domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário de história e cultura da era viking (Parte I), de Johni Langer (org.)

Editora: Hedra

ISBN: 978-85-7715-549-1

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 800

Análise em vídeoClique aqui

Link para compraClique aqui

Sinopse: Passados cerca de dez séculos desde o seu apogeu na região da Escandinávia, os vikings tornaram-se uma constante no imaginário ocidental contemporâneo. O Dicionário de História e Cultura da Era Viking apresenta ao leitor um guia abrangente para seu mundo, suas aventuras, viagens marítimas, grandes batalhas, explorações e descobertas. Organizado por uma equipe de especialistas vinculados à instituições nacionais e internacionais, a obra possui o mérito de combinar pesquisa rigorosa? e, desse modo, atender ao público especializado? com uma linguagem clara e objetiva, tornando o livro acessível também ao público em geral, bem como àqueles que possuem curiosidades e outros interesses extra-acadêmicos acerca do tema.



“No que diz respeito à aparência tanto de homens como de mulheres durante a Era Viking, podemos dizer que, de um modo geral, eram elegantes, pois os mais abastados podiam vestir-se com roupas feitas com a lã de carneiros especiais que produziam uma lã macia e sedosa, ou então com linho e até com tecidos finos, como a seda vinda de Bizâncio. Além dos tecidos caros também usavam joias feitas com contas de vidro, âmbar, conchas, pedras e metais preciosos. Altos, de estatura muito próxima a dos escandinavos contemporâneos, esses homens e mulheres tinham uma altura que variava entre 1,70cm e 1,80cm, com cabelos e tez clara em sua maioria. A constituição física dos nórdicos medievais era muito parecida com a nossa. Podemos dizer que, devido aos constantes trabalhos braçais realizados tanto por homens como por mulheres, a musculatura das populações da Era Viking devia ser mais forte do que atualmente. Os rostos de homens e mulheres eram mais parecidos do que são hoje. Os rostos femininos possuíam os nervos da testa protuberantes e, por outro lado, os homens tinham o maxilar saliente e os nervos menos ressaltados. Essas características faciais ambíguas significam que é mais difícil decidir sobre o sexo de um esqueleto nórdico baseado apenas no crânio. Portanto, outros traços precisam ser estudados para identificar o sexo dos esqueletos, como a largura da pelve.

Os cabelos sempre foram um dos adornos mais importantes usados tanto por homens como por mulheres e a eles era dada uma atenção maior, daí a necessidade de pentes especiais para os seus cuidados diários. Os cabelos podiam ser utilizados simplesmente para se enfeitar ou seduzir, ou arrumados para agradar aos deuses e, assim, protegerem-se contra possíveis infortúnios, bem como demonstravam o status social. Uma farta cabeleira bem arrumada era mais do que um simples acessório de beleza em uma mulher. Esses penteados podiam apresentar maiores possibilidades de análise do seu uso e não apenas restringir-se à habilidade manual para a composição de tranças: essas tramas capilares são reveladoras de posições sociais, de estado civil, de serviço religioso e de utilização mágica.

Os cabelos longos sempre estiveram ligados à virilidade, à força e também à liberdade. A literatura, as artes plásticas, o cinema e mais recentemente os jogos de RPG e eletrônicos sempre apresentaram os guerreiros mais fortes e as mulheres mais belas com vastas e espessas cabeleiras – as madeixas femininas muitas vezes caíam até a altura da cintura ou ainda mais longas. A arte pré-rafaelita sempre apresentou as mulheres, que na maioria das vezes eram personagens da mitologia e do folclore nórdicos, com cabelos muito longos e geralmente soltos para reforçar o seu caráter de sedução e também mostrar que os cabelos muito longos constituíam um padrão de beleza da Era Viking. Essas representações das longas cabeleiras, tanto masculinas como femininas, que sobreviveram ao longo do tempo nas artes e no imaginário popular, foram preservadas em pingentes, em múmias e na iconografia e são fundamentais para entendermos como as tramas capilares femininas foram importantes meios de demonstração de condição social e também de práticas mágico-religiosas. Os cabelos femininos bem compridos eram deixados soltos pelas mulheres solteiras, sem necessidade de ocultá-los sob lenços ou toucas, acessórios que eram evidência de matrimônio. As mulheres trançavam seus cabelos e depois faziam um nó triplo, o valknut, ou nó dos mortos e envolviam toda a cabeça com uma espécie de touca.

