Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte
I
“O raciocínio sobre a história é
inseparavelmente raciocínio sobre o poder.”
“Assim, a burguesia fez conhecer e impôs à
sociedade um tempo histórico irreversível, mas recusa-lhe a utilização. “Houve
história, mas já não há mais”, porque a classe dos possuidores da economia, que
não deve romper com a história econômica, deve recalcar assim como uma ameaça
imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante,
feita de especialistas da possessão das coisas, que por isso são eles próprios
uma possessão das coisas, deve ligar a sua sorte à manutenção desta história
reificada, à permanência de uma nova imobilidade na história. Pela primeira vez
o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estranho à história,
porque é agora pela sua base que a sociedade se move irreversivelmente. Na
reivindicação de viver o tempo histórico que ele faz, o proletariado encontra o
simples centro inesquecível do seu projeto revolucionário; e cada uma das
tentativas, até aqui geradas, de execução deste projeto marca um ponto de
partida possível da nova vida histórica.”
“O tempo pseudocíclico consumível é o tempo
espetacular, ao mesmo tempo como tempo de consumo das imagens, no sentido
restrito, e como imagem do consumo do tempo em toda a sua extensão. O tempo do
consumo das imagens, média de todas as mercadorias, é inseparavelmente o campo
onde plenamente atuam os instrumentos do espetáculo e a finalidade que estes
apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares:
sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna
– quer se trate da velocidade dos transportes ou da utilização de sopas em
pacotes – se traduzem positivamente para a população dos Estados Unidos neste
fato: de que só a contemplação da televisão a ocupa em média três a seis horas
por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente
dominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos representados à distância
e desejáveis, por postulado, como toda a mercadoria espetacular. Esta
mercadoria é aqui explicitamente dada como o momento da vida real de que se
trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestes momentos destinados à vida,
é ainda o espetáculo que se dá a ver e a reproduzir, atingindo um grau mais
intenso. O que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a
vida mais realmente espetacular.
Esta época, que mostra a si própria o seu
tempo como sendo essencialmente o regresso precipitado de múltiplas
festividades, é igualmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o
momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é
impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Quando as suas
pseudo-festas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom, excitam a um
excedente de dispêndio econômico, elas não trazem senão a decepção sempre
compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna
deve, no espetáculo, gabar-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se
reduziu. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.”
“Imobilizada no centro falsificado do
movimento do seu mundo, a consciência espectadora já não conhece na sua vida
uma passagem para a sua realização e para a sua morte. A publicidade dos
seguros de vida insinua somente que é repreensível morrer sem ter assegurado a
regulação do sistema depois desta perda econômica; e a do american way of death insiste sobre a sua capacidade de manter
neste encontro a maior parte das aparências da vida. Sobre todo o resto da
frente do bombardeamento publicitário é terminantemente proibido envelhecer.
Tratar-se-ia de poupar, em cada qual, um “capital-juventude” que por não ter
sido senão mediocremente empregado não pode, todavia, pretender adquirir a
realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social da
morte é idêntica a ausência social da vida.”
“Subproduto da circulação das mercadorias, a
circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se
fundamentalmente à distração de ir ver o que se tornou banal. A ordenação
econômica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesma a garantia da
sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo,
retirou-lhe também a realidade do espaço.”
“O urbanismo é a concretização moderna da
tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da
atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham
perigosamente reunido. A luta constante que teve de ser levada a cabo contra
todos os aspectos desta possibilidade de encontro descobre no urbanismo o seu
campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos desde as
experiências da Revolução Francesa, para aumentar os meios de manter a ordem na
rua, culmina finalmente na supressão da rua. “Com os meios de comunicação de
massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de
controle muito mais eficaz”, constata Lewis Mumford em Através da História, ao descrever um “mundo doravante único”. Mas o
movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também
conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades
planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve
apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: as fábricas como as casas da
cultura, as aldeias de férias como os “grandes conjuntos habitacionais”, são
especialmente organizados para os fins desta pseudo-coletividade que acompanha
também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos
receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre
povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento
adquirem o seu pleno poderio.”
