domingo, 22 de maio de 2022

Aspectos do novo radicalismo de direita, de Theodor W. Adorno (Introdução de Felipe Catalani)

Editora: Unesp

ISBN: 978-65-5711-008-9

Tradução e introdução: Felipe Catalani

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 104

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Sinopse: “Quem não quer falar do capitalismo, deveria calar-se sobre o fascismo.” Essa frase de Horkheimer, extraída de um texto clássico redigido durante a Segunda Guerra Mundial, ainda ressoa nesta análise adorniana de um novo radicalismo de direita que começa a emergir na Alemanha dos anos 1960. Como explicar tal aberração política no seio de uma democracia supostamente bem-consolidada, no auge da “era dourada” do capitalismo europeu? Conforme a boa tradição materialista, Adorno insiste em afirmar que tal fenômeno é menos um sinal de loucura, tolice ou “desinformação”, e mais um sintoma de uma transformação social objetiva em curso. Como um fantasma naquela sociedade pacificada, o potencial fascista aparece então como nada mais nada menos que uma transfiguração ideológica da teoria do colapso de Marx.

 


Depois da meia-noite no século: Adorno e as análises do fascismo – por Felipe Catalani

 

“Tratava-se de um boom industrializador visando compensar a precária situação econômica alemã que se estendia desde o final da Primeira Guerra Mundial e que se intensificou com o crash de 1929. Isso foi enfatizado por Herbert Marcuse em um texto dos anos 1940 intitulado “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo”, em que ele defendia que “o nacional-socialismo não [foi] uma restauração social e política [...]. O Estado nacional-socialista tem pouco em comum com a estrutura política do antigo Reich”.10 Tratava-se, portanto, de compreender a lógica imperial do Terceiro Reich menos como a expressão de uma megalomania gananciosa de um indivíduo “sem noção de limites, e mais como algo que se enraizava na lógica social subjacente do capital. Afinal, o impulso destruidor de limites é a própria alma do mecanismo de valorização do valor. Ao contrário da utopia liberal do doux commerce, buscava-se enxergar o vínculo necessário entre violência econômica e violência extraeconômica: “A expansão industrial e, com ela, a ordem social baseada nessa expansão poderia ser mantida somente por meio da transformação do Estado democrático em um sistema político autoritário”.11 Tal conclusão confirmava-se no próprio discurso dos nazistas: “Hitler e seus porta-vozes oficiais têm frequentemente expressado a opinião de que consideram o Estado apenas como parte de um esquema muito mais abrangente [...], eles têm afirmado que esse esquema é estabelecido e determinado pelas necessidades em expansão do capitalismo alemão”.12

10 Marcuse, State and Individual under National Socialism, em Technology, War and Fascism, Londres: Taylor & Francis, 2004, p. 69. Esse texto de Marcuse não deixa de ser uma intervenção no debate frankfurtiano entre Friedrich Pollock e Franz Neumann, sendo sua própria posição mais próxima de Neumann. Os textos mais relevantes de Pollock sobre esse debate encontram-se traduzidos em Pollock, Crise e transformação estrutural do capitalismo: artigos na Revista do Instituto de Pesquisa Social, 1932-1941. Org. Amaro Fleck; Luiz P. de Caux. Florianópolis: Nefipo, 2019. Disponível em: <http://www.nefipo.ufsc.br/files/2019/09/Crise-e-transforma%C3%A7%C3%A3o-Friedrich-Pollock.pdf>. Acesso em: 1º out. 2020. Ver também Neumann, Behemoth: The Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944 (Chicago: Ivan R. Dee, 2009) e Alfred Sohn-Rethel, The Economy and Class Structure of German Fascism, Londres: Free Association Books, 1987.

11 Marcuse, op. cit., p. 72. O debate em torno da interpretação do nacional-socialismo e de sua estrutura econômica muitas vezes rodava em torno do sentido da violência. A tese de Pollock a respeito do “capitalismo de Estado” significava que o açoite do desemprego é substituído pelo terror político” (Pollock, Capitalismo de Estado: suas possibilidades e limitações, em op. cit., p. 101), isto é, basicamente, que a dominação impessoal (econômica) havia sido substituída pela dominação pessoal direta (política). A interpretação era certamente equivocada (Adorno nunca chegou a aderir totalmente à leitura pollockiana, que no limite comprometia a própria ideia de contradição e de dialética): trata-se antes de constatar que essa violência imediata política não substitui a violência impessoal do valor (fundamento do capital), mas é antes inseparável desta, algo cujo sentido é dado por esse momento histórico do capitalismo na Alemanha.