As joias eram muito usadas por todos e os homens usavam uma grande quantidade de pulseiras de prata, que podiam ser úteis nas transações comerciais. Por serem objetos fáceis de transportar, essas joias serviam como valiosas moedas de câmbio. As mulheres usavam colares de contas caras e raras, pendurados nos broches que prendiam o avental sobre a túnica. Os broches feitos em prata trabalhada serviam de suporte para o colar, que muitas vezes tinha como maior pingente as chaves dos baús e arcas, demonstrando o poder dessa mulher naquela família. Também usavam brincos de prata com contas e pingentes.” (Aparência e CostumesLuciana de Campos)

 

 

Outro ponto central na história do reino dinamarquês foi o núcleo de estratégias utilizadas pelas elites centrais – reis e jarls – para integrar as províncias da Dinamarca e unificá-la aos poucos. Alguns fizeram o uso direto e coercitivo da força, outros utilizaram de seu poder e influência: houve a promoção e consolidação do militarismo, que facilitou o controle real sobre cada vez mais pessoas e lugares; a manipulação de antigos códigos de lei para minar certos direitos e obrigações dos homens livres; a construção de grandes centros urbanos e, por fim, a adoção de uma nova religião, o cristianismo, utilizado como ferramenta para aumentar e sustentar novas relações de poder, mais abrangentes e influentes.

Os fatores decisivos para unificação da Dinamarca enquanto reino foram, conforme aponta Tina Thurston, o militarismo, a transformação do aparato jurídico, a urbanização dos grandes centros e a ascensão do comércio. Além da construção de Danevirke, outro projeto monumental foi a criação do canal de Kanhave, criado entre os anos de 728 a 737 d.C. Este canal dividia toda a ilha de Samsø, visando proporcionar a rápida movimentação marítima de tropas por todo o arquipélago dinamarquês. Posteriormente, por volta do século X, surgiram várias fortificações militares espalhadas por todo o reino, construídas em pontos estratégicos que permitiam o controle e a vigilância militar de toda Dinamarca.

As leis, passadas oralmente durante a Era Viking, também foram sendo modificadas aos poucos. As assembleias – Thing – provinham a todos os dinamarqueses o direito de registrar legalmente suas queixas e resolver suas disputas legais. Elas existiam não somente como um lugar onde as pessoas se reuniam para participar no governo, mas eram também onde os reis mantinham sua corte oficial. Havia as pequenas Thing, onde aqueles que moravam no mesmo distrito se encontravam, e também as Landstings, maiores, que eram uma espécie de assembleia regional. Dentre as principais Thing, havia Viborg na Jutlândia, Odense em Fyn, Lund na Scania e Ringsted em Sjælland. Curiosamente, todos esses lugares tinham conexões com o sagrado do paganismo e, posteriormente, vínculos com a Igreja: Viborg significa “lugar de oferenda na colina”; Odense, “lugar de oferenda a Odin”; Lund, por fim, significa “arvoredo sagrado”. Além de servir como assembleia regional, Viborg era a maior Thing de toda nação dinamarquesa da Era Viking: era lá onde o rei da Dinamarca era eleito pelo povo.

Segundo Thurston, no quesito urbanização, a ideia de cidade era um conceito completamente estranho durante a Era Viking. Ainda assim, aos poucos foi se consolidando uma hierarquia urbana relacionada ao poder real, começando a intervir em questões como o comércio ou questões políticas importantes. Esses núcleos administrativos foram construídos em lugares onde fosse possível aproveitar os recursos naturais de maneira favorável, como em canais, portos e em terras defensáveis que se conectavam a locais economicamente importantes – estradas, pontes, fiordes, rotas de comércio, mercados e locais de pesca. Os primeiros centros urbanos da Dinamarca foram as cidades de comércio próximas à costa, sendo o mais antigo deles a cidade de Ribe, na parte sul da Jutlândia.

