Editora: LeYa
ISBN: 978-65-5643-003-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
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Sinopse: Projeto
nacional: O dever da esperança, livro inédito de Ciro Gomes, é um convite para
debater racionalmente o país que somos e o país que desejamos ser. “É minha contribuição
pessoal a uma reflexão inadiável sobre o Brasil, as raízes de seus graves problemas
e as pistas para sua solução”, escreve o autor na introdução. A frase reflete o
espírito da obra e de seu autor: não só oferecer um diagnóstico das principais questões
que atrapalharam o nosso desenvolvimento com democracia, liberdade e justiça, como
também apresentar um vasto conjunto de ideias capazes de direcionar o Brasil rumo
a um futuro desejável. É o que Ciro Gomes chama de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento
– ele segue a linha de pensadores do nacional-desenvolvimentismo, de que, para superar
o atraso e a desigualdade, não basta crescimento econômico: é necessário criar condições
para promover a justiça social, reparar dívidas históricas com o próprio povo, gerar
oportunidades menos desiguais e, ao mesmo tempo, garantir dinamismo a este gigantesco
mercado interno chamado Brasil.
Feito um caixeiro-viajante, Ciro Gomes vem, há muitos anos,
percorrendo o Brasil, apresentando ideias como palestrante, político, candidato
a cargos eletivos e estudioso dos problemas do país. Com a desenvoltura que exibe
na fala e a formulação permanente de propostas em diferentes áreas, Ciro tornou-se
uma das vozes mais relevantes no debate público atual.
Assim, seu livro sintetiza, com preocupação, a proposta que
ele vem fazendo Brasil afora durante esse período que considera dramático na história
brasileira, que vai dos anos do governo de Dilma Rousseff e Michel Temer ao começo
da gestão de Jair Bolsonaro: escapar da polarização que restringe o país a dois
lados antagônicos que não dialogam e bloqueiam qualquer debate racional sobre os
problemas a combater e as soluções a encontrar. A maioria dos brasileiros, ele lembra,
espera e merece mais do que essa polarização irracional.
De maneira esclarecedora, Ciro percorre quase um século de
história econômica e política para produzir seu diagnóstico de como interrompemos
o sonho do desenvolvimento – de Vargas ao golpe de 1964, da hiperinflação dos anos
1980 ao Plano Real, da devastação promovida pelo neoliberalismo às crises na política
e na economia que geraram a queda do PT e a ascensão da extrema direita. A partir
daí, ele enumera diversos pontos que considera fundamentais para um Projeto Nacional
de Desenvolvimento, abordando questões como o papel do Estado, impostos, educação,
cultura, meio ambiente, superação da pobreza, a agenda necessária de reformas, segurança
e a defesa da democracia.
Em Projeto nacional: O dever da esperança, Ciro Gomes
oferece um roteiro de trabalho para devolver ao Brasil a esperança, a possibilidade
de voltarmos a acreditar na política como uma forma de chegar a um futuro melhor.
São ideias expostas para serem debatidas – a cortina aberta para a divergência civilizada
que busca não destruir o inimigo, mas (re)construir uma nação por meio do consenso.
“E como
podemos ver agora, de repente o mundo inteiro recorre, novamente, ao keynesianismo.
A Europa
pede um novo Plano Marshall.
Os EUA
pedem um novo New Deal.
É claro
que nós, no Brasil, temos que pedir um novo plano de recuperação como o de Vargas,
em 1930.”
“Um
livro é uma mensagem para a história, não para o presente.
E eu
gostaria de deixar aqui uma mensagem de esperança.
A longo
prazo, minha esperança é que essa pandemia ajude a maioria da humanidade a descobrir
que já estávamos vivendo numa grande tragédia mais profunda: a da cultura do consumismo
irracional misturada com o neoliberalismo criador da superdesigualdade.
Nas
últimas décadas, transitamos de um padrão de busca da felicidade no ambiente subjetivo,
espiritual, como a busca da justiça social ou da fruição artística, para a busca
da felicidade cada vez mais concentrada no ambiente do consumo.
