Editora: LeYa
ISBN: 978-65-5643-003-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
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Sinopse: Ver Parte
I
“Além de uma nova burguesia empreendedora, comprometida com o desenvolvimento
nacional, é preciso trazer de volta os trabalhadores da pasmaceira generalizada
em que caíram nas quase três décadas de neoliberalismo. No avanço neoliberal sobre
os direitos trabalhistas, os poucos trabalhadores organizados adotaram uma postura
defensiva, cada categoria protegendo as suas conquistas legadas pelo passado. Durante
o período dos governos do PT, que sempre se vangloriou de poder legitimar suas ações
no controle de amplas bases sociais, o que predominou foi a desmobilização e a passividade,
frutos de uma perspectiva de militância inorgânica. Isso sem falar nos trabalhadores
precarizados, que, longe do alcance do trabalho formal e da carteira assinada, acabaram
também privados de uma participação política mais intensa.
Base
social não significa alinhamento passivo de expressões cooptadas da sociedade civil,
e sim o empoderamento – respeitada sua autonomia diante das políticas oficiais –
de uma interlocução com as entidades legítimas da sociedade. O que quero dizer com
isso? Estudante a favor do governo, sindicalista a favor do governo perde o nexo
de legitimidade com sua base. Por isso assistimos ao desmonte despudorado dos direitos
trabalhistas sem que qualquer reação popular notável tenha acontecido. Isso é fruto
do anestesiamento das lideranças da sociedade civil pela cooptação e pelo suborno.
Todo
Projeto Nacional emancipatório de um país terceiro-mundista requer mais do que a
mera participação dos trabalhadores organizados e desorganizados. Necessita do intenso
protagonismo e da mobilização de bases esclarecidas, cientes do ideal de nação que
é construído coletivamente. Para tanto, não se deve cair no expediente demagógico
das promessas impossíveis nem acreditar em radicalismos meramente retóricos. É preciso
mostrar com exemplo, ideia e militância, e não culto à personalidade, o que deve
e como deve ser feito, concretamente.
O fortalecimento
dos sindicatos e de outros movimentos organizados da sociedade civil é parte integral
da consolidação da democracia, sequestrada desde 2013 pela crescente intervenção
estrangeira no Brasil. A organização coletiva e democrática é a única vacina contra
as fake news e outras modalidades de manipulação de massas que surgiram no
alvorecer do século XXI.”
“HÁ AINDA SENTIDO EM FALAR DE ESQUERDA E DIREITA?
É comum
ouvirmos a afirmação de que não existem mais esquerda e direita, de que “tudo é
a mesma coisa”, ou ainda a piada de que a única diferença entre uma posição e outra
é a mão que rouba.
Essa
é uma atitude que nega a política, portanto está comprometida com a manutenção da
sociedade como ela está. Por quê? Porque, ao negar diferenças entre projetos de
sociedade e reduzir a política a um concurso para escolher o melhor gestor ou mesmo
o assaltante preferido, se está assumindo a ideia de que não há nada a mudar na
estrutura da sociedade ou que mudanças não são relevantes, nem mesmo possíveis.
Precisaríamos somente de pessoas honestas e competentes para que tudo funcionasse
bem. Pessoas honestas e competentes são fundamentais, mas a política é acima de
tudo a escolha entre projetos diferentes para a sociedade.
Entretanto,
o mais importante aqui é que a afirmação de que não existem mais esquerda e direita
é falsa. A confusão muitas vezes se dá também porque esquerda e direita não são
conceitos absolutos, mas relativos. As pessoas só são de “esquerda” ou de “direita”
em relação a determinada situação concreta e momento histórico.
A origem
desses termos para designar o campo político está na Revolução Francesa. Na primeira
Assembleia Nacional, sentavam-se à direita os “girondinos”: a nobreza (defensora
do Antigo Regime) e a alta burguesia (banqueiros e grandes empresários), sua aliada.
A alta burguesia buscava conservar o status quo, ou seja, eram “conservadores”,
e os nobres queriam retroceder ao passado monarquista, ou seja, eram “reacionários”.
À esquerda
sentavam-se os defensores de uma nova sociedade, os “jacobinos”. Esses eram constituídos
basicamente de profissionais liberais, como médicos e advogados, comerciantes (os
pequenos burgueses), camponeses e trabalhadores urbanos (os sans-culottes).
Os primeiros, em sua maioria, buscavam apenas a igualdade de todos perante a lei,
eram “liberais”; já os segundos pregavam a extinção das hierarquias econômicas e
sociais da época.
