Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
domingo, 16 de setembro de 2018
Filosofia da religião — Adriano Antônio Faria
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
Antropologia filosófica, de Ranieri Carli
Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-202-0
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 174
Sinopse: O ser humano já representou diferentes
papéis na sua existência. Já foi considerado o centro do universo e já foi
punido por descobrir que essa é a função do Sol. A cada época houve um conceito
dominante e os pensadores de cada período tinham uma visão sobre o papel do
homem. É isto que você encontrará em Antropologia Filosófica: um livro que resgata os pensadores e suas ideias ao longo dos
séculos, promovendo, desta forma, um rico e inteligente debate sobre o tema.
“Toda formação
histórico-social brota do processo de ruína de uma antiga formação. Com a
Grécia Antiga não é diferente. As sociedades antigas nascem da dissolução das
comunidades primitivas. Essas primeiras formas de organização social não
conheciam a divisão dos homens em classes sociais antagônicas: “As atividades
de seus membros eram comuns (a coleta, a caça, a pesca), seus resultados eram
partilhados por todos e não havia propriedade privada de nenhum bem” (José
Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia Política, 2006, p. 56). A escassez
da produção não permitia que houvesse o acúmulo de bens; não havia excedente
econômicos1.
Em geral, as
comunidades primitivas eram agrupadas internamente entre as famílias, que, por
sua vez, poderiam se reunir em associações gentílicas; as gens são um conjunto
coeso de famílias agregadas.
Na história da
Grécia, as sociedades gentílicas possuíam uma forma de governo correspondente à
sua organização socioeconômica, Segundo as pesquisas antropológicas de Engels (A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2000, p. 106),
“todas as querelas, todos os conflitos são dirimidos pela coletividade a que
concernem, pela gens ou pela tribo, ou ainda pelas gens entre si”. Essa
política comunitária é reconhecida por Engels nas tribos iroquesas (um grupo
nativo americano), mas que se pode inferir como generalizada para o caso grego2.
No plano da
história universal, a decadência das comunidades primitivas dá-se com a
descoberta de dois fatores econômicos: a agricultura e a domesticação dos
animais. Com essas duas poderosas forças produtivas, os homens puderam produzir
um excedente, uma sobra de bens que fosse para além do seu consumo imediato. O
excedente econômico determinou a ruína das relações comunitárias porque, com um
número maior de produtos, foi possível escravizar. Explicamos: se antes era
impossível a manutenção da vida do inimigo conquistado em guerra, agora, ao
contrário, uma parte do sobreproduto poderia ser destinada à sua sobrevivência.
Graças ao excedente que permite a sua subsistência, o inimigo conquistado é
incorporado às sociedades conquistadoras como escravo.
Aos poucos e de
diferentes maneiras, a humanidade transcendeu as comunidades tribais e
progrediu rumo ao escravismo, Todas as grandes civilizações da Antiguidade
foram escravistas.”
1: Nem sempre a
escassez de excedente era fruto da penúria da produção, Godelier fala de tribos
que se proibiam de produzir senão aquilo que seria consumido de pronto: “Em
quase lodos os casos [dos estudos da época], as sociedades primitivas poderiam
produzir um excedente, mas não o fazem, É assim que Carneiro calculou que os
Kuikuus da bacia amazônica, que praticam a agricultura em queimadas e a pesca,
só despendem três horas e meia em média por dia para assegurar a sua
subsistência: duas horas para as atividades agrícolas e uma hora e meia para a
pesca. Consagram as restantes dez horas ou doze do dia ao repouso, às
caminhadas, prática da luta, dança, etc.” (Godelier, Antropologia, 1981,
p. 37).
2: “Nos tempos
pré-históricos já os gregos, como os pelasgos e outros povos da mesma origem
tribal, estavam constituídos em séries orgânicas idênticas à dos americanos:
gens, fratria, tribo, confederação de tribos” (Engels, 2000, p. 109).
“No instante em
que Platão (427-347 a.C.) surgiu para o cenário filosófico, a Grécia já estava
se desenvolvendo como uma sociedade escravista e as formações gentílicas
estavam em vias de ser coisa do passado. Atenas estava sob o jugo dos “tiranos”
escravistas. No entanto, a concepção de homem em Platão é a nostalgia daquele
tempo em que vigoravam as comunidades tribais. Conforme Carlos Nelson Coutinho
(Literatura e humanismo, 1967, p. 89), o homem platônico é o reflexo de
um homem que existiu realmente, “em determinado período da evolução da
humanidade e de sua autoconsciência, o da comunidade primitiva; contudo, ela já
é inexistente — realmente inexistente, embora subsista residualmente no plano
ideológico! Platão é uma tentativa de se recuperar a pureza perdida das antigas
gens comunitárias, é a subsistência no plano das ideias daquele homem ainda sem
a cisão entre classes antagônicas; é um retorno ideal do escravismo para as
tribos primitivas. Agnes Heller (Aristóteles y el mundo antigo, 1998, p.
68) escreveu corretamente que “a vida inteira de Platão constitui uma luta
teórica e prática pela renovação da polis, pela restauração da comunidade
orgânica e da ética comunitária”. Por isso, brincando com os termos modernos,
Coutinho define Platão como um “romântico”.”
“A República é a obra capital para o entendimento da
concepção de homem em Platão. Por meio de Trasímaco, Platão expõe as ideias
representativas das sociedades escravistas; por exemplo, no que concerne à
justiça, o personagem afirma que “o que eu digo ser justo sempre, em todas as cidades
sem exceção: o vantajoso para o governante estabelecido. É ele que tem o poder
e, para quem raciocina corretamente, em todos os lugares, o justo é sempre a
mesma coisa, a vantagem do mais forte” (Platão, 2006, p. 20). A justiça é
sempre a justiça do mais forte, daquele que exerce o poder, da classe
dominante, que, à época, era formada pelos senhores de escravos. É certo,
portanto, dizer que “Trasímaco sustém que a justiça é sempre justiça de classe”
(Agnes Heller, O homem do renascimento, 1983, p. 95).
No diálogo que compõe
A República, as ideias de Trasímaco serão refutadas por Sócrates, a voz
pela qual Platão faz proferir suas próprias palavras, como sempre. É ele quem
opõe à justiça de um homem cindindo em classes a justiça integra das
comunidades gentílicas: “Então, Trasímaco, isto já é evidente, que nenhuma
arte, nenhum governo, cuida