tinha tido tempo de enunciar algumas dessas verdades em seu jargão latino, e ele pôde resumir uma parte na sua língua vernácula. Quando Dante procurou definir o Paraíso, ele o fez utilizando a inteligência. Longe de afastá-lo do Paraíso, ela o conduzia a suas profundezas, de fato tão profundamente, que ele não pôde lembrar do que ela lhe havia dito. “Pois, aproximando-se de seu desejo, nosso intelecto vai tão fundo que a memória não pode segui-lo” (A divina comédia, “Paraíso”, I, 7-9).” (Razão – Alexander Murray)

 

 

“A santidade no Ocidente medieval constitui um fenômeno considerável, de múltiplas dimensões: fenômeno espiritual, ela é a expressão da busca do divino; fenômeno teológico, ela é a manifestação de Deus no mundo; fenômeno religioso, ela é um momento privilegiado da relação com o sobrenatural; fenômeno social, ela é um fator de coesão e de identificação dos grupos e das comunidades; fenômeno institucional, ela está no fundamento das estruturas eclesiásticas e monásticas; fenômeno político, enfim, ela é um ponto de interferência ou de coincidência da religião e do poder. Pode-se, consequentemente, considerar a santidade o lugar de uma mediação bem-sucedida entre o natural e o sobrenatural, o material e o espiritual, o mal e o bem, a morte e a vida. Em uma perspectiva histórico-antropológica, ela é um ponto de observação privilegiado para quem quer estudar a percepção individual e/ou coletiva da fronteira entre o natural e o sobrenatural, a possibilidade de estabelecer contatos e controles (milagres, ritos, devoções etc.) e, enfim, a função social e política dessa dimensão sacra que se constrói em torno de um homem durante sua vida e/ou após sua morte.

Pois a santidade cristã aparece como uma construção: a percepção e o reconhecimento do caráter excepcional de um homem ou de uma mulher – quer dizer, a santidade como existe para os outros e através dos outros (P. De looz) – repousam sobre o processo durante o qual esse homem ou essa mulher constroem sua própria santidade operando certas escolhas de vida, praticando certos exercícios espirituais (prática das virtudes, oração, formas de ascese etc.) e inspirando-se em modelos gerais (Cristo) ou específicos (formas de vida religiosa já praticadas e codificadas). A escolha religiosa deve ser visível e reconhecível. Disso resulta a importância central dada ao corpo: controlado, atormentado, dominado, o corpo é a realidade física na qual o percurso espiritual se coloca em evidência (tomando sobretudo formas extremas, que são consideradas a prova da identificação com Cristo: estigmas, troca do coração, materialização dos símbolos da cruz). O combate vitorioso contra a natureza corporal parece tão extraordinário que implica a aquisição de um poder sobrenatural, cujos efeitos são tanto materiais (sobre o corpo dos outros homens, sobre os animais, sobre as coisas e sobre os elementos) quanto espirituais (visões, sonhos, predições, profecias).

Essa importância central do corpo no percurso da santidade explica por que lhe é atribuído, inclusive depois da morte, um poder taumatúrgico que se torna a prova da sobrevivência da alma: as relíquias são garantias tangíveis de uma comunicação permanente entre a terra e o Céu. O conceito de santidade atinge a dimensão de uma sacralidade difusa: sacralidade dos objetos (“relíquias de contato”, imagens etc.), sacralidade dos lugares (santificados pela presença do santo, morto ou vivo), sacralidade do tempo (coincidência entre aniversários litúrgicos e momentos da vida social, como as feiras e os mercados, os prazos contratuais e jurídicos).

 

O problema das origens

As civilizações clássicas conheceram formas de divinização: os gregos criaram os heróis (homens – Hércules, por exemplo – aos quais o mito atribui um caráter excepcional e, ao mesmo tempo, a imortalidade) e os romanos praticaram o culto dos imperadores. Além dessa sacralização de seres humanos, recordemos a presença difusa, no Baixo Império, da crença nos demônios, seres “intermediários”, ameaçadores ou benéficos, que povoam os ares e transtornam a realidade e o imaginário dos homens.

Na cultura hebraica, a santidade começou sendo atributo exclusivo de Iahweh, cujo isolamento e inacessibilidade são indicados por ela. A santidade estende-se em seguida ao que está próximo dele ou ao que lhe é consagrado (objetos, templos, sacerdotes etc.). Ela adquire progressivamente um valor moral e espiritual, atribuído tanto à coletividade (o povo de Israel) quanto a certos homens em particular, eleitos por Deus, dotados por ele de um espírito profético e de poderes taumatúrgicos, e que são, enquanto tais, “mediadores” da palavra e do poder de Deus junto aos homens. Duas figuras exemplares impõem-se: Moisés, que encontra Deus e relata sua vontade escrita materialmente nas Tábuas da Lei, e João Batista, que, através da penitência e da palavra, testemunha sua relação com Deus.

Esses dois grandes modelos são, todavia, ultrapassados por uma figura inteiramente nova, o Cristo dos Evangelhos, cuja especificidade reside em uma filiação direta de Deus e na ressurreição: esse duplo milagre faz dele o mediador por excelência, aquele que, tendo vencido a morte física, garante a imortalidade da alma e do corpo de cada homem. Mas é o conjunto de seu percurso biográfico que se torna um modelo de santidade: seu amor por Deus e pelo próximo, sua prática das virtudes, sua luta contra as tentações materiais e espirituais, sua autoridade sobre a natureza. No entanto, o relato dos Evangelhos deixa entrever a possibilidade de uma ambivalência dos sinais da santidade – e sobretudo do milagre, que é uma manifestação de Deus, mas também do Diabo –, ambivalência que continuará constante durante os séculos seguintes. A literatura chamada apócrifa oferece um quadro rico, mas igualmente curioso e às vezes preocupante, dos poderes sobrenaturais atribuídos aos protagonistas: por exemplo, Jesus aparece como uma criança poderosa, mas também vingativa.

Ao contrário, as testemunhas da fé – mártires e depois confessores –, inicialmente apenas “mortos excepcionais” cuja lembrança era perpetuada pela comunidade através da celebração do aniversário da morte (o dies natalis, dia do nascimento para a verdadeira vida), rapidamente se tornam “intercessores” (H. Delahaye), graças à evidência da proximidade que tinham com Deus. Considerado um mediador junto a Deus e um protetor eficaz, o santo adquire o título de “patrono” e efetua funções análogas às exercidas pelo patronus (“patrono”) romano em relação a seus clientes (que podem ser tanto comunidades inteiras como simples indivíduos). O santo é o “companheiro invisível” (P. Brown) de homens que vivem em uma época de crise e precisam estabelecer uma relação de intimidade tranquilizadora com algum defunto ilustre.

A extensão e a diversificação do fenômeno provocam uma verdadeira especialização, tanto no que toca aos modelos quanto aos poderes. No interior da religião cristã, apesar de rigorosamente monoteísta no plano teológico, vê-se constituir uma espécie de panteão diferenciado segundo os gêneros, os modelos e as funções, que engloba os novos santos, mas também “santifica” figuras históricas ou míticas do Antigo e do Novo Testamento. Isto garante uma melhor conformidade com as exigências e as crenças dos fiéis, e propicia a difusão da nova religião: mesmo o culto da Virgem Maria, certamente rico em possibilidades de homogeneização cultual, não conseguirá se opor à diversificação dos cultos.” (Santidade – Sofia Boesch Gajano)

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