sexta-feira, 24 de julho de 2020

Filosofia da Práxis (Parte II) — Adolfo Sánchez Vázquez

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-987-1183-71-5

Tradução: Maria Encarnación Moya

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 448

Sinopse: Ver Parte I



“O conceito de práxis e seu papel fundamental na formação e constituição do marxismo se descaracterizam do mesmo modo quando a revolução filosófica que o marxismo leva a cabo e a ruptura que pressupõe com a filosofia tradicional e, particularmente, com a de Hegel e Feuerbach, são interpretadas como um corte meramente teórico ou “epistemológico”.113 O corte com a filosofia anterior assim entendido não só obscurece o desenvolvimento do marxismo — ao mesmo tempo contínuo e descontínuo — como empalidece, antes de tudo, a verdadeira natureza do corte ou ruptura com a filosofia tradicional a que Marx alude desde a sua famosa Tese XI sobre Feuerbach. O “corte” não é apenas epistemológico, pois embora se rompa ou corte com uma teoria — particularmente com o idealismo hegeliano e com a crítica a que o submete Feuerbach —, rompe-se, acima de tudo, na teoria em que culmina o esforço filosófico tradicional por interpretar o mundo. Corta-se com a teoria que, definitivamente, não é só interpretação da realidade, mas, sim, instrumento de conciliação com ela, com o qual contribui para fechar a passagem para sua transformação. O corte com essa teoria, que nada mais é do que uma ideologia da conciliação com 0 mundo real; faz-se, portanto, em nome da própria transformação desse mundo. No entanto, por ser uma ideologia da justificação da realidade que se deseja transformar e, por ter essa ideologia raízes sociais, reais, o corte do marxismo com ela exige não só sua redução a suas raízes reais, como principalmente a transformação da realidade que essa ideologia da conciliação engendra. Não se trata, portanto, de um corte meramente epistemológico entre ideias ou graus ou níveis de conhecimento nem tampouco de uma simples passagem do erro à verdade, da ideologia à ciência, já que a práxis está implicada nessa passagem, a própria transformação do real. Nesse sentido, o corte ou ruptura de Marx com a filosofia tradicional, assim como com a fase de seu pensamento que ainda se encontra em maior ou menor grau sob sua influência, não pode ser caracterizada em termos puramente teóricos ou epistemológicos, mas fundamentalmente em termos práticos. O marxismo se constitui, portanto, como tal, e assim rompe com a filosofia que, como mera interpretação do mundo, culmina em Hegel quando se afirma como teoria da práxis revolucionária em particular, e da atividade prática humana em geral. Assim entendido, o marxismo é essencialmente a filosofia da práxis.”

113 O conceito de “corte epistemológico” foi introduzido por Gaston Bachelard e aplicado por Louis Althusser para expressar a transformação de uma problemática pré-científica ou ideológica em uma problemática científica. Althusser utiliza tal conceito ao estudar o pensamento de Marx e, sobretudo, ao tentar estabelecer a linha divisória com respeito aos seus trabalhos de juventude (Pour Marx, op. cit., p. 26). Sem entrar agora na questão que tocamos antes sobre a inexistência de uma descontinuidade radical entre o jovem Marx, particularmente o dos Manuscritos de 1844, e o Marx imediatamente posterior que começa a se desenhar a partir das “Teses sobre Feuerbach” e A ideologia alemã, e sem insistir mais na unilateralidade e no esquematismo que supõe caracterizar a problemática do primeiro período como simples problemática feuerbachiana, já que toda nossa exposição neste capítulo rejeita essa tese, digamos, neste momento, que o verdadeiro objeto da crítica de Marx não é tanto Feuerbach como Hegel; que a ruptura ou corte se efetua com a filosofia como interpretação do mundo que Hegel levou até suas últimas consequências; que os neo-hegelianos apenas exacerbaram essa filosofia, deixando pelo caminho o conteúdo real que de forma mistificada aparecia em Hegel; que Feuerbach a mantém, apesar de sua antropologização de Deus e da Ideia, e que Marx luta para libertar-se dela por meio da crítica do idealismo hegeliano, conseguindo-o ao final a partir, sobretudo, das “Teses sobre Feuerbach” e da Ideologia alemã. Entre essa concepção da filosofia como interpretação e a da filosofia como transformação do mundo se dá 0 verdadeiro corte que, por seu caráter teórico-prático, não se pode reduzir a um mero “corte epistemológico”.