12 Marcuse, op. cit., p. 72.

 

 

“A persistência da lógica da acumulação de valor na Alemanha nazista não ocorria sob uma economia estatizada (como na União Soviética), visto que setores significativos dos meios de produção permaneceram sob controle privado. Após a dissolução dos sindicatos, Robert Ley, chefe da Frente Alemã para o Trabalho (Deutsche Arbeitsfront, que havia substituído todos os sindicatos após 1933 e que cimentava a conciliação de classes sob Hitler ao formar o que chamavam de “comunidade do trabalho” ([Arbeitsgemeinschaft]), promete conceder “autoridade absoluta ao dirigente natural da fábrica, quer dizer, ao patrão”, e que os patrões vão ser agora de novo o ‘dono da casa’”.17 Os plenos poderes patronais indicam, portanto, menos um processo de racionalização econômica total e sem frestas do que uma gangsterização da economia, vinculada também ao poder paralelo exercido pelas milícias fascistas — algo observado de forma intensa na Itália, onde o squadrismo foi responsável por aniquilar todo o aparato dos comunistas e do movimento operário, abrindo o caminho para a ascensão de Mussolini.18 Com o patronato mafializado, garantia-se ao mesmo tempo a disciplina da força de trabalho e combatia-se, com meios extralegais, toda possibilidade de sublevação.19 Portanto, a ditadura não iria abolir a “anarquia da produção de mercadorias” (Marx), mas garanti-la. Na contramão da interpretação de Pollock, para quem o advento da ideia de “capitalismo de Estado” e do diagnóstico do fim da era liberal do capitalismo representaria a passagem do primado da economia para o primado da política, Neumann analisava que a competição, e mesmo a competição selvagem [cut-throat], continua funcionando. A iniciativa empresarial não está morta; ela é vital como antes e talvez agora ainda mais. O poder motivante da expansão é o lucro. A estrutura da economia alemã é a de uma economia completamente monopolizada e cartelizada”.20 Tratava-se então de compreender o fascismo como a organização terrorista das contradições do capitalismo”,21 e não a suspensão dessas contradições.

Vale lembrar que, no entanto, Pollock não estava absolutamente sozinho em sua leitura de que a lei do valor (e seu caráter contraditório com potencial de crise) havia sido suspensa com a abolição da circulação e a política de preços,22 pois não eram poucos os autores que à época lançaram a hipótese de que o capitalismo teria acabado sob o nacional-socialismo.23 No entanto. a violência e a força não devem ser compreendidas como anulação (ou substituição) do princípio mercantil. Nos termos de Schmitt, para garantir que a “esfera da economia livre” pudesse funcionar não politicamente, era necessária uma enérgica intervenção política: “O ato da despolitização é, de um modo especialmente intensivo, justamente, um ato político”24.

Um dos “truques” ideológicos denunciados aqui por Adorno, que aparecia como relativização do passado nazista, consiste na separação do “lado bom” da prosperidade econômica sob Hitler e de todos os acontecimentos seguintes, em comentários como: “Antes de ele ter feito aquela guerra idiota, estava bastante bom para a gente com Hitler”. Ao que Adorno responde que “toda essa conjuntura entre 1933 e 1939 só foi possível por meio da frenética economia de guerra, da preparação para a guerra”.25 Afinal, a Alemanha nazista modernizou-se para fazer uma guerra ou fez uma guerra para modernizar-se? A questão é falsa na medida em que a resposta ficaria na dimensão subjetiva de uma intenção”. Importa é que os dois momentos não são simplesmente coincidentes, no sentido de que se poderia separar um do outro como naquele “truque” falacioso, mas são interdependentes e fazem parte do mesmo processo. O próprio Robert Ley escreve: “A economia capitalista havia atingido uma barreira que não poderia ter sido superada com seus próprios meios. [...] Então o nacional-socialismo aventurou-se na tentativa bem-sucedida de abrir novos caminhos para uma economia frustrada e que tinha atingido os limites de seu próprio poder”.26 Desprovida de colônias desde o fim da Primeira Guerra Mundial (diferentemente das outras potências europeias concorrentes), a Alemanha precisava desenvolver-se. Desenvolvimento é projeção de poder e o expansionismo territorial surge aqui como sendo inerente ao processo de acumulação capitalista, cuja contradição é tanto seu motor quanto aquilo que o condena.

Para compreender a energia política que sustentou o nazismo, é necessário considerar a mobilização de uma força antissistêmica para a reafirmação da ordem que ocorre de forma particular no antissemitismo moderno.27 De forma distinta do secular antissemitismo cristão, o antissemitismo moderno, que é pouco explicado caso ele seja simplesmente subsumido a um conceito mais genérico de racismo, opera como uma crítica primitiva do mundo, distinguindo “capital produtivo” (schaffendes Kapital), ao qual se vincula o lado positivo concreto, e capital rapinante” (raffendes Kapital), que seria o momento negativo e abstrato do capital (o próprio NSDAP utilizava esses termos em seu combate à servidão aos juros” [Zinsknechtschaft]). Portanto, haveria ao mesmo tempo certa pretensão anticapitalista no ódio antissemita, como um ódio aos “dominantes”, que personificam o abstrato a parasitar o concreto, o trabalho produtivo. “O antissemitismo é o socialismo dos tolos”, na célebre frase atribuída a August Bebel. Nesse sentido, o antissemita é o “revoltado na ordem” por excelência, cujo modelo de explicação do mundo é, em regra, a teoria da conspiração. Mas a conspiração é, nos termos de Fredric Jameson, a totalidade social como complô”, ou seja, os inimigos agem sobre a vítima sem mediação da forma social.28