Como
podemos ver, naquela sociedade, recém-saída do absolutismo, um liberal era um representante
da “esquerda”.
Mas
a definição do que sejam esquerda e direita do ponto de vista político depende geralmente
de quem está oferecendo a definição e também de seu contexto histórico e geográfico.
Para
a esquerda, que privilegia o valor da igualdade, o termo “esquerda” passa a designar
o conjunto das organizações sociais que buscam a transformação da sociedade atual
em direção a uma maior igualdade entre os cidadãos, enquanto “direita” passa a designar
aqueles que querem conservar ou até ampliar a desigualdade, que é encarada como
a justa diferença de riqueza entre pessoas que têm diferentes merecimentos.
Já para
a direita, que privilegia o valor da liberdade, geralmente os termos designam a
posição acerca do tamanho do Estado na economia. O termo “esquerda”, nessa perspectiva,
designaria aqueles que defendem um Estado grande até o extremo de um Estado máximo,
e “direita”, aqueles que defenderiam o máximo de autonomia econômica para os indivíduos
até o extremo de um Estado mínimo, reduzido praticamente ao sistema judiciário.
Essa
definição alternativa, disseminada pelo neoliberalismo, está associada à ideia de
que o laissez-faire1
sozinho promoveria o progresso humano. Sem se preocupar com a questão da igualdade
ou do mérito, a crença é de que a riqueza gerada pela livre-iniciativa de indivíduos
dirigidos por suas motivações individuais seria maior do que aquela que poderia
ser gerada e distribuída pelo Estado interventor. Portanto, a desigualdade numa
sociedade rica seria melhor que a igualdade numa sociedade mais pobre.
Do ponto
de vista individual, a defesa dessa liberdade abstrata muitas vezes é uma retórica
vazia assumida por grande parte da parcela mais rica da população para justificar
a desigualdade, uma vez que sem condições materiais necessárias mínimas, nenhum
indivíduo será livre, que dirá crianças que não pediram para nascer. Do ponto de
vista coletivo, sabemos que nação alguma jamais progrediu consistentemente sem interação
do mercado com um Estado forte, regulador e indutor. Os EUA, modelo da maior parte
da direita brasileira, não existiriam sem a atuação do Estado americano no desenvolvimento
tecnológico, nas compras governamentais e na abertura de mercados através da força
militar e de sua agência de inteligência.
Embora
essas duas definições de esquerda e direita quase sempre classifiquem os mesmos
indivíduos nas mesmas posições no espectro político, existem falhas nessa correspondência.
Por exemplo, não funciona quando consideramos que um Estado grande e interventor
pode também ser colocado a serviço da concentração de renda, como ocorre no fascismo.
As constantes
retomadas de discussões teóricas sobre graus de liberdade e igualdade na sociedade
sempre tiveram funções políticas muito concretas, inclusive na atual confusão intencional
que causam no debate público. Uma das principais é a que confunde esquerda com a
mera defesa de liberdades individuais (o liberalismo) e direita com a defesa de
valores tradicionais (o conservadorismo).
A defesa
de que todos são igualmente livres para exercer sua sexualidade e religiosidade
da forma que quiserem – desde que não cerceiem com isso a liberdade de outros –
é uma bandeira antiga do liberalismo político que está presente na esquerda, mas
também na direita liberal. Não define a disputa entre elas. Isso mostra que essa
redução das diferenças entre esquerda e direita pelo viés dos costumes serve mais
pelo que esconde do que pelo que revela. Essa ocultação é a fonte e a motivação
desse extemporâneo ressurgimento do movimento conservador que hoje tenta se estabelecer
como “a verdadeira direita”.
Tentando
se vincular ao “reacionarismo” antigo, que designava um movimento de reação a alguns
valores modernos e se afirmava como guardião da “tradição”, dos valores e do patrimônio
cultural da Antiguidade, a direita conservadora atual cumpre função política muito
distinta dos ideais que diz defender. Em sua origem, durante as revoluções do século
XVIII, o conservadorismo se caracterizava pela desconfiança da mudança, que quando
inevitável deveria ser o menos disruptiva possível, porque a desordem resultante
de uma mudança radical desorganizaria a sociedade e destruiria o tecido social,
cujo exemplo de fracasso e degradação seria a própria Modernidade. Em sua forma
atual, sob pretexto de salvar o “Ocidente”, tem servido principalmente para vocalizar
um conveniente discurso dos países centrais, seja para reordenar sua política interna,
visando à manutenção das desigualdades dentro de seus países, seja para a política
externa, intensificando a exploração dos países periféricos.