 

 

“O período que se estende de abril a outubro de 1917 é rico em variações táticas bruscas e imprevisíveis no seio de uma mesma estratégia. A consigna de entrega do poder aos soviets, lançada em abril, retirada em julho e lançada novamente depois é um exemplo cabal da capacidade de Lenin para responder com as mudanças táticas necessárias às viradas da vida real. Da mesma maneira, a tática do desenvolvimento pacífico do processo revolucionário e seu rápido abandono em razão da sublevação de Kornilov em julho para se lançar, finalmente, em outubro à insurreição, mostra a flexibilidade e maestria táticas de Lenin. Às mudanças que se produzem na vida real, Lenin responde sobretudo com mudanças táticas que desconcertam a bolcheviques acomodados. Mas, como ele diz: “Em tempos de revolução, a situação objetiva muda tão rápida e bruscamente quanto a vida em geral. E nós devemos saber adaptar nossa tática e nossas tarefas imediatas às particularidades de cada situação dada”.34

Assim, portanto, as próprias mudanças na vida real constituem a fonte da estratégia e das táticas, uma vez entendido que — como vimos anteriormente — podem se dar variações táticas bruscas e imprevistas no seio de uma mesma estratégia. Daí a necessidade de saber unir e distinguir a estratégia e a tática. E Lenin leva muito em conta essa necessidade. A tática existe para realizar a estratégia, mas não se deduz mecanicamente dela, e sim das exigências da luta, de suas mudanças bruscas e imprevisíveis. Por sua vez, uma tática não se sustenta por si mesma, mas remete forçosamente a uma estratégia já que, definitivamente, existe por e para ela.

Traçar uma estratégia correta para todo um período histórico, mais ou menos longo, é uma necessidade política vital; mas encontrar, em cada momento, a tática adequada é também uma necessidade imperiosa. Lenin soube satisfazer ambas as necessidades, sobretudo em um processo revolucionário no curso do qual a mesma estratégia tinha de admitir as mudanças de tática mais bruscas e inesperadas. E isso, naturalmente, por exigências da própria realidade. Não levá-las em conta teria significado sacrificar o concreto, o real, a uma consigna morta, abstrata. E, como diz Lenin: “A substituição do concreto pelo abstrato é um dos pecados capitais, um dos pecados mais perigosos que se podem cometer em uma revolução”.

Lenin chega, inclusive, a datar os momentos em que se estabelece e se perde a justeza de uma tática em função das mudanças operadas em cada situação objetiva. Assim sucede com a tática do desenvolvimento pacífico da resolução, tática correta — diz Lenin — do 27 de fevereiro ao 4 de julho de 1917, mas incorreta depois, pois sua validez termina no momento em que o poder fica nas mãos da burguesia contrarrevolucionária. A estratégia se mantém — passagem do poder aos soviets — mas a tática (luta violenta pelo poder que terá de culminar na insurreição armada) muda, porque, depois de julho, mudou a vida real.

A grande lição da prática política leniniana é sua acertada conjunção da estratégia e da tática ao basear tanto uma como a outra no próprio movimento da realidade. (...)

Desse modo, Lenin, nas condições específicas russas, não pode apoiar-se na teoria existente e tem de elaborar uma nova teoria da resolução na qual fique claramente especificada, junto ao seu caráter, a natureza de suas forças motrizes (da classe hegemônica e seus aliados). Apenas uma teoria semelhante que capte o específico da situação russa pode servir à prática revolucionária ao fundar objetivamente a estratégia e a tática adequadas. Semelhante teoria é a que encontramos em seu famoso livro Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática (1905).

Enquanto os marxistas russos, como Plekhanov, se aferram à teoria clássica não só no que se refere ao caráter da revolução e de suas forças motrizes, Lenin elabora uma nova teoria que constitui um verdadeiro escândalo para os marxistas “ortodoxos”, os mencheviques: revolução burguesa sob a direção da classe operária em aliança com os camponeses; ditadura democrática dos operários e camponeses contra os latifundiários feudais sem (ou também contra) a burguesia.

Essa teoria surge da análise leniniana da realidade social russa, mas, sobretudo, da reflexão sobre a própria experiência revolucionária. “A revolução ensina, sem dúvida, com uma tal rapidez e profundidade, que parecem inacreditáveis nos períodos pacíficos de desenvolvimento político.”36 Nascida, pois, da prática, de suas exigências, da necessidade de impulsioná-la em condições históricas específicas, ela será também a que confirma sua validez. “A revolução confirmará na prática o programa e a tática da socialdemocracia, mostrando a verdadeira natureza das distintas classes sociais, o caráter burguês de nossa democracia.”37 A elaboração da teoria adequada cumpre aqui a função prática de elevar o caráter racional, fundado, da prática revolucionária das massas populares e da classe — o proletariado — que assume nela o papel dirigente. Só assim a prática pode avançar, mas por sua vez, só assim também — na estreita unidade com ela — a teoria pode servir à revolução.