A religião adotada pela Dinamarca da Era Viking, o paganismo nórdico, não possuía um corpo dogmático centralizado. A própria ideia de religião não circulava entre os dinamarqueses, que sequer tinham uma palavra que representasse esse conceito. Ao invés disso, circulava a palavra sidr, que significava algo como “costume”. Nenhum dogma específico, chefes religiosos ou templos são mencionados até um período mais tardio e provavelmente pertencem já ao fim da Era Viking, fruto de um movimento de resposta ao crescente cristianismo e à construção de igrejas – e, portanto, não representavam o jeito costumeiro dos dinamarqueses conceberem sua crença.

Como não possuía um corpo unificado, a religiosidade viking apresentava diferenças sociais, temporais e geográficas. Outra razão para que isso acontecesse era o fato de que os rituais pré-cristãos eram conduzidos de maneira pessoal, numa relação diretamente situada entre os homens e os deuses, sendo costumeiro que oferendas e a comunicação com o divino fossem conduzidas particularmente. Não existiam regras a respeito de como a pessoa deveria se dirigir ao sobrenatural, aos deuses, ou como entrar em contato com eles, apesar de alguns encantamentos e entoações desse período terem sido preservados. Era comum que casamentos, rituais de passagem, juramentos e punições fossem testemunhados de maneira mais pública e comunitária, acompanhados por rituais religiosos específicos.

Estudos recentes conduzidos pelo arqueólogo Søren Sindbæk alegam que a Dinamarca foi a responsável por proporcionar as condições sociais e materiais que inaugurariam o que chamamos de Era Viking. Os estudos em questão apontam que viagens marítimas eram realizadas entre a Noruega e Ribe, o centro comercial dinamarquês mais antigo, muito antes da Era Viking ter começado oficialmente. É possível, portanto, que os vikings tenham começado a desenvolver sua cultura marítima e a estabelecer relações comerciais ainda no ano de 725 d.C; muito antes da invasão à Lindisfarne, em 793 d.C.

Os achados arqueológicos em questão eram chifres de rena, utilizados sobretudo na produção de pentes. No entanto, os chifres encontrados em Ribe eram de uma espécie de rena típica do território norueguês. Tal descoberta aponta para alguns importantes fatos: primeiramente, que os vikings realizavam grandes viagens marítimas já no começo do século VIII; que essas famosas viagens marítimas eram feitas para que se estabelecessem relações de comércio, e não somente para invasões, como se pensava; por fim, que Ribe, a cidade mais antiga na Dinamarca, já era desenvolvida o bastante, também no século VIII, para ser palco de um intenso comércio que abarcava visitantes estrangeiros de regiões distantes.

Foi descoberta, no ano de 2017, uma sepultura em território dinamarquês que continha os restos de um viking, provavelmente de alta posição social e, junto dele, uma rédea de cavalo com detalhes de ouro. Segundo arqueólogos, esse tipo de rédea só estaria acessível para pessoas altamente poderosas durante a Era Viking, podendo ter sido um presente do rei em agradecimento a algum tipo de aliança. Os acessórios datam do ano de 950 d.C., o que significa que os restos encontrados podem ser de um grande aliado do rei Gorm, o Velho.” (Dinamarca da era vikingVictor Hugo Sampaio Alves)

 

 

DUELOS

Entre os escandinavos da Era Viking a noção de honra (familiar ou individual) era de extrema importância familiar. Era uma instância de equilíbrio que homem algum podia deixar que se abalasse e, portanto, ao se deparar com o risco de vê-la manchada, a passividade não era uma opção para lidar com o assunto. Muitas vezes tinha início um longo e tortuoso processo de disputas, duelos e rixas, às vezes individuais, às vezes entre famílias inteiras que, não raramente, resultava em mortes.