Apesar
de esse discurso seduzir pessoas bem-intencionadas entre nós, movidas por respeitáveis
preocupações de preservação das tradições e proteção da religiosidade popular, o
que esse ideário tem gerado na prática é apenas um neoliberalismo de roupa nova,
avesso aos valores do cristianismo. Por isso, acho equivocado e perigoso assumirmos
acriticamente ideologias importadas que, normalmente, trazem escondidas intenções
que vão contra os interesses do nosso povo e do nosso país.
Na minha
opinião, ninguém é de esquerda porque se diz ser ou gostaria de ser. O que determina
se alguém é de esquerda é sua prática, é a posição que toma nas lutas concretas
da sociedade e a obra que realiza quando tem poder. Da mesma forma, ninguém é de
direita só porque pensa diferente de nós ou porque defende valores como eficiência,
planejamento, honestidade, patriotismo e segurança pública. Muito pelo contrário,
esses deveriam ser valores de toda a sociedade.”
1 Expressão
francesa que significa “deixar fazer”. Ficou associada ao liberalismo econômico
(que é diferente de liberalismo político), à ideia de que o mercado deve
funcionar livremente, sem interferência ou regulação do Estado, que só teria a
função de proteger a propriedade.
“A CRISE DA ESQUERDA CONTEMPORÂNEA
Vivemos
hoje um quadro de profunda crise capitalista em que o neoliberalismo fracassou rotundamente
e a desigualdade volta a avançar no Ocidente. Diante dessa crise cultural profunda,
a esquerda ocidental patina e vê parte de seus espaços perdida para a extrema direita.
Diante
do imenso fracasso das políticas que têm diminuído o papel do Estado sem planejamento
estratégico algum, esperando que o espontaneísmo do mercado seja o motor do desenvolvimento
enquanto paga taxas de juros mais altas que o rendimento médio dos negócios, a retórica
neoliberal sempre rejeita a responsabilidade pelas consequências nefastas de suas
políticas (veja o colapso que aconteceu na Argentina neoliberal de Mauricio Macri2)
dizendo que não deixaram dar a dose suficiente de seu remédio. Ou seja, eles sempre
alegam que tudo deu errado porque não destruíram o Estado o bastante. Durante os
governos neoliberais só a estagnação ou a catástrofe tem vez. A culpa, o neoliberalismo
coloca na suposta “gastança” dos governos anteriores, e quando finalmente sai do
poder e o país volta a se desenvolver, ele diz que o crescimento foi por causa de
seu “ajuste” ou “modernização”.
Mas
se o remédio é bom, ou a situação melhora ou o ritmo da piora tem que diminuir.
A crença de que tudo tem que piorar muito antes de melhorar não é nada senão misticismo
importado para a economia.
Este
é o grande paradoxo do liberalismo econômico que precisamos expor: a suposta liberdade
individual irrestrita afeta severamente a liberdade da maioria dos indivíduos. A
médio prazo, o liberalismo econômico colapsa o liberalismo político, porque ele
tira da maior parte da sociedade as condições materiais necessárias para exercer
a liberdade. Liberdade absoluta é a lei da selva, portanto, a lei do mais forte.
E o ideal do liberalismo político clássico nunca foi garantir a liberdade absoluta,
porque isso é o oposto da vida em sociedade, e sim a maior quantidade de liberdade
possível para todos os cidadãos igualmente. Deixo a você, caro leitor, a conclusão
dessa reflexão.”
2 PRESSE,
France. “Economia argentina cai 3,5% no terceiro trimestre e entra em recessão.”
O Globo, dez. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/18/economia-argentina-cai-35-no-terceiro-trimestre-e-entra-em-recessao.ghtml
“A globalização,
nome nobilitante que deram ao neocolonialismo no fim do século XX, se valeu da revolução
da informática e da internet para integrar o mundo inteiro numa gigantesca ciranda
financeira sem lastro razoável na economia real, acelerando de forma imensa o fluxo
de capitais.
Mas
não só. Ao mesmo tempo, entregou o completo inverso de sua promessa de globalizar
as condições de empreender, produzir ou buscar trabalho. A única coisa que de fato
se generalizou foi a informação em tempo real, e essa informação estava predominantemente
direcionada à disseminação e imposição do padrão de aspiração de consumo dos países
ricos ao mundo todo.
As sociedades
foram mergulhadas numa avalanche de imagens e mensagens tecnicamente desenvolvidas
para disseminar essa aspiração e padrão incompatíveis com os limites econômicos
e ecológicos das nações, assim como com a felicidade individual.