Em Lenin encontramos constantemente a prioridade da prática; daí sua negativa a aferrar-se às “teorias de ontem” e seu empenho em ajustar a teoria aos movimentos reais, sem duvidar em introduzir as retificações necessárias já que “o fenômeno é mais rico do que a lei”;38 a vida é mais rica do que os esquemas; e a prática mais rica do que qualquer teoria. Sobre a base desse reconhecimento da prioridade da prática, Lenin se esforça para manter na luta real, como dirigente político revolucionário, a unidade da teoria e da prática.”

34 V. I. Lenin, “Cartas desde lejo”, em Obras completas, op. cit., t. 23, p. 330.

36 V. I. Lenin, “Dos tácticas de la social-democracia...”, em Obras completas, t. 9, p. 13.

37 Ibid.

38 V. I. Lenin, “Cuadernos filosóficos”, em Obras completas, op. cit., t. 38, p. 146.

 

 

RECAPITULAÇÃO: LENIN TEÓRICO DA PRÁXIS

Se a práxis é atividade subjetiva e objetiva, conhecimento teórico e prática, superação da unilateralidade da subjetividade e da objetividade, podemos compreender a importância que Lenin concede à teoria, importância que se explicita em sua própria atividade teórica e prática, política. A teoria não é exterior à prática, ao mesmo tempo em que esta última forma parte da produção teórica.

Desde que Lenin iniciou suas atividades revolucionárias, teve consciência de que as posições práticas na luta real envolvem posições teóricas. Ali, onde a prática política se estanca, deforma ou desvia, é preciso ver também — pois “a subjetividade está nos próprios atos” — um estancamento, deformação ou desvio teórico. Já vimos, certamente, em uma de suas primeiras obras como Quem São os “amigos do povo” (1894) o conteúdo prático de sua atividade teórica: acabar com as ilusões, apoiar-se no desenvolvimento efetivo e não no desejável; ou também: “mostrar a saída dessa ordem de coisas que é indicada pelo desenvolvimento econômico”.90

A teoria se torna prática; permite despertar consciências, agitar etc., mas na condição de que responda, diz também Lenin: a) às demandas do proletariado; e b) a exigências científicas, ou seja, para Lenin, a função prática da teoria (sua condição de resposta a exigências práticas, do proletariado) está vinculada ao seu caráter científico, vinculação que é própria do marxismo ou da teoria e da prática política inspirada por ele.

A união de ambos os aspectos é, para Lenin, o distintivo da teoria de Marx já que “por sua própria essência, é uma teoria crítica e revolucionária”, e esclarece imediatamente que a crítica significa aí crítica materialista, científica. “Essa teoria coloca diretamente para si como tarefa desvendar todas as formas do antagonismo, e da exploração da sociedade moderna, seguir sua evolução, demonstrar seu caráter transitório, o inevitável de sua conversão em outra forma e servir, assim, o proletariado para que este termine o quanto antes possível, e com a maior facilidade possível, com toda exploração.”91

A teoria marxiana é científica e, justamente por sê-lo, serve ao proletariado. Esse serviço não é casual, já que a teoria existe em função de uma prática — a do proletariado — e como parte dela. Assim, portanto, na própria teoria encontram-se, indissoluvelmente unidos, o caráter científico e a natureza prática, revolucionária. Por isso, Lenin acrescenta que o marxismo “une um rígido e supremo cientificismo, sendo como é a última palavra da ciência social e do revolucionarismo, e os une não casualmente ... e sim na própria teoria, com laços eternos e indissolúveis.”92

Temos, pois, que a função prática da teoria baseia-se em ajudar o proletariado em sua luta e, portanto, em seu encontrar-se nos próprios atos (racionalidade prática), mas só o pode ajudar (tornar-se presente nesses atos) como teoria científica. Eis aqui porque Lenin fala de “laços internos e indissolúveis” entre seu cientificismo e seu revolucionarismo; o cientificismo torna-se necessário para poder formular normas, programas ou consignas fundamentados, não utópicos, sem que por isso a ciência tenha de se desnaturalizar. Ao contrário, a “verdadeira consigna de luta” da ciência é, segundo Lenin, “saber apresentar objetivamente essa luta como produto de um determinado sistema de relações de produção, saber compreender a necessidade dessa luta, seu conteúdo, o curso e as condições de seu desenvolvimento.”93

Há um objetivo geral no marco do qual se inscreve para Lenin o conhecimento e a programação política, a saber: a “destruição completa e definitiva de toda exploração”. E isso, qualquer que seja o nível da abstração ou o grau de imediaticidade ou de urgência do programa político.