Segundo Gunnvör Silfrahárr, era comum nas sociedades germânicas que esse processo de retaliação e vingança tomasse proporções muito maiores do que as do insulto primeiro e originário. Muitas vezes esse padrão de comportamento vingativo tornava-se um sangrento ciclo entre famílias: quando uma delas acreditava ter obtido sua vingança, a outra sentia-se no direito de vingar-se, e assim continuamente. A tendência era que esse processo se perpetuasse até que, com o passar de gerações, ou a ofensa inicial fosse esquecida, ou então toda uma linhagem terminasse morta. Esse tipo de disputa violenta foi glorificada em várias das sagas islandesas e estava presente também no poema épico anglo-saxão Beowulf, imortalizando o tema por meio da literatura.

Mesmo um conhecimento superficial sobre as sagas islandesas suscita a percepção de que elas tratam, centralmente, sobre as disputas, rixas e duelos. William Miller afirma que esse tipo de disputa nos informa sobre basicamente todos os aspectos legais e políticos da Islândia medieval. Para o autor, os duelos surgem nas sagas como uma estrutura social que permite a expressão de toda a conjuntura das atividades política, moral e jurídica, atuando também como meios pelos quais essas mesmas atividades são buscadas, como uma espécie de sanção extrema.

As disputas e rixas de sangue eram, portanto, de cunho moral em seu aspecto vingativo, um meio de se punir violações de normas sociais, como a ofensa da honra, o roubo e a morte. Eram de cunho jurídico quando, na Islândia, ofereciam sanções que atuavam embasadas em acordos e julgamentos legais. Nesse aspecto, as disputas ocupavam o lugar de uma espécie de poder executivo frente a um sistema jurídico que não detinha qualquer outro aparato de execução instituído formalmente pelo Estado. Por último, elas consistiam também em atos políticos porque funcionavam como uma das estruturas-chave dentro da qual a competição por poder e a luta pela dominância ocorriam livremente.

Com o tempo, ao menos no contexto islandês, as disputas e rixas passaram a ser mediadas e arbitradas por terceiros – que seriam, em tese, imparciais – e aconteciam, quase que exclusivamente, por questões relacionadas à vingança e manutenção da honra. A mediação e arbitragem das rixas surgiram, segundo Gunnvör, como um mecanismo social de limitação e contenção das disputas e matanças excessivas. Visto que elas tendiam a aumentar e se proliferar de maneira contínua, passando a envolver em seus laços de sangue e ódio cada vez mais e mais membros da sociedade, era benéfico e prudente que essa sociedade desenvolvesse métodos de proteger não somente os membros envolvidos diretamente e suas famílias, mas a sociedade como um todo. Do contrário, seria perigoso que se atingisse um número de mortes que colocasse em risco a estrutura social, ocasionando diversas lacunas – como a falta de diversificação de papéis sociais e de execução de trabalhos, baixo índice de natalidade e alto índice de mortalidade, dificuldade em proteger as terras contra outros etc.

Contudo, esses não foram os únicos motivos para que as disputas e rixas começassem a ser reguladas. Conforme elucida Carol Clover, na Islândia medieval, assim como em outros lugares onde ocorriam essas supracitadas práticas, as disputas eram um modo de legislação e regulação baseadas e centradas nos clãs. Era do interesse do Estado – e posteriormente, da Igreja – reduzir o poder dos clãs, das suas práticas e legislações. A isso soma-se, segundo Jesse Byock, uma das principais preocupações da sociedade nórdica durante a Era Viking, muito refletida nas sagas: canalizar a violência desmedida em padrões de disputa aceitáveis, regulando conflitos. Como proposta a essa resolução surge a prática dos duelos, que consiste basicamente no desenvolvimento de um duelo “de honra” entre dois homens como um modo socialmente aceito de se retificar uma ofensa, injúria, prejuízo ou dano. Esse primeiro passo consistiu numa tentativa de estreitar o círculo daqueles diretamente envolvidos em cada disputa, reduzindo o número a apenas um representante de cada um dos lados.

A partir desse ponto, o duelo passou a ser uma forma legalizada de disputa. Ele se embasava na crença que circulava por todo o norte da Europa segundo a qual o guerreiro era glorificado e o covarde, desprezado. Enfatiza Marlene Ciklamini que as sagas, por lidarem predominantemente com as vidas de famílias notáveis e distintas, sugerem que era principalmente a classe da aristocracia que se engajava em duelos, por mais que, aparentemente, o homem comum, mesmo que pobre (desde que não fosse escravo) também tivesse direito a duelar. Mas a prática, assim como as leis de maneira geral na Islândia medieval, era feita para favorecer os poderosos e bem abastados.