“A cultura é a esfera geral do conhecimento e
das representações do vivido na sociedade histórica, dividida em classes; o que
se resume em dizer que ela é esse poder de generalização existindo à parte, como
divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura
desligou-se da unidade da sociedade do mito, “quando o poder de unificação
desaparece da vida do homem, e os contrários perdem a sua relação e a sua
interação vivas e adquirem autonomia.” (Diferença
entre os sistemas de Fichte e de Schelling). Ao ganhar a sua independência,
a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo
tempo, o declínio da sua independência. A história, que cria a autonomia relativa
da cultura e as ilusões ideológicas quanto a esta autonomia, exprime-se também
como história da cultura. E toda a história conquistadora da cultura pode ser
compreendida como a história da revelação da sua insuficiência, como uma marcha
para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar da procura da unidade perdida.
Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada é, ela própria,
obrigada a negar-se.”
“O dadaísmo e o surrealismo são as duas
correntes que marcaram o fim da arte moderna. Elas são, ainda que só de um modo
relativamente consciente, contemporâneas do último grande assalto do movimento
revolucionário proletário; e o revés deste movimento, que as deixava encerradas
no próprio campo artístico de que elas tinham proclamado a caducidade, é a
razão fundamental da sua imobilização. O dadaísmo e o surrealismo estão, ao
mesmo tempo, historicamente ligados e em oposição. Nesta oposição, que
constitui também para cada um a parte mais consequente e radical da sua
contribuição, aparece a insuficiência interna da sua crítica, desenvolvida
unilateralmente tanto por uma como por outra. O dadaísmo quis suprimir a arte
sem a realizar; e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. A posição
crítica elaborada posteriormente pelos situacionistas mostrou que a supressão e
a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da
arte.”
“O conjunto dos conhecimentos, que continua a
desenvolver-se atualmente como pensamento do espetáculo, deve justificar uma
sociedade sem justificações, e constituir-se em ciência geral da
falsa-consciência. Ela é inteiramente condicionada pelo fato de não poder nem
querer pensar na sua própria base material no sistema espetacular.”
“O espetáculo é a ideologia por excelência,
porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema
ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O
espetáculo é, materialmente, “a expressão da separação e do afastamento entre o
homem e o homem”. O “novo poderio do embuste” que se concentrou aí tem a sua
base nesta produção pela qual “com a massa dos objetos cresce (...) o novo
domínio dos seres estranhos aos quais o homem está submetido”. É o estádio
supremo duma expansão que virou a necessidade contra a vida. “A necessidade de
dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política,
e a única necessidade que ela produz” (Manuscritos
econômico-filosóficos). O espetáculo alarga a toda a vida social o
princípio que Hegel, na Realphilosophie
de Iena, concebe como o do dinheiro; é “a vida do que está morto movendo-se em
si própria”.”
“O paralelismo entre a ideologia e a
esquizofrenia estabelecido por Gabel (A
Falsa Consciência) deve ser inserido neste processo econômico de
materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade acabou por
ser. A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialética que a
acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vida quotidiana submetida ao
espetáculo; que é necessário compreender como uma organização sistemática do “desfalecimento
da faculdade de encontro” e como sua substituição por um fato alucinatório
social: a falsa consciência do encontro, a “ilusão do encontro”. Numa sociedade
em que ninguém pode já ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se
incapaz de reconhecer a sua própria realidade. A ideologia está em sua casa; a
separação construiu o seu mundo.
“Nos quadros clínicos da esquizofrenia”, diz
Gabel, “decadência da dialética da totalidade (tendo como forma extrema a dissociação)
e decadência da dialética do devir (tendo como forma extrema a catatonia)
parecem bem solidárias”. A consciência espectadora, prisioneira dum universo
estreitado, limitada pelo ecrã do espetáculo, para trás do qual a sua vida foi
deportada, não conhece mais do que os interlocutores fictícios que lhe falam
unilateralmente da sua mercadoria e da política da sua mercadoria. O
espetáculo, em toda a sua extensão, é o seu “sinal do espelho”. Aqui se põe em
cena a falsa saída dum autismo generalizado.”
“Emancipar-se das bases materiais da verdade
invertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossa época. Esta “missão
histórica de instaurar a verdade no mundo”, nem o indivíduo isolado, nem a
multidão atomizada, submetida às manipulações, a podem realizar, mas ainda e
sempre a classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes, ao reduzir
todo o poder à forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual
a teoria prática se controla a si própria e vê a sua ação. Lá, somente, onde os
indivíduos estão “diretamente ligados à história universal”; lá, somente, onde
o diálogo se estabeleceu para fazer vencer as suas próprias condições.”
