Editora:
Expressão Popular
ISBN: 978-987-1183-71-5
Tradução: Maria Encarnación Moya
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 448
Sinopse: Ver Parte I
“A racionalidade do processo histórico, isto
é, da história da práxis humana, é universal. Não há sociedades nem mudanças ou
substituição de umas por outras que não tenham razão de ser, isto é, que não obedeçam
a certa legalidade. Essa racionalidade abrange, portanto, desde as chamadas
sociedades primitivas até as sociedades atuais. Não há sociedades privilegiadas
por sua racionalidade. Do ponto de vista de sua estrutura e da necessidade de
sua mudança ou substituição, todas são igualmente racionais. No entanto,
falou-se e ainda se fala da irracionalidade de uma sociedade estranha ou
anterior; os gregos antigos, por exemplo, julgavam assim outros povos ao
qualificá-los de “bárbaros”; os iluministas do século 18 faziam algo semelhante
com a Idade Média; o capitalismo foi julgado algumas vezes como uma sociedade
irracional ou de uma racionalidade limitada; os jovens hegelianos justificavam
sua crítica da sociedade alemã de seu tempo pela necessidade de destruir — com
a razão humana — seus elementos irracionais etc. Em todos os casos, o conceito
de irracionalidade aplicado a uma determinada sociedade, a uma etapa de seu
desenvolvimento ou a sua mudança ou substituição, carece de valor científico, e
sua existência só se explica pela função ideológica que pode cumprir na
justificação da existência de uma determinada ordem social, ou na luta para
transformar ou acelerar a transformação de uma determinada estrutura social.”
“Não se descobre a racionalidade de uma
determinada sociedade na massa de fatos e fenômenos que aparecem na superfície
como fatos causais e desligados entre si, mas, sim, quando por detrás desses
fatos se manifestam seus elementos e relações fundamentais constituindo-se uma
totalidade ou conjunto de elementos e relações estruturados, isto é, um sistema
ou estrutura. Por detrás do acúmulo de fatos causais e de atividades
individuais descobrimos, então, a existência de elementos e relações como os de
“forças produtivas”, “relações de produção”, “modo de produção”, “classes
sociais”, “Estado”, “religião”, “arte” etc.
Um sistema dessa natureza, ou estrutura
complexa, é a formação econômico-social (capitalismo ou socialismo, por
exemplo), seja em um nível universal (sistema capitalista ou socialista
mundial), seja no nível de um determinado país (capitalismo ou socialismo em
uma determinada nação). Dentro dessa estrutura complexa podem-se observar
estruturas simples (por exemplo, as relações de produção de uma determinada
sociedade), ou estruturas dependentes, ainda que sua dependência longe de
excluir pressuponha certa autonomia (por exemplo, a arte ou a supraestrutura
política do sistema econômico-social correspondente).
Em uma estrutura complexa — como é uma
determinada formação econômico-social — sua racionalidade não se manifesta em
um elemento ou em uma estrutura particular dentro dela, mas, sim, no todo, com
suas relações e dependências estruturais, isto é, na estrutura como um todo orgânico,
internamente relacionado. Portanto, a racionalidade da estrutura complexa não
se dá em um elemento ou estrutura abstraído ou separado do todo, e isso impede
que se veja o que é determinante de um modo único e exclusivo no econômico. Mas
isso não impede que, dentro dessa totalidade e não como um elemento ou uma
estrutura dela abstraída, o econômico desempenhe, em última instância, o papel
determinante. Se o econômico é abstraído da totalidade, sua realidade será tão precária
como a de qualquer outro elemento com o qual se realize a mesma operação. O
econômico é determinante em última instância; a expressão “última instância” tem
presente a existência de outras realidades ou esferas que não são redutíveis ao
econômico — daí a autonomia relativa de seu desenvolvimento —, ainda que
estejam determinadas por ele.
O papel determinante do econômico corresponde
ao lugar central que a produção ocupa na sociedade humana e em sua história, na
medida em que não é apenas produção de um mundo de objetos, de bens úteis, mas
na medida em que, por seu caráter social, é também produção de relações sociais
e condição necessária de todo tipo de produção. O econômico é determinante em
última instância porque as relações materiais produtivas do homem com a
natureza e as que se estabelecem, em consonância com elas, como relações
econômicas entre os homens, determinam todas as demais. Mas não se trata de um
condicionamento unidimensional — de causa a efeito mas, sim, em e por
uma totalidade.