Como
esbocei no início deste livro, deixamos de encontrar a felicidade em âmbito subjetivo,
espiritual, como a busca de justiça social, a fruição estética da arte ou o amor
romântico, para tentar fazê-lo no âmbito do mercado, que pergunta quanto de uma
expectativa de consumo damos conta de praticar com a renda que temos.
Minha
geração foi uma geração de insurgentes, que buscava a felicidade em bens espirituais,
no domínio dos valores. No valor do sagrado também, mas igualmente no valor do prazer,
do belo, da justiça, da compaixão. Acreditávamos que nossa felicidade seria encontrada
na paixão, no romance, no amor, na música, queríamos o contato com o sagrado ou
o saber, queríamos a revolução e um mundo melhor.
As novas
gerações cresceram sob o estresse imenso do excesso de informações que vem pelas
redes sociais, mídias e cinema, impregnadas de estímulos ao consumo e de propaganda.
São massacradas dia e noite com imagens e símbolos que buscam seduzi-las, convencê-las
a abandonar o mundo dos valores (daquilo que é um fim em si mesmo, e portanto satisfaz
de fato) em busca do mundo das coisas (que no máximo são úteis para algo, e, como
tal, são meios, não fins em si mesmas).
Hoje
somos empurrados para entrar numa espiral de consumo: a criança no morro do Cantagalo,
no Rio de Janeiro, sabe qual é o padrão de consumo ótimo nos países ricos, mas não
tem renda nem para o consumo de subsistência em nosso país desigual e pobre. Se
essa é sua referência de felicidade e sucesso, então ela aprende a acreditar que
é infeliz e fracassada. Grande parte da produção não busca mais primariamente disponibilizar
bens úteis, mas sim bens associados a símbolos de status. E status, em nosso tempo,
não é mais fruto do saber ou do amor dos outros, mas da posse de produtos caros.
Por que outro motivo alguém pagaria R$70 mil numa bolsa Louis Vuitton senão por
puro símbolo de status? Para carregar coisas, compra-se uma sacola de R$2.
Então
as pessoas passam a acreditar que são felizes caso possam satisfazer suas expectativas
de consumo excitadas por essa superoferta. Isso gera numa perna a pirataria e, na
outra, a violência.
A pirataria
em nosso tempo não é roubo de carga, mas roubo de marca. É a tentativa venial, porém
ilegal, de produzir o símbolo desejado e possuir o bom, bonito e barato. Essa é
outra raiz da violência urbana, que não pode ser explicada apenas pela pobreza.
A cidade cearense de Salitre tem uma renda per capita de um quinto da média nacional
e, no entanto, passa dois anos sem ter nenhum homicídio. Na minha opinião, a raiz
mais profunda da violência em nossa sociedade é o contraste entre a miséria e a
opulência, vinculado às excitações das demandas de consumo. Mais ainda, as terríveis
frustrações de se buscar a felicidade na posse de coisas, porque coisas não são
fins, são meios para a felicidade. Sempre haverá novos padrões de consumo e produtos
a acessar para tornar infeliz aquele que os deseja e não os possui.
Esse
é nosso ambiente social e econômico atual. Se a esquerda fracassou, é porque não
deu resposta adequada a ele. Como disse o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica,
“a esquerda falhou por criar consumidores e não cidadãos”. Por quê?
O consenso
neoliberal matou a esquerda tradicional
Ao olhar
hoje tanto para a direita liberal quanto para os tradicionais partidos socialdemocratas,
a população do mundo democrático identifica a mesma prática globalista e neoliberal
que tem piorado sua condição de vida há quarenta anos. Suas atuações no governo
têm sido as de meros operadores do mesmo sistema. Além disso, ambos defendem hoje
pautas liberais no campo do comportamento, o que torna ainda mais difícil a diferenciação
entre eles.
A essência
do consenso neoliberal é que o governo existe somente para administrar serviços
públicos que não interessem à iniciativa privada, executar programas de renda mínima
e operar para o capital financeiro, e que o Estado deve abrir mão de sua capacidade
e papel de investimento e coordenação da economia.
Desesperada
com a perda de renda, de perspectiva de futuro para seus filhos e de empregos para
a tecnologia e a globalização, essa população, principalmente a europeia – que assiste
ao progressivo desmonte de seu Estado de bem-estar social –, não vê mais na esquerda
democrática, socialdemocrata, uma opção para defender sua nação e seu modo de vida
da sanha do sistema financeiro internacional, agravada pelo estresse migratório
produzido por suas guerras e pela luz ilusória de seu consumismo. Esse padrão de
consumo, além de impossível, vai matar o planeta Terra, como o aquecimento global
e as pandemias já estão mostrando.
