Editora: Unesp
ISBN: 978-85-3930-686-2
Tradução: Hilário
Franco Júnior (coord.)
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 704
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Sinopse: Ver Parte
I
“Na patrística e no pensamento da Alta Idade
Média. a contemplação da natureza herda e transforma certos temas da literatura
helenística consagrados às “maravilhas” (mirabilia), bem como a
transfiguração global da física em uma visão religiosa do cosmo: portanto, ela
se destina essencialmente a apreender no mundo criado um sistema de símbolos,
uma linguagem figurada de Deus, que recorda aos homens verdades de ordem ética
e religiosa, segundo um estreito paralelismo com a Sagrada Escritura. Como
recomenda Santo Agostinho, “que a página divina seja para você o livro que
permite ouvir falar dessas coisas, e que a terra seja para você o livro que
permite vê-las” (Enarrationes in psalmos, XLV, 7).
Natureza e símbolo
A exemplo da Escritura, a natureza constitui
um livro “escrito pelo dedo de Deus”, como disse Hugo de Saint-Victor em seu De
tribus diebus. Ela é um texto de sentido próprio, e não de sentido
figurado, um texto ao qual se aplicam os instrumentos apropriados à exegese
bíblica: os significados da Bíblia são também os do “livro das criaturas”, e o
discurso “sobre a natureza” (de natura rerum) submete os seres
criados a todas as transposições simbólicas, alegóricas, morais e tipológicas
possíveis, porque, tomados no seu conjunto, eles constituem, segundo Pedro
Damiano, um “símbolo sagrado [sacramentum] da inteligência
espiritual” (De naturis animalium). Para Ricardo de Saint-Victor,
“quer se interrogue a natureza, quer se consulte a Escritura, ambas expressam
um único e mesmo sentido, de maneira equivalente e harmônica” (Benjamin
major, V, 7). (…)
Essa perspectiva, na qual o cosmo se reveste
de caráter sagrado, apoia-se em uma compreensão da natureza como expressão
direta da vontade divina. Pode-se vê-la especialmente nas Etimologias,
de Isidoro de Sevilha, e em A
Cidade de Deus, de Santo Agostinho: “Como a vontade do Criador é a
natureza de cada coisa criada, a natureza [natura rerum] tem, ela
mesma, sua própria natureza [natura], a saber, a vontade de Deus”
(XXI, 8, 2). Agostinho ensina a ver, mesmo nos monstros, fenômenos e prodígios,
sinais e “exemplos” (exempla) da pedagogia divina: nada é propriamente
falado “contra a natureza”, já que tudo depende da vontade do Criador, que
manifesta, através desses sinais, “o que está destinado a acontecer” (XXI, 8,
5).
A natureza e os seres singulares são imagens
de um desígnio divino: segundo Hugo de Saint-Victor, “as criaturas singulares
são como imagens que não foram inventadas para o prazer humano, mas instituídas
pela vontade divina para manifestar a invisível sabedoria de Deus” (De tribus
diebus). O mundo criado é, portanto, objeto privilegiado de uma “inteligência”
e de uma leitura que se realizam “conforme a alegoria espiritual”, “segundo o
símbolo místico”, “de maneira profética”. Nesse contexto, é o símbolo que
constitui a realidade e que oferece dela uma interpretação autêntica. Compreende-se,
então, o desabrochar desses animais que a mentalidade moderna julga fantásticos
– fênix, sereias, “monstros” (monstra) –, mas que, para a
mentalidade medieval, têm sua razão de ser na categoria de símbolos sagrados (sacramenta)
e de sinais (signa) de uma ordem e de um desígnio divinos:
não apenas “exemplos” (exempla) de verdades intemporais, mas “tipos”,
“imagens”, ou seja, antecipações e prefigurações de momentos da história
sagrada.
“A substância de todas as coisas sensíveis e
inteligíveis nada mais é que a iluminação e a difusão da bondade divina” (Comentários
sobre a hierarquia celeste de São Dioniso, o Areopagita, I, 2): eis como,
no século IX, João Escoto Erígena, retomando certos ensinamentos fundamentais
do Pseudo-Dioniso, faz muito logicamente do cosmo uma pura teofania divina.