Daí que, embora o não econômico se explique
em última instância no econômico, sempre que não se entenda essa explicação em
uma relação unilateral simples de causa e efeito, o econômico, por sua vez, mesmo
sendo determinante, não pode explicar-se por si e, na medida em que é um
elemento de uma totalidade, tem de ser explicado, por sua vez, pelo não-econômico.
Nesse sentido, pode-se dizer que o político ou o ideológico influem sobre ele.
A economia é determinante em última instância
e não deixa de cumprir essa função ainda que o econômico (a religião, a
política etc.) desempenhe o papel principal em uma determinada sociedade.
Definitivamente, é o econômico que determina quando o não-econômico desempenha
esse papel. Marx estabelece claramente que é o modo de produção da vida
material que explica por que na Idade Média é a religião que domina e, no mundo
antigo, é a política. Assim, portanto, o reconhecimento por Marx desse domínio
ou papel principal não pode significar de modo algum, como ele próprio
esclarece, que perca vigência sua tese (que é certamente a tese fundamental do
materialismo histórico) segundo a qual o econômico domina sempre, e em geral, o
desenvolvimento histórico, ou seja, é determinante em última instância.24
Assim, o papel determinante como a fase econômica
e o papel principal dessa ou daquela instância não econômica apenas pode ser descoberto
nas relações de dependência das partes com o todo e das partes entre si. Por
isso, a racionalidade da práxis histórica, na medida em que as ações dos homens
e suas relações constituem um sistema, é uma racionalidade estrutural.
RACIONALIDADE
DAS MUDANÇAS DE ESTRUTURA SOCIAL
A racionalidade não é apenas universal: não
só está em todas e em cada uma das estruturas como também no aparecimento e
desaparecimento delas no tempo, assim como na passagem de uma a outra. Não só
cada sistema ou estrutura tem sua própria lei fundamental de funcionamento, que
determina as relações peculiares entre os diversos elementos e entre esses e o
todo, mas o próprio processo histórico, como processo de mudanças radicais,
qualitativas, que implicam a passagem de uma formação a outra, está sujeito às
leis.
Não nos referimos aqui ao processo de
aparecimento de um elemento dentro de uma estrutura (mediante sua transformação
em outro) nem o processo de gênese de uma nossa relação entre dois ou mais elementos
de uma estrutura, mas o que temos presente é o aparecimento e desaparecimento
de uma estrutura, isto é, o próprio processo de desenvolvimento (passagem de
uma formação econômico-social a outra). É justamente esse processo histórico
que Marx e Engels caracterizam como histórico-natural, isto é. sujeito às leis
objetivas que escapam à consciência e à dos homens.25
Como se opera a passagem de uma estrutura
social A a uma estrutura B?
O aparecimento de uma nova estrutura B
pressupõe, necessariamente, uma estrutura anterior A que, como toda estrutura
complexa, é um conjunto de elementos, vinculados entre si e, portanto, um conjunto
de relações e dependências. Essa estruturação interna dos elementos integrantes
não é estática, mas, sim, dinâmica. A estrutura se encontra sujeita
internamente a mudanças constantes: aparecimento de novos elementos e relações,
transformação de um elemento em outro etc. Essas mudanças, que se operam internamente,
podem afetar um elemento ou uma determinada relação sem que afetem a estrutura
em seu conjunto. Esse último não deve ser entendido no sentido de que todos e
cada um dos elementos possam se ver afetados por uma mudança, pois há mudanças
que não afetam a lei fundamental da estrutura. A estrutura pode absorver uma
série de mudanças sem que essas impliquem sua transformação qualitativa. Assim,
o aparecimento de uma nova estrutura compreende uma série de mudanças
(aparecimento de elementos ou de uma relação, transformação de um elemento ou
de uma relação, que implicam modificações em outros elementos e relações da
mesma estrutura).26 A mudança de um elemento que, em uma etapa de
sua evolução, não provoca mudanças estruturais pode, em outra fase, acarretar
uma mudança que afeta a estrutura inteira. Assim, por exemplo, as forças
produtivas são um dos elementos do modo de produção. Esse elemento se
caracteriza pelo seu dinamismo, isto é, pelo seu desenvolvimento ininterrupto.
Dentro de uma estrutura, as forças produtivas se encontram em certa relação com
outro elemento fundamental dela: as relações de produção. Diferentemente das
forças produtivas, essas relações se caracterizam dentro da estrutura por sua estabilidade.