Ao procurar
opções, encontra nos remanescentes da velha esquerda revolucionária a promessa de
um socialismo real que se mostrou autoritário e derrotado economicamente, portanto,
sem apelo atual. Alternativamente, encontra também uma esquerda forjada no ambiente
pós-maio de 1968, que trocou a pauta econômica da luta de classes pelas pautas identitárias,
e como resultado se afastou ainda mais dos anseios da classe trabalhadora.
É esse
o cenário que acredito ter se tornado fecundo para a extrema direita. Da mesma forma
que nos anos 1930 na Europa, ela ressurge no mundo todo prometendo um Estado forte
e o retorno a um glorioso passado das tradições perdidas que teria sido roubado
pela financeirização da economia e pela mudança nas tradições culturais impostas
pela imigração em massa e pela revolução tecnológica. O que entrega, no entanto,
é xenofobia e a ampliação da desigualdade social.
Aqueles
que votaram em Trump e a favor do Brexit não rejeitaram a democracia ou o Estado
de Direito Liberal: eles rejeitaram a globalização, o livre-comércio e a imigração.
Diante de um mundo em crise, querem proteger seu país em primeiro lugar, seus empregos
imediatamente.
Incrivelmente,
o fenômeno de extrema direita brasileiro, Bolsonaro, difere dos outros fenômenos
mundiais por querer também destruir o Estado e a indústria nacional, entregando
o país de bandeja para os EUA.”
“Surgiu
nos EUA uma abordagem teórica e prática para a luta dessas minorias que buscava
mudar a feição das demandas e práticas de parte desses movimentos. De uma luta por
direitos e condições materiais igualitárias, portanto universais, a Identity
Politics, ou New Left, deixa de lutar para apagar as fronteiras de gênero,
etnia, cor e orientação sexual e passa a lutar para acentuar essas fraturas e reafirmá-las.
Faz isso por meio de uma fragmentária luta por poder e afirmação de identidades,
exigindo que os direitos passem a ser distribuídos diferentemente de acordo com
gênero, etnia e orientação sexual. Ao fazê-lo, busca a reparação por genuínos históricos
de opressão, mas o faz através da divisão oficial da sociedade em vários grupos.
Partindo
do fato de que nossas instituições muitas vezes perpetuam privilégios e opressões
sob a falsa promessa de tratamento igualitário, os seguidores dessa abordagem não
atribuem essa perpetuação predominantemente à concentração de renda, mas ao gênero,
à cor da pele ou à orientação sexual. “Privilégio” é definido como a vantagem de
ter nascido num gênero, etnia ou orientação historicamente favorecidos, e “opressão”,
definida como as limitações sofridas por ter nascido com uma identidade historicamente
desfavorecida. Essa opressão e esse privilégio se exerceriam através da linguagem,
da cultura, das instituições e do sistema econômico.
Setores
da dita esquerda brasileira importaram essa abordagem norte-americana de forma completamente
acrítica, ignorando as diferenças culturais entre nossos países, especialmente o
perfil étnico das populações e seu grau de miscigenação. O PT, quando no poder,
ao se ver sem margem para manter um discurso de esquerda diante da prostração ao
ideário neoliberal e à concentração de renda no país, passou a explorar a generosidade
do espírito solidário das pessoas altruístas e a dor dos, de fato, oprimidos. Com
sua falta de visão e de projeto nacional, acabou por dar ainda mais centralidade
discursiva e descontextualizada a essas pautas, e ao fazê-lo, ao longo do tempo,
se enfraqueceu como força unificadora popular. Isso porque essa abordagem de luta
pelos direitos das minorias baseada na acentuação das diferenças causa vários atritos
entre os diversos grupos de identidade.
É absolutamente
claro para quem conhece o Brasil com intimidade que nossas mazelas sociais têm definitivamente
um corte étnico, de gênero e de idade. Por qualquer ângulo que se queira considerar:
vítimas da violência, população carcerária, desigualdade de renda, citando três
exemplos trágicos, tudo isso pesa muito mais fortemente sobre negros, caboclos,
mulheres e jovens. Assim, a questão da identidade não é algo irrelevante no nosso
debate, e, como ouvi em notável reflexão do professor Silvio Almeida, uma coisa
é identidade, outra é identitarismo. O exemplo que ele citou foi o do Pelé. Para
ele, Pelé foi essencial na afirmação da sua identidade, da sua autoestima, foi um
fator motivacional para que superasse estigmas e preconceitos e se tornasse o vencedor
que é. O simples fato de ver Pelé cortejado por reis e rainhas, sendo negro, foi
um importante fator de construção da sua identidade. Mas, continua ele, dando a
mim uma preciosa lição, boa parte dos movimentos que lutam pela causa negra fala
mal do Pelé porque não teria o atleta assumido um discurso de defesa dos negros.