Compõem o mesmo nexo ideológico esse anticapitalismo antissemita (contra o “capital financeiro parasita dos bancos”, que seria o “capital judaico”) e a apologia do capitalismo produtivo industrial. Como diz Franz Neumann, atacava-se a supremacia do capital monetário, ao mesmo tempo que “homens como Alfred Krupp, Mannesmann, Werner Siemens receberam comentários laudatórios29. Afinal, como escreve Wilfrid Bade (então funcionário de Goebbels) em um texto intitulado “O Führer e o automóvel”, louvável era o grande objetivo de “motorizar a Alemanha”.30L’automobile c’est la guerre”: assim sintetizava Walter Benjamin.31 Em Mein Kampf, Hitler elogia Henry Ford, dizendo que os judeus eram os mestres controladores dos produtores em uma nação de 120 milhões de pessoas; somente um único grande homem, Ford, para a fúria deles, ainda mantém completa independência”.32 Lembremos que, paralelamente a suas atividades de industrial, Ford fora um influente antissemita nos EUA, tendo publicado nos anos 1920 a série de livretos The International Jew. Escrevia Ford em 1922: “A solução da questão judaica é em primeiro lugar um problema dos judeus; caso eles não a resolvam, então o mundo irá solucioná-la.33

Na margem colonial do mundo, o expansionismo do capital já havia dado início à experiência concentracional moderna com a invenção dos ‘campos de concentración’, que, como indicam historiadores, foi um termo forjado por um general espanhol na Cuba do fim do século XIX para administrar uma população em revolta. Também o poder colonial britânico já havia criado “concentration camps” no contexto da Segunda Guerra dos Bôeres. Se Carl Schmitt tem razão em dizer que a tese hegeliana sobre a interversão (o “Umschlag”) da quantidade em qualidade só pode ser compreendida como um pensamento político”34, então o Lager alemão, enquanto intensificação de uma prática preexistente, deve ser compreendido não como mera continuidade daquilo que já existia na colônia. Apesar da inegável afinidade entre os dois fatos bárbaros (em que a verdade do capital, revelada na periferia, ressurge no centro), trata-se de um evento qualitativamente distinto. Afinal, o projeto de extermínio dos judeus não foi uma simples versão industrial do mórbido governo das populações.35

Em geral, o racismo funciona ideologicamente como uma projeção de um poder potencial ao outro, um poder “usualmente concreto, material ou sexual”,36 de caráter telúrico e pulsional, por assim dizer. No caso do antissemitismo, projeta-se um poder vinculado não a um corpo, mas a uma alma maligna. Devido a esse aspecto, o antissemitismo assume a forma de um “ódio aos de cima” como uma revolta do “concreto” contra o “abstrato” (daí também a peculiar combinação entre ódio a judeus, a banqueiros, a intelectuais e a conspiradores revolucionários, que vem desde a antiga projeção de uma união entre bolcheviques, judeus e financistas). Enquanto na colônia o negro escravizado era reduzido a um corpo sem alma, ao concreto da força de trabalho em estado puro, o judeu, sendo o negativo do “sangue e solo” e da pseudoconcretude nazistas, é a própria personificação do abstrato do valor. O resultado da monstruosa tentativa do capitalismo de expurgar seu próprio lado abstrato foi a “fábrica negativa”37 Auschwitz:

Uma fábrica capitalista é o local onde é produzido o valor, algo que “infelizmente tem de assumir a forma de uma produção de bens, de valores de uso. O concreto é produzido enquanto suporte necessário do abstrato. Os campos de extermínio não eram uma versão terrível dessa fábrica, mas, ao invés, devem ser vistos como a sua negação grotesca, Ariana, “anticapitalista”. Auschwitz era uma fábrica para “destruir o valor ‘, isto é, para destruir as personificações do abstrato. A sua organização correspondia a um processo industrial demoníaco [fiendish], cujo objectivo era “libertar o concreto do abstrato. O primeiro passo consistiu em desumanizar, ou seja, arrancar a máscara” de humanidade, de especificidade qualitativa, e revelar os judeus como aquilo que “realmente são” – sombras, cifras, abstrações numéricas. O segundo passo consistiu em erradicar essa abstração, transformá-la em cinzas, procurando durante o processo despojá-la dos traços remanescentes do “valor de uso” material concreto: roupas, ouro, cabelo, sabão.38

17 Citado em João Bernardo, Labirintos do fascismo: na encruzilhada da revolta e da ordem (versão ampliada). Edição do Autor, 2015, p.43.

18 Sobre o assunto, ver, por exemplo, Franzinelli, Squadristi: Protagonisti e tecniche della violenza fascista 1919-1922, Milão: Mondadori, 2003; e De Felice, Mussolini il fascista, v. II: L’organizzazione dello Statofascista 1925-1929. Turim: Einaudi, 1968.