Enquanto as primeiras se desenvolvem e crescem continuamente, as relações de
produção permanecem inalteráveis. No seio de uma mesma estrutura, durante um
período mais ou menos longo de tempo, as relações de produção correspondem às
forças produtivas, isto é, não só não freiam seu desenvolvimento como, inclusive,
contribuem para ele. Em consequência, o incremento das forças produtivas (homens
e instrumentos de produção) não suscita nem exige uma mudança das relações de
produção (e, particularmente, da forma de apropriação dos meios de produção e
dos produtos). Quando as forças produtivas encontram nas relações de produção
existentes um limite ao seu desenvolvimento, a correspondência anterior dá
lugar a um conflito que, ao se transformar em contradição aguda, exige para ser
resolvido novas relações de produção, o que implica, por sua vez, uma mudança radical,
qualitativa de toda estrutura e, com ela, o aparecimento de um novo sistema econômico-social.27
A mudança estrutural é determinada, portanto,
pela própria estrutura, já que nela se criam as condições de seu aparecimento. Enquanto
a nova estrutura é gestada no seio de outra anterior, há uma relação de
continuidade entre uma e outra. Mas, por sua vez, na medida em que a nova
estrutura supõe uma ruptura da organização dos elementos anteriores e de suas
relações, implica uma descontinuidade com ela.
Em consequência, o processo histórico como
mudança estrutural é um processo ao mesmo tempo contínuo e descontínuo. A
continuidade se revela, portanto, como aparecimento de uma nova estrutura sobre
as bases da anterior, ou seja, os homens fazem sua própria história, mas
partindo das condições criadas pela geração anterior. A descontinuidade se
revela como aparecimento de algo novo que, tendo como ponto de partida as
condições criadas pela estrutura anterior, é a ela irredutível. A continuidade
se revela também na existência de alguns elementos da velha estrutura; mas,
esses elementos, integrados em uma nova totalidade, entram em relações
distintas e cumprem outra função. A descontinuidade se revela, sobretudo, no
aparecimento de elementos e relações.
O fato de que uma mudança estrutural não
possa se produzir sem que surjam necessariamente certas condições ou se operem certas
mudanças no seio de uma determinada estrutura, mudanças e condições que
estabelecem necessariamente a passagem a uma nova estrutura é prova de que o
processo histórico, como mudança e substituição de algumas formações econômico-sociais
por outras; é um processo sujeito a leis. Dessa maneira, não só existe uma
racionalidade histórica em todas as estruturas sociais, como também no processo
histórico pelo qual se opera a passagem de determinadas formações sociais a
outras.
A possibilidade de estudar a racionalidade da
vida social como um todo e, ao mesmo tempo, a racionalidade do processo
histórico como passagem de uma estrutura social a outra existe desde que Marx
concebeu a base econômica da sociedade e sua vida política e espiritual em
termos de estruturas relacionadas e dependentes. Existe, igualmente, desde que
Marx mostrou como as mudanças operadas na base econômica (relações de produção)
provocam mudanças na supraestrutura que se ergue sobre ela. E, finalmente, essa
concepção estrutural do processo existe desde que foi concebida a gênese de uma
nova estrutura como libertação de certos elementos de uma estrutura anterior, ao
mesmo tempo em que explicitava que são as contradições de uma estrutura econômica
que determinam a passagem a uma nova estrutura ou formação social. Tudo isso
foi estabelecido por Marx em seu prólogo, de 1859, à Contribuição à crítica da economia política.
Marx, portanto, foi o primeiro a operar, no
estudo da história e da sociedade, com os conceitos de estrutura e de processo
histórico como mudança estrutural. Mas não se limitou a assentar esse princípio
estrutural na explicação da vida social e do processo histórico: também o
aplicou em investigações concretas. Por isso, B. A. Grushin, uma obra em que, apegando-se
a Marx, busca desenvolver esse princípio estrutural na investigação econômica,
histórica e social, diz:
As obras históricas dos clássicos do marxismo e do marxismo-leninismo
demonstram que, de modo análogo a outras ciências de nossos dias, a história
tem como tarefa o estudo de sistemas objetivos de relações e a reprodução dos
processos históricos no pensamento como sistemas orgânicos.28
Isso significa que a análise estrutural de um
sistema não pode ser substituída por uma análise genética, o que não quer dizer
que uma se contraponha a outra. Ao contrário, sem que se apaguem suas
diferenças essenciais, necessitam-se mutuamente. É assim porque — por um lado —
não se pode analisar uma estrutura ignorando os elementos da estrutura anterior
que — como diz Marx — foram libertados; e é assim também porque — por outro
lado — não podemos estudar a gênese e a evolução de um sistema se não
conhecemos a natureza do que é engendrado e evolui. Assim, como diz Grushin, “a
investigação dos processos históricos de desenvolvimento de um todo complexo pressupõe
tanto o estudo de sua estrutura como
de sua gênese.”29 Em outras
palavras, a análise histórica de um sistema reclama sua análise teórica,
estrutural, mas essa, por sua vez, não pode prescindir — sem deixar-se devorar
por ela — de uma análise histórica. Uma vez adotado o ponto de vista estrutural
em que se situa Marx, não há lugar para o historicismo (absoluto), mas tampouco
para um teoricismo a-histórico (ou primazia absoluta da análise teórica,
estrutural).