Para Lenin, a teoria como conhecimento científico da realidade histórico-social, que se deseja transformar de acordo com fins revolucionários, de classe, é, pois, não só reflexão sobre a práxis, mas, acima de tudo, teoria da práxis, teoria que surge da prática, a ela serve e, ao mesmo tempo, está na própria prática como parte necessária e indissolúvel.”

88 Ibid., p. 354.

89 Ibid.,p. 173-174.

90 V. L Lenin, “¿Quienes son los ‘amigos del pueblo?, em Obras completas, op. cit., t. 1, p. p. 314.

91 Ibid., p. 347.

92 Ibid.

93 Ibid., p. 348.

 

 

“Toda práxis é atividade mas nem toda atividade é práxis.”

 

 

“A atividade propriamente humana apenas se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real. Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente por um estado anterior que se sacrificou efetivamente — determinação do passado pelo presente —, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real, ou seja, a determinação não do passado, mas, sim, do futuro.”

 

 

“Assim, a atividade da consciência, que é inseparável de toda verdadeira atividade humana, apresenta-se a nós como elaboração de fins e produção de conhecimentos em íntima unidade. Se o homem aceitasse sempre o mundo como ele é, e se, por outro lado, aceitasse sempre a si próprio em seu estado atual, não sentiria a necessidade de transformar o mundo nem de, por sua vez, transformar-se. O homem age conhecendo, da mesma maneira que — como veremos mais adiante — se conhece, agindo. O conhecimento humano em seu conjunto integra-se na dupla e infinita tarefa do homem de transformar a natureza exterior, e sua própria natureza. Mas o conhecimento não serve diretamente a essa atividade prática, transformadora; coloca-se em relação com ela por meio dos fins. A relação entre o pensamento e a ação requer a mediação dos fins que o homem propõe. Entretanto, se os fins não são limitados a simples desejos ou sonhos, e são acompanhados de uma vontade de realização, essa realização — ou conformação de uma dada matéria para produzir determinado resultado — requer um conhecimento de seu objeto, dos meios e instrumentos para transformá-lo e das condições que abrem ou fecham as possibilidades dessa realização. Em consequência, as atividades cognoscitiva e teleológica da consciência se encontram em uma unidade indissolúvel.”

 

 

“Mas não é só a consciência simples que estabelece uma oposição radical entre teoria e prática. A história do pensamento filosófico mostra também um modo de conceber as relações entre teoria e prática sob uma forma que não passa do ponto de vista do senso comum, depurado de seu aspecto rudimentar, e elevado no nível de doutrina filosófica; tal é o ponto de vista do pragmatismo. Seu praticismo manifesta-se, sobretudo, em sua concepção da verdade; do fato de nosso conhecimento estar vinculado a necessidades práticas, o pragmatismo deduz que o verdadeiro se reduz ao útil, com o que solapa a essência do conhecimento como reprodução na consciência cognoscitiva de uma realidade, ainda que só possamos conhecer essa realidade — reproduzi-la idealmente — em nosso trato teórico e prático com ela. É preciso advertir, no entanto, que, fiel ao ponto de vista do senso comum, do “homem da rua”, o pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o qual acaba por dissolver o teórico no útil.

Alguns adversários do marxismo costumam imputar-lhe a concepção pragmática da verdade. Desse modo, ainda que não faltassem marxistas que tenham concebido de um modo pragmático as relações entre teoria e a prática — ou seja, a teoria como justificação e não propriamente como esclarecimento e guia de uma práxis que, por sua vez, a fundamenta e enriquece —, o marxismo só pode ser assimilado ao pragmatismo com base em uma prévia tergiversação de sua verdadeira concepção da verdade, do critério desta e da natureza da própria práxis. Quanto à essência da verdade, já mostramos anteriormente que o pragmatismo identifica o verdadeiro com o útil. Essa tese da utilidade poderia confundir algumas pessoas se se levar em conta que o marxismo não vê no conhecimento um fim em si, mas, sim, uma atividade do homem vinculada às suas necessidades práticas às quais serve de forma mais ou menos direta, e em relação com as quais se desenvolve incessantemente. Esse caráter prático-social poderia levar-nos a reconhecer a utilidade do conhecimento humano, em geral, e das ciências naturais e exatas em particular. Mas é isso o que o pragmatismo pensa? “Verdadeiro” — diz W. James — “é o que para nós seria melhor crer”. A verdade aqui é posta em relação com nossas crenças e, além disso, com as crenças que nos são mais vantajosas. A verdade fica subordinada, portanto, aos nossos interesses, ao interesse de cada um de nós. Em consequência, não se manifesta na concordância com uma realidade que nosso conhecimento reproduz, mas corresponde aos nossos interesses, àquilo em que seria — para nós — melhor, mais vantajoso ou mais útil acreditar.3