E isso seria um equívoco do identitarismo. Me parece que o identitarismo é um esforço
respeitável, oriundo de um genuíno sentimento de alteridade e solidariedade por
pessoas órfãs pelo enfraquecimento da esquerda tradicional, a partir da queda do
Muro de Berlim, da falta de um manual que a muitos dava segurança de buscar superar,
na luta de classes, a desigualdade.
Esse
é um debate extremamente delicado, porque nossa solidariedade à causa de todas as
minorias, de todos os perseguidos e injustiçados não nos dá nenhuma vontade de diminuir
a energia ou a forma com que cada um entenda melhor lutar. Mas uma coisa eu posso
afirmar aqui e agora: por mais relevantes que sejam, a soma dos interesses identitários
não é igual ao interesse nacional.
Acredito
que essa luta, na qual o PDT é pioneiro no Brasil, deve ser feita dentro dos marcos
do universalismo e da busca essencial da esquerda por igualdade. Mais do que isso,
deve ser feita dentro de um projeto nacional de desenvolvimento, pois não se fazem
políticas públicas contra a discriminação sem emprego, renda e tributos para sustentá-las.
No fim das contas, o que permite a qualquer grupo social afirmar sua forma de vida
em qualquer sociedade é sua emancipação econômica. E também isso não se faz sem
desenvolvimento econômico.”
“O melhor exemplo de projeto nacional de desenvolvimento que posso dar aqui
é o de Singapura. Por que o melhor? Porque foi objeto da maior quantidade de mentiras
e mistificações liberais. Não é improvável que você tenha ouvido falar que Singapura
é um exemplo de sucesso do liberalismo econômico.17 Acho difícil imaginar
alguma história mais mentirosa do que essa.
Singapura
é uma cidade-estado localizada numa ilha do Sudeste Asiático, ao sul da Malásia.
Ela tem um Estado tão forte e um desenvolvimento tão planejado que projeta até sua
taxa de natalidade e regula o fluxo de imigrantes de acordo com as carências do
mercado de trabalho.
Governada
por um partido nacionalista e socialista desde sua independência, em 1959, o Partido
de Ação Popular, Singapura tem um alto grau de regulação estatal na economia. O
sistema de impostos é altamente progressivo (em que os mais ricos pagam proporcionalmente
mais). Dona de dois dos oito maiores fundos soberanos do mundo (GIC e Temasek),
seu Estado tem participação acionária ou propriedade em oito das dez maiores empresas
do país. A habitação é política de Estado, e não de mercado, e a agência estatal
para habitação é responsável por 80% dos imóveis construídos.18 A propriedade
privada da terra quase não existe e o direito de posse da maior parte dos imóveis
é de 99 anos.19 Além da habitação, o Estado controla todos os outros
serviços essenciais. Energia, transportes, saúde, educação básica e superior são
quase 100% estatais (com exceção da geração de energia e da operação de algumas
linhas de transporte, que tem participação privada).
Mais
ainda: também é disseminada a versão de que Singapura não possuiria previdência
ou direitos trabalhistas, o que é somente mais um crime que os think tanks
neoliberais cometem contra a opinião pública. Singapura possui um fundo de previdência
de contribuição obrigatória do empregador e hoje tem mais direitos trabalhistas
do que o Brasil, que adotou verdadeiras aberrações com a reforma trabalhista do
Governo Temer. Em Singapura, a jornada de trabalho é de 44 horas semanais, há uma
hora obrigatória para almoço, no mínimo um dia de descanso remunerado por semana,
onze feriados nacionais pagos, quatorze dias de licença remunerada em caso de doença
e sessenta dias em caso de internação.20
Singapura,
assim como a China, não deve ser um modelo para nós em relação a liberdades individuais
ou regime político, mas mais uma vez nos aponta o caminho universal para o desenvolvimento:
poupança interna, Estado forte e regulador, crédito nacional, juros baixos, coordenação
estatal e privada, política industrial, educação massiva e de qualidade e soberania.”