19 Ao descrever historicamente a “ligação das milícias patronais ao sindicalismo, que constituiu uma das bases dos movimentos fascistas”, João Bernardo observa que esse fenômeno atingiu enorme amplitude também nos Estados Unidos: “Completou-se assim nos Estados Unidos a relação das milícias de pistoleiros com o sindicalismo de inspiração patronal. Na década de 1930 existiam nesse país mais de duzentas agências especializadas em espionagem no interior das empresas, com 40.000 a 50.000 funcionários, dedicando-se a uma actividade que passara a ser normalmente aceite como parte integrante da disciplina fabril”. A violência gerencial da disciplina do trabalho se estabelecia portanto de forma relativamente independente do poder estatal centralizado (embora em grande parte dos casos a relação entre as milícias e o Estado seja completamente permeável, como é notável no caso italiano, por exemplo): “Como a vigilância dissimulada se fazia acompanhar pela acção truculenta, as grandes empresas adquiriam lacrimogéneo, com o respectivo equipamento, em quantidade muito superior à adquirida pela polícia oficial. [...] só a Republic Steel Corp. comprara quatro vezes mais gás lacrimogéneo do que o maior comprador entre as forças repressivas públicas” (Bernardo, op. cit., p. 58-9).

20 Neumann, op. cit., p. 292.

21 Marcuse, Counterrevolution and Revolt, Boston: Beacon Press, 1972,

22 Contra essa concepção, afirma Neumann: “Controle de preços não nega o motivo de lucro, mas antes o intensifica” (Neumann, op. cit., p. 315).

23 Alguns títulos do período aos quais Neumann se refere são The Economics of Force (1940), de Frank Munk, The End of the Economic Man (1939), de Peter Drucker, “The End of Capitalism in Germany” (1941), de Dwight MacDonald, entre outros. É nesse contexto que ele escreve que “há uma tendência crescente de negar o caráter capitalista do nacional-socialismo” (Neumann, op. cit., p. 222).

24 Schmitt, op. cit., p.81.

25 Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita, p. 5.

26 Apud Marcuse, op. cit., p. 74.

27 Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo, Revista Sinal de Menos, n.8, p.14-28, 2012.

28 Jameson, The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System. No livro Prophets of Deceit, que fez parte do grande projeto de pesquisa sobre o preconceito (no qual se inclui também o estudo sobre a personalidade autoritária feito por Adorno junto com outros pesquisadores), Leo Löwenthal e Norbert Guterman distinguem os apelos do agitador fascista e do revolucionário nos seguintes termos: “O Inimigo é representado como agindo, por assim dizer, diretamente sobre suas vítimas sem o intermediário da forma social, tal como o capitalismo é definido na teoria socialista. Ao contrário do reformador ou do revolucionário, o agitador não faz nenhum esforço para rastrear a insatisfação social até uma causa claramente definida (Löwenthal; Guterman, op. cit., p. 7).

29 Neumann, op. cit., p. 229.

30 Citado em Rabinbach (ed.), The Third Reich Sourcebook. Berkeley: University of California Press, 2013.

31 Walter Benjamin, “Teorias do fascismo alemão”. Em O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

32 Hitler, Mein Kampf apud Rabinbach, op. cit.

33 Henry Ford, Der Internationale Jude, Leipzig: Hammer, 1922, p. 152 apud Robert Kurz, Schwarabuch Kapitalismus, Frankfurt am Main: Eichborn, 2009, p 503. Esse vínculo entre antissemitismo, ideologia do trabalho e processo de industrialização não é de todo casual afinal, também no Brasil, como revela a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, o antissemitismo andou junto com a modernização na Era Vargas. cf: O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

34 Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, Munique: Duncker & Humblot, 1932, p.47.

35 Como diz Postone, nenhuma explicação funcionalista do Holocausto e nenhuma teoria do antissemitismo como bode expiatório pode sequer começar a explicar o porquê de, nos últimos anos da guerra, quando as forças alemãs estavam sendo esmagadas pelo Exército Vermelho, uma proporção significativa de veículos ter sido desviada do apoio logístico e utilizada para transportar os judeus para as câmaras de gás”. Postone, op. cit., p. 164

36 Ibidem, p. 17.

37 Kurz, Schwarcbuch Kapitalistnus, op. cit.

38 Postone, op. cit., p. 27

 

 