PRODUTOS
HISTÓRICOS NÃO INTENCIONAIS
A racionalidade histórica fundamental
apresenta-se a nós, sobretudo, como racionalidade das formações econômico-sociais,
assim como de seu aparecimento e desaparecimento, e da passagem de umas a outras.
Mas as estruturas sociais são produtos humanos, e humanas são também as
atividades que tornam possível suas mudanças e sua transformação. Os homens são
os sujeitos da práxis histórica que eleva e derruba uma ou outra estrutura
social; portanto, as leis que regem o funcionamento e a mudança das estruturas
sociais nada mais são do que leis da práxis histórica e social humana. Os
homens são os criadores de sua própria história, mas como indivíduos concretos,
isto é, atuando conjuntamente com outros — não como robinsons — nos limites de
uma estrutura que fixa suas relações de interdependência com demais membros da
sociedade, assim como as formas gerais de sua atividade. Os indivíduos não só
atuam social, como também conscientemente, isto é, como indivíduos que se
propõem determinados fins. Desde que o homem existe como ser social, cada
indivíduo atua conscientemente, e, no entanto, durante séculos e séculos não
foi consciente das leis e dos resultados de sua atividade.
Na história da sociedade — diz Engels — os agentes são homens dotados de
consciência, que agem movidos pela reflexão ou pela paixão, perseguindo
determinados fins; nada acontece aí sem uma intenção consciente, sem um fim
desejado.30
E, um pouco mais adiante, acrescenta:
Os fins que se perseguem com os atos são obras da vontade, mas os
resultados que na realidade se derivam deles não o são, e ainda quando pareçam
ajustar-se momentaneamente ao fim perseguido, por fim encerram consequências
muito distintas das desejadas.
O que o homem faz nem sempre corresponde, portanto,
às suas intenções. Não se trata de uma inadequação entre fins e resultados imposta
em toda práxis intencional pelas exigências do processo prático. Trata-se de
que, ao atuar o indivíduo como ser social e ao integrar sua práxis em uma
práxis comum, essa se desenvolve como uma práxis cega, cujos produtos ou
resultados não podem ser imputados a nenhuma intenção. São atos humanos que,
nos limites de uma estrutura social — por exemplo, o feudalismo —, produzem
mudanças em seus elementos e em suas relações mútuas até ultrapassar o limite qualitativo,
o que implica o aparecimento de uma nova estrutura — o capitalismo — com novos
elementos estruturais e novas relações entre eles. Ninguém — nem individual nem
coletivamente — se propôs a criar essa nova estrutura social de acordo com um
projeto individual ou comum. E o que se refere à estrutura em seu conjunto é
aplicável aos seus elementos e relações. Ninguém se propôs a desenvolver as forças
produtivas com a consciência da contradição a que levava esse desenvolvimento
com referência às relações de produção vigentes e, em particular, com
referência à forma de propriedade. Se o desenvolvimento das forças produtivas,
diz Marx, é “resultado da energia prática dos homens”31, suas
consequências fundamentais escapam à sua consciência e seu incremento não
corresponde pura e simplesmente a uma soma de vontades individuais, já que essa
mesma energia prática, acrescenta Marx, “se encontra determinada pelas
condições em que os homens se encontram colocados, pelas forças produtivas já
adquiridas, pela forma social anterior a eles, que eles não criaram e que é produto
da geração anterior.