É evidente que quando o marxismo fala da utilidade ou função prático-social da ciência, coloca-se em um plano muito diferente, pois não se trata da utilidade nesse sentido estritamente egoísta, mas, sim, da utilidade social. O conhecimento verdadeiro é útil na medida em que, com base nele, o homem pode transformar a realidade. O verdadeiro implica uma reprodução espiritual da realidade, reprodução que não é um reflexo inerte, mas, sim, um processo ativo que Marx definiu como ascensão do abstrato ao concreto em e pelo pensamento, e em estreita vinculação com a prática social. O conhecimento é útil na medida em que é verdadeiro, e não é verdadeiro porque é útil, como sustenta o pragmatismo. Enquanto para o marxismo a utilidade é consequência da verdade, e não seu fundamento ou essência, para o pragmatismo a verdade fica subordinada à utilidade, entendida como eficácia ou êxito da ação do homem, concebida essa última, por sua vez, como ação subjetiva, individual, e não como atividade material, objetiva, transformadora.

A diferença entre o marxismo e o pragmatismo no que diz respeito ao modo de conceber a verdade determina, por sua vez, seus diferentes critérios de verdade. Enquanto o primeiro procura provar o verdadeiro como reprodução espiritual da realidade, o segundo deseja provar o verdadeiro como aquilo que é útil. Onde encontrar o critério da verdade? Há uma aparente coincidência quando um e outro respondem: na prática. Mas essa aparência desaparece de imediato se levarmos em conta que o pragmatismo e o marxismo dão um significado muito diferente à prática: em um caso, ação subjetiva do indivíduo destinada a satisfazer seus interesses; em outro, ação material, objetiva, transformadora, que corresponde a interesses sociais e que, considerada do ponto de vista histórico-social, não é só produção de uma realidade material, mas sim, criação e desenvolvimento incessantes da realidade humana.

O critério de verdade para o pragmatismo é, portanto, o êxito, a eficácia da ação prática do homem entendida como prática individual. Para o marxismo é a prática, mas concebida como atividade material, transformadora e social. Enquanto para o pragmatista o êxito revela a verdade, isto é, a correspondência de um pensamento com meus interesses, para o marxista a prática social revela a verdade ou falsidade, isto é, a correspondência ou não de um pensamento com a realidade. Vemos, portanto, que nem na concepção da verdade, nem no que se refere ao critério e, sobretudo, ao modo de conceber a prática podem identificar marxismo e pragmatismo, já que não só não coincidem, como até se encontram em posições diametralmente opostas. Por conseguinte, a contraposição de teoria e prática se manifesta aqui — como no mundo da consciência simples —, por uma redução do prático ao utilitário e, consumada essa, pela dissolução do teórico (do verdadeiro) no útil.”

3 Cf. a concepção pragmatista da verdade que William James postula em seus trabalhos: Philosophical conceptions and practical results (Concepções filosóficas e resultados práticos], 1898; Pragmatism. A new name for some old ways of thinking [Pragmatismo. Novo nome para velhos modos de pensar), 1909 e The meaning of truth [O significado da verdade], 1909.

 

 

“Com base na experiência revolucionária e na análise concreta das situações concretas (os dois aspectos fundamentais da teoria revolucionária que já encontramos em Marx), Lenin traz para sua teoria uma série de teses fundamentais: a ideia da hegemonia do proletariado na revolução democrático-burguesa e, do mesmo modo, na revolução socialista; a tese da necessidade da ditadura do proletariado e da diversidade de caminhos — com predomínio do violento — para chegar a ela; os conceitos fundamentais de “situação revolucionária”, “crise revolucionária” e “unidade dos fatores (ou condições) objetivos e subjetivos da revolução”; a tese da aliança do proletariado e dos camponeses na revolução socialista etc.