“Por críticas que possam ser as situações e
as circunstâncias em que te encontres, não desesperes; é nas ocasiões em que
tudo é temível, que nada há que temer; é quando se está rodeado de todos os
perigos, que não há que temer nenhum; é quando se está sem nenhum recurso, que
há que contar com todos; é quando se está surpreendido, que é preciso surpreender
o inimigo.” (Sun-Tzu, A
Arte da Guerra)
“A sociedade modernizada até ao estágio do
espetacular integrado caracteriza-se pelo efeito combinado de cinco traços
principais, que são: a renovação tecnológica incessante; a fusão econômico-estatal;
o segredo generalizado; o falso sem réplica; um presente perpétuo.
O movimento de inovação tecnológica dura já
há muito tempo e é constitutivo da sociedade capitalista, dita por vezes
industrial ou pós-industrial. Mas desde que tomou a sua mais recente
aceleração, (no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial), reforça ainda mais a
autoridade espetacular, já que através dele cada um encontra-se inteiramente
entregue ao conjunto de especialistas, aos seus cálculos e aos seus julgamentos
sempre satisfeitos com estes cálculos. A fusão econômico-estatal é a tendência
mais manifesta deste século; e aí está ela tornada, no mínimo, o motor do
desenvolvimento econômico mais recente. A aliança defensiva e ofensiva
concluída entre estes dois poderes, a Economia e o Estado, assegurou-lhes os
maiores benefícios comuns em todos os domínios: pode dizer-se que cada um
possui o outro; é absurdo opô-los, ou distinguir as suas razões ou as suas
desinteligências. Esta união mostrou-se também extremamente favorável ao desenvolvimento
da dominação espetacular, que, desde a sua formação, não era senão precisamente
isso. Os três últimos traços são os efeitos diretos dominação, no seu estado
integrado.
O segredo generalizado mantém-se por detrás
do espetáculo, como o complemento decisivo daquilo que ele mostra e, se
aprofundamos mais as coisas, como a sua mais importante operação.
O simples fato de estar a partir de agora sem
réplica deu ao falso uma qualidade completamente nova. É ao mesmo tempo o
verdadeiro que deixou de existir quase por todo o lado ou, no melhor caso,
viu-se reduzido ao estado de uma hipótese que nunca pode ser demonstrada. O
falso sem réplica acabou por fazer desaparecer a opinião pública, que de início
se encontrava incapaz de se fazer ouvir; depois, rapidamente em seguida, de
somente se formar. Isto acarreta evidentemente importantes consequências na
política, nas ciências aplicadas, na justiça, no conhecimento artístico.
A construção de um presente onde mesmo a
moda, do vestuário aos cantores, se imobilizou, que quer esquecer o passado e
que já não dá a impressão de acreditar num futuro, é obtida pela incessante
passagem circular da informação girando continuamente sobre uma lista muito
sucinta das mesmas banalidades, anunciadas apaixonadamente como importantes
descobertas; enquanto só muito raramente, e por sacudidelas, passam as notícias
verdadeiramente importantes sobre aquilo que efetivamente muda.
Dizem sempre respeito à condenação que este
mundo parece ter pronunciado contra a sua existência, as etapas da sua
autodestruição programada.”
“A primeira intenção da dominação espetacular
era fazer desaparecer o conhecimento histórico em geral; e em primeiro lugar
quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o mais
recente passado. Uma evidência tão flagrante não necessita ser explicada. O
espetáculo organiza com mestria a ignorância do que acontece e, logo em
seguida, o esquecimento daquilo que pôde apesar de tudo tornar-se conhecido. O
mais importante é o mais escondido. Vinte anos depois, nada foi mais recoberto
de tantas mentiras comandadas como a história de Maio de 1968. Contudo, lições
úteis foram tiradas de alguns estudos desmitificados sobre essas jornadas e as
suas origens, mas são segredo de Estado.
Na Franca, há já uma dezena de anos, um
Presidente da República, esquecido em seguida, mas flutuando, então, à
superfície do espetáculo, exprimia inocentemente a alegria que ressentia, “sabendo
que viveremos a partir de agora num mundo sem memória, onde, como na superfície
da água, a imagem afasta indefinidamente a imagem”. É efetivamente cômodo para
quem está nos negócios; e sabe manter-se neles. O fim da história é um
agradável repouso para todo o poder presente. Garante-lhe absolutamente o êxito
do conjunto das suas iniciativas, ou pelo menos o ruído do êxito.