Seria um erro restringir essa interpretação
simbólica da natureza à esfera do imaginário; pelo contrário, estamos diante de
um sistema coerente de interpretação da realidade e de uma forma de
conhecimento que obedecendo a uma lógica simbólica, encontra nas técnicas da
tradição exegética os instrumentos adequados para atingir a verdade do discurso
revelado por Deus na Criação. Com o efetivamente sustenta João Escoto Erígena,
“é de dupla maneira que a luz eterna se manifesta no mundo: através da Escritura,
evidentemente, e através da Criação [creaturam] ·· (Hom. in prol. Evang.
sec. Johannem).” (Natureza – Tullio Gregory)
“A Idade Média continua a viver no contexto
de uma natureza que é tecida de símbolos e discurso divino figurado (bem cedo
transposto para representações pictóricas e escultóricas). Mas a experiência da
natureza conhecerá profunda transformação entre os séculos XII e XIII, em um
novo contexto econômico e político: das zonas fronteiriças da Europa – oriundas
sobretudo da Itália meridional e da Espanha- começam a afluir traduções de
textos científicos e filosóficos gregos e árabes que, sem dificuldade, encontram
acolhida nos novos meios escolásticos do século XII, impondo-se em seguida nas
universidades. No espaço de aproximadamente um século, vê-se constituir uma biblioteca de textos até então desconhecidos de
física, astronomia, medicina, alquimia e magia, permitindo descobrir a riqueza perdida
da especulação aristotélica, helenística e árabe. Trata-se de textos que,
produzidos antes da tradição religiosa cristã ou fora dela, propõem uma
concepção do mundo e do homem, uma filosofia natural e uma metafísica estranhas
à modesta enciclopédia das artes liberais conhecida pela Alta Idade Média.
Nesse contexto racional, desponta uma ideia de natureza desligada de
transposições e interpretações simbólicas, fora da esfera do sagrado, dotada de
uma consistência ontológica própria e de uma habilidade causal ligada mais
diretamente à vida cotidiana do homem. O sucesso imediato dos textos de
medicina, astrologia e magia indica muito bem o campo de novos conhecimentos
que de repente se abriu. É significativo que se tenha tomado consciência, desde
a primeira metade do século XII, da radical importância dessa “ciência dos
árabes que nasce quase inteiramente do quadrivium” (Daniel de
Morley, Philosophia) e que ·vem satisfazer um velho “desejo
insaciável de filosofar” (Hugo Sanctallensis).
A cultura europeia compreendeu imediatamente
a profunda originalidade dessa descoberta da tradição filosófica grega e árabe:
o homem é inserido em um sistema físico onde a natureza não mais se define por
suas referências simbólicas, como linguagem de Deus, mas pelo fato de que foi criada
por Deus segundo uma “lei” que funda e garante a própria natureza dos seres (“é
essa lei que chamo ‘natureza’”, escreve Daniel de Morley), e que cada ser cumpre
de maneira inviolável. Essa “natureza” define-se como uma “ordem”, um “encadeamento”
(nexus), uma “série” de “causas”, um “laço” (vinculum) e
uma “regra” do mundo, como objeto próprio de uma “razão natural” até então
desconhecida. Com relação a isso, é exemplar a posição sustentada por Adelardo
de Bath nas Quaestiones naturales. Pioneiro da nova cultura, tradutor
dos Elementos, de Euclides, e do Centilequim, do Pseudo-Ptolomeu,
Adelardo recupera a “razão” aprendida com os “mestres árabes” para opor, ao
estabelecimento da relação direta entre fenômenos naturais e vontade de Deus,
uma busca precisa de causas: “Examine [as coisas] mais de perto, considere,
além disso, as circunstâncias especiais, destaque as causas em vez de admirar
os efeitos” (Quaestiones naturales, 6, 64).” (Natureza – Tullio Gregory)
“O movimento amplia-se e acelera-se com o que
a maioria dos medievalistas chama de “crise da Baixa Idade Média”. A expressão
é vaga e ambígua. Entre outras distinções, ela exige antes de tudo a de “nobres”
e·”nobreza”. Dificuldades de todo tipo sitiam as linhagens tradicionais. As
mais graves são de ordem econômica e financeira. A depressão demográfica
provoca abandono de terras e uma evolução divergente dos preços das produções de
cereais por um lado, da mão de obra e materiais de exploração agrícola por
outro – Wüstungen e Preisschere que apressadamente se atribuiu a
todo o Ocidente, enquanto pouco afetaram as regiões. Queda dos aluguéis e multiplicação
dos atrasos de pagamento reduzem as rendas fundiárias.