Lenin ateve-se rigorosamente não à letra das teses de Marx, mas, sim, a seu espírito e, sobretudo, aplicou seu método de investigação das condições concretas que exigem e tornam possível a práxis revolucionária, ao mesmo tempo em que analisa essa práxis. Do mesmo modo que Marx, não busca o desenvolvimento da teoria em um puro lógico e interno da mesma, mas, sim, com base — e em função — da prática. A teoria revolucionária não se desenvolve em prol da própria Teoria, e sim em nome da práxis; é uma teoria fundada na Prática que tende, por sua vez, a resolver — justamente por seu caráter rigoroso, científico, objetivo — as contradições que se apresentam real e efetivamente.

Esse método que Marx e Lenin propuseram e aplicaram é o único que pode assegurar hoje a unidade entre teoria e prática nas questões de ordem teórica e prática que, no movimento comunista mundial marxista, dão lugar às mais graves divergências.

Nenhum desses problemas poderá ser resolvido com simples referências às teses de Marx ou de Lenin; suas teses não valem por si mesmas, a não ser quando respondem a situações concretas de amplitude histórica maior ou menor e são confirmadas pela prática. E deixam de valer, portanto, ou exigem ser completadas ou enriquecidas, quando a experiência atual ultrapassa o marco da experiência histórica que as determinaram. O que continua sendo válido, sobretudo, é o método aplicado por Marx e Lenin: análise concreta das situações concretas e análises e balanço da atividade prática correspondente. Só assim se pode salvaguardar o princípio que todos os marxistas reconhecem e que nem sempre aplicam consequentemente, da unidade entre a teoria e a prática.

As mudanças profundas contemporâneas, de significado histórico-universal, impõem exigências teóricas cada vez mais elevadas ao marxismo; isto é, reclamam a elevação de seu caráter científico e de sua função ideológica, e isso só pode ser alcançado em íntima relação com a prática social e, particularmente, com o movimento operário e a luta dos povos por sua emancipação nacional. A atividade teórica dos marxistas só pode ser fecunda se não perde seus nexos com a realidade que deve ser objeto de interpretação e transformação, e com a própria atividade prática que é sua fonte inesgotável.

A prática como fim da teoria.”

 

 

“Depois da Revolução de Outubro, Lenin voltou várias vezes a se referir aos perigos do burocratismo. Esteve atento às suas manifestações e nunca tentou diminuir sua importância. Por isso, no Projeto de Programa do Partido que redige em fevereiro de 1919, diz: “A continuação da luta contra o burocratismo é uma condição necessária e vital para o êxito da edificação socialista” (Obras completas, 5. ed. russa. T. 38. p. 93). Quase um ano e meio depois. propõe certa autonomia das organizações sindicais, assim como certas medidas para controlar, de baixo, a burocracia, já que esta tende a evitar qualquer controle e a impedir a democracia. Para Lenin, o princípio da democratização da vida social era capital para combater as deformações burocráticas do Estado, para as quais, por outro lado, existiam certas condições objetivas no período de transição ao socialismo. Na luta contra o burocratismo, Lenin atribuía um grande papel à incorporação das massas populares na direção do Estado e, de acordo com isso, nos primeiros anos do regime soviético propôs uma série de medidas destinadas a assegurar essa participação, junto com o controle do aparato estatal “de baixo”. Lenin via nesse controle popular o método fundamental para extirpar a burocratização dos órgãos do governo. Depois de sua morte, voltaram a ganhar força os diferentes escalões dos aparelhos estatal, econômico e do Partido.”

 

 

“Com respeito à atividade revolucionária do proletariado, o marxismo surge como a consciência mais alta de sua práxis na medida em que lhe permite compreender sua necessidade, alcance e limites. Em uma determinada situação histórico-social que implica a existência de certas contradições agudas entre as forças produtivas e as relações de produção, ao mesmo tempo em que a existência de um proletariado já constituído definitivamente como classe, o marxismo surge como interpretação dessa situação e como instrumento teórico de sua transformação radical. Como filosofia do proletariado, apresenta-se não só como solução teórica de problemas meramente teóricos, mas também como instrumento teórico para resolver praticamente problemas reais. Mas essa solução real que implica unidade da filosofia e da revolução, da teoria e da prática, só é real — e não meramente teórica — na medida em que o proletariado consegue torná-la sua, e passa para a ação. O marxismo oferece, assim, ao proletariado a possibilidade — indispensável para passar à ação — de elevar-se até a consciência de sua missão histórico-universal e da necessidade de negar-se a si mesmo como classe — o que representa a abolição de todas as classes — para alcançar sua emancipação.”