Para
mim, isso explica grande parte do drama contemporâneo.
Minha
geração foi uma geração de insurgentes, que buscava a felicidade em bens espirituais,
no domínio dos valores. No valor do sagrado também, mas igualmente no valor do prazer,
do belo, da justiça, da compaixão. Acreditávamos que nossa felicidade seria encontrada
na paixão, no romance, no amor, na música, queríamos o contato com o transcendente,
com o saber, queríamos a revolução e um mundo melhor.
As novas
gerações cresceram sob o imenso estresse do excesso de informações que vêm pelas
redes sociais, pela mídia e pelo cinema, impregnadas de estímulos de consumo e propaganda.
São massacradas, dia e noite, com imagens e símbolos que tentam seduzi-las para
abandonar o mundo dos valores, em busca do mundo das coisas. Assim, nossas crianças
e nossos jovens são empurrados para entrar numa espiral de consumo para a qual não
têm recursos, e vão se tornando infelizes e desenvolvendo a crença de que são fracassados.
Na minha
opinião, a raiz mais profunda da violência em nossa sociedade é o contraste entre
a miséria e a opulência, vinculado às excitações das demandas de consumo. Mais ainda,
às terríveis frustrações de se buscar a felicidade na posse de coisas, porque coisas
não são fins, mas meios para a felicidade. Sempre haverá novos padrões de consumo
e produtos a acessar para tornar infeliz aquele que os deseja e não os possui.
Não
podemos continuar excitando as demandas de consumo numa juventude indefesa, ao mesmo
tempo que tiramos dela qualquer perspectiva de renda.
É neste
rumo suicida, muitas vezes pior no segundo país mais desigual do mundo, que nossa
civilização estava quando o coronavírus nos atingiu.”
“As
estatísticas do Brasil no século XX são incomparáveis. Nosso país simplesmente mais
do que centuplicou seu PIB. Sim, multiplicou sua riqueza por mais de 100.1
Um crescimento sem igual no mundo até então.2
Mais
importante do que isso, o crescimento do produto per capita foi de uma média de
2,5% ao ano. Em outras palavras, o cidadão médio brasileiro em 2000 produzia doze
vezes mais riqueza que em 1900. No mundo, só Japão, Taiwan, Finlândia, Noruega e
Coreia do Sul conseguiram superar esse feito.3
Na verdade,
essa façanha não se operou durante todo o século XX. Nas três primeiras décadas
dele o Brasil patinava como país agrário, que mantinha suas estruturas escravistas
praticamente intocadas, e baseadas, especialmente, na monocultura do café e da cana-de-açúcar.
O Governo Epitácio Pessoa, na virada da década de 1920, chegou a importar facões
e enxadas, tamanha nossa indigência industrial.
Pode-se
dizer que o grande salto brasileiro se deu entre 1932 e 1980. Foram os 48 anos de
maior crescimento de um país na história do mundo, em que multiplicamos por oito
nosso PIB per capita.4
A industrialização
de uma nação não é uma etapa natural do desenvolvimento, algo como uma lei de evolução
histórica. A industrialização é um processo induzido, planejado, que requer muita
defesa dos interesses nacionais contra as sabotagens e tentativas de desestabilização
do desenvolvimento por concorrentes estrangeiros. O motivo disso é muito simples,
e não se trata de teorias da conspiração, mas da mais banal e ordinária guerra de
mercado. O que é produzido eficientemente aqui deixa de ser exportado por alguém.
Poucos países no mundo podem disputar, na história da economia, a rapidez e a magnitude
do que foi feito aqui. Poderíamos perfeitamente continuar sendo uma nação agrícola
como a Bolívia ou extratora como a Venezuela. Mas não aqui, porque aqui, em algum
momento de nossa história, uma vanguarda política audaciosa se convenceu a industrializar
o país e foi capaz de construir um projeto e uma hegemonia moral e intelectual aptos
a levá-lo a cabo.”
1 IBGE.
Estatísticas do século XX. Disponível em: https://seculoxx.ibge.gov.br/publicacao
2 Segundo estimativas do Project Database, o PIB brasileiro
teria crescido cerca de 134 vezes.
3 IBGE. Estatísticas do século XX. Op. cit.
4 BOLT, J.; INKLAAR, R.; DE JONG, H.; & VAN ZANDEN,
J. L. “Rebasing ‘Maddison’: new income comparisons and the shape of long-run economic
development.” Maddison Project Working Paper, no 10, 2018. Disponível em:
https://www.rug.nl/ggdc/historicaldevelopment/maddison/releases/maddison-project-database-2018
“O capital
privado, lá como hoje, era pequeno e originado da produção agrícola, conservador
e arisco à novidade modernizante. Não tinha nem condições nem interesse em levar
essa empreitada à frente. Então foi com o Estado brasileiro intervindo diretamente
na mobilização de recursos inalcançáveis pela força do capital privado local que
Vargas criou nossa indústria de base e energia, assim como a infraestrutura conexa
necessária a esse salto. Esses recursos vieram de três fontes: impostos, emissão
de moeda e principalmente de empréstimos externos, na época de custo barato e de
longo prazo, e que eram indispensáveis para a importação de bens de capital. Ele
também foi muito hábil na condução da política externa num período de grandes tensões
que levaram à Segunda Guerra Mundial, posicionando o Brasil de acordo com os interesses
nacionais de seu projeto de desenvolvimento. E foi exatamente no momento em que
se acelerava a industrialização no Brasil, com a fundação da Companhia Siderúrgica
Nacional (1941), da Companhia Vale do Rio Doce (1943) e da Companhia Hidrelétrica
do São Francisco (1945), que Vargas foi deposto pela primeira vez.
Em 1950
o Brasil já enfrentava grandes gargalos, dificultando seu desenvolvimento industrial
e crescimento, sendo os mais importantes a falta de energia elétrica e de petróleo
e a precaríssima rede de transportes nacionais.
Mas
mesmo com toda a oposição das forças antinacionais que operam em nosso país desde
sempre, a nossa então jovem democracia chamou para comandar o Brasil mais uma vez
o velho Getúlio. O tenentismo tinha hegemonizado no país a crença de que precisávamos
nos industrializar para superar o subdesenvolvimento. Esse consenso foi fundamental
para celebrarmos um Projeto Nacional do qual Vargas foi o símbolo até o golpe de
1964. E ao voltar ao poder, lutando renhidamente por nossa emancipação econômica
conseguiu, em três anos e meio de governo, criar a Petrobras, a Eletrobrás e o BNDES
(então BNDE), enfrentando os prepostos internacionais que aqui exigiam a abertura
indiscriminada de nossos mercados e a interrupção da emissão de crédito nacional
em nome do controle da inflação. Com a mesma desculpa recorrente da denúncia da
corrupção, os abutres do país deixaram Vargas num beco político sem saída, ao qual
ele respondeu com o gesto político de seu dramático suicídio.
Sabiamente
o povo brasileiro rejeitou os golpistas de 1954 e elegeu para seu mandatário o mineiro
Juscelino Kubitschek, aliado de Getúlio, que, com seu ousado Plano de Metas, prometia
modernizar o Brasil acabando com os gargalos de seu desenvolvimento. Sofrendo uma
série de golpes, inclusive antes da posse, JK se viu obrigado a ceder parcialmente
às demandas pela internacionalização da economia. No entanto, não perdeu de foco
a criação da base necessária para nosso desenvolvimento, dedicando dois terços dos
recursos de seu Plano de Metas à construção de nossa rede de transportes e energia.
O Brasil viu, em seu governo de coalizão trabalhista com João Goulart na vice-presidência,
a criação de uma indústria automobilística inteira, embora não nacional, a Petrobras
sair do papel e nos levar à autossuficiência de petróleo, Furnas e várias outras
pequenas usinas hidrelétricas serem construídas e transformarem nossa matriz energética
na mais limpa e barata do mundo. Tendo recebido um país com menos de mil quilômetros
de estradas asfaltadas, o governo JK cortou o país de norte a sul com 14 mil quilômetros
de rodovias. Por fim, como síntese desse enorme esforço de interiorização e salto
para o futuro de seu governo, foi construída a magnífica cidade de Brasília, iniciativa
sem a qual o extraordinário mundo produtivo do Centro-Oeste não teria sido possível.
A crise
política em que o país foi lançado com a eleição e posterior renúncia de Jânio Quadros,
tentativa de impedimento da posse de João Goulart, mudança parlamentarista, volta
do presidencialismo e finalmente o golpe de 1964 impediu a execução do novo projeto
nacional que o governo Jango tinha para o país.
Apesar
disso, o presidente João Goulart, nos menos de três anos que permaneceu no cargo,
enfrentou todas as sabotagens a seu governo e tentativas de golpe com serenidade
e sem jamais recorrer à violência. O país ainda cresceu a uma taxa média de 5,2%
ao ano, e ele conseguiu executar ações importantes, como a fundação da Universidade
de Brasília (UnB), um projeto revolucionário de universidade, ou a Lei de Remessas
de Lucros, que foi a resposta de seu governo para equacionar nosso problema crônico
na balança de pagamentos6 e disponibilidade de dólares – o que já garroteava
nossa capacidade de financiamento e, portanto, nosso desenvolvimento.
Ao contrário
do que a propaganda do regime militar alegava, o governo Jango e seu projeto nacional
contavam com amplo apoio popular. Pesquisa Ibope7 de março de 1964 revela
que, se pudesse se candidatar no ano seguinte, Jango teria mais da metade das intenções
de voto na maioria das capitais pesquisadas. Mesmo em São Paulo, tradicional reduto
antigetulista, o governo Jango contava com 45% de avaliações de bom e ótimo. Só
16% o consideravam ruim ou péssimo. Havia amplo apoio nas capitais às medidas anunciadas
no comício da Central do Brasil, às “reformas de base”, como reforma agrária, reforma
urbana, o voto dos analfabetos, a aposentadoria rural, a função social da propriedade,
o dispositivo legal da medida provisória e o monopólio do Estado em setores estratégicos
da economia, que começaria com a encampação de refinarias estrangeiras.
Mas
mais uma vez os interesses dos norte-americanos, inconformados com a Lei da Remessa
de Lucros e a encampação de refinarias, em conluio com a direita brasileira e com
parte das Forças Armadas, montaram um golpe de Estado no país com farto investimento
em propaganda, apoio militar e subornos generalizados. E o país perdeu sua cambaleante
e incipiente democracia. Vinte e quatro anos depois, com o fim do regime militar
e a promulgação da Constituição de 1988, praticamente toda a agenda das reformas
de base se tornaria parte de nossa Carta Magna. Embora algumas dessas reformas nunca
tenham saído do papel, como a agrária, fica ridículo hoje pensar que o voto do analfabeto
ou a aposentadoria rural pudessem ter sido consideradas parte de uma agenda comunista,
como alegado na propaganda do golpe de 1964.
Com
a consolidação do golpe em 1968, os militares reorientaram a economia tentando restabelecer
um projeto de desenvolvimento. De novo, entretanto, evita-se o conflito político
de construção de poupança nacional e se busca o atalho do endividamento externo,
então de longo prazo e barato, como fonte central desse novo ciclo de crescimento
econômico. Depois de uma intervenção no sistema financeiro nacional fixando limites
para as taxas de juros cobradas nos empréstimos bancários e distribuindo incentivos
para os bancos que reduzissem suas taxas, criaram as bases para a retomada de nossa
vocação de crescimento. Além disso, o BNDES passou a assumir o oferecimento de crédito
barato para financiar os investimentos do setor industrial brasileiro. O resultado
dessas políticas recebeu o apelido de “milagre econômico”. O condutor da economia
brasileira nesse período, o então ministro da Economia, Delfim Netto, costuma protestar
contra esse apelido. Ele gosta de lembrar que “milagre” é efeito sem causa, e o
crescimento do país no período foi causado pelo planejamento e trabalho árduo do
governo e de milhões de brasileiros. Justo.