O Estado, assim como as comunidades urbanas e
rurais, mais organizadas, desfalcam o rendimento dos direitos banais. As
despesas aumentam, suntuosas e frequentemente suntuárias, para respeitar as
obrigações da classe, nas fortificações e no armamento, no nível de vida, com
as festas e os funerais já mencionados. Esse desequilíbrio dos orçamentos,
frequentemente aprofundado pela ausência de uma política familiar e
patrimonial, força empréstimos, penhoras, vendas. Nos turbilhões do tempo, a
nobreza mostra-se incapaz de – salvo exceção, como a da Baixa Auvergne –
continuar assumindo a missão de proteção que tinha justificado seus
privilégios, suas exigências e sua consideração. A substituição, através de
operações imobiliárias, das linhagens ancestrais por estrangeiros ao
território, enfraquece ou até suprime o apego das pessoas pelo senhor local. A
guerra, na qual a cavalaria guarda a primazia tática, e os torneios, importam
muitos combatentes. Grande número de casas nobres, talvez a maioria, decaem e
desaparecem, pelo menos dos textos. Outras se mantêm, embora tenham que
abandonar o campo pela cidade e a carreira militar pelos negócios. Algumas até
reforçam sua posição, especialmente as mais altas, como os Croy, os Nassau, os
Hornes dos Países Baixos borguinhões; elas compram domínios dos mais fracos e
garantem-se os altos cargos. Simultaneamente e ao inverso, o serviço público e
os “lucros gordos” das batalhas favorecem a ascensão e o sucesso de homens
inteligentes, corajosos, ambiciosos.” (Nobreza – Léopold Génicot)
“Pecado
Os homens e as mulheres da Idade Média
aparecem dominados pelo pecado. A concepção do tempo, a organização do espaço,
a antropologia, a noção de saber, a ideia de trabalho, as ligações com Deus, a
construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida
e visão de mundo do homem medieval giram em torno da presença do pecado.
O tempo histórico é um tempo pontuado pelo pecado:
antes e depois da Queda, antes e depois da vinda de Cristo, antes e depois do
Juízo Final. As fases da história da humanidade sucedem-se de acordo com os
acontecimentos cruciais da história do pecado: o ato de desobediência a Deus de
Adão e Eva assinala a passagem de um estado original de perfeição para uma condição
dominada pela presença do pecado; a Encarnação desencadeia um processo de
salvação, de libertação do pecado; o fim dos tempos assinala a condenação
definitiva dos pecadores e a glória eterna dos não pecadores. O tempo
individual situa-se no interior desse tempo histórico e começa no erro, quando,
com o nascimento, o homem contrai o Pecado Original; continua após o batismo,
quando o homem, liberto da mancha original, adquire capacidade de lutar contra
os numerosos pecados que o cercam; e termina com a morte física, quando,
dependendo dos pecados cometidos, ele será salvo ou condenado para a
eternidade. Um tempo pontuado pelo pecado, que se desenrola, por sua vez, em
espaços definidos e organizados pelo pecado: o Paraíso terrestre, onde não há
absolutamente lugar para o pecado; a terra, que, pelo contrário, foi invadida
por ele e onde é preciso construir um espaço de expiação, separado e protegido (o
mosteiro); o Além, estruturado em espaços diversos (Paraíso, Inferno,
Purgatório, Limbo), de acordo com o tipo e intensidade do pecado cometido.