 

 

“Por consciência de classe entende-se, afirma Lenin, a consciência da oposição inconciliável entre os interesses da classe trabalhadora e do regime político e social existente.”

 

 

“Na medida em que a atividade do sujeito é uma atividade prática, o determinante nela é seu produto, isto é, o que fica objetivado ou materializado como fruto dessa atividade. Em suma, o que interessa em uma atividade prática, que só pode ser considerada como tal na medida em que o sujeito se objetiva, é o resultado da ação. Se existe certa inadequação entre o ponto de partida (intenção originária) e o ponto de chegada (produto) e, como vimos anteriormente, não pode deixar de existir, sobretudo em uma práxis criadora — o que conta, acima de tudo, não é o produto original ou o nível de realização em que esse se encontra, ou se encontrava, no decorrer do processo prático, mas, sim, seu resultado. Ao afirmar isso, não queremos dizer que o subjetivo não conte, ou que possamos considerar o produto como objeto em si e não como atividade objetivada de um sujeito. Em contraposição ao que uma concepção condutivista ou objetivista da práxis poderia sustentar, o subjetivo importa, mas apenas em unidade indissolúvel com o objetivo, ou seja, como intenção tornada objeto, já realizada. Na esfera da práxis, as intenções não plasmadas — por melhores que sejam — não contam. Contam, em compensação, o produto realizado pelo trabalhador e não o produto ideal que surgiu previamente em sua consciência; a obra de arte realizada e não o esboço que serviu de ponto de partida para sua criação; a revolução realizada, cumprida, e não as imagens revolucionárias que não puderam ser plasmadas, seja porque em razão de seu próprio utopismo estavam condenadas a nunca se realizar, seja porque as vicissitudes do processo prático obrigaram a modificá-las ou abandoná-las etc.”

 

 

“Marx e Engels enfatizaram, desde A ideologia alemã, que essa mudança ou deslocamento de uma formação social por outra, mesmo que cega, espontânea — ou seja, não intencional — não é arbitrária nem caótica. Opera-se, em primeiro lugar, com base em condições que foram se gestando na formação social anterior, e para cuja gênese contribuem sem saber — como no caso do servo da gleba que foge da terra de seu senhor em busca de liberdade e de melhores condições de vida para trabalhar em uma oficina da cidade ou em uma manufatura — os membros da formação social anterior ao buscar a realização de seus próprios fins. O marxismo demonstrou, da mesma maneira, que o que determina a passagem de um sistema social a outro é a contradição que irrompe, dentro do modo de produção, entre as forças produtivas e as relações de produção, contradição que surge após a acumulação de uma série de mudanças no marco do sistema, ao não mais corresponderem as relações de produção — e, particularmente, a forma de propriedade sobre os meios de produção — ao incremento das forças produtivas. Só a partir dessa contradição, que à medida que se aguça exige mais imperiosamente ser resolvida, é que se apresenta objetivamente a necessidade histórica de passar a uma nova formação social, na qual as relações de produção correspondam ao incremento ulterior das forças produtivas. A contradição, por sua vez, só pode ser resolvida com base na destruição das relações de produção e da criação de outras novas, o que também implica as correspondentes mudanças radicais na superestrutura política (passagem do poder da classe a uma nova classe social). A história humana aparece, assim, como uma história contínua e descontínua ao mesmo tempo. As condições criadas pela práxis de gerações anteriores servem de base à nova práxis produtiva e social. Desse modo, assegura-se a continuidade histórica. A solução da contradição através da ruptura com a formação social anterior introduz a descontinuidade no processo histórico e, com isso, o aparecimento de uma nova estrutura econômico-social.”

 

 

“Em sua carta a P. V. Annenkov, Marx delimita com precisão o caráter humano de toda relação e transformação social. “O que é a sociedade, qualquer que seja sua forma? O produto da ação recíproca dos homens.”6 Os homens são os sujeitos de toda atividade, tanto econômica e social como ideal. “Os homens que produzem as relações sociais” — diz também Marx — “segundo sua produção material, criam também as ideias, as categorias, isto é, as expressões ideais, abstratas dessas mesmas relações.”7 Só os homens podem destruir o que eles criaram para dar lugar a uma nova criação. Só eles fazem sua própria história embora, como Marx adverte, em condições determinadas. Desde suas obras de juventude, Marx estabelece a unidade indissolúvel entre o homem e sua história; nem existe o homem à margem de sua história, isto é, da história de sua própria práxis, nem existe a história como uma potência à parte ou sujeito supra-humano. A história só existe como história feita pelos homens, e esses só existem produzindo uma realidade com sua práxis produtiva e produzindo-se a si mesmos em um processo que não tem fim, isto é, os homens transformam e se transformam a si mesmos e essa história de suas transformações é propriamente sua verdadeira história.”