17 Há um ranking que supostamente fornece
“índices de liberdade econômica”, o da Heritage Foundation, que foi construído com
parâmetros que, em sua maioria, não tem relação com o neoliberalismo. Para a elaboração
do ranking, usa-se critérios que na verdade definem pontuações altas para países
que já estão na ponta econômica e, portanto, podem ter baixas taxas alfandegárias
e câmbio livre. Outros parâmetros que medem direitos de propriedade, inflação, corrupção
e burocratização também não têm relação com o neoliberalismo. Esses índices são
as maiores fontes da difusão dessa ficção sobre Singapura.
18 “Public Housing – A Singapore Icon.” HDB. Disponível em: https://www.hdb.gov.sg/cs/infoweb/about-us/our-role/public-housing--a-singapore-icon
19 Singapore Government Agency. Disponível em: https://www1.sla.gov.sg/property-boundary-n-ownership/property-ownership.
Acessado em 18 de maio de 2018.
20 Guide
on Employment Laws – Ministry of Manpower. Disponível em: https://www.mom.gov.sg/~/media/mom/documents/employment-practices/workright/workright-brochure-for-employees.pdf
“Ecologia para salvar o planeta
Estima-se
que se o padrão de consumo do norte-americano fosse generalizado para toda a humanidade,
precisaríamos de 4,5 planetas Terra para sustentá-lo. Mesmo sem generalizar o consumismo
norte-americano, o Banco Mundial avalia que nosso consumo global hoje já é 1,5 maior
que a capacidade da Terra de reproduzi-lo, e que se a população mundial chegar a
cerca de 10 bilhões de pessoas em 2050 serão necessários quase três planetas Terra
para sustentar o atual estilo de vida da humanidade.21
Desnecessário
é lembrar que só temos uma Terra.
Não
devemos ser ingênuos quanto aos alertas de insustentabilidade emitidos por esses
certos organismos. Eles também são usados como instrumentos na luta contra nosso
desenvolvimento.
Mas
parece evidente que a Terra, há algum tempo, já passou de seu estado de equilíbrio.
Estamos alterando significativamente nosso meio ambiente com consequências dificilmente
previsíveis.
O cenário
esboçado anteriormente se coordena com minha reflexão sobre os padrões de consumo
excitados pela globalização e pelas novas mídias. E ele nos lembra de que a salvação
ecológica de nosso planeta passa por uma reespiritualização da sociedade, seu retorno
à vivência dos valores e à rejeição ao consumismo, que abordarei no próximo item.
Mas
isso não será suficiente.
O avanço
tecnológico também é parte indissociável da luta ecológica. Ele pode ser voltado
para diminuir o impacto de nossas ações sobre o planeta, ou, até mesmo, revertê-las.
Mas
acima de tudo precisamos eliminar aquilo que é uma das maiores causas de impacto
ambiental: a miséria. Não que os pobres, eles mesmos, possam ser responsabilizados
pela degradação urbana ou pelo ataque à floresta. A falta de saneamento também polui
rios, lagoas e mares. A falta de dinheiro para comprar gás (como hoje assistimos
no Brasil por causa da política de preços da Petrobras submetida à lógica do mercado)
obriga as pessoas a cortar lenha para fazer comida. A falta de emprego qualificado
força a expansão da fronteira agrícola.
Sem
desenvolvimento não há preservação ecológica, pois para sobreviver os excluídos
da economia têm que recorrer a formas mais primitivas e ineficientes de exploração
dos recursos naturais.
O exemplo
do Brasil talvez seja o mais importante para ilustrar essa tese. Um fato oculto
nas disputas em torno da questão ambiental é o papel da desindustrialização na devastação
de nossos biomas. Um país que vem reprimarizando aceleradamente sua economia continua
a precisar de divisas para equilibrar sua balança de pagamentos. Sem o recurso das
exportações de bens manufaturados de maior valor agregado, resta ao país essa contínua
pressão que vivemos hoje para a expansão da fronteira agrícola e exploração mineral
descuidadas. Por mais que a grande produtividade do agronegócio continue crescendo,
uma economia baseada em exportação de commodities vai sempre ser refém das bruscas
oscilações de preços. O resultado não é trágico apenas para a vida econômica, o
meio ambiente também sente esse impacto.