O pecado também está na origem de uma série
de práticas rituais, individuais e coletivas – o batismo, a confissão, o jejum,
a punição corporal, a oração, a peregrinação –, instituídas com o claro intuito
de limitar o poder e a extensão dos pecados do mundo. Além disso, o pecado
domina toda a rede de relações nas quais o homem medieval se move e se
representa: o Deus ao qual esse homem se dirige é um deus que se lhe manifesta
para proibir, punir, perdoar todos os pecados; o Diabo do qual foge é um demônio
que o tenta e seduz a fim de induzi-lo a pecar; a comunidade a que pertence é,
antes de tudo, uma comunidade de pecadores. A vida social parece-lhe dirigida,
em todos os níveis e em todos os seus mecanismos, por esse laço de solidariedade
criminosa na qual está baseada: as relações entre homem e mulher são dominadas
pela luxúria, o exercício do poder gera ambição e vaidade, a atividade
econômica transforma-se em avareza, a corrente de subordinações alimenta a
inveja.
Da coletividade, passemos ao indivíduo. O
pecado estabelece a dinâmica das relações entre alma e corpo, que constituem a “pessoa
medieval”. Tendo a maravilhosa perfeição da relação original sido destruída
pelo pecado, a alma e o corpo vivem juntos no indivíduo em estado de contínua tensão,
que, por sua vez, gera o pecado: aqui a carne concupiscente, fonte de impulsos
dificilmente refreáveis; ali um espírito enfraquecido, assolado pelas paixões,
incapaz de governar sozinho o corpo que habita e colhido em seu desejo de se
voltar para o bem. O julgamento aplicado às atividades humanas faz parte dessa
antropologia do pecado: por longos séculos, o trabalho será vivido como punição
divina, expiação contínua de um corpo doravante frágil, obrigado a trabalhar
penosamente para sobreviver; a atividade intelectual aparece como a louca
curiosidade de um espírito tornado todo-poderoso diante da ignorância em que o
precipitou o pecado. Com o tempo, a esses julgamentos vêm se opor outros, mais
otimistas, dispostos a reconhecer a força, a habilidade, a criatividade técnica
empregada pelo homem no trabalho e a olhar com admiração o esforço intelectual daquele
que procura construir um saber. Mas o pecado não é esquecido; pelo contrário, é
justamente na tentativa de remediar seus efeitos devastadores que as atividades
manuais e intelectuais, as artes mecânicas e liberais, podem encontrar uma
justificativa e uma possibilidade de redenção. (...)
Narrado como acontecimento, o pecado é
analisado como entidade e, portanto, definido em sua natureza, dissecado em
suas partes, interrogado quanto às suas causas, estudado em seus efeitos; é o
discurso da teologia que o conclui em nível teórico, mas é também o discurso da
teologia pastoral que o experimenta na prática e o propõe aos fiéis, os quais,
por sua vez, o repetem no exame de consciência. Enfim, o pecado, nas palavras dos
pregadores, nas páginas dos tratados, nas imagens pintadas e esculpidas no
interior das igrejas, é representado: animais reais ou imaginários, doenças
imundas e contagiosas tornam-se pouco a pouco símbolos de sua ação maligna;
árvores vão se ramificando para ilustrar suas múltiplas manifestações;
personagens históricos ou tipos ideais, graças ao talhe de suas vestimentas,
aos gestos, às atitudes, representam suas características específicas;
pecadores flagrados em pleno erro ou no momento do castigo mostram sua natureza
e suas consequências.” (Pecado – Carla Casagrande e Silvana Vecchio)
“A pregação medieval reúne, nas principais
datas do calendário cristão, os paroquianos em torno da palavra que busca a
salvação individual e coletiva. Ela reúne, mas também estabelece uma divisão
entre locutores e ouvintes, entre clérigos e leigos. Numa sociedade de illitterati,
os sermões eram o meio básico de instrução dos leigos e meio privilegiado
para uma verdadeira “aculturação cristã”. Pregar era, de fato, definir os
contornos da verdadeira religião diante da heresia e da superstição, e propor (até
mesmo impor) um modelo de cristianismo, uma visão do mundo cujos componentes
políticos, sociais e religiosos encontravam-se estreitamente entrelaçados.” (Pregação
– Marie-Anne Polo De Beaulieu)
“Como o próprio estudo histórico é
parcialmente racional – no sentido estrito, que exige que as teorias sejam
deduzidas a partir de provas –, a história da racionalidade inclui-se no âmbito
da “reflexão sobre a reflexão”, um tipo particularmente vulnerável às falsas
hipóteses. Ora, é precisamente uma hipótese sobre a racionalidade e sobre seus
destinos mutáveis que subjaz a nossa tripartição tradicional da história.