DUALIDADE DA
PRÁXIS INDIVIDUAL
O fato de que os resultados da práxis comum
não possam ser referidos a uma consciência ou vontade, ou a uma soma delas,
confirma que a racionalidade histórica não pode estar no nível dos indivíduos, de
seus fins ou interesses ou de suas práxis individuais. A racionalidade da
práxis histórica, como práxis coletiva cujos resultados não correspondem a
intenções nem a fins, tem de ser buscada no nível das estruturas sociais e de
suas mudanças fundamentais. É, por isso, uma racionalidade universal,
estrutural e objetiva. As leis que regem o funcionamento das estruturas e de
suas mudanças atuam à margem da consciência e vontade dos indivíduos concretos,
mas, por sua vez, operam como leis de sua atividade ou, mais exatamente, como
leis que só existem e se cumprem por meio deles. A objetividade dessas leis,
que é a que dá ao processo histórico seu caráter natural, não se baseia,
portanto, em sua suposta existência metafísica, à margem dos homens — já que as
leis históricas não passam de leis das práxis humana — mas, sim, no fato de que
existem e atuam à margem de sua vontade e sua consciência. As leis fundamentais
da formação econômico-social capitalista — por exemplo, a lei da produção de
mais-valia — atuam à margem da vontade e da consciência dos capitalistas e
trabalhadores, e inclusive independentemente do conhecimento que se tenha
delas. Na medida em que uns e outros atuam como elementos da estrutura peculiar
das relações de produção dentro de uma totalidade complexa (a formação econômico-social
capitalista) seu comportamento individual adota necessariamente a forma social
que lhe impõe a estrutura, e os resultados de seus atos correspondem às leis
que presidem seu funcionamento. O operário não se propõe nem quer produzir um
valor que exceda o valor de sua força de trabalho; o capitalista, por sua
parte, pode acreditar que, ao pagar determinado salário, está pagando pelo seu
verdadeiro preço, não a força do trabalho do operário, mas, sim, seu próprio
trabalho. Mas tanto um como outro atuam segundo a lei econômica fundamental da
obtenção da mais-valia que atua objetivamente, por meio de seus próprios atos,
embora independentemente de suas intenções, de sua consciência e de sua
vontade. Nesse caso, o comportamento do indivíduo corresponde às exigências de
uma estrutura social e, nesse sentido, é determinado socialmente. O indivíduo produz
algo que não estava em sua consciência e que ultrapassa suas próprias intenções:
algo pelo qual ele não é individualmente responsável. Esse comportamento
individual do operário e do capitalista corresponde a uma lei objetiva e assume
necessariamente, portanto, uma forma social, que é a que Marx analisa em O
capital. A forma social do comportamento individual representa
propriamente sua sujeição à lei que rege o funcionamento da estrutura, da qual
depende. Portanto, na medida em que atua de acordo com a lei fundamental da
estrutura, pode-se falar da racionalidade do comportamento do trabalhador. Mas o
indivíduo como ser social não esgota seu comportamento na forma social de sua
atividade, isto é, de acordo com as leis do sistema, comportamento que se
identifica, sob o capitalismo, com sua práxis não intencional. Isso não deve
ser esquecido ao se falar do comportamento “racional” do trabalhador na
sociedade capitalista.
Sem deixar de ser o agente da produção
capitalista, isto é, um indivíduo cuja atividade individual adota
necessariamente uma forma social cujos resultados escapam à sua consciência e vontade,
o operário é um indivíduo concreto que atua como ser consciente e que persegue seus
próprios fins. Sua atividade prática individual tem, então, um duplo caráter:
intencional — na medida em que atua acreditando realizar seus próprios fins — e
não intencional, na medida em que, ao atuar necessariamente sob uma forma
social, seus resultados não correspondem aos seus fins previamente traçados.
Sua atividade prática revela-se, ao mesmo tempo, com uma contradição interna:
por ser intencional e não intencional ao mesmo tempo e por ser ela mesma
expressão de uma contradição entre o individual e o social, a forma social de
sua atividade como práxis não intencional opõe-se à forma propriamente
individual como práxis intencional. A existência dessa dualidade no seio de uma
mesma atividade prática concreta — o trabalho do operário — impede-nos, de
acordo com a advertência de Marx, de tornar o indivíduo responsável por uma
atividade que lhe é imposta necessariamente pela estrutura correspondente. Mas
justamente porque a atividade do indivíduo não se reduz à sua forma social —
mas é a atividade de um sujeito dotado de consciência e vontade, o que dá
necessariamente um caráter consciente, intencional à sua práxis — não é só a
personificação de uma relação social, suporte ou efeito de uma estrutura. Se o
homem não fosse mais do que suporte de determinadas relações sociais, ou o
efeito de uma estrutura, isto é, se seu comportamento individual se esgotasse na
forma que a estrutura lhe impõe necessariamente, o processo histórico — não
tanto o do passado como o do presente e do futuro — seria um processo que se
operaria por meio da atividade dos homens, mas sem sua participação consciente tanto
na abolição de uma estrutura social já caduca como na criação de outra nova: o
socialismo. Ao assinalarmos justamente que o indivíduo é a personificação de
funções e relações sociais, não se deve esquecer essa dualidade que antes
assinalamos no seio da própria atividade individual e que explica, definitivamente,
que o operário não só seja o suporte das relações de produção senão também o
coveiro consciente e ativo delas.