Contudo, era possível que a lógica se invertesse. Na Noruega e Islândia, duelar passou a ser um modo de ganhar a vida e conquistar bens. Homens com poucos recursos podiam reivindicar uma propriedade e desafiar o dono para um duelo. Caso vencesse ou o dono legítimo se recusasse lutar, a propriedade estaria garantida ao desafiador. Os famosos berserkir e outros guerreiros com reputação igualmente sinistra por sua força e intrepidez oprimiam frequentemente os ricos nesse sentido, desafiando-os para duelos, sobre risco de tomarem sua propriedade ou bens.

A primeira forma de duelo legalizado na Escandinávia viking foi o einvigi, palavra que literalmente significa “combate individual”. É possível que o conceito envolvendo este formato de duelo seja anterior à Era Viking, tendo se originado entre seus ancestrais germânicos. Cognatos aparecem em sueco antigo (einvighe), antigo alto-alemão (einwic) e inglês antigo (artwig). Basicamente, o einvigi consistia numa forma de duelo sem regras e restrições, lutado com armas à escolha dos participantes, em qualquer localização e valendo-se de qualquer método de disputa. Segundo Gwyn Jones, tratava-se, em suma, de uma briga em que se valia tudo para fazer o adversário desistir.

Os combatentes envolvidos no einvigi não possuíam qualquer jurado ou árbitro que apontasse o resultado. Ao contrário dos duelos anglo-saxões, não havia nenhuma espécie de invocação ou judicium dei antes da luta, ou seja, os participantes não enxergavam o resultado como uma preferência de algum deus ou revelação da vontade divina. Dessa forma, ao invés de invocar alguma divindade, os participantes confiavam em suas habilidades, força e sorte. No Gylfaginning, Snorri Sturluson cita Ullr como o deus do einvigi, o que poderia ser um indício de que os participantes o invocassem pontualmente pedindo sua ajuda para vencer o duelo, porém, não há qualquer indício dessa interferência divina nas sagas ou qualquer outro material literário. Essa escassez de referências reforça a ideia de que os participantes não contavam com proteção ou assistência divina, mas com a própria competência e agilidade. Por isso, Ciklamini afirma que o einvigi era uma forma de duelo secular, não sendo visto como um julgamento divino, mas como um atalho direto para resolução formal de conflitos e para a proteção dos indivíduos contra calúnias, quebra de juramentos e ofensas à sua honra vindas de seus oponentes.

Apesar de ter atuado minimizando os efeitos das grandes disputas, ao longo do tempo o einvigi mostrou possuir defeitos. Se um dos combatentes fosse assassinado durante o duelo, a seus familiares era concedido o eptirmál, direito legal de processar o responsável pelo assassinato. As opções para os familiares eram, em seguida, receber uma indenização pela morte do ente querido, ou requerer formalmente a vingança. O padrão nesses casos, ressalta Gunnvör, era o caminho da vingança, que gerava outro processo de vingança pela outra parte, e assim sucessivamente. Tantas vinganças resultavam, muitas vezes, em grandes rixas generalizadas entre duas famílias, desembocando no processo sangrento que o duelo visava evitar a princípio.

Eis que, posteriormente, outro tipo de duelo surge na parte oeste da Escandinávia. O hólmgang (ou hólmganga) era um compromisso firmado que surgiu como fruto da união entre as forças antagônicas do direito privado e do direito comum. Explica Gwyn Jones que, por um lado, o hólmgang era um duelo direto e simples, lutado até que um dos lados obtivesse a vitória; por outro, tratava-se de um tipo de disputa cujos passos eram todos regulamentados por medidas estipuladas em um rígido código de etiqueta dos duelos, o hólmgõngulög. O hólmgang era, portanto, um julgamento do valor pessoal de um homem e o teste de suas aptidões físicas. Sua existência se justificava graças à valorização dada aos atributos da força e coragem, algo fortemente presente na sociedade islandesa, e também como um testemunho do quanto as leis islandesas validavam e apreciavam essas características ao resolver problemas práticos.