Um poder absoluto suprime tanto mais
radicalmente a história, quanto tem de ocupar-se dos interesses ou das
obrigações mais imperiosas, e principalmente conforme encontrou mais ou menos
grandes facilidades práticas de execução. Ts’in Che Hoang Ti mandou queimar os
livros, mas não conseguiu fazê-los desaparecer todos. Stalin levava mais longe
a realização de um projeto semelhante no nosso século, mas, apesar das
cumplicidades de toda a espécie que encontrou fora das fronteiras do seu
império, ficava uma vasta zona do mundo inacessível à sua polícia, onde se riam
das suas imposturas. O espetacular integrado fez melhor, com novíssimos
métodos, e operando desta vez mundialmente. A inépcia faz-se respeitar por todo
o lado, já não é permitido rir dela; em todo o caso, tornou-se impossível fazer
saber que se riem dela.
O domínio da história era o memorável, a
totalidade dos acontecimentos cujas consequências se manifestariam durante
muito tempo. Era inseparavelmente o conhecimento que deveria durar e ajudaria a
compreender, pelo menos parcialmente, aquilo que aconteceria de novo: “uma
aquisição para sempre”, diz Tucídides.
Por isso, a história era a medida duma novidade verdadeira; e quem vende a
novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de a medir. Quando o
importante se faz socialmente reconhecer como aquilo que é instantâneo, e vai
sê-lo no instante seguinte, e no outro e noutro ainda, e que substituirá sempre
uma outra importância instantânea, pode também dizer-se que o meio utilizado
garante uma espécie de eternidade desta não-importância, que fala tão alto.
A preciosa vantagem que o espetáculo retirou
deste pôr fora-da-lei da história, de
ter já condenado toda a história recente a passar à clandestinidade, e de ter
conseguido fazer esquecer muito frequentemente o espírito histórico na
sociedade, é antes de tudo cobrir a sua própria história: o próprio movimento
da sua recente conquista do mundo. O seu poder aparece já familiar, como se
tivesse estado lá desde sempre. Todos os usurpadores quiseram fazer esquecer que acabam
de chegar.”
“Com a destruição da história é o próprio
acontecimento contemporâneo que se afasta imediatamente a uma distância
fabulosa, entre os seus relatos inverificáveis, as suas estatísticas
incontroláveis, as suas explicações inacreditáveis e os seus raciocínios
insustentáveis. A todas as idiotices que são avançadas espetacularmente, não há
senão os midiáticos que poderiam responder através de algumas respeitosas
retificações ou repreensões, mas mesmo nisso são parcos, porque para além da
sua extrema ignorância, a sua solidariedade
de ofício e de coração, com a autoridade generalizada do espetáculo, e com
a sociedade que ele exprime, gera-lhes um dever e também um prazer de jamais se
desviarem desta autoridade, cuja majestade não deve ser lesada. É preciso não
esquecer que todo o midiático, por salário e por outras recompensas ou
gorjetas, tem sempre um senhor, às vezes vários, e que todo o midiático se sabe
substituível.
Todos os experts
são midiático-estatais, e apenas por isso são reconhecidos. Todo o expert serve o seu senhor, porque cada
uma das antigas possibilidades de independência foi pouco mais ou menos
reduzida a nada, pelas condições de organização da sociedade presente. O expert que serve melhor é, seguramente,
o expert que mente. Aqueles que têm
necessidade do expert são, por
motivos diferentes, o falsificador e o ignorante. Lá onde o indivíduo não
reconhece mais nada por si mesmo, será formalmente tranquilizado pelo expert. Antes era normal que houvesse experts
na arte dos Etruscos; e eram sempre competentes, porque a arte etrusca não
estava no mercado. Mas, por exemplo, uma época que acha rentável falsificar
quimicamente a maioria dos vinhos célebres, não poderá vendê-los, a não ser que
tenha formado experts em vinhos que
levarão os otários a gostar dos seus
novos aromas, mais reconhecíveis. Cervantes observa que “debaixo de uma má
capa, encontra-se muitas vezes um bom bebedor”. Aquele que conhece o vinho
ignora a maioria das vezes as regras da indústria nuclear; mas a dominação
espetacular estima que, já que um expert
se riu dele a propósito da indústria nuclear, um outro expert poderá gozá-lo melhor a propósito do vinho. Sabe-se, por
exemplo, quanto o expert em
meteorologia midiática, que anuncia as temperaturas ou as chuvas previstas para
as próximas quarenta e oito horas, é obrigado a muitas reservas pela obrigação
de manter os equilíbrios econômicos, turísticos e regionais, quando tanta gente
circula tão frequentemente por tantas estradas, entre lugares igualmente
desolados; de modo que ele será melhor sucedido como animador.