Concebemos os gregos e seus discípulos romanos como seres “racionais” à nossa
semelhança; e essa racionalidade só volta a despertar na Renascença. Tudo o que
se situa no exterior ou no intervalo é apenas barbárie, palavra grega que começa
pelo som (bá-bá-) das línguas incompreensíveis. É, pois, uma acessibilidade
implícita à razão que define a Terra Ferma da civilização. E, em virtude
dessa definição, a Idade Média está dali excluída.
Tal ponto de vista pode ser ilustrado por uma
célebre anedota. Costuma-se contar que os medievais discutiam para determinar “quantos
anjos caberiam na ponta de uma agulha”. Essa história supostamente prova a vacuidade
do raciocínio clerical medieval. E ela o provaria, se fosse verdadeira. Como
ela é falsa, prova outra coisa... Só o que temos a respeito são vagos paralelos
com debates especializados sobre o infinito – um tema que não deixou de ocupar
a reflexão matemática desde aquele tempo até nossos dias. De fato, essa anedota
é uma criação da mitologia da Renascença, o mais intenso questionamento de seu
próprio ancien régime feito por uma civilização. Se ela nos ensina alguma
coisa é sobre a Renascença, não sobre a Idade Média. Esse mito atravessou os
séculos porque as hipóteses que o engendraram não foram postas em causa. O mito
protege as hipóteses e vice-versa.
Essas hipóteses, e o esquema tripartido que
as acompanha, começaram a erodir no curso das últimas gerações. Cada obra
consagrada à História Antiga descobre um novo aspecto da irracionalidade grega
e mostra que a “ordem” romana dissimula um precário equilíbrio de interesses,
quase tão instável no interior quanto no exterior do Império. Na outra
extremidade desse esquema, revisões análogas denunciam a superstição e a
violência inerentes à Renascença e às Luzes, enquanto, para os tempos modernos,
a tradição profética judaica – uma corrente não racional do mundo
antigo, viva ainda hoje – revelou, através de Freud e Marx, que nem nossos
espíritos (a herança grega), nem nossa sociedade (a herança romana) são
verdadeiramente tão bem ordenados quanto esperávamos. Em outros termos, nós próprios
não somos absolutamente “racionais”.” (Razão – Alexander Murray)
“A fusão das correntes racionais e
antirracionais no cristianismo se fez também no contexto de uma fusão ainda
mais radical, a de Deus e do homem em Cristo. Longe de ser um elemento
acessório da fé cristã, essa fusão é indissociável e, depois que as definições
foram solidamente estabelecidas – aproximadamente por volta do fim do século VII
–, torna-se inextirpável. Fato que teve duas consequências definitivas para o
cristianismo. Uma das consequências foi dolorosa, a outra, feliz. A
consequência dolorosa foi que o cristianismo, enquanto religião, e cada um dos
indivíduos que o professam, foram condenados a viver em perpétua tensão. O
cristão, possuindo a razão, deve servir-se dela e estimá-la, mas não pode se
apoiar nela. A razão é uma espécie de escada, que se deve dispensar quando se chega
ao topo; uma lâmpada, que revela o quanto é limitado o campo que ilumina. Ela
designa o eterno, mas é mortal. No entanto, malgrado essas tensões, é
impossível rejeitá-la. Com efeito, só a razão é capaz de mostrar que Deus
transcende a razão. Esse paradoxo foi enunciado, no século IV, com extrema
clareza, por outro sírio, o Pseudo-Dioniso. Trata-se do paradoxo da docta
ignorantia, para retomar o título do livro de um de seus numerosos discípulos
medievais, Nicolau de Cusa, do século XV.
