sexta-feira, 24 de julho de 2020

A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Em seu novo livro, o geógrafo David Harvey, um dos marxistas mais influentes hoje, se propõe a atualizar o pensamento de Karl Marx à luz das novas transformações da globalização capitalista contemporânea. Disparando contra a ‘loucura da razão econômica’, ele revela a total impotência da dita ‘ciência econômica’ imperante para lidar com os problemas postos pela crise atual do capitalismo.
Ciente da urgência do objeto, o autor emprega uma escrita clara e acessível, sem prejuízo da profundidade do conteúdo, e procura fornecer um instrumental teórico à altura das complexidades e armadilhas da lógica do capital para que os diversos movimentos e organizações sociais possam calibrar melhor suas estratégias políticas diante do inimigo comum. Trata-se de uma obra de amplo alcance temático, voltada tanto para leigos quanto para iniciados, e que fornece reflexões estimulantes sobre fenômenos diversos como bitcoin, inteligência artificial, a eleição de Donald Trump, os megaprojetos chineses e a crise da Zona Euro.


“O que, afinal, é o capital para Marx? Começo com sua definição preferida, de capital como “valor em movimento” (...). O significado que Marx lhe dá é bastante especial, então esse é o primeiro de seus termos que exige certa elaboração. Tentarei desdobrar seu significado completo à medida que avançarmos. Mas a definição inicial é: o trabalho social que realizamos para os outros tal como ele é organizado por meio de trocas de mercadorias em mercados competitivos, com seus mecanismos de determinação de preços. Parece um bocado complicado, mas não é tão difícil de entender. Tenho sapatos, mas fabrico sapatos para vender aos outros e uso o dinheiro que recebo por eles para comprar de outras pessoas as camisas de que preciso. Numa troca desse tipo, estou efetivamente trocando o tempo de trabalho que gasto fabricando os sapatos pelo tempo de trabalho que outra pessoa gastou fabricando camisas. Numa economia competitiva, em que muitas pessoas fabricam camisas e sapatos, faz sentido pensar que, se mais tempo de trabalho é gasto em média com a fabricação de sapatos (em comparação com a fabricação de camisas), então os sapatos devem custar mais do que as camisas. O preço dos sapatos convergiria em torno de uma média e o preço das camisas em torno de outra média. O valor sublinha a diferença entre essas médias. Ele pode revelar, por exemplo, que um par de sapatos é equivalente a duas camisas. Mas repare que o que importa é o tempo de trabalho médio. Se eu gastasse um tempo excessivo de trabalho nos sapatos que faço, não receberia o equivalente em troca. Isso seria recompensar a ineficiência. Eu receberia apenas o equivalente ao tempo de trabalho médio para aquela mercadoria.

Marx define o valor como tempo de trabalho socialmente necessário. O tempo de trabalho que gasto fabricando bens para outros comprarem e usarem é uma relação social. Como tal, ela é, assim como a gravidade, uma força imaterial, mas objetiva. Não importa quanto eu disse que custa uma camisa, jamais encontrarei nela átomos de valor, da mesma forma como jamais poderei dissecar uma pedra e encontrar nela átomos de gravidade. Tanto a gravidade quanto o valor são relações imateriais que têm consequências materiais objetivas. É impossível enfatizar o suficiente a importância dessa concepção. O materialismo físico, particularmente em sua modalidade empiricista, tende a não reconhecer as coisas ou os processos que não podem ser fisicamente documentados e diretamente mensurados. Mas usamos conceitos imateriais, porém objetivos, como o “valor” o tempo todo. Se digo que “o poder político é altamente descentralizado na China”, a maioria das pessoas compreenderá o que quero dizer, mesmo que não possamos ir às ruas mensurá-lo diretamente. O materialismo histórico reconhece a importância desses poderes imateriais, porém objetivos. Em geral, recorremos a eles para explicar fenômenos como a queda do Muro de Berlim, a eleição de Donald Trump, sentimentos de identidade nacional ou o desejo das populações indígenas de viver conforme suas normas culturais. Descrevemos noções como poder, influência, crença, status, lealdade e solidariedade social em termos imateriais. O valor, para Marx, é precisamente um conceito desse tipo. “Elementos materiais não convertem o capital em capital”, escreve ele. Pelo contrário, eles relembram que “o capital, de um lado, é valor, portanto, algo imaterial, indiferente ante a sua existência material”2.

Dada essa condição, surge uma necessidade gritante de algum tipo de representação material — algo que se possa tocar, segurar e mensurar — do que seja o valor. Essa necessidade é satisfeita pela existência do dinheiro como expressão ou representação do valor. O valor é a relação social, e todas as relações sociais escapam à investigação material direta. O dinheiro é a representação e expressão dessa relação social3.”

2 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 — Esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer e Nelio Schneider, São Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/UFRJ, 2011), p. 242.

3 Ibidem, p. 179.

 

 

“O dinheiro que flui para o trabalho na forma de salário retorna à circulação total do capital na forma de uma demanda efetiva por aquelas mercadorias produzidas na forma de bens salariais. A força dessa demanda efetiva depende do nível salarial e do tamanho da força de trabalho assalariada. Nesse retorno do dinheiro à circulação, no entanto, o trabalhador assume a persona de comprador, não de operário, e o capitalista se torna o vendedor. Há, portanto, certo grau de escolha do consumidor na forma como é expressa a demanda efetiva que emana dos trabalhadores. Se os trabalhadores têm o hábito do tabaco, diz Marx, então o tabaco é um bem salarial! Há aqui uma margem considerável para a expressão cultural e o exercício de preferências socialmente cultivadas na população, as quais o capital poderá atender, se considerar vantajoso e rentável.

Os bens salariais sustentam a reprodução social. A ascensão do capitalismo realizou uma separação entre a produção de valor e mais-valor na forma de mercadorias, por um lado, e atividades de reprodução social, do outro. Efetivamente, o capital depende dos trabalhadores e de suas famílias para cuidar de seus processos de reprodução (talvez com alguma assistência do Estado). Marx acompanha o capital e trata a reprodução social como uma esfera de atividade separada e autônoma que fornece uma dádiva gratuita ao capital na figura do trabalhador, que retorna ao local de trabalho tão capaz e disposto quanto possível. As relações sociais no interior da esfera de reprodução social e as formas de luta social que ocorrem em seu interior são um tanto diferentes daquelas envolvidas na valorização (na qual impera a relação de classe) e na realização (na qual se confrontam compradores e vendedores). Questões de gênero, patriarcado, parentesco, família, sexualidade etc. tornam-se mais patentes. As relações sociais na reprodução se estendem também à política da vida cotidiana, conforme orquestrada por uma série de arranjos institucionais como a Igreja, a política, a educação e várias formas de organização coletiva em bairros e comunidades. Embora trabalho assalariado seja contratado para fins domésticos e de cuidado, parte do trabalho feito aqui é voluntario e não remunerado5.”

5 Nancy Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode: For an Expanded Conception of Capitalism”, New Left Review, 86, 2014.

 

 

“Banco e finanças têm diversas funções. Eles absorvem bolsões de dinheiro inativo onde quer que estejam e os convertem em capital-dinheiro ao emprestá-los a qualquer um que esteja interessado em aproveitar oportunidades lucrativas de investimento. Na posição de intermediárias, as instituições financeiras agem como o “capital comum de uma classe [a capitalista]”10. Elas desempenham um papel decisivo na aceleração da equalização da taxa de lucro, retirando fundos daqueles que trabalham com setores econômicos de baixa rentabilidade e redirecionando-os para onde quer que a taxa de lucro seja mais alta. Também têm certo poder de criação de dinheiro, independentemente de qualquer aumento na vazão de valor. A independência e a autonomia do sistema financeiro, além do poder inerente de criação de dinheiro, podem ser subsumidas no processo de circulação de capital como valor em movimento, mas não sem impactos importantes.

Bancos e instituições financeiras trabalham com dinheiro como mercadoria, e não com produção de valor. Emprestam para o que dê uma taxa de lucro maior, não necessariamente para atividades produtivas: se for possível obter lucro da especulação imobiliária, os bancos concederão empréstimos para a compra de terrenos e imóveis (como fizeram no atacado entre 2001 e 2007 nos Estados Unidos). “Aqui se completam a forma fetichista do capital e a ideia do fetichismo do capital.”11 O que Marx quer dizer com isso é que o sistema financeiro responde necessariamente aos sinais de dinheiro e lucro nos diferentes campos de distribuição que podem desviar a atividade capitalista da criação de valor e orientá-la para canais não produtivos. Bancos podem emprestar para outros bancos, para empresas imobiliárias ou fundiárias, capitalistas comerciais e consumidores (burgueses ou classe trabalhadora, não importa), bem como ao Estado (a dívida pública é enorme).

O resultado é um mundo daquilo que Marx denomina circulação de “capital fictício”12. Bancos alavancam financeiramente seus depósitos para emprestar ativos que eles de fato possuem. Esses empréstimos podem ser três vezes ou, em períodos de “exuberância irracional”, até trinta vezes maiores do que os ativos depositados. Isso é criação de dinheiro acima e além da quantia necessária para dar conta da produção e da realização de valor. Essa criação de dinheiro assume a forma de dívida, e dívidas são uma reivindicação sobre a produção futura de valor. Uma acumulação de dívidas ou é liquidada por uma produção futura de valor ou é desvalorizada no decurso de uma crise. Toda a produção capitalista é especulativa, é claro, mas no sistema financeiro essa característica é exacerbada, transformando-se em fetiche supremo. Os financistas, diz Marx, possuem “o agradável caráter hibrido de vigaristas e profetas”13. O capital fictício pode ser realizado ou não pela valorização e realização em data posterior.”

10 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: O processo global da produção capitalista (trad. Rubens Enderle, Sao Paulo, Boitempo, 2017), p. 416.

11 Ibidem, p. 442.

12 Ibidem, cap. 25.

13 Ibidem, p. 500.

 

 

“Talvez seja um clichê comum na política dizer que o coração e a mente das pessoas têm de ser mobilizados, moldados e capturados antes de se perseguir qualquer projeto político-econômico, porém não deixa de ser verdade que as lutas políticas em torno do que podemos chamar talvez de “natureza” da natureza humana estarão certamente na base das preocupações que surgirão das questões econômicas da circulação do capital. Mas, como evidencia de forma muito clara, penso eu, a visualização do capital em movimento, as relações entre o valor que circula como capital e a construção e reconstrução perpétua dos valores políticos, culturais e estéticos são por si sós uma questão de grande importância. Contudo, aqueles que priorizam o pensamento e a luta ativa em torno destas últimas precisam reconhecer que o fazem no contexto da circulação do capital que tanto constrange quanto facilita certas formas de pensamento e ação. Na medida em que o capital está perpétua e necessariamente envolvido na construção e reconstrução de vontades, necessidades e desejos, ele cria uma ponte vital entre o que pode parecer dois domínios distintos da ação humana. Margaret Thatcher, no fim das contas, propôs-se não apenas a mudar a economia como também a “mudar a alma”, e nisso ela teve certo êxito. Muitas pessoas acabaram aceitando sua máxima: “Não há alternativa”. Esse mesmo conjunto de preocupações conflituosas se estende ao vasto campo das lutas políticas e culturais em torno das relações existentes e futuras com uma “natureza” em perpétua evolução que, em muitos aspectos, foi reconstituída como uma “segunda natureza” através de uma longa história de transformações ambientais. O modo como estamos produzindo a natureza é uma questão altamente contestada que, mais uma vez, não pode ser abordada independentemente da compreensão do funcionamento da circulação e expansão do capital.”

 

 

“O abandono da base metálica pelo sistema monetário no início dos anos 1970 permitiu que a circulação de capital portador de juros assumisse o controle como principal condutor, sem as restrições da acumulação infindável de capital. A análise desse fenômeno exige um olhar mais atento à posição do sistema bancário e financeiro no campo da distribuição de modo geral.

Antes de mais nada, é preciso dizer que há interações imensamente complicadas no campo da distribuição como um todo. Financistas podem canalizar dinheiro e investimentos para a especulação fundiária e imobiliária, dando suporte as atividades das classes proprietárias à custa de todo o resto. Proprietários fundiários usam suas terras como garantia para tomar empréstimos. Na Grã-Bretanha, muitos aristocratas se tornaram banqueiros dessa forma. Com frequência, capitalistas comerciais crescem e dependem de crédito. Em diversas partes do mundo, os salários dos trabalhadores são inflados pelo uso de cartões de crédito. Trabalhadores podem se integrar à circulação de capital portador de juros iniciando um financiamento com a esperança de adquirir sua casa própria. Isso é algo que, conforme assegura o Banco Mundial, confere estabilidade social ou, segundo o velho ditado: “Enquanto não quitar o financiamento, dono de casa própria não faz greve”. Às vezes os trabalhadores são obrigados a depositar suas economias em fundos de pensão, que têm de investir em algum lugar para explorar outros trabalhadores em troca de lucro. Financistas emprestam a governos, enquanto os governos usam os tributos para garantir e afiançar as atividades de instituições de crédito. Enquanto isso, bancos superavitários emprestam a bancos deficitários e, quando preciso, ambos recorrem a bancos centrais. Os papéis se embaralham e muitas vezes são internamente contraditórios. Empresas automobilísticas mantêm mecanismos de venda que concedem crédito aos consumidores para que adquiram seus carros, e muitas vezes é difícil saber se os lucros da empresa vêm da atividade de valorização, de realização ou de distribuição. Financistas emprestam aos incorporadores para que construam casas e aos trabalhadores para que comprem essas casas, internalizando oferta e demanda numa única operação sob o seu comando. Trabalhadores exigem aumentos salariais que podem fazer despencar as ações de companhias em que seus fundos de pensão estão investidos. Sindicatos podem ser compelidos a investir na dívida das empresas que os empregam. Quando a Enron quebrou, a pensão de sua força de trabalho escorreu pelo ralo. Na crise fiscal de 1970, em Nova York, os sindicatos municipais foram forçados a investir seus fundos de pensão na dívida pública municipal, com consequências previsíveis. Governos armam sistemas de participação nos lucros para que depois os empregados tenham interesse em reprimir suas próprias demandas salariais.

Os fluxos e contrafluxos que ocorrem no interior daquilo que pode ser denominado o “campo distributivo” (terreno do Livro III d’O capital) têm se tornado, como ilustram os exemplos acima, cada vez mais complexos e volumosos, ao mesmo tempo que as categorias e os papéis se embaralham e se sobrepõem uns aos outros. Em algumas partes do mundo, o volume de transações e a rotação do capital que atravessa e permeia o campo distribucional ultrapassam consideravelmente as atividades de valorização. O mercado de câmbio é enorme, se comparado com o reinvestimento em manufatura. O mais difícil de discernir é quanto dessa atividade é apenas movimentação especulativa ou ruído transacional, que não tem nada a ver com a criação de valor.

Marx percebe claramente que a centralização no sistema financeiro de fundos excedentes na forma-dinheiro implica que o desembolso desses fundos desempenhará necessariamente um papel-chave na condução das dinâmicas de reinvestimento do dinheiro como capital. Essa é uma questão a qual retornaremos à guisa de conclusão. O sistema financeiro forma de fato um bolsão de ativos líquidos, de modo que bancos e finanças contêm e representam o capital comum da classe capitalista. Esse capital comum é inflado algumas vezes por alavancagem — empréstimo de capital fictício. Isso equivale a criar dinheiro dentro do sistema bancário. Por vezes, essa criação de dinheiro pode se tornar excessiva (quando os bancos emprestam, digamos, trinta vezes a quantidade de dinheiro efetivamente depositado que possuem). O sistema financeiro também funciona como câmara de compensação para toda sorte de transações. É, de fato, o sistema nervoso central do capital em geral, orquestrando os fluxos de capital-dinheiro para e por uma vasta gama de atividades, onde quer que a taxa de rentabilidade seja potencialmente ou realmente mais alta.

Por trás disso, surge uma classe de investidores — indivíduos, instituições, organizações e corporações — que buscam desesperadamente taxas de retorno sobre seu capital-dinheiro42. Trata-se de uma classe particular de proprietários — uma “aristocracia financeira” — que impulsiona a circulação de capital portador de juros para receber uma taxa de retorno sem mover um dedo sequer43. Fundos de pensão querem retorno sobre o seu capital (e, de fato, têm o dever fiduciário de fazê-lo), assim como instituições sem fins lucrativos (como universidades privadas) e indivíduos ricos com portfólios de investimento poderosos.

Também sabemos, a partir da brilhante dissecação que Marx faz da circulação do capital nas formas mercadoria, dinheiro e produção no Livro II d’O capital, que, do ponto de vista da circulação do capital-dinheiro, os processos de valorização e realização são encarados como meras inconveniências no caminho da realização dos lucros. Se o capital portador de juros conseguisse encontrar um modo de se autovalorizar sem passar pela valorização e pela realização, ele certamente o faria. É exatamente isso o que permitem as movimentações especulativas que ocorrem no campo distributivo. Bancos concedem empréstimos a outros bancos, e o que poderia ser mais fácil do que tomar emprestado do Federal Reserve a 0,5% e comprar títulos do tesouro de dez anos que rendem 2%? São muitos os incentivos para que o capital-dinheiro simplesmente se furte de investir na valorização, em particular quando a taxa de lucro é baixa ou as dinâmicas trabalhistas são atribuladas. A esperança é que deixar de investir nesses setores venha a criar escassez suficiente para elevar preços e taxas de lucro, estimulando o capital-dinheiro a escoar de volta para a valorização. Mas, no meio dessa movimentação especulativa, surgem fundos hedge e de participação privada que lucram diretamente com todo e qualquer tipo de movimento do mercado, subidas ou descidas, bruscas ou não. A justificativa que dão para as suas atividades é que elas ajudam os mercados a equilibrar de maneira mais eficiente a oferta e a demanda; no entanto, quando são bem-sucedidas (o que geralmente é o caso), elas fazem isso sugando vastos ganhos monetários da circulação do capital em geral. A tendência de Marx de recorrer a imagens de vampiros em seus textos parece tão apropriada aqui como o é para se referir à esfera da produção.

Marx tinha de fato algumas coisas relevantes a dizer sobre a circulação de capital portador de juros, mesmo em sua época. Com o capital portador de juros, escreveu, o “capital aparece como fonte misteriosa e autocriadora [...] de seu próprio incremento”. É aqui que a relação do capital produz “em toda sua pureza esse fetiche automático do valor que se valoriza a si mesmo, do dinheiro que gera dinheiro”. “Aqui se completam a forma fetichista do capital e a ideia do fetichismo do capital.” Trata-se da “‘mistificação capitalista em sua forma mais descarada”44. Essa é a grande traição do valor por meio de sua monetização. Esse é o ápice da distorção que o dinheiro inflige a forma-valor, que ele supostamente deveria representar. (...)

Em certas esferas, [o sistema de crédito] estabelece o monopólio e, com isso, provoca a ingerência estatal. Produz uma nova aristocracia financeira, uma nova classe de parasitas sob a forma de projetistas, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de especulação e de fraude no que diz respeito a fundação de sociedades por ações e ao lançamento e comércio de ações. É produção privada, sem o controle da propriedade privada.46

Não apenas o capital foi redefinido como “comando sobre o dinheiro dos outros”, como também criou um espaço totalmente fora do controle das relações de valor.

Desaparecem aqui todas as bases explicativas mais ou menos justificadas no interior do modo de produção capitalista. O que o comerciante atacadista especulador arrisca é a propriedade social, e não a sua própria. Não menos absurda torna-se a frase segundo a qual o capital tem origem na poupança, pois o que esse especulador exige é justamente que outros poupem para ele.47

Daí a eterna pressão para transformar o Sistema de Seguridade Social dos Estados Unidos, baseado na repartição simples [pay as you go], em fundos de pensão do mercado de ações!! Os efeitos certamente não seriam benignos nem nos tempos de Marx.

Ideias que numa fase menos desenvolvida da produção ainda podiam ter algum sentido agora perdem toda sua razão de ser. Os triunfos e os fracassos levam aqui simultaneamente à centralização dos capitais e, portanto, à expropriação na escala mais alta. A expropriação se estende, então, desde os produtores diretos até os próprios capitalistas pequenos e médios. Tal expropriação forma o ponto de partida do modo de produção capitalista [...]. No interior do próprio sistema capitalista, porém, essa expropriação se apresenta como figura antagônica, como apropriação da propriedade social por poucos, e o crédito confere a esses poucos indivíduos cada vez mais o caráter de simples aventureiros.48

A economia da expropriação e da acumulação por espoliação entra nesse quadro de maneira disruptiva, orquestrada por meio do sistema de dívida e crédito, apenas para se intensificar à medida que aumentam as dificuldades dos caminhos convencionais da acumulação de capital, como tem ocorrido desde a década de 1970. Marx percebeu claramente que, de todos os futuros perigos que a reprodução do capital enfrentava, esse provavelmente se revelaria fatal. E a ironia é que a contradição central nesse caso não se dá entre o capital e o trabalho: reside na relação antagonista entre as diferentes facções de capital.”

41 Ibidem, p. 634.

42 Idem, O capital, Livro III, cit.

43 Idem.

45 Ibidem, p. 496.

46 Idem.

47 Ibidem, p. 497.

48 Ibidem, p. 498.

Um comentário:

Doney disse...

Harvey começou este livro de forma desatenta e relapsa, mais parecendo que apenas transcrevia notas de aula.
Mais ou menos a partir do 3º capítulo a coisa embala (e com vigor).