Diferentemente do einvigi, os duelos no hólmgang deveriam acontecer em lugares específicos, demarcados e delimitados, os hólmgangustadr, que de maneira geral ficavam em áreas geograficamente mais isoladas. Era comum que cada distrito tivesse seu lugar específico onde os duelos eram tipicamente realizados. A área onde a luta ocorria era delimitada com pedras e grandes estacas de madeira, constituindo uma espécie de ringue, e os participantes não podiam evadir esse espaço. A arma utilizada costumava ser a espada; cada participante podia contar também com um escudeiro que substituiria seu escudo durante a luta caso o mesmo quebrasse. Uma importante característica do hólmgang é o fato de que as feridas causadas pela disputa eram raramente mortais, pois estipulava-se que a luta deveria ser encerrada assim que a primeira gota de sangue fosse derramada. Explica Gwyn Jones que, mesmo em caso de morte durante o duelo, os familiares do falecido eram proibidos de buscar vingança ou retribuição.

O hólmgang também era desprovido de qualquer caráter relacionado a um juízo ou escolha divina de um lutador em detrimento do outro. Não há nenhuma evidência nas sagas que aponte para esse tipo de percepção acerca do duelo. Ao que tudo indica, os islandeses, com sua clareza de visão e ceticismo, enxergavam a futilidade de tal pretensão. Para eles, Thor, Odin, Njord e Freyr compartilhavam com os seres humanos muitas de suas fraquezas e jamais poderiam ser vistos como árbitros imparciais daquilo que é certo, errado ou justo. Por isso, o hólmgang podia até ser, por vezes, um teste moral, mas sempre resolvido com base exclusivamente nas aptidões físicas dos competidores que, por sua vez, confiavam em nada mais que sua própria força.

Apesar disso, o duelo podia ser acompanhado de alguns ritos, como nos mostram, por exemplo, as sagas de Egill e de Kormáks. Ainda assim, eram cerimônias religiosas pontuais que não ofereciam quaisquer indícios de pretender invocar os deuses ou suplicar por sua interferência em prol do competidor cuja reivindicação fosse a mais justa ou correta. Segundo Jones, há indícios de casos em que um touro era sacrificado aos deuses. Aparentemente, consta no hólmgõngulög que este sacrifício, chamado blótnaut, deveria ser feito em todas as ocasiões em que houvesse um hólmgang, preferencialmente antes da realização do duelo propriamente dito. Havia também a performance do tjösnublót que, ressalta Ciklamini, era um ritual mágico realizado com o intuito de afastar possíveis influências malignas ou invocações feitas previamente para trazer má sorte a um dos duelistas. Em suma, era um modo de tornar o duelo mais justo e assegurar que seu resultado fosse mera consequência da força e habilidade dos participantes.” (Duelos – Victor Hugo Sampaio Alves)

 

 

EXPANSÃO NÓRDICA

Entre os povos da Europa medieval, provavelmente os povos da Escandinávia foram os que mais empreenderam longas viagens no continente e para além deste. Viajando por terra, mar e rios, os nórdicos atravessaram grandes extensões da Europa, desbravaram o mar do Norte, o arquipélago britânico, chegaram à América do Norte, passaram pelo norte da África, o Mediterrâneo e se aventuraram na Ásia. Tudo isso caracterizou um processo longo que se estendeu por quase três séculos.

As fontes para se estudar a expansão nórdica são diversas e redigidas em diferentes épocas e línguas, o que revela não apenas a extensão temporal dessas viagens, mas também a variedade de lugares e povos que os nórdicos visitaram e conheceram. Além dos relatos escritos, a arqueologia consiste em outro meio para se estudar a história dessas expansões, pois os vikings construíram assentamentos, cidades, entrepostos, túmulos etc. Todavia, o que se conhece sobre a expansão nórdica é limitado a acontecimentos que foram preservados na escrita ou a vestígios arqueológicos, de modo que tais fontes não compreendem todas as expedições realizadas, podendo haver muito mais do que se supõe.