No entanto,
a divisão causada no país pela Guerra Fria e a interrupção da democracia tiveram
impacto também na formulação do projeto do regime militar. O consenso nacional em
torno do desenvolvimentismo começou a ser erodido, porque o interesse nacional passou
a ceder às pressões ideológicas vindas do exterior. Com aqueles que defendiam uma
expansão mais vigorosa do mercado interno e melhor distribuição de renda colocados
do outro lado de um muro que não era nosso, ocultou-se uma importante parte do problema
brasileiro.
Mas
isso não nos fará deixar de reconhecer que entre 1968 e 1974 o Brasil cresceu extraordinários
10,7% em média ao ano. Em outras palavras, dobrou seu PIB no espaço de sete anos.8
Não há muitos registros desse volume na história da economia do mundo. Segundo o
Penn World Table, em 1969 um brasileiro produzia o equivalente a cerca de
21% da riqueza de um norte-americano. Em 1980, nosso PIB per capita médio correspondia
a 35% do norte-americano.9 A sensação era a de que estávamos prestes
a nos tornar a nação rica e moderna que sonhamos ser um dia e de que, como dizia
o slogan, ninguém parava esse país.
Evidentemente,
não se está aqui a fazer juízos de valor sobre os diversos regimes e concepções
que nos guiaram politicamente entre os anos 1930 e os anos 1980. Para mim, de nada
vale crescimento econômico sem liberdade e sem promoção de justiça social. Entretanto,
é muito importante que se recuperem esses números, para enfrentar entre os brasileiros
de nosso tempo, e especialmente entre os jovens, com os quais mais me preocupo,
o pessimismo e a descrença hoje dominantes. Se o céu abençoado pelo Cruzeiro do
Sul é o mesmo, se esse chão adorado é o mesmo e se nossa linda gente mestiça, caótica
e culturalmente exuberante é a mesma, fica claro que nosso destino é o êxito civilizatório,
não o fracasso liderado pelas mediocridades contemporâneas. O que vem falhando miseravelmente
é a política, e, se protegermos a democracia, não demora nosso povo achará o caminho
da grande virada histórica.”
6 Registro
de todo o dinheiro que entra e sai de um país, na forma de importações e exportações
de produtos e serviços, de fluxo de investimentos e capital financeiro, remessa
e recebimento de lucros e transferências.
7 REDA, Paulo. “Jango tinha apoio
popular ao ser deposto em 64, diz Ibope.” Folha de S.Paulo, mar. 2003. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u46767.shtml
8 IBGE. Séries históricas e estatísticas.
PIB. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/7531a821326941965f1483c85caca11f.xls
9 Penn World Tables 6.3. Disponível
em: http://dc1.chass.utoronto.ca/pwt/alphacountries.html
“A vulnerabilidade
externa da política de desenvolvimento do regime militar cobrou seu preço a partir
do meio dos anos 1970. Depois de duas décadas de crédito barato para os países subdesenvolvidos,
vieram as duas crises do petróleo (1973-74 e 1979-80), causadas pela instabilidade
política entre e nos países da Opep.14 Em 1979, sob o comando do então
presidente do Fed,15 Paul Volcker, os EUA promoveram um brutal choque
de juros, supostamente para controlar a inflação interna causada pela alta dos preços
dos derivados. Isso levou o custo de nossa dívida da casa de um dígito para mais
de 12% em 1979 e logo para mais de 20% em 1980.
O grande
erro dos militares na época, e esse mesmo erro hoje se repete como tragédia, foi
acreditar que se estivéssemos alinhados aos EUA estes deixariam o Brasil se desenvolver.
Mas a questão em geopolítica não é alinhamento ideológico, é projeção e proteção
do interesse nacional. Quando o Brasil começou a ameaçar “virar uma China” no “quintal”
norte-americano, eles dispararam o gatilho dos juros da dívida e transformaram as
finanças globais em armas de guerra contra a industrialização da América Latina.