Mas a necessidade de levar em consideração
esse aspecto intencional da atividade individual não abala em absoluto o fato de
que a explicação da práxis individual não possa ser encontrada partindo dos
indivíduos — de suas intenções — mas, sim, na estrutura social em cujo marco
atuam. Essa explica não só a forma social de sua práxis, como também sua forma
propriamente individual, isto é, o caráter que dentro de uma determinada
estrutura a reveste como práxis intencional, o que faz também com que a explicação
da contradição que vimos assinalando ao longo desse capítulo — entre as
intenções dos indivíduos e seus resultados, entre os lados intencional e não
intencional de sua práxis, ou entre sua forma social e seu conteúdo
propriamente individual — tenha de ser procurada também na estrutura social.
Com efeito, se as intenções dos indivíduos não se realizam, ou se os produtos das
diferentes práxis particulares não correspondem a uma intenção determinada,
isso não se deve a fatores puramente subjetivos, mas, sim, à própria estrutura.
É essa que determina o fato de que as práxis não intencionais dos diferentes
indivíduos se conjuguem para produzir algo não desejado ou previsto por
ninguém, isto é, não desejado ou projetado por nenhuma consciência.”
24 Referindo-se a uma objeção que lhe foi
feita em um jornal alemão dos Estados Unidos ao ser publicada, em 1859, sua Contribuição à crítica da economia política, Marx escreveu: “Meu enfoque — sustentou este — segundo o qual o modo
de produção dado e as relações de produção correspondentes ao mesmo, em suma,
‘a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se alça uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas
sociais de consciência’. Esse enfoque para o qual ‘0 modo de produção da vida
material condiciona em geral processo da vida social, política e espiritual,
seria indubitavelmente verdadeiro para o mundo atual, em que imperam os
interesses materiais, mas não para a Idade Média, na qual prevalecia o
catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde era a política que dominava. Em
primeiro lugar, é surpreendente que exista quem goste de supor que alguma pessoa
ignore esses conhecidíssimos lugares comuns sobre a Idade Média e o mundo
antigo. O indiscutível é que nem a Idade Média pôde viver do catolicismo nem o
mundo antigo da política. É, ao contrário, o modo e a maneira em que a primeira
e o segundo ganharam a vida, o que explica porque em um caso a política e, em
outro, o catolicismo desempenharam o papel protagônico” (K. Marx. El
capital, tradução de Pedro
Scaron, México, Siglo XXI Editores, 2002. t. 1. vol. 1, p. 100)
25 C.
Marx. “Prólogo a la Contribución a la crítica de la economía política”, em C. Mars e F. Engels. Obras escogidas, em dois tomos, op. cit., t. I, p. 332-334.
26 Cf. B. A. Grushin, Ocherki logiki istoricheskogo issledovaniaya [Ensaios sobre a
lógica da investigação histórica]. Moscou. 1961, p. 37.53.
27
Marx, prólogo à Contribución a la crítica de la economía política, op. cit.
28 B. A. Grushin, Ocherki logiki istoricheskogo
issledovaniaya [Ensaios sobre a
lógica da investigação histórica, Moscou, 1901, p. 17.]
29 B. A. Grushin, op. cit., p.
94.
30 F.
Engels. “Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofía clásica alemana”, em C. Marx
e F. Engels, Obras escogidas, op.
cit. t. II, p. 364.
31 Carta de Marx a P. V.
Annenkov, em C. Marx e F. Engels, Obras escogidas, op. cit., t. II, p. 415.