Essa consequência dolorosa é acompanhada de
outra, esta feliz. Operando a fusão entre as duas correntes, o cristianismo
evita se deixar levar por uma ou por outra até a posição extrema que ela
encarna. Não se deixa levar, ou nunca por muito tempo e sem que prontamente se
chame à ordem, em direção a um racionalismo árido, sofista, como aquele de que
os reformadores zombam observando certos desvios da escolástica tardia; nem em direção
a uma condenação radical da razão, como certas seitas “estusiastas”. Essa fusão
era ao mesmo tempo uma garantia e um princípio moderador. Enquanto tal, deu à
cultura intelectual cristã sua qualidade histórica mais marcante: sua
extraordinária receptividade.
De fato, um exame minucioso da cultura cristã
revela... sua inexistência. Como as línguas de que ela se serve, a cultura
cristã é herdada ou emprestada, trazida do exterior, o que não deprecia o
cristianismo, bem pelo contrário. Da mesma maneira e pela mesma razão, pode-se
dizer o mesmo de um organismo vivo que, em presença de outros organismos, ocupando
eles também seu lugar na hierarquia dos seres vivos, examina-os, transforma-os,
depois os reúne por uma química sutil num único organismo, mais poderoso. Do
mesmo modo, o cristianismo examinou e digeriu tudo que julgou bom nas tradições
que encontrou.
Contentemo-nos em lembrar um único episódio.
Nos últimos séculos da Antiguidade, os Pais da Igreja cristã teriam podido
cometer O “crime perfeito”. No que concernia às principais doutrinas cristãs,
eles já haviam emprestado da filosofia grega tudo de que precisavam. Bastava
que cruzassem os braços, esperando a desaparição do restante de sua herança
pagã. Mesmo encarnada em milhares de livros, esse gênero de herança não tem uma
vida muito durável. Somente algumas gerações mais tarde, no século VII, o
governador muçulmano de Alexandria perguntou ao califa muçulmano Omar o que
convinha fazer com a célebre biblioteca de Alexandria, repleta de papiros
gregos, a maior biblioteca do mundo. E o relato da resposta do califa circulou
por muito tempo nas terras islâmicas: os livros contidos na biblioteca,
respondeu o califa, só podem ou confirmar o Alcorão, e portanto
são supérfluos, ou contradizer o Alcorão, e portanto são
errôneos. Deveriam, pois, ser queimados. Os fornos de Alexandria foram
alimentados com eles durante seis meses. Os Pais Latinos, por mais gélidos que fossem,
não teriam precisado recorrer a tais extremos para destruir tudo que não fosse
cristão. Bastaria que deixassem a cultura clássica perecer. O que fizeram? O
contrário. Seguindo o projeto exposto por Agostinho na De doctrina christiana,
Orósio, Boécio, Cassiodoro e outros esforçaram-se muito para preservar o
saber antigo sob formas que iam servir de ponto de partida para a renascença
medieval.
Eis por que os monges podiam refletir sobre
problemas de lógica e de técnica durante o ofício noturno. Com certeza, essas
reflexões podiam ser uma distração, obstruindo a opus Dei à qual “nada
deve ser preferido”. O equilíbrio entre o escudo e a prece sempre foi um
problema para os religiosos cristãos, como, de resto, no sentido mais amplo da
palavra “estudo”, para todos os cristãos. Era a consequência dolorosa, a tensão
do sistema. Mas a própria existência dessas reflexões e os frutos intelectuais
muito variados que elas produziram, dizem respeito à natureza das crenças que estavam
no núcleo da cultura medieval, crenças que deveriam abrir lugar à razão e
encorajá-la, sempre insistindo sobre o fato de que a maior parte das verdades
que ela ensina permanecem, e muito, fora de seu alcance.