Não há outra solução: se quisermos nos industrializar, temos que ter soberania,
um sistema de defesa forte, desenvolvimento de tecnologia própria, serviço de inteligência
sofisticado e, principalmente, como forma de sustentar tudo isso, assumirmos como
inadiável a tarefa de construirmos poupança interna.
Todos
os países que dependiam de fluxos internacionais de capitais de longo prazo e baratos
como mecanismo central de seu desenvolvimento tombaram. E o Brasil tombou escandalosamente.
Durante quarenta anos os empréstimos que o Brasil contraía no exterior tinham, em
média, cerca de quinze anos de prazo, três de carência e chegavam a cobrar juros
anuais de apenas 2,5%. E então, a partir dos últimos anos da década de 1970, não
conseguíamos financiar nossa dívida nem nosso desenvolvimento. O projeto nacional-desenvolvimentista
baseado nesse capital e na proteção comercial a setores industriais havia produzido
em quatro décadas a 15ª economia industrial do planeta, mas, agora, estava ferido
de morte.
Além
disso, os problemas sociais advindos daquele modelo de desenvolvimento começaram
a aflorar com mais intensidade. Enquanto nos anos Vargas o desenvolvimento econômico
veio acompanhado de avanços sociais (como a criação do salário mínimo, o aumento
constante da massa salarial e a consolidação das leis trabalhistas que protegeram
o trabalhador da tradição escravista da elite brasileira), o crescimento do regime
militar foi marcado pelo agravamento de nossos níveis brutais de concentração de
renda.
Embora
o PIB per capita seja um bom indicador da riqueza de um povo, ele não diz nada sobre
como essa riqueza é distribuída. E o Brasil tem especificidades que não se encontram
em manuais de economia. Aqui a renda média não significa muito, pois dá a temperatura
média de um paciente cujos pés estão no forno e a cabeça na geladeira. Nossa desigualdade
sempre foi uma das mais cruéis do mundo, fruto de nosso passado escravista.
Darcy
Ribeiro dizia que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. O
país da Revolução de 1930 era um país agrícola. Saímos de uma base de riqueza muito
baixa e de distribuição de renda brutalmente desigual, e não investimos em educação
o suficiente. O país que mais cresceu entre 1930 e 1980 ignorou a ignorância. Nada
é mais eficaz em manter as estruturas sociais. Isso criou uma distância muito grande
entre os “dotô” (como eram chamadas popularmente pessoas que simplesmente tinham
uma graduação), que estavam aptos a ocupar a enxurrada de novos trabalhos qualificados
gerados por nossa rápida industrialização, e a maioria de nossa população pobre,
literalmente, analfabeta. Em 1970, ainda segundo o IBGE, 33,6% da população com
15 anos ou mais não sabia ler nem escrever.16
Além
disso, o Brasil tinha optado por um modelo concentrado de desenvolvimento industrial,
e ao iniciar os anos 1980 tinha a esmagadora maioria de sua indústria baseada em
quatro estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Isso
fez com que as diferenças de desenvolvimento entre as regiões do país atingissem
níveis imensos e acelerou o fluxo migratório e o êxodo rural de forma inédita na
história da humanidade.
O crescimento
econômico pode não realizar justiça social, mas faz todos melhorarem materialmente.
Só que então, nós, que já não tínhamos liberdade nem justiça, de repente ficamos
sem crescimento. Num primeiro momento, no fim da década de 1970, o regime insistiu
com o modelo, embora as variáveis financeiras e energéticas (surge no período também,
crescente e violentamente, a variável tecnológica) tivessem sido dramaticamente
alteradas. Mas no início dos anos 1980 o gigante havia sido derrubado. Desde então
vivemos de apagar incêndios, reativos, lidando com nossas emergências, vivendo de
crise em crise e definitivamente com regimes e lideranças políticas diferentes sem
uma guia de projeto nacional. Expressão que aliás, nesse ínterim, foi ela própria
interditada.
Entre
1981 e 1984 nosso PIB per capita diminuiu em 12%. De 1988 a 1994, houve a superinflação.
De 1996 até o início do século XXI vivemos o desastre de Fernando Henrique Cardoso.
Nunca mais voltamos a crescer a altas taxas sustentadas, vivemos de soluços eventuais
de crescimento, verdadeiros “voos de galinha”. Esperando ventos favoráveis do Norte,
nos prostramos como todo país dependente que não tem força nem confiança para traçar
seu rumo e escolher seu destino.”
14 Organização
dos Países Produtores de Petróleo.
15 Federal Reserve, o Banco Central
americano.
16 IBGE. Séries históricas e estatísticas.
Alfabetização. Disponível em: https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=4&op=0&vcodigo=CD101&t=taxa-analfabetismo-pessoas-15+anos-mais
“Nos
últimos 38 anos foram somente três períodos de crescimento relativo: momentos do
Governo José Sarney, o Governo Itamar Franco (somado ao primeiro ano de FHC) e o
Governo Lula (que apesar disso ocorreu em contínua desindustrialização). Nos três,
crescimento insustentável por ciclos de consumo sem nenhuma correspondência em iniciativas
que alterassem nossa matriz de produção. Ou seja, cresce o consumo em voos de galinha,
logo seguido de queda pela desindustrialização contínua e selvagem que experimentamos
no período. Por quê? Defendo que isso se deva a três razões, que explorarei historicamente
neste capítulo:
1. Estrangulamento
do passivo das empresas privadas – Depois de três décadas sobrevivendo aos juros
mais altos do mundo, esse custo não tem mais como ser repassado para os preços oligopolizados,
por causa da abertura econômica. A maioria das trezentas maiores empresas brasileiras
hoje não consegue mais fazer caixa sequer para pagar parcela vencida de suas dívidas
com os bancos. Não podemos prosseguir por muito mais tempo nesse rumo sem arriscarmos
acabar numa crise bancária.
2. Colapso
das finanças públicas – O rentismo5 desenfreado comprometeu em 2017
6,1% do PIB nacional com pagamento de juros líquidos do setor público, com a incrível
quantia de R$400,8 bilhões paga em juros.6 Só a União gastou R$340,9
bilhões desse bolo.7
Como
a arrecadação federal em 2017 foi de R$1.342 trilhão,8 isso é equivalente
a 25,4% de tudo o que foi arrecadado gasto em juros. Mas é importante lembrar que
não estamos conseguindo tirar um centavo de nossa arrecadação para pagá-los. O descontrole
é tanto que toda a nossa conta de juros está sendo coberta por novas emissões de
títulos públicos. Ou seja: dívida sobre dívida, ou, se quisermos ser rasos, estamos
vendendo o almoço para comprar o jantar.
É importante
aqui lembrar que, seguindo a mesma metodologia de cálculo, em 2015 gastamos 8,4%
do PIB em juros,9 que é a medida que, em conjunto com a queda brutal
de arrecadação, explica o começo da explosão da dívida pública no segundo Governo
Dilma, abrindo o caminho para o corrupto Eduardo Cunha, energizado pela inacreditável
entrega da estatal Furnas ao seu controle pelo Governo Lula, executar sua sabotagem
política.
Em 2017,
a taxa de investimento da União, estados e municípios juntos foi de somente 1,17%
do PIB.10 Até 2019, havia sido o menor volume relativo de investimento
desde que o Brasil começou a levantar esse número. A União sozinha tinha orçado
investir 0,4% do PIB. Só para se ter uma ideia, em 1976, no Governo Geisel, os investimentos
da União, excluindo os das estatais, atingiam sozinhos 1,9% do PIB.11
Esse quadro de descontrole dos juros é um dos maiores fatores da falência do Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, mais 17 dos 27 estados da Federação.