“A passagem do individual intencional ao
comum não intencional é explicada por Engels nos seguintes termos:
A história se faz de tal modo que o resultado final sempre deriva dos
conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é
o que é por efeito de uma multidão de condições especiais de vida; são, pois,
inumeráveis forças que se entrecruzam umas com as outras, um grupo infinito de
paralelogramos de forças, das quais surge uma resultante — o acontecimento
histórico — que, por sua vez, pode ser considerado como produto de uma potência
única que, como um todo, atua sem consciência e sem vontade. Pois o que um
indivíduo quer tropeça na resistência que o outro lhe opõe, e o que resulta de
tudo isso é algo que ninguém quis. Desse modo, até aqui a história transcorreu
como um processo natural e submetido também, substancialmente, às mesmas leis
dinâmicas. Mas, do fato de que as distintas vontades individuais — cada uma das
quais deseja aquilo que sua constituição física impele e uma série de
circunstâncias externas que são, em última instância, circunstâncias econômicas
(ou as suas próprias, pessoais, ou as gerais da sociedade) — não alcancem o que
desejam, e sim se fundem todas em uma média total, em uma resultante comum, não
se deve inferir que essas vontades sejam igual a zero. Ao contrário, todas
contribuem à resultante e se encontram, portanto, nela incluídas.33
Desta passagem de Engels, deduz-se: 1) que os
indivíduos agem movidos pela aspiração de realizar seus próprios fins; 2) que
os fins que aspiram a realizar se entrecruzam e se opõem entre si; 3) que os resultados
que se obtêm não correspondem aos fins desejados; e 4) que os fins se fundem em
uma resultante média, comum, para a qual todos os indivíduos contribuíram.
Engels busca enfatizar o papel dos indivíduos
concretos na práxis histórica, opondo-se às falsas interpretações da doutrina de
Marx que faziam do fator econômico o único determinante e que, em consequência,
faziam da economia o verdadeiro sujeito da história. Mas, a nosso ver, ao
derivar o resultado comum, não intencional, de um conjunto de práxis
individuais, ainda que certamente através de uma série de mediações —
entrecruzamentos e conflitos — não explica, em primeiro lugar, por que essas
práxis individuais entram em conflito; e, em segundo lugar, por que se traduzem
em um resultado médio e comum, que tem sentido. O resultado das práxis
individuais — resultado não intencional de práxis intencionais — não é um
resultado estatístico médio. As vontades individuais não se fundem em um
resultado médio total, mas, sim, no resultado exigido pela forma social que
necessariamente adotam, nos limites de uma estrutura social, as atividades
individuais. Por conseguinte, é a estrutura que determina a contradição entre
fins e resultados, assim como os conflitos entre os diferentes indivíduos; é a
estrutura também que impõe o caráter não intencional do resultado comum, já que
ela torna impossível uma práxis intencional não mais no nível dos indivíduos,
mas da sociedade inteira. Embora a história não exista à margem dos indivíduos
concretos, é certo, do mesmo modo, que os produtos não intencionais que nela
descobrimos não podem ser explicados partindo dos indivíduos concretos cujas
práxis individuais se entrecruzam e se opõem para fundir-se, não se sabe por quê,
em um resultante comum. Apenas partindo das leis que regem o funcionamento da
estrutura social podemos explicar por que a práxis histórica tem no passado um
caráter não intencional e por que pode ter no presente um caráter intencional,
sendo ambas a práxis de indivíduos dotados de consciência e vontade.
Dentro de uma determinada estrutura social, o
tipo de relações sociais de produção — e, particularmente, a forma de
propriedade sobre os meios de produção — determina em grande medida o caráter não
intencional ou intencional da práxis comum, já que, como enfatizamos, a práxis
individual — qualquer que seja a estrutura em que se desenvolva — tem sempre um
caráter intencional, consciente. A estrutura social em seu conjunto e,
sobretudo, a forma de propriedade sobre os meios de produção determinam, por um
lado, o caráter não intencional ou intencional — espontâneo ou reflexivo — da
práxis histórica e, por outro, o modo pelo qual atuam as leis do funcionamento
de uma determinada formação social.
INTERESSES E
ESTRUTURA SOCIAL
Nas condições da propriedade privada sobre os
meios de produção, que caracterizam as formações sociais do passado e o
capitalismo de nossa época, os interesses dos indivíduos e os da sociedade em seu
conjunto não coincidem; e quando a posição social dos indivíduos em relação aos
meios de produção — como as dos capitalistas e dos operários — se contrapõem
diametralmente, seus interesses se contrapõem também de um modo antagônico.
Quando se trata de explicar a atividade dos indivíduos, de grupos sociais ou da
sociedade inteira, não se deve partir de seus móveis ideais, como costumam
fazer as concepções idealistas da história, mas, sim, de seus interesses, isto
é, da atitude dos indivíduos, das classes ou da sociedade em relação às suas
condições de existência, vinculada, por sua vez, estreitamente a sua posição
com respeito aos meios de produção. Os interesses têm, portanto, sua origem em
condições objetivas.
A atividade dos homens — indivíduo, grupos
sociais ou a sociedade inteira — é uma atividade interessada e, por isso, para
compreendê-la é necessário partir dos interesses humanos que se expressam em certos
fins que respondem, por sua vez, a certa situação objetiva. De acordo também
com essas condições objetivas — e especialmente com a forma de propriedade
sobre os meios de produção — muda o próprio caráter dos interesses individuais
ou sociais, assim como as relações mútuas entre os interesses dos indivíduos,
entre os interesses pessoais e os da classe a que pertencem os indivíduos, e
entre esses últimos e a sociedade inteira. O caráter dos interesses determina,
por sua vez, a possibilidade ou impossibilidade de que a práxis que impulsionam
possa transformar-se, no caso dos indivíduos ou das classes sociais, em uma
práxis coletiva intencional.
Os interesses pessoais refletem a atitude dos
indivíduos em relação às suas condições concretas de existência. Mas, na medida
em que os indivíduos ocupam a mesma posição em relação aos meios de produção e
são, portanto, membros de uma mesma classe social, têm também interesses
comuns, de classe, que não são uma soma de seus interesses pessoais, mas
expressam a atitude de um grupo social acima dos interesses estritamente
pessoais, em relação à sua existência de classe. Nas estruturas sociais em que
vigora a forma de propriedade privada sobre os meios de produção, os interesses
das classes antagônicas entram em um agudo conflito. Por sua vez, os interesses
da classe dominante, ao impelirem essa na defesa de uma estrutura social
dilacerada por uma contradição que só pode ser resolvida com o desaparecimento
do sistema, entram em conflito com os interesses de toda a sociedade.
Os interesses têm um conteúdo objetivo na
medida em que são determinados pelas condições de existência dos homens, além
de impulsionarem sua atividade, ainda que os homens não tenham uma clara consciência
disso. Nas condições da sociedade na qual vigora a forma de propriedade privada
sobre os meios de produção, a consciência dos interesses varia de acordo com
seu caráter. Os interesses pessoais se conhecem mais intimamente e, por essa
razão, os homens se movem, sobretudo, por esses interesses. A consciência dos
interesses de classe (consciência de classe) pressupõe a necessidade de
superar, até certo ponto, os interesses imediatos, pessoais; com isso se torna
possível uma práxis comum intencional. A consciência de classe não surge espontaneamente
e requer a elaboração de certo material ideológico. Enquanto os interesses de classe
se formam espontaneamente, de acordo com o processo de constituição de
determinada classe, a consciência deles só surge no processo de luta entres as classes
antagônicas e, particularmente, com a elaboração da ideologia correspondente e
a criação dos partidos de classe que a inculcam. Assim surge, desde o século 18,
a consciência burguesa de classe e, a partir de meados do século passado, a
consciência do proletariado.
Em todas as classes progressistas,
revolucionárias, a consciência de classe implica, por sua vez, certa
consciência dos interesses da sociedade inteira. Mas, em virtude de os interesses
de classe da burguesia não coincidirem com os de toda a sociedade — nem sequer
na época em que aquela é uma classe em ascensão —, sua consciência dos interesses
da sociedade inteira é uma consciência limitada. Essa limitação tem, portanto,
um fundamento objetivo: o da limitação de seus interesses de classe. Só a
consciência de classe do proletariado capta os interesses da sociedade inteira,
já que seus interesses de classe coincidem com os de toda a sociedade.
Na medida em que os interesses dependem da estrutura
social — ou, mais exatamente, do caráter das relações de produção e, em particular,
da forma de propriedade — os interesses se formam objetivamente, têm um caráter
objetivo, e sua satisfação exige uma práxis de acordo com eles. A consciência
dos interesses não afeta, portanto, nem seu conteúdo objetivo nem seu processo
de formação, mas, sim, a sua realização e, portanto, o caráter da práxis
coletiva que busca satisfazê-los, já que só uma consciência dos interesses de classe
pode dotá-la de um caráter intencional.
Temos, portanto, que toda práxis corresponde
a certos interesses, independentemente de se ter ou não consciência deles.
Enquanto os indivíduos não se elevam à consciência de seus interesses de classe,
sua práxis coletiva não pode ter um caráter intencional, pois é justamente essa
consciência que os leva a traçar fins comuns e a desenvolver uma práxis
coletiva consciente. Quando os indivíduos não têm consciência de seu interesse
de classe, o caráter intencional só se verifica na práxis individual na medida
em que corresponde a interesses pessoais.”
33 Carta
de Engels a J. Bloch, 21-22
de setembro de 1890, em C. Marx c F. Engels. Obras escogidas, em dois tomos, op.
cit., t. II. pp. 459-460.
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