“Há um certo lugar-comum no debate das assim chamadas políticas de memória e reparação que consiste na ideia de que a “elaboração do passado” se efetivaria, realmente, como uma espécie de constante lembrança, como se não esquecer o ocorrido bastasse para evitar a repetição do horror, o que seria garantido sobretudo com um viés educativo. Adorno interveio com certa frequência nesse debate, apontando ao mesmo tempo o aspecto aporético na tarefa de “re-civilizar” a Alemanha, visto que se a barbárie está no próprio princípio da civilização, então a luta contra ela tem algo de desesperador”.46 Ainda durante a guerra, Adorno escreve na Minima moralia que o pensamento de que após esta guerra a vida possa prosseguir normalmente ou que a civilização possa ser reconstruída — como se a reconstrução da civilização por si só não fosse a negação desta — é uma idiotice”.47 O que se segue só poderá ser “uma nova qualidade de sociedade”, na qual “a barbárie estará perpetuada”.48 A “reconstrução”, portanto, irmana-se com a destruição ocorrida. Ideologicamente, ela opera como um gesto de virar a página ao mesmo tempo que porta uma ingenuidade (ou cinismo” que se satisfaz com fachadas restauradas, desviando o olhar daquilo e daqueles que não ressuscitarão. Ela se reduz a uma questão contábil ou orçamentária: tudo o que existe (a vida, a sociedade e a própria natureza torna-se, no mundo onde reina a lógica da equivalência geral, potencialmente substituível (passível de reconstrução ou reparação pecuniária). A concepção de que se possa reconstruir é inseparável do sinal verde para destruir. Comentando as notícias dos ataques aéreos, que sempre vinham acompanhadas do nome das empresas fabricantes do aparato militar, Adorno escreve: “Cada menção elogiosa a uma grande firma na destruição das cidades contribuiu para o seu renome, graças ao qual há de conseguir as melhores encomendas por ocasião da reconstrução”.49

Apesar do conhecido vínculo entre reificação e esquecimento,50 os limites enfrentados pela “elaboração do passado” não se explicam pela mera incapacidade de lembrança, mas pela persistência no presente da mesma ordem social que outrora causou o fascismo: “A sobrevivência do fascismo e o fracasso da tão falada elaboração do passado, degenerada em sua caricatura, no esquecimento vazio e frio, devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos que produziram o fascismo. Isso não pode, essencialmente, ser deduzido de disposições subjetivas”.51 Adorno mostrava-se cético mesmo diante da possibilidade de uma compensação histórica a ser realizada no âmbito jurídico com suas “batas e os defensores plenos de compreensão”, em que “a justiça, de todo modo incapaz de aplicar qualquer sanção que fizesse jus ao crime cometido, é já falsificada”.52 A injustiça se perpetua na farsesca equivalência geral da abstração jurídicas que oculta uma derrota histórica: se tivéssemos fuzilado sumariamente os encarregados da tortura juntamente com os seus mandantes e os seus protetores extremamente poderosos, isso teria sido mais moral do que abrir um processo para alguns deles”.53 Esse juízo de Adorno não é um mero arroubo jacobino ou desejo de vingança, mas aponta antes para uma aporia histórica: “O fundamento histórico da aporia”, escreve ele, “é o fato de, na Alemanha, a revolução contra os fascistas ter fracassado ou, muito mais, o fato de não ter havido em 1944 nenhum movimento revolucionário de massas”.54

46 Adorno, Educação após Auschwitz, em Palavras e sinais: modelos críticos 2, op. cit., p. 105 [trad. modificada].

47 Idem, Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1993, p. 47.

48 Ibidem.

49 Ibidem, p.45.

50 “Toda reificação é um esquecimento.” Adorno; Horkheimer, cit., p. 190.

51 Adorno, Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit, em Kulturkritik und Gesellschaft II, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 5 66-7 [grifo meu].

52 Adorno, Dialética negativa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 239

53 Ibidem.

54 Ibidem.

 

 

“Impressiona hoje certo teor profético dessas análises de 1967. Em plena Era Dourada do capitalismo pacificado do pós-guerra, cujo potencial de crise parecia ter sido definitivamente eliminado em meio a um estável crescimento econômico e a um equilibrado consenso político entre centro-esquerda e centro-direita, Adorno parece enxergar uma curvatura nessa reta ascendente, antecipando (antes mesmo da explosão de 1968) o que viriam a ser as décadas do “desmoronamento” (nos termos de Hobsbawm) a partir de 1970. Esse potencial explosivo de desintegração em meio a uma forte integração social é visto por ele na forma de uma transfiguração ideológica expressa por essas tendências fascistas. No pesadelo diurno dessa nova direita há um sentimento de catástrofe social” antecipador, que se traduz, por sua vez, como um “desejo inconsciente do fim do mundo”.56 Essa escatologia à direita, que começa a aparecer no imaginário popular alemão, possui uma estrutura ideológica já observada também no estudo de Löwenthal e Guterman, no qual os agitadores fascistas são igualmente identificados como “profetas”. Eles observaram que o apocalipse anunciado produz um estado de exceção moral, que pode ter também um lado “liberador”: “Algo que é temido em um nível da personalidade é muitas vezes desejado em outro. Isto parece ser especialmente verdadeiro para a experiência peculiarmente fascinante da catástrofe. O evangelho da desgraça [gospel of doom] alivia o indivíduo da responsabilidade de lutar contra seus problemas; não se pode resistir a um vulcão em erupção”.57 Deveríamos acrescentar: a desgraça anunciada altera a forma como o indivíduo enfrenta seus problemas. Porém, é nesse “alívio da responsabilidade” promovido pela inevitabilidade do desastre que o indivíduo não se reconhece mais como um sujeito político. De certo modo, isso é o que aparece posteriormente no diagnóstico de Christopher Lasch sobre o narcisismo na “era das expectativas decrescentes como um eu sitiado e sua ética da sobrevivência”.58

55 A palestra, proferida em 5 de abril de 1967, pode ser escutada em: <https://www.mediathek.at/oesterreich-am-wort/aus-aktuellem-anlass/archivaufnahmen-von-und-mit-theodor-w-adorno/>. O texto publicado encontra-se em Adorno, “Anmerkungen zum sozialen Konflikt heute”, em Sociologische Schriften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003.