E essa falência realimentou num círculo vicioso a queda contínua de arrecadação,
que caiu 2,96% em 2016 em termos reais em relação a 2015.12 Como se não
bastasse, o Governo Bolsonaro conseguiu bater também mais esse recorde em um único
ano de governo. Em 2019, a taxa de investimento do governo federal atingiu 0,35%,
a menor taxa de investimento da história.
3. Ausência
de um projeto nacional de desenvolvimento – A prostração ideológica neoliberal
conseguiu trazer setores inteiros da economia do Estado para o mercado, através
da propaganda desmoralizante contra a suposta “ineficiência” e “corrupção” das empresas
públicas e promotora da promessa de “eficiência” e “honestidade” do investimento
privado, que supriria os motores estatais do desenvolvimento. No Ocidente, em especial
na América Latina, esse movimento veio em sentido oposto ao dos países asiáticos,
que mantiveram a associação harmoniosa entre mercado e Estado e se tornaram os mais
dinâmicos do capitalismo contemporâneo, assumindo o papel de locomotivas da economia
mundial.
Desmontaram
grande parte do Estado brasileiro em nome do equilíbrio das contas públicas, enquanto
o saqueavam com os juros reais mais altos do mundo. O resultado está aí. País estagnado
e grande parte das maiores empresas brasileiras apanhada na Operação Lava Jato corrompendo
o poder público. Afinal de contas, quando é que um agente estatal foi corrompido
sem um agente privado corruptor que o tivesse cooptado para desviar a gestão do
público para o interesse privado? Só na propaganda neoliberal. Sem uma diretriz
clara nem volumes significativos de investimentos estatais que deem segurança ao
empresário quanto à sustentação do ciclo de desenvolvimento, não há investimento
privado significativo. Torramos cerca de metade de nosso patrimônio público nas
privatizações de FHC em troca de títulos podres ou preços muitas vezes meramente
simbólicos, e, ao invés de dinamizar nossa economia, a estagnamos.13”
5 “Rentismo”
é uma palavra derivada de “rentista”, que significa quem vive de rendas financeiras,
sejam elas derivadas de aluguéis, ou recebimento de juros decorrentes de empréstimos
privados, ou títulos do governo. “Rentismo” significaria, portanto, a defesa dessa
forma de vida para uma elite da população que quer que o Estado sustente seu padrão
de vida sem correr riscos ou produzir nada, vivendo dos rendimentos de títulos do
tesouro, fundos de investimentos baseados neles, CDBs, enfim, todos os papéis que
tem seus rendimentos atrelados à taxa de juros paga pelo governo.
6 BARBOSA, Nelson. “Juros pagos pelo
setor público: o total caiu em proporção do PIB, mas os pagamentos reais continuaram
a subir em 2017.” Blog do Ibre, fev. 2018. Disponível em: http://blogdoibre.fgv.br/posts/juros-pagos-pelo-setor-publico-o-total-caiu-em-proporcao-do-pib-mas-os-pagamentos-reais
7 Banco Central. Necessidades de financiamento
do setor público, Fluxos mensais. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/pec/Indeco/Port/indeco.asp. Acessado em 18 de maio de 2018.
8 Receita Federal. Disponível em:
http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2018/janeiro/receita-arrecadou-r-1-34-trilhao-em-2017
10 FERNANDES, Adriana. “Investimento
público cai para 1,17% do PIB e atinge o menor nível em 50 anos.” Estado de S.
Paulo, abr. 2018. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,investimento-publico-cai-para-1-17-do-pib-e-atinge-o-menor-nivel-em-50-anos,70002285682
11 Entrevista de Raul Velloso. DOCA,
G.; JUNGBLUT, C. “Dados oficiais mostram que governo Geisel investiu mais do que
gestão de Lula.” O Globo, mar. 2010. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/dados-oficiais-mostram-que-governo-geisel-investiu-mais-do-que-gestao-de-lula-3042574
12 Receita Federal. Análise da arrecadação
das receitas federais – dezembro/2016. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2016/dezembro2016/analise-mensal-dez-2016.pdf
13 Esses três fatores serão terrivelmente
agravados com a crise do novo coronavírus.
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