Embora o início da Era Viking comumente seja situado no século VIII, período que marca o início das viagens para outros territórios, especialmente a Inglaterra, é provável que antes disso já houvessem viagens regulares para o norte da Alemanha e outros territórios que margeiam o mar Báltico. Devido à proximidade destas terras com a Dinamarca, Noruega e Suécia, além dos achados de moedas romanas, árabes, francas e outros objetos, tudo indicaria um comércio produtivo na região báltica. Sendo esse comércio um dos possíveis fatores para que grupos de nórdicos se aventurassem para o Leste Europeu.

O historiador James Graham-Campbell também cogita que poderia já existir comércio entre a Escandinávia e a Inglaterra pelo menos desde o século VII. Ele defende tal teoria com base na cultura material referente a objetos e túmulos, que em ambos os lugares eram bem similares. Ele aponta, inclusive, que o estilo artístico do Período Vendel (séculos VI-VIII) possuía algumas semelhanças com a arte anglo-saxã da parte oriental da ilha. Tais fatos seriam indicativos do porquê os vikings decidirem atacar a Inglaterra, pois já existiria determinado conhecimento a respeito da ilha, e eles não teriam chegado lá por acaso.

No entanto, os motivos que levaram às expedições nórdicas partiram de diferentes locais e se constituíram por distintos fatores. James H. Barret comenta que as justificativas clássicas tendiam a apontar que fatores de ordem climática, como temperaturas mais baixas, teriam levado grupos a se deslocar da Escandinávia para outras terras a fim de escapar do frio. Incluem-se também motivos relacionados a perseguições políticas, guerras e insegurança. O aumento populacional teria agravado surtos de fome, obrigando populações de certas regiões a migrarem. E por fim, mencionam-se fatores econômicos relacionados a uma suposta “corrida da prata” e por metais em geral, devido a sua escassez.

Quando se passa para a história das expedições, porém, nota-se que as justificativas clássicas nem sempre eram respostas definitivas. O início das primeiras expedições aconteceu ainda no século VIII. Em 750 havia um assentamento viking em Staraia Ladoga, ao sul do lago Ladoga, na atual Rússia. O assentamento teria servido de entreposto comercial para negócios na região. Pois Staraia Ladoga ficava situada numa região onde passavam rotas comerciais que ligavam o mar Báltico até a Bulgária do Volga (Rússia), além de ser ponto de caminho para viagens ao sul. No século IX, especificamente em 839, é registrada a primeira menção de nórdicos em Constantinopla (atual Istambul), capital do Império Bizantino.

O caminho para Constantinopla foi uma rota comercial bastante importante no Leste Europeu, a ponto de os vikings estabeleceram vários contatos com os povos eslavos, chegando a formar assentamentos, entrepostos comerciais e até mesmo a controlar algumas cidades, como no caso de Novgorod (Rússia) no século IX e Kiev (Ucrânia) no século X. Não obstante, a partir do rio Volga e do mar Negro, incursões se aventuraram cada vez mais adentro da Ásia, chegando ao território do Canato de Cazar. Entre 911 e 912 encontram-se relatos de pirataria viking no mar Cáspio. Data também do ano de 921 o relato do embaixador árabe Ahmad ibn Fadlan e seu encontro com um grupo de nórdicos na Bulgária do Volga.

Entretanto, se as expedições no leste parecem ter seguido para um lado mais comercial, as expedições no oeste, realizadas pelos noruegueses e dinamarqueses, por muito tempo tiveram um caráter bélico. Na data de 8 de junho de 793, como consta na Crônica anglo-saxã, o mosteiro de São Cuteberto, na ilha de Lindisfarne, no Reino da Nortúmbria, foi atacado por pagãos do norte.

Tal acontecimento foi considerado um marco para a história. Entre os anos de 794 e 799 foram relatadas novas incursões à Inglaterra, Escócia e Irlanda, todas basicamente restritas ao intuito da pilhagem. O fato é interessante, pois a Dinamarca, devido a sua proximidade com a Alemanha, possuía vários importantes centros comerciais onde se negociava com os povos germânicos, além de acesso a rotas comerciais que desciam até o Império Franco.