56 Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita, p 52.

57 Löwenthal; Guterman, op. cit., p. 3 7.

58 Lasch não tinha em vista o radicalismo de direita, mas uma lógica sociopsicológica em vias de se generalizar. A personalidade narcísica (por não desenvolver-se necessariamente em termos de um “caráter fascista”) pode ser lida como o lado B da personalidade autoritária nesse contexto, onde um certo clima de época apocalíptico é vivido no âmbito psíquico e moral de modo “sobrevivencialista” (não por acaso, o período que Lasch está analisando é a década de 1970): “Uma das razões pelas quais as pessoas não mais se veem como sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se veem como sujeitos, de modo algum, mas como vítimas de circunstâncias; e essa sensação de deixar-se guiar por forças externas incontroláveis inspira um outro modo de armamento moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um observador irônico, separado e confuso” (Lasch, O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis, São Paulo: Brasiliense, 1986, p.85).

 

 

“O sobrevivencialista hard core que constrói bunkers, faz estoques e se arma (se preparando para o apocalipse) se enquadraria naquilo que Adorno chama tomando o termo dos americanos) de lunatic fringe, a “franja de lunáticos”. No entanto, e isso é reiterado nessa palestra de 1967, esses lunáticos não são meramente lunáticos. Mesmo no diagnóstico de Lasch, esse sobrevivencialista apocalíptico diz respeito a um “estado de alma” generalizado: “Enquanto o sobrevivencialista de primeira linha faz planos para o desastre, muitos de nós conduzimos as nossas vidas cotidianas como se ele já tivesse ocorrido. [...] Deploramos ou rimos daqueles que se armam contra o apocalipse, mas armamo-nos emocionalmente contra as investidas da vida cotidiana”.59 O que nos interessa, no entanto, é compreender como isso se transforma em um desejo de apocalipse, como já assinalado por Löwenthal e Guterman: o medo original torna-se mais tênue, menos urgente e contundente. Mas ele adquire uma realidade imaginativa reforçada – o medo é transformado em uma expectativa niilista mórbida, ou mesmo esperança, de destruição total”.60 Há, portanto, um ponto de contato entre esperança e niilismo, e isso não passou desapercebido àquele que mais intensamente investigou o afeto da esperança: Ernst Bloch. Afinal, também os processos de transformação social profunda ocorrem por meio do “nada que está rondando”, por meio das manifestações não decididas do nada: “todo advento contém o niilismo como derrotado-usado”.61 Mas esse nada (ou o “caráter destrutivo” de Benjamin, que “não vê nada de duradouro” e que “converte em ruínas”62 tudo que existe) é ao mesmo tempo o “perigo” e “aquilo que salva”, para evocar o célebre verso de Hölderlin, tão apreciado por Bloch.63 Enquanto a utopia é a vontade rumo ao tudo, “o nada absoluto é o malogro selado da utopia”.64 Esse novo radicalismo de direita analisado por Adorno contém algo de um “malogro selado da utopia, que se expressa como um desejo de fim. Quem está diante do nada e não deseja a transformação do todo quer o colapso, a destruição. “Mas ele não quer só a destruição de seu próprio grupo, ele quer, se possível, a destruição do todo.”65

O desejo potencialmente suicida de fim é a ao avesso: sua versão puramente mórbida e destrutiva.66 No entanto, Adorno não vê nessa imaginação escatológica à direita uma mera retórica propagandística ou delírio patológico: há uma tendência objetiva, fermentando na realidade social, que serve de lastro para essa fantasia. Trata-se de algo que ocorre de modo independente do âmbito da “alma”: por isso Adorno utiliza as ferramentas da psicanálise e, ao mesmo tempo, “despsicologiza” o conceito de fascismo.67 Como uma transfiguração ideológica, aparecia já naquela direita radical uma “distorção da teoria do colapso de Marx”,68 de tal forma que estava anunciado o fim do curto verão da normalidade europeia. Se aqueles grupos apareciam meramente como lunáticos para o mainstream bem-pensante, Adorno alertava que julgá-los simplesmente como burros ou loucos não passava de um “consolo pequeno-burguês e quietista”69 e um autoengano em relação a tendências bastante concretas do desenvolvimento capitalista. A insistência de Adorno nesse ponto (na crítica da má psicologização) mira o cerne da interpretação liberal do fascismo, que o reduz a uma mera patologia moral, uma loucura, um desvio, portanto inocentando a ordem social que o germinou e atribuindo o problema a uma anomalia qualquer de indivíduos mal adaptados que não teriam conseguido desenvolver um sentimento para o convívio democrático (“os eternos incorrigíveis”, como diz Adorno ironicamente). Coincidentemente (mas não tanto) tal narrativa progressista sobre o fascismo como um desvio do processo civilizatório era partilhada também a leste da cortina de ferro; afinal, os ideólogos da modernização soviética estavam igualmente na disputa em torno de quem seria o verdadeiro herdeiro das luzes ocidentais. Não devem espantar, portanto, os brados de Lukács, que, nos anos 1950, escreveu sua própria versão da “elaboração do passado”, contra o irracionalismo alemão”. Haveria, de Nietzsche a Hitler, uma sombria continuidade operando nas margens da racionalidade (mas não na racionalidade enquanto tal, evidentemente).70