6 Carta de Marx a P. V. Annenkov, 28 de dezembro de 1846, em Obras escogidas, em dois tomos, op. cit., t. II, p. 415.

7 Ibid., p. 419.

 

 

“Mas, ao se afirmar que os homens fazem sua própria história, que são, portanto, os seus únicos sujeitos e que não poderia existir história sem eles, não será preciso concretizar esse conceito de “homens” ou de “relações humanas” (entre os homens) para não cair em uma nova abstração? O que são esses homens que fazem sua própria história? Ou, em outros termos, que tipo de relação contraem para que possam desenvolver essa práxis coletiva cuja história constitui o conteúdo do que entendemos propriamente por história humana?

Os homens, em primeiro lugar, não são indivíduos abstraídos das relações sociais. Desde 1845 Marx já insistia nisso. Os indivíduos não têm uma essência que permaneça dentro ou fora dessas relações. Não são átomos sociais que permitam compor ou descompor o todo social. Com essa concepção atomista e robinsoniana tradicional não se pode encontrar a chave da explicação da sociedade e da história. (...)

O social não é um produto dos indivíduos; ao contrário, os indivíduos é que são um produto social. A individualidade — do ponto de vista histórico-social — não é ponto de partida; é algo que o homem conquistou — e enriqueceu — em um processo histórico-social. A individualidade e as formas de relacionamento entre os indivíduos estão condicionadas histórica e socialmente. O modo como produzem ou se inserem no processo de produção, sua vinculação com os órgãos de poder, sua maneira de amar e de enfrentar a morte, seus gostos e preferências, estão condicionados socialmente. No indivíduo se entrelaça toda uma série de relações sociais, isso é o que Marx quis enfatizar ao falar de sua socialidade, ou qualidade social. Essa qualidade social não determina completamente o comportamento do indivíduo, mas, sim, certas formas fundamentais deste, assim como seus limites. Mas, com isso, longe de se eliminar a individualidade, essa adquire uma fisionomia própria. Desse modo, as relações sociais que se entrelaçam no indivíduo e as condições que criam as formas fundamentais de seu comportamento não existem como algo supraindividual, pois se não podemos abstraí-lo da sociedade, tampouco podemos abstrair a sociedade — e, portanto, as relações sociais — dos indivíduos. Já na citada carta de Marx a Annenkov é dito que

a história social dos homens nada mais é do que a história de seu desenvolvimento individual, tenham eles mesmos a consciência disso ou não. Suas relações materiais formam a base de todas as suas relações. Essas relações materiais nada mais são do que as formas necessárias sob as quais se realiza sua atividade material e individual.12

O conceito de homem perde, assim, todo sabor especulativo, toda generalidade vazia, se por ele se entende — como Marx claramente estabelece — essa dupla e íntima relação do social e do individual. A sociedade não existe à margem dos indivíduos concretos, mas tampouco esses existem à margem da sociedade e, portanto, de suas relações sociais. Aqueles que agem prática, real ou materialmente são os indivíduos concretos e as relações sociais não passam das formas necessárias sob as quais se desenvolve sua atividade. Por se desenvolverem sob essas formas, as práxis individuais se integram em uma práxis comum cujos resultados transcendem os fins e resultados da ação individual. Justamente partindo de relações sociais dadas — e não do indivíduo abstrato ou do homem em geral — podemos compreender os homens — isto é, indivíduos concretos — membros de uma formação social dada, como sujeitos da práxis histórica. Os homens, assim entendidos, não como indivíduos atomizados nem como meros suportes de relações sociais ou simples efeitos de uma estrutura social13 são os que fazem sua própria história. Por ser o indivíduo um ser social, as relações entre os homens não se reduzem a relações humanas intersubjetivas. As relações de produção são certamente relações objetivas, sociais, entre os homens, independentemente de como eles as vivam ou conheçam. Mas os homens não contraem essas relações como puros suportes ou efeitos, mas, sim, como indivíduos concretos, dotados de consciência e vontade, ainda que um tipo peculiar de relações sociais — como as relações capitalistas de produção — tenda a fazer deles meros suportes ou efeitos, e fazer das relações humanas simples relações entre coisas.”

12 Carta de Marx a P. V. Annenkov, em C. Marx e F. Engels, Obras escogidas, op. cit., t. 11. p. 415-416.

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