Tentar justificar as incursões dinamarquesas como oriundas de falta de recursos é problemático. O mais provável é que se tratasse de iniciativas organizadas por chefes de determinadas comunidades, os quais buscavam riqueza e fama pessoal, lembrando que a Dinamarca, Noruega e Suécia não eram Estados unificados, mas conjuntos de reinos e Estados vassalos que se digladiavam pelo poder. A presença de reis envolvidos nessas expedições data de vários anos depois.

Porém no século IX ocorreram grandes mudanças a respeito da forma como a expansão nórdica se processou. O século IX foi o auge dessas expansões. Nesse período encontramos reis da Noruega e Dinamarca envolvidos em algumas expedições, como, por exemplo, o rei Godofredo da Dinamarca declarando guerra ao imperador Carlos Magno da Francia, para disputar o controle da Frísia, importante região comercial. Anos depois, em 845, o rei Horik I da Dinamarca ordenou ataque à cidade de Hamburgo (na atual Alemanha), como data também desse período o início da cobrança do danegeld, tributo em prata cobrado dos povos atacados, para evitar novas ondas de invasão.

Não obstante, a década 840-880 foi bastante intensa na Europa Ocidental. Paris, capital do Império Franco, foi saqueada pelo menos três vezes. Londres, Kent, Rochester e outras cidades inglesas foram atacadas regularmente. Datam também da década de 840 as primeiras incursões à Península Ibérica, com ataques a Lisboa, Sevilha, Cádiz e várias outras cidades, sobretudo no ano de 844. A partir de tais expedições, os vikings entraram em contato com os muçulmanos do Ocidente, como também visitaram brevemente o norte da África e se aventuraram pelo mar Mediterrâneo, passando pelo sul da França e Itália.

Mas, para além dessa intensa onda de ataques, o século IX também foi marcado pela colonização norueguesa e dinamarquesa de distintos territórios, principalmente situados no Atlântico Norte. No caso inglês, o ano de 865-866 culminou com a chegada do Grande Exército Pagão, que conquistou os reinos saxões da Nortúmbria, Mércia e Ânglia Oriental, constituindo o Danelaw. A ilha da Irlanda, a ilha de Man, e os arquipélagos escoceses das Órcades, Faroe, Hébridas e posteriormente a Islândia foram colonizados no mesmo século.

Nota-se uma mudança no comportamento das expedições ocidentais, as quais eram inicialmente esporádicas e motivadas por atos de pirataria e pilhagem. A partir de meados do século IX, no entanto, tornaram-se expedições voltadas para assegurar territórios nas terras atacadas, o que culminou no estabelecimento sedentário de comunidades nórdicas, principalmente nas ilhas mencionadas. Mas esse processo somente ocorreu décadas depois das primeiras expedições ao arquipélago britânico e à Francia, o que põe em dúvida a natureza dos fatores como excesso populacional, fome, guerras, economia e o frio como motivos que levaram as expedições do século VIII a ter início.

Quando se adentra o século X, as expedições haviam sofrido uma longa pausa, pois, devido à colonização e permanência na Inglaterra, Irlanda, ilhas escocesas, Normandia e no Leste Europeu, reis e chefes optaram em não investir em expedições militares com maior regularidade. Em termos de novas expansões, destaca-se a descoberta da Groenlândia em 985 por Érico, o Vermelho.

A partir da colonização do sul da Groenlândia, navegantes noruegueses começaram a explorar os arredores, vindo avistar terras no Ocidente no que corresponde à atual região do Canadá. Os territórios costeiros foram nomeados pelos nomes de Helluland, Markland e Vínland. Por volta do ano 1000, um dos filhos de Érico, Leif Ericsson, fundou um povoado em Vínland, mais exatamente na atual ilha de Newfoundland, Canadá. Consistindo na única povoação viking conhecida na América. A fundação de uma povoação em Vínland é considerada por alguns historiadores o último grande feito da expansão nórdica.” (Expansão nórdica – Leandro Vilar Oliveira)

Nenhum comentário: