Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
“As linhas finais do primeiro item do
primeiro capítulo do Livro I d’O capital enunciam: “nenhuma coisa pode
ser valor sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também o é o trabalho nela
contido, não conta como trabalho e não cria, por isso, nenhum valor”1.
Com essa afirmação incisiva, Marx introduz a ideia de que a circulação de
capital é vulnerável, pode sofrer uma interrupção abrupta; e de que, nessa
circulação, há sempre a ameaça da desvalorização, de perda de valor. Ademais, o
valor dos meios de produção incorporado na mercadoria também se perde com a
parte do valor acrescida pelo trabalho. A transição da forma-mercadoria para a
representação monetária do valor é uma passagem cheia de perigos.
Ao longo do Livro I, como vimos, Marx deixa
de lado questões de realização para se concentrar no processo de produção de
mercadorias materiais e mais-valor. Ele sabe muito bem, é claro, que a “circulação
de capital é realizadora de valor, assim como o trabalho vivo é criador
de valor”2. A
unidade que necessariamente prevalece entre a produção e a realização é,
entretanto, uma “unidade contraditória”. Daí a advertência logo no início do
Livro I: “a mercadoria ama o dinheiro, mas ‘the course of true love never
does run smooth’ [em
tempo algum teve um tranquilo curso o verdadeiro amor]*”3.
Seria de fato estranho que alguém como Marx
formulasse um conceito-chave como o valor sem incorporar em seu interior a
possibilidade de sua negação. Certas leituras de Marx dão muito peso a
influência da “negação da negação” hegeliana em seu pensamento. Ele certamente
não era contra “flertar” (como ele mesmo disse) com as formulações hegelianas.
A mente burguesa da época, assim como hoje, considerava a dialética um
“escândalo”, um “horror”, porque a dialética “inclui, ao mesmo tempo, a
intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende
toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado
transitório”4.
O valor em Marx existe apenas em relação ao
antivalor. Embora essa formulação possa soar estranha, vale lembrar que os
físicos de hoje se respaldam na relação entre matéria e antimatéria para
interpretar processos físicos fundamentais. Marx cita com frequência paralelos
entre seus esquemas teóricos e aqueles encontrados nas ciências naturais. Se
essa analogia estivesse disponível na época, ele provavelmente se teria valido
dela. As leis evolutivas do capital repousam sobre o desdobramento da relação
entre valor e antivalor de maneira semelhante à forma como as leis da física
repousam sobre as relações entre matéria e antimatéria. Essa oposição existe
até mesmo no ato de troca, na medida em que uma mercadoria precisa ser valor de
uso para o comprador e um não valor de uso para o vendedor. Ou, como Marx
afirma mais filosoficamente nos Grundrisse: “Como constitui a base do
capital e, portanto, necessariamente só existe por meio da troca por equivalente,
o valor repele necessariamente a si mesmo [...]. A repulsão recíproca dos
capitais já está contida no capital como valor de troca realizado”5.
Não há nada místico nem obscuro na negação do
valor no momento da realização. Todos os capitalistas sabem que o sucesso de
sua empreitada só está garantido quando a mercadoria foi vendida por um valor
monetário mais elevado do que aquele gasto com salários e meios de produção. Se
não conseguirem isso, deixam de ser capitalistas. O valor que imaginavam ter
após colocar trabalhadores assalariados para fabricar uma mercadoria não se
materializaria. Mas o conceito de antivalor tem um papel mais onipresente do
que esse. No mundo de Marx, o antivalor não é um acidente infeliz, o resultado
de um erro de cálculo, e sim uma caraterística intrínseca e profunda da própria
natureza do capital: “se por meio do processo de produção o capital é
reproduzido como valor e valor novo, ele é ao mesmo tempo posto como não
valor, como algo que primeiro tem de ser valorizado pela troca”6. Tanto a
perspectiva quanto a realidade do antivalor estão sempre lá. O antivalor
precisa ser superado — resgatado, por assim dizer — para que a produção de
valor sobreviva às fainas da circulação.
O capital é valor em movimento, e uma pausa
ou redução na velocidade desse movimento, por qualquer razão que seja,
significa uma perda de valor, que pode ser ressuscitada em parte ou in toto somente
quando o movimento do capital é retomado. Quando o capital assume uma “figura
particular” — como um processo de produção, um produto à espera de ser vendido,
uma mercadoria circulando nas mãos de capitalistas comerciais ou dinheiro à
espera de ser transferido ou reinvestido —, o capital é “potencialmente
desvalorizado”. Capital “em repouso” em qualquer um desses estados é denominado
de várias maneiras: “negado”, “em pousio”, “dormente” ou “fixado”. Ou:
“Enquanto permanece fixado em sua figura de produto acabado, o capital não pode
amar como capital, é capital negado”. Essa “desvalorização potencial” é
superada ou “suspensa” tão logo o capital retoma seu movimento. Fica claro a
partir dessa colagem de afirmações de Marx que ele não considerava o antivalor
uma ameaça externa “pairando” sobre o valor em movimento, mas sim uma força
permanentemente disruptiva nas próprias entranhas da circulação do capital7.
A vantagem de conceber a desvalorização como
um momento necessário do processo de valorização é nos permitir enxergar
imediatamente a possibilidade de uma desvalorização geral do capital — uma
crise. Qualquer falha na manutenção da velocidade de circulação do capital nas
diversas fases de produção, realização e distribuição produzirá dificuldades e
transtornos. Somos obrigados a reconhecer a importância da continuidade e da
velocidade constante. Qualquer desaceleração do valor em movimento acarreta uma
perda de valor. Inversamente, acelerar o tempo de rotação do capital é um
elemento fundamental para alavancar a produção de valor. Essa é uma das
principais conclusões implícitas no Livro II d’O capital. São esses
elementos, no entanto, que o pressuposto do Livro I, de que tudo é trocado por
seu valor, evita. Há crise se os estoques se amontoam, se o dinheiro permanece
ocioso por mais tempo do que o estritamente necessário, se mais estoques
ficarem muito tempo parados durante a produção, e assim por diante. A “crise
ocorre não apenas porque uma mercadoria é invendável, mas porque ela não é
vendável em determinado intervalo de tempo”8. Esse mesmo princípio
se aplica com igual força ao tempo de trabalho despendido na produção: se as
fábricas coreanas conseguem produzir um carro na metade do tempo das fábricas
de Detroit, então o tempo a mais despendido nestas últimas não conta para nada.
Enquanto persiste no processo de produção, [o capital] não é capaz de
circular; e [é] potencialmente desvalorizado. Enquanto persiste na circulação,
não é capaz de produzir [...]. Enquanto não pode ser lançado no mercado,
é fixado como produto; enquanto tem de permanecer no mercado, é fixado como
mercadoria. Enquanto não pode ser trocado pelas condições de produção, é fixado
como dinheiro.9
Os capitalistas estão presos, portanto, em
uma perpétua batalha não apenas para produzir valores mas para combater sua
potencial negação. A passagem da produção a realização é um ponto-chave na
circulação do capital em geral, onde a batalha é magnificamente travada.
Que circunstâncias poderiam impossibilitar a
realização do valor no mercado? Para começar, se ninguém quiser, precisar ou
desejar um valor de uso em particular, oferecido em determinado lugar e
momento, isso significa que o produto não possui valor10. Não é nem
sequer digno de ser chamado de mercadoria. Compradores em potencial também
precisam ter uma quantidade suficiente de dinheiro para pagar pelo valor de uso
em questão. Se uma dessas duas condições não se cumprir, o resultado é valor
nulo. Adiante examinaremos de maneira mais detalhada por que essas duas
condições podem não se cumprir. Mas, de modo geral, a produção e a gestão de
novas vontades, necessidades e desejos é algo que tem um enorme impacto na história
do capitalismo, transformando aquilo que se costuma chamar de natureza humana
em algo necessariamente mutável e maleável, ao invés de constante e dado. O
capital mexe com nossa cabeça e nossos desejos.
Mas há um elemento de grande interesse no
momento da realização. A relação social fundamental envolvida na realização se
dá entre compradores e vendedores. Até mesmo o trabalhador mais humilde entra
no mercado com o sagrado direito de escolha do consumidor11. Isso é
muito diferente da relação capital-trabalho que impera no processo de
valorização. É certo que o encontro entre capital e trabalho no mercado é um
encontro em que as leis da troca mercantil se aplicam formalmente (embora o
capital tenha poder sobre as condições tanto de oferta quanto de demanda da
força de trabalho por meio das transformações tecnológicas e da produção de um
exército industrial de reserva). Mas, no caso da valorização, o que importa é o
que ocorre na esfera oculta da produção — a relação de classe entre capital e
trabalho conforme experimentada no processo de trabalho. Não há nada
equivalente no processo de realização. Neste último, os compradores de
mercadorias (não importa de qual classe) exercem determinado grau de escolha de
consumidor (seja individual, seja coletiva). Embora seja verdade que as
vontades, as necessidades e os desejos dos consumidores são manipulados de
todas as formas, diretas e indiretas, para que se conformem aos padrões do
“consumo racional” definido pelo capital, sempre houve grupos e às vezes
movimentos sociais inteiros que resistiram a tais artimanhas. As escolhas
coletivas podem ser exercidas de várias maneiras, inclusive por meio de
políticas de Estado no que diz respeito a benefícios sociais obtidos por
pressão de movimentos políticos de longa data. Há resistências morais,
políticas, estéticas, religiosas e até filosóficas. Em alguns casos, a
resistência é à própria ideia de mercadorização e restrição de acesso a bens e
serviços básicos (como educação, saúde e água potável) por meio de mecanismos
de mercado. Muitos consideram tais bens direitos humanos básicos, jamais
mercadorias que podem ser compradas e vendidas. O antivalor que surge de panes
e falhas técnicas na circulação do capital se metamorfoseia em antivalor ativo
da resistência política à privatização e à mercadorização.
O antivalor define desse modo um campo ativo
de luta anticapitalista. Boicotes de consumidores, embora raramente
bem-sucedidos, são um sinal desse tipo de ação política, mas todos os
movimentos contra o consumismo conspícuo ou compensatório constituem uma ameaça
política à realização. Os capitalistas precisam se organizar para conter essa
ameaça. Mas a existência de múltiplas lutas e disputas em torno da política de
realização é inegável. Lutas, resistências e agitações organizadas em torno de
questões relativas à vida cotidiana são lugar-comum, independentemente de serem
explicitamente anticapitalistas ou não. Marx não chega a analisar essas
questões. Apenas as assinala de passagem. Mas aqui é evidente a virtude do
quadro geral que ele constrói para representar a circulação do capital. (...)
O valor realizado pode permanecer capital
somente se circular de volta para a produção e for “valorizado” por meio da
aplicação do trabalho na produção. É nesse momento da valorização — quando o
dinheiro retorna para refinanciar o processo de trabalho — que o capital
encontra outra ameaça persistente de negação ativa, na figura do trabalhador
alienado e recalcitrante. A classe trabalhadora (como quer que seja definida) é
a corporificação do antivalor. É com base nessa concepção de trabalho alienado
que Tronti, Negri e os autonomistas italianos constroem sua teoria de luta de
classes e resistência do trabalho no ponto da produção12. A recusa
de trabalhar é o antivalor personificado. Essa luta de classes ocorre na esfera
oculta da produção. Implica uma política um tanto diferente em relação à
política entre compradores e vendedores que impera no momento da realização. Ao
produzir mais-valor, o trabalhador produz capital e reproduz o capitalista. Ao
recusar-se a trabalhar, o trabalhador se recusa a ambas as coisas.
Da mesma maneira que Marx evoca a ideia de
uma unidade contraditória entre a produção e a realização do ponto de vista da
acumulação contínua de capital, há uma necessidade paralela de que os
movimentos anticapitalistas reconheçam a unidade contraditória entre as lutas
em torno da produção e as lutas travadas em torno da realização. Na superfície,
a política da realização tem uma estrutura social e uma forma organizacional
muito diferente daquela da valorização. Por esse motivo, a esquerda as trata
com frequência como duas lutas completamente separadas, dando prioridade as
travadas em torno da valorização. No entanto, essas duas modalidades de luta
são subsumidas no interior da lógica e do dinamismo gerais da circulação do
capital como totalidade. Assim sendo, por que sua unidade contraditória não
deveria ser reconhecida e abordada por movimentos anticapitalistas?
O estudo dessa unidade contraditória revela
muito sobre as contradições que surgirão em qualquer ordem pós-capitalista em
que o trabalho social — o trabalho que fazemos para os outros — seja uma
característica fundamental. Qualquer sociedade anticapitalista terá de surgir
do útero do capitalismo contemporâneo, a partir daquele mundo em que, como diz
Marx, tudo está “prenhe de seu oposto”13. Na medida em que toda
economia se reduz a economia de tempo14:
posteriormente a abolição do modo de produção capitalista, porém
mantendo-se a produção social, continuará a predominar a determinação do valor
no sentido de que a regulação do tempo de serviço e a distribuição do trabalho
social entre os diferentes grupos de produção — e, por último, a contabilidade
relativa a isso — se tornarão mais essenciais do que nunca.15
Isso ocorreria, por exemplo, se trabalhadores
associados, no comando de seus próprios processos de trabalho e meios de
produção, coordenassem suas capacidades com as dos outros, satisfazendo suas
vontades, necessidades e desejos com a ajuda desses outros. Há uma perpétua
disputa nos textos de Marx entre o que o valor e é o que ele pode vir a ser em
um mundo anticapitalista16. O objetivo, parece-me, não é abolir o
valor (embora haja quem prefira colocá-lo desse modo), mas transformar seu
conteúdo e significado. E, nessa disputa, o antivalor é constantemente
invocado. Nesse sentido, o antivalor constitui o solo subterrâneo do qual o
anticapitalismo pode florescer, tanto na teoria quanto na prática.
Embora Marx tenha toda a razão em considerar
a luta contra o capital na esfera oculta da produção uma modalidade diferente
e, portanto, com um significado político mais profundo do que as lutas na
esfera do mercado, fica claro agora que a produção não é o único lugar em que o
antivalor tem importância. O valor é o antivalor se relacionam de diversas
maneiras na circulação do capital. O papel do antivalor nem sempre é de
oposição. Ele também possui um papel-chave na definição e garantia do futuro do
capital. A luta contra o antivalor mantém o capital sempre alerta, por assim
dizer. A necessidade de resgatar o antivalor é uma grande força propulsora em
direção à produção de valor.”
1 Karl Marx, O capital, Livro I, cit.,
p. 119.
2 Idem, Grundrisse, cit., p. 448.
* Referência a fala de Lisandro em William
Shakespeare, “Sonho de uma noite de verão”, em Comédias (tra. Carlos
Alberto Nunes, Rio de Janeiro, Agir, 2008), ato I, cena 1. (N. E.)
3 Idem, O capital, Livro I, cit., p.
181.
4 Ibidem, p. 91; Fred Moseley e Tony Smith
(orgs.), Marx’s Capital and Hegel’s Logic: A Reexamination (Chicago,
Haymarket, 2015).
5 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 345.
6 Ibidem, p. 328.
7 Karl Marx, Grundrisse, cit., p.
518-9, 451, 628, 699. Ver também David Harvey, Os limites do capital (trad.
Magda Lopes, São
Paulo, Boitempo, 2014).
8 Karl Marx, Theories of Surplus Valué, Part 2 (Londres, Lawrence
and Wishart, 1969), p. 514.
9 Idem, Grundrisse, cit., p. 519.
10 Idem, O capital, Livro I, cit.; Grundrisse,
cit.
11 Idem, O capital, Livro II, cit.;
“The Results of the Immediate Process of Production”, em Capital: A Critique
of Political Economy, Volume 1 (Londres, New Left Review, 1976), p. 1.033
[ed. bras.: O capital, Livro I, capítulo VI (inédito), São Paulo,
Livraria Editora Ciências Humanas, 1978], Antivalor: a teoria da desvalorização
/
12 Mario Tronti, “Our Operaismo”, New Left
Review, 73, 2012; Antonio Negri, Marx além de Marx: ciência da crise e
da subversão. Caderno de trabalho sobre os Grundrisse (São Paulo, Autonomia
Literária, 2016).
13 Karl Marx, “The Civil War in France’, em Robert C. Tucker, lh e
Marx-Engels Reader (2. ed., Nova York, Norton, 1978), p. 636.
14 Idem, Grundrisse, cit., p. 119.
15 Idem, O capital, Livro III, cit. p.
914.
16 Ver George Henderson, Value in Marx, cit.
“Tais são as duas características intrínsecas ao sistema de crédito: por
um lado, ele desenvolve a mola propulsora da produção capitalista, o
enriquecimento mediante a exploração do trabalho alheio, até convertê-la no
mais puro e colossal sistema de jogo e fraude e limitar cada vez mais o número
dos poucos indivíduos que exploram a riqueza social; por outro lado, estabelece
a forma de transição para um novo modo de produção. É essa duplicidade que
confere aos principais porta-vozes do crédito [...] o agradável caráter híbrido
de vigaristas e profetas.27
Infelizmente, os “mestres do universo” da atualidade,
como frequentemente são denominados os operadores de Wall Street, têm se saído
muito melhor como vigaristas, ainda que cultivem a arte da falsa profecia para
justificar suas vigarices. E, lamentavelmente, há poucos sinais de que a
evolução do sistema de crédito e o poder nitidamente crescente da circulação do
capital portador de juros de ditar futuros constituam um trampolim para o
aparecimento de um novo modo de produção. De fato, o imaginário que nos resta é
o de uma manada de investidores instavelmente gananciosos, com bolsos
suficientemente fundos para subornar quase qualquer oposição séria, empurrando
goela abaixo do resto do mundo uma dieta indigesta de dinheiro de crédito.
Por que os financistas deveriam celebrar as
irrupções violentas de crises? À primeira vista, isso parece um contrassenso.
Mas, quando se trata da circulação de antivalor, a crise é um momento de
triunfo para as forças do antivalor, ainda que cause desespero em todos os
envolvidos na produção e realização do valor. “Em uma crise”, disse o banqueiro
Andrew Mellon na década de 1920, “os ativos retornam a seus devidos
proprietários”, isto é, a ele28. Normalmente as crises deixam em seu
alvorecer uma massa de ativos desvalorizados que podem ser comprados a preço de
banana por quem tem dinheiro (ou contatos privilegiados) para pagar por eles.
Foi o que aconteceu em 1997-1998 na Ásia oriental e no Sudeste Asiático.
Empresas perfeitamente viáveis foram obrigadas a declarar falência por falta de
liquidez, foram compradas por bancos estrangeiros e vendidas de volta alguns
anos depois com um enorme lucro.
Nas crises, Marx evoca a possibilidade de:
(1) destruição física e degradação dos valores de uso; (2) depreciação
monetária forçada dos valores de troca; e (3) uma desvalorização concomitante
dos valores como única maneira “racional” de superar a irracionalidade da
superacumulação29. Repare na linguagem. Cada uma das formas
envolvidas — valor de uso, valor de troca e valor — é sujeita a uma forma específica de negação, e uma forma
não implica automaticamente a outra. A desvalorização e a depreciação dos
valores de troca não significam necessariamente a destruição física dos valores
de uso. Estes últimos podem se tornar recursos gratuitos para se reavivar a
acumulação capitalista. Essa é uma das maneiras pelas quais o antivalor
funciona para restaurar as condições da produção de valor. Um sistema
metroviário foi à falência (desvalorizando o metrô e depreciando o capital dos
investidores) e deixou para trás o valor de uso dos túneis — que ainda usamos
quando nos deslocamos pelo metrô de Londres. A depreciação dos valores da
moradia na crise de 2007-2008 nos Estados Unidos deixou um imenso estoque de
valores de uso imobiliários que fundos de participações e fundos hedge puderam
adquirir em massa por uma mixaria e aproveitar de maneira rentável. Marx tinha
plena consciência de tais possibilidades. Ele comenta como o capital “faz investimentos
que não são rentáveis e que só dão lucro quando são desvalorizados em
um certo grau”, daí “os inúmeros empreendimentos em que a primeira aplicação
de capital é a fundo perdido, em que os primeiros empresários vão à
falência — e somente se valorizam em segunda ou terceira mão, em que o capital
investido foi reduzido pela desvalorização”30 Da mesma maneira, uma rápida apreciação de
valores de troca (por exemplo, nos mercados fundiário e imobiliário) não
implica necessariamente uma elevação de valor e pode não significar uma
melhoria substancial dos valores de uso.”
27 Ibidem, p. 666, p. 499-50.
28 Robert Wade e Frank Veneroso, “The Asian Crisis: The High Debt Model
versus the Wall Street-Treasury-IMF Complex”, New Left Review, v. 228,
1998, p. 3-232.
29 Karl Marx, Theories of Surplus Valué, Part 2, cit., p. 495-6.
30 Idem, Grundrisse, cit., p. 438-9.
Ver também O capital, Livro III, cit., p. 144.
“O antivalor sinaliza o potencial para o
colapso na continuidade da circulação do capital. Ele prefigura como as
tendências do capital a crise podem assumir formas diferentes e se deslocar de
um momento (por exemplo, produção) para outro (por exemplo, realização)38.
Esse insight é crucial. Infelizmente, ele é muitas vezes ignorado. As
crises, diz Marx (ao contrário do que se costuma pensar), não significam
necessariamente o fim do capitalismo, mas preparam o terreno para a sua
renovação. É aqui que fica mais evidente o papel dialético do antivalor na
reprodução do capital. As crises “são sempre apenas violentas soluções
momentâneas das contradições existentes, erupções violentas que restabelecem
por um momento o equilíbrio perturbado”39.
38 David Harvey, O enigma do capital (trad.
Joao Alexandre Peschanski, São Paulo, Boitempo, 2011), cap. 5.
39 Karl Marx, O capital, Livro III,
cit., p. 289.
“A renda média por hora daqueles que realizam
de fato o trabalho “não ultrapassa dois dólares (por hora), o que é muito
abaixo do salário mínimo nos Estados Unidos”. A forma-preço oculta aqui a
“hiperexploração” no que Bauwens considera um novo regime de valor “neofeudal”
— que é ainda pior do que o capitalismo tradicional. Esse regime “depende cada
vez mais da ‘corveia’ não remunerada e gera uma situação generalizada de
servidão por dívida”. Isso significa um sistema de economia política
fundamentado no trabalho voluntário aplicado à produção colaborativa baseada em
bens comuns [commons-oriented peer production]. O que foi concebido inicialmente como um regime de
produção colaborativa liberatório foi transformado em um regime de
hiperexploração do qual o capital se alimenta livremente. A pilhagem
desenfreada por parte do grande capital dos recursos gratuitos produzidos por
uma força de trabalho autoqualificada e autodidata (como fazem a Amazon e o
Google) tornou-se um traço característico dos nossos tempos. Isso extravasa
para a chamada indústria cultural. O trabalho inventivo e criativo é
implacavelmente mercantilizado e convertido em comércio lucrativo.”
“Com um hiato tão grande e cada vez maior
entre o valor e sua forma monetária de representação, é tentador ver esta última como a essência do capital e redefinir o capital como dinheiro em
movimento, em vez de valor em movimento. Tal redefinição facilita o enfoque em
determinados aspectos característicos da forma atual do capitalismo, como o
agitado mercado especulativo de direitos de propriedade em cultura,
conhecimento e empreendimentos empresariais, bem como nas práticas disseminadas
de especulação em mercados de ativos. Daí a alegação de que estaríamos
adentrando uma nova fase do capitalismo, em que o conhecimento tem
proeminência, e de que uma admirável tecnoutopia assentada nesse conhecimento e
todas as inovações que poupam trabalho (como automação e inteligência
artificial) estariam a nosso alcance ou já teriam chegado, como defende Paul
Mason18. Tal redefinição pode até parecer adequada da perspectiva do
Vale do Silício19, mas cai por terra diante das péssimas condições
das fábricas de Bangladesh e dos altos índices de suicídio entre trabalhadores
na Shenzen industrial e na Índia rural, onde a microfinança lançou sua rede a
fim de socorrer a mãe de todas as crises de empréstimos hipotecários subprime.
As práticas especulativas e oportunistas de obter lucros que têm
caracterizado os mercados de ativos (em particular de habitação, terras e
imóveis) sem dúvida redistribuem valores. Mas não conseguem sustentar um
aumento da produção de valor, salvo por meio da reconversão em capital de ao
menos parte dos ganhos monetários, em busca de valorização, ou por meio de
geração de demanda efetiva suficiente para facilitar a realização.”
18 Paul Mason, PostCapitalism: A Guide to Our Future (Londres,
Penguin, 2016).
19 Martin Ford, The Lights in the Tunnel: Automation, Accelerating
Technology and the Economy of the Future (Wayne, Acculent, 2009).
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