Um aspecto do desaparecimento de todo o
conhecimento histórico objetivo manifesta-se a propósito de qualquer reputação
pessoal, que se tornou maleável e retificável à vontade pelos que controlam
toda a informação, aquela que recolhem e também aquela, bem diferente, que
difundem; eles têm portanto toda a permissão para falsificar. Porque uma evidência
histórica da qual nada se quer saber no espetáculo, já não é uma evidência. Lá
onde ninguém tem senão a celebridade que lhe foi atribuída como um favor pela
benevolência de uma Corte espetacular, a desgraça pode acontecer
instantaneamente. Uma notoriedade anti-espetacular tornou-se qualquer coisa de
extremamente rara. Eu próprio sou um dos últimos vivos a possuir uma; a nunca
ter tido outra. Mas esta também se tornou extraordinariamente suspeita. A
sociedade proclamou-se oficialmente espetacular. Ser conhecido à margem das
relações espetaculares equivale já a ser conhecido como inimigo da sociedade.
É permitido mudar completamente o passado de
qualquer um, de o modificar radicalmente, de o recriar no estilo dos processos
de Moscou; e sem que seja mesmo necessário recorrer às fadigas de um processo.
Pode matar-se com menos custos. Os falsos testemunhos, talvez desajeitados –
mas que capacidade de sentir esta inabilidade poderá ainda restar aos
espectadores que serão testemunhas das façanhas destes falsos testemunhos? – e os
falsos documentos, sempre excelentes, não podem faltar àqueles que governam o
espetacular integrado, ou aos seus amigos. Portanto, já não é possível
acreditar, sobre ninguém, em nada daquilo que não tenha sido conhecido por si
mesmo e diretamente. Mas, de fato, já não há muitas vezes a necessidade de
acusar falsamente alguém. Desde que se detém o mecanismo de comando da única
verificação social que se faz plenamente e universalmente reconhecer, diz-se o
que se quer. O movimento da demonstração espetacular prova-se simplesmente
andando à roda: voltando, repetindo-se, afirmando continuamente sobre o único
terreno onde reside doravante aquilo que pode afirmar-se publicamente, e
fazer-se acreditar, pois que é disso somente que todo o mundo será testemunha.
A autoridade espetacular pode igualmente negar seja o que for, uma vez, três
vezes, e dizer que não falará mais disso, e falar de outra coisa, sabendo bem
que já não arrisca mais nenhuma outra réplica no seu próprio terreno, nem em
nenhum outro. Porque já não existe ágora de comunidade geral, nem mesmo de
comunidades restritas aos corpos intermédios ou às instituições autônomas, aos
salões ou cafés, aos trabalhadores de uma só empresa; nenhum lugar onde o
debate, sobre as verdades que dizem respeito àqueles que lá estão, possa
libertar-se de forma duradoura da esmagadora presença do discurso midiático, e
das diferentes forças organizadas para o substituir. Atualmente já não existe
julgamento com a garantia de relativa independência, daqueles que constituíam o
mundo erudito; daqueles que, por exemplo, antigamente, manifestavam o seu
orgulho numa capacidade de verificação, permitindo a aproximação àquilo a que
se chamava a história imparcial dos fatos, de acreditar pelo menos que ela
merecia ser conhecida. Já nem existe mesmo verdade bibliográfica incontestável,
e os resumos informatizados dos ficheiros das bibliotecas nacionais poderão
suprimir ainda melhor os traços. Perder-nos-íamos pensando naquilo que foram
noutros tempos os magistrados, os médicos, os historiadores, e nas obrigações
imperativas em que eles se reconheciam, na maior parte das vezes, nos limites
das suas competências: os homens
parecem-se mais com o seu tempo do que com o seu pai.
Aquilo de que o espetáculo pode deixar de
falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra
coisa qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, em suma, existe. As
consequências práticas, como se vê, são imensas. Acreditava-se saber que a
história tinha aparecido, na Grécia, com a democracia. Pode verificar-se que
ela desaparece do mundo com ela.
É preciso porém acrescentar a esta lista de
triunfos do poder, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se
instala duravelmente um grande déficit de conhecimentos históricos, já não pode
ser conduzido estrategicamente.”
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