Na contramão dessa ilusão progressista da interpretação liberal sobre o fascismo (que reaparece praticamente inalterada do lado soviético), Adorno via naqueles fenômenos mórbidos, assim como Bloch nos anos 1930 (com os devidos cuidados na analogia), não um mero defeito da consciência, mas “angústia e fúria represada”;71 portanto, sofrimento social acumulado que se traduz em uma energia política ambígua, indecidida, como um sintoma de uma transformação social que não ocorreu. Não uma irracionalidade qualquer, mas algo que extrai sua força a partir das contradições imanentes ao mundo social,72 algo cujo “represamento” tem um limite. Tal diagnóstico possui consequências políticas ao mirar também aquilo que aparece como mera política de contenção social na “evitação” do fascismo e se traduz como um posicionamento perante o SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands). Anos antes, Adorno hesitara em fazer uma crítica pública mais contundente ao SPD (que havia aderido definitivamente à economia social de mercado em 1959, com o Programa de Godesberg), justamente por receio de com isso fortalecer o radicalismo de direita, mesmo que de forma indireta. Aqui sua posição de certo modo se inverte. A “contenção” enquanto substituto para uma transformação social profunda, deixa de ser aquilo que “evita” o potencial fascista e passa a ser aquilo que o causa. Considerando a “crise permanente” em que se encontra o mundo agrário alemão, onde haveria uma espécie de Alemanha periférica em formação (se for permitida uma analogia com a France périphérique analisada pelo geógrafo das “fraturas francesas” Christophe Guilluy), Adorno constata que enquanto esse impasse não for resolvido de uma forma radical, a saber, de uma forma não subvencionista, artificial e novamente problemática, então esse caldeirão prestes a explodir continuará a existir”.73

Ao mesmo tempo, quando Adorno diz que a teoria do colapso de Marx aparece ideologicamente transfigurada na consciência do radical de direita é porque, de certo modo, em meio àquela sociedade aparentemente estável e plena, estava-se antecipando o colapso da sociedade do trabalho, inevitavelmente acarretado pelo desenvolvimento das forças produtivas e pela expulsão da força de trabalho do processo produtivo. Algo que, por sua vez, desencadeia a crise de valorização das décadas seguintes, ocasionando o processo de financeirização e de endividamento estrutural dos Estados. Em outros termos, um fantasma real já assombrava a fantasia dos alemães, pois as pessoas já se enxergavam como “desempregados potenciais”, como potencialmente expulsas do mundo: diante do “fantasma do desemprego tecnológico [...], as pessoas que estão no processo de produção sentem-se já como potencialmente supérfluas”.74 Eram potenciais “sujeitos monetários sem dinheiro” (Kurz).

Hoje, cinco décadas depois, esse processo já se encontra em um estágio muito mais avançado. No fim dos anos 1960, Adorno dizia que “a decomposição em partículas centrífugas é o reverso da integração social”.75 A desintegração social e a relegação de enormes setores da população mundial a uma situação de quase anomia (e também nos países assim chamados “desenvolvidos”, que se encontram em franco processo de periferização) já é hoje fato consumado. Só com muito esforço (ou má-fé) alguém não enxerga hoje a relação entre esse processo e a avalanche de extrema direita que avança no mundo. “O fascismo fixa os resultados sociais do colapso capitalista”76 — em uma situação como essa, tentar salvar aquilo que desmorona não é simplesmente inócuo, mas fortalece o que se pretende combater.”

59 Lasch, op. cit., p.84.

60 Löwenthal; Guterman, op. cit., p. 36.

61 Ernst Bloch, O princípio esperança, v. 1, Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p.305.

62 Walter Benjamin, Imagens de pensamento, in Obras escolhidas vol. II, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 23 7.