Dante é intemporal. Mas viveu, fisicamente,
numa época em que a escolástica já tinha tido tempo de enunciar algumas dessas
verdades em seu jargão latino, e ele pôde resumir uma parte na sua língua
vernácula. Quando Dante procurou definir o Paraíso, ele o fez utilizando a inteligência.
Longe de afastá-lo do Paraíso, ela o conduzia a suas profundezas, de fato tão
profundamente, que ele não pôde lembrar do que ela lhe havia dito. “Pois,
aproximando-se de seu desejo, nosso intelecto vai tão fundo que a memória não
pode segui-lo” (A divina comédia, “Paraíso”, I, 7-9).” (Razão –
Alexander Murray)
“A santidade no Ocidente medieval constitui
um fenômeno considerável, de múltiplas dimensões: fenômeno espiritual, ela é a
expressão da busca do divino; fenômeno teológico, ela é a manifestação de Deus
no mundo; fenômeno religioso, ela é um momento privilegiado da relação com o
sobrenatural; fenômeno social, ela é um fator de coesão e de identificação dos grupos
e das comunidades; fenômeno institucional, ela está no fundamento das
estruturas eclesiásticas e monásticas; fenômeno político, enfim, ela é um ponto
de interferência ou de coincidência da religião e do poder. Pode-se,
consequentemente, considerar a santidade o lugar de uma mediação bem-sucedida
entre o natural e o sobrenatural, o material e o espiritual, o mal e o bem, a
morte e a vida. Em uma perspectiva histórico-antropológica, ela é um ponto de
observação privilegiado para quem quer estudar a percepção individual e/ou
coletiva da fronteira entre o natural e o sobrenatural, a possibilidade de
estabelecer contatos e controles (milagres, ritos, devoções etc.) e, enfim, a
função social e política dessa dimensão sacra que se constrói em torno de um
homem durante sua vida e/ou após sua morte.
Pois a santidade cristã aparece como uma
construção: a percepção e o reconhecimento do caráter excepcional de um homem
ou de uma mulher – quer dizer, a santidade como existe para os outros e através
dos outros (P. De looz) – repousam sobre o processo durante o qual esse homem
ou essa mulher constroem sua própria santidade operando certas escolhas de vida,
praticando certos exercícios espirituais (prática das virtudes, oração, formas
de ascese etc.) e inspirando-se em modelos gerais (Cristo) ou específicos (formas
de vida religiosa já praticadas e codificadas). A escolha religiosa deve ser
visível e reconhecível. Disso resulta a importância central dada ao corpo:
controlado, atormentado, dominado, o corpo é a realidade física na qual o
percurso espiritual se coloca em evidência (tomando sobretudo formas extremas,
que são consideradas a prova da identificação com Cristo: estigmas, troca do
coração, materialização dos símbolos da cruz). O combate vitorioso contra a
natureza corporal parece tão extraordinário que implica a aquisição de um poder
sobrenatural, cujos efeitos são tanto materiais (sobre o corpo dos outros
homens, sobre os animais, sobre as coisas e sobre os elementos) quanto
espirituais (visões, sonhos, predições, profecias).
Essa importância central do corpo no percurso
da santidade explica por que lhe é atribuído, inclusive depois da morte, um
poder taumatúrgico que se torna a prova da sobrevivência da alma: as relíquias
são garantias tangíveis de uma comunicação permanente entre a terra e o Céu. O
conceito de santidade atinge a dimensão de uma sacralidade difusa: sacralidade dos
objetos (“relíquias de contato”, imagens etc.), sacralidade dos lugares (santificados
pela presença do santo, morto ou vivo), sacralidade do tempo (coincidência
entre aniversários litúrgicos e momentos da vida social, como as feiras e os
mercados, os prazos contratuais e jurídicos).