Por
mais engajado ecologicamente que seja um governo no Brasil, se não enfrentar o problema
da desindustrialização, em médio prazo, a desorganização das finanças externas cuidará
de recompor a correlação de forças em prol do desmatamento. Em última instância,
só no enfrentamento do subdesenvolvimento e da dependência é que conseguiremos resolver
de fato a questão ambiental brasileira. Do contrário, até podemos conseguir vitórias
temporárias nessa área, mas a força dos ciclos econômicos mundiais, especialmente
cruéis com os países subdesenvolvidos, promoverá retrocessos seculares. Industrializar
para preservar deveria ser um dos lemas de quem luta pelo meio ambiente na periferia
do capitalismo.
Entretanto,
seja na periferia ou no centro do capitalismo, é tarefa progressista assumir a questão
ecológica sem negar sua urgência insofismável para o futuro da humanidade e de toda
a vida na Terra.”
21 ONU.
“Banco Mundial: serão necessários três planetas para manter atual estilo de vida
da humanidade.” Publicado em 19 ago. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundial-serao-necessarios-3-planetas-para-manter-atual-estilo-de-vida-da-humanidade/
“O consumismo grotesco que infelicita nossa juventude hoje é uma verdadeira
fábrica de infelicidade, alimentado por uma máquina publicitária que existe para
criar carências que não existiam. Tal aberração só faz sentido numa sociedade que
quer viver para criar e consumir o máximo possível de bens materiais.
Mas
o objetivo último de uma economia e de um governo não é esse, e sim o de criar as
condições para o nascimento e o sustento de seres humanos e de sua felicidade.
Como
exemplo de uma de muitas ações que deveríamos fazer para ajudar nessa reespiritualização
está o investimento maciço numa educação criativa, libertadora e contínua, que desenvolva
o pensamento crítico e rejeite o niilismo disseminado em nossa sociedade.
A escola
pública não é lugar para realizar revolução cultural ou doutrinação moral de nenhuma
natureza, mas sim de transmissão do legado do conhecimento humano bem estabelecido.
Mas
ela é também lugar para desenvolver as habilidades básicas de argumentação, raciocínio,
crítica e solução de problemas de nossas crianças, e, por que não dizer, de nós
mesmos, caso queiramos passar a vida em aprendizado contínuo.
E serão
essas habilidades que propiciarão essa revolução cultural.
Pois
a tarefa de reespiritualizar nossa cultura é política.
Como
parte da luta ecológica, por exemplo, devemos generalizar o esforço de reflexão
sobre o ato de consumo. Levar os cidadãos a se perguntarem sobre qualquer produto
ou serviço não só “quanto custa?”, mas “preciso mesmo dele?”, “Quem aproveita comunitariamente
meu ato de consumo? Minha região? Meu país? Minha comunidade?”, “Meu ato de consumo
é fraterno à natureza na origem e no rejeito?”
Não
deveríamos optar por um produto menos belo, barato ou mais caro caso ele tenha um
adicional felicitante para mim, que é ajudar a dar renda à minha comunidade ou proteger
a natureza?
Humanizar
o capitalismo não é só criar um Estado de bem-estar social, mas proteger nossas
crianças de uma cultura de consumo que cria carências artificiais e infelicidade.
Para isso, temos que debater formas de desestimular o uso das novas tecnologias
pela máquina de moer publicitária – produtora de desejos, carências, infelicidade,
cultura da ostentação, sentimento de inferioridade, individualismo e indiferença
à miséria.
Temos
que salvar as novas gerações de uma vida sob estresse permanente causado, de um
lado, por subemprego, exploração e insegurança de um mercado selvagem e, de outro,
pelo massacre cientificamente planejado da enxurrada de imagens e sons publicitários
que produzem a frustração e a infelicidade.
Ao mesmo
tempo, é o Estado, e não o mercado, que deve buscar recompensar manifestações de
altruísmo, generosidade e espírito cooperativo, porque a lógica do capitalismo nunca
as recompensará.
Conquistar
para o ócio e a vida na dimensão dos valores o tempo que a automação e a tecnologia
da informação vão eliminar do trabalho humano é uma das principais tarefas do progressismo
para ajudar nessa reespiritualização. E isso deve ser feito através da paulatina
diminuição da jornada de trabalho.
E essas
conquistas jamais serão medidas pelo PIB.
Precisamos
julgar as sociedades mais pelo bem-estar atingido do que pela riqueza material produzida.
Temos que produzir mais felicidade do que bens.
Não
estou falando de religião, embora as virtudes da parcimônia, da austeridade, do
amor ao próximo, do compromisso com a vida, da solidariedade com os mais pobres
sejam pontos de absoluta convergência entre o que penso e o que pregam os melhores
líderes espirituais e religiosos da humanidade.”
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