63 Na primeira estrofe do Patmos, de Hölderlin: “Wo aber Gefahr ist, wächst/ das Rettende auch” [“Mas onde há perigo, cresce/ também o que salva”]. Günther Anders, em sua enésima provocação a seu amigo, o esperançoso Bloch, também comenta esse verso de Hölderlin: “A citação dessas palavras deveria ser proibida. Imaginem se os americanos tivessem consolado os habitantes de Hiroshima com essa citação de Hölderlin, um dia antes do ataque à cidade. Ou se os nazistas tivessem gravado essas palavras no portão de Auschwitz — o cinismo dessa solenidade salta aos olhos” (Anders, op. cit., p. 129). O que Anders aponta é: esse passe de mágica, que do horror extrai o milagre, caducou. O nada, depois do Campo e da Bomba, já não promete mais nada”. “A bomba e o niilismo formam uma síndrome, cujo potencial único é a aniquilação total (Anders, Die Antiquiertheit des Menschen, v.I, Munique: Beck, 2010, p 303).

64 Bloch, op. cit., v. I, p. 307.

65 Adorno, Aspectos..., p. 52.

66 A relação disso com o que ocorre política e ideologicamente hoje no Brasil e no mundo é evidente, algo que, no entanto, não será abordado aqui. Tentei interpretar o fenômeno nesses termos em um primeiro momento em Catalani, “Aspectos ideológicos do bolsonarismo”, Blog da Boitempo, 31 out. 2018, disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31/aspectos-ideologicos-do-bolsonarismo/>; e depois de forma mais desdobrada em Catalani, “A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa”, Blog da Boitempo, 23 jul. 2019, disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2019/07/23/a-decisao-fascista-e-o-mito-da-regressao-o-brasil-a-luz-do-mundo-e-vice-versa/>; e Catalani, “A barbárie e os bárbaros: notas sobre o processo social brasileiro na crise, em Santos; Perruso; Oliveira (orgs.), O pânico como política: o Brasil no imaginário do lulismo em crise. São Paulo: MauadX, 2020.

67 Em uma conversa radiofônica de 1968 com Hellmut Becker sobre uma possível função da educação para a “desbarbarização”, Adorno insiste nessa “despsicologização”: “Becker: Se quisermos combater esse fenômeno por meio da educação, deverá ser decisivo remetê-lo a seus fatores psicológicos básicos... Adorno: Não apenas aos psicológicos, mas também aos objetivos, que se encontram nos próprios sistemas sociais. Becker: Eu concebo a psicologia também como um fator objetivo. Adorno: Sim, porém entendo como sendo fatores objetivos neste caso os momentos sociais que, independentemente da alma individual dos homens singulares, gera algo como a barbárie (Adorno, “A educação contra a barbárie” em Educação e emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 156).

68 Adorno, Aspectos..., p. 51.

69 Ibidem. Na Minima moralia, Adorno comentava a tola observação de que Hitler seria, afinal, “um louco”: “Muitos conhecimentos são fúteis, se desproporcionados à relação de forças, ainda que formalmente possam ser corretos. Quando o médico emigrado diz: ‘Para mim, Adolf Hitler é um caso patológico’, é possível que, no fim das contas, os exames clínicos confirmem sua asserção, mas a desproporção que há entre essa frase e a catástrofe objetiva que se abate sobre o mundo em nome daquele paranoico torna ridículo tal diagnóstico, através do qual quem diagnostica quer apenas pavonear-se” (Adorno, Minima moralia, ed. bras., p.48).

70 Lukács, Von Nietzsche zu Hitler oder der Irrationalismus in der deutschen Politik, Frankfurt am Main: Fischer, 1966. Para além dos clichês caricatos sobre o fantasma do “irracionalismo”, o argumento de Lukács não é irrelevante: o cerne de sua análise passa pela lente bifocal do comparatismo, que contrapõe o “atraso alemão” às luzes francesas. É importante dizer que boa parte da disputa interpretativa nos anos 1930 sobre os sentidos do fascismo se dava na forma de um debate estético, sobretudo no debate em torno do expressionismo, no qual Bloch e Lukács assumiam posições antagônicas.

71 Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 122. Sobre a interpretação blochiana do fascismo em Herança dessa época, ver Rabinbach, “Unclaimed Heritage: Ernst Bloch’s Heritage of out Time and the Theory of Fascism”, New German Critique, n.11, p. 5-21, primavera 1977. Talvez poderíamos pensar uma analogia entre o que Bloch chamava de “classes sem história” e os desclassificados potenciais que Adorno tinha em vista. Em ambos os casos, não se trata da “classe” tal como pensada por Lukács, que viria, portanto, no combo História, Consciência etc., mas daqueles que, em um limbo social e histórico, já não seriam algo como os destinados a serem os “sujeitos da modernização”, e, no entanto, são igualmente portadores de uma energia política antissistêmica.

72 Na palestra dada por Adorno no dia anterior (e que servirá de base para seu ensaio sobre conflito social), ele chega a falar que, em uma “situação de crise”, a energia da luta de classes desviada de seu “objetivo primário” pode se manifestar com um “perigoso potencial”: “esse potencial é de desintegração” (Adorno, Anmerkungen zum sozialen..., op. cit., p. 188).

73 Adorno, Aspectos..., p. 49.

74 Idem, op. cit., p. 47.

75 Adorno, Anmerkungen..., op. cit.

76 Horkheimer, “Die Juden und Europa”, op. cit.

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