O problema das origens
As civilizações clássicas conheceram formas
de divinização: os gregos criaram os heróis (homens – Hércules, por exemplo –
aos quais o mito atribui um caráter excepcional e, ao mesmo tempo, a
imortalidade) e os romanos praticaram o culto dos imperadores. Além dessa
sacralização de seres humanos, recordemos a presença difusa, no Baixo Império,
da crença nos demônios, seres “intermediários”, ameaçadores ou benéficos, que
povoam os ares e transtornam a realidade e o imaginário dos homens.
Na cultura hebraica, a santidade começou
sendo atributo exclusivo de Iahweh, cujo isolamento e inacessibilidade são
indicados por ela. A santidade estende-se em seguida ao que está próximo dele
ou ao que lhe é consagrado (objetos, templos, sacerdotes etc.). Ela adquire progressivamente
um valor moral e espiritual, atribuído tanto à coletividade (o povo de Israel) quanto
a certos homens em particular, eleitos por Deus, dotados por ele de um espírito
profético e de poderes taumatúrgicos, e que são, enquanto tais, “mediadores” da
palavra e do poder de Deus junto aos homens. Duas figuras exemplares impõem-se:
Moisés,
que encontra Deus e relata sua vontade escrita materialmente nas Tábuas da Lei,
e João
Batista, que, através da penitência e da palavra, testemunha sua relação com
Deus.
Esses dois grandes modelos são, todavia,
ultrapassados por uma figura inteiramente nova, o Cristo dos Evangelhos, cuja
especificidade reside em uma filiação direta de Deus e na ressurreição: esse
duplo milagre faz dele o mediador por excelência, aquele que, tendo vencido a
morte física, garante a imortalidade da alma e do corpo de cada homem. Mas é o
conjunto de seu percurso biográfico que se torna um modelo de santidade: seu
amor por Deus e pelo próximo, sua prática das virtudes, sua luta contra as
tentações materiais e espirituais, sua autoridade sobre a natureza. No entanto,
o relato dos Evangelhos deixa entrever a possibilidade de uma ambivalência dos
sinais da santidade – e sobretudo do milagre, que é uma manifestação de Deus,
mas também do Diabo –, ambivalência que continuará constante durante os séculos
seguintes. A literatura chamada apócrifa oferece um quadro rico, mas igualmente
curioso e às vezes preocupante, dos poderes sobrenaturais atribuídos aos
protagonistas: por exemplo, Jesus aparece como uma criança poderosa, mas também
vingativa.
Ao contrário, as testemunhas da fé – mártires
e depois confessores –, inicialmente apenas “mortos excepcionais” cuja lembrança
era perpetuada pela comunidade através da celebração do aniversário da morte (o
dies natalis, dia do nascimento para a verdadeira vida), rapidamente se
tornam “intercessores” (H. Delahaye), graças à evidência da proximidade que
tinham com Deus. Considerado um mediador junto a Deus e um protetor eficaz, o
santo adquire o título de “patrono” e efetua funções análogas às exercidas pelo
patronus (“patrono”) romano em relação a seus clientes (que podem
ser tanto comunidades inteiras como simples indivíduos). O santo é
o “companheiro invisível” (P. Brown) de homens que vivem em uma época de crise
e precisam estabelecer uma relação de intimidade tranquilizadora com algum
defunto ilustre.
A extensão e a diversificação do fenômeno
provocam uma verdadeira especialização, tanto no que toca aos modelos quanto
aos poderes. No interior da religião cristã, apesar de rigorosamente monoteísta
no plano teológico, vê-se constituir uma espécie de panteão diferenciado
segundo os gêneros, os modelos e as funções, que engloba os novos santos, mas também
“santifica” figuras históricas ou míticas do Antigo
e do Novo
Testamento. Isto garante uma melhor conformidade com as exigências e as
crenças dos fiéis, e propicia a difusão da nova religião: mesmo o culto da
Virgem Maria, certamente rico em possibilidades de homogeneização cultual, não
conseguirá se opor à diversificação dos cultos.” (Santidade – Sofia Boesch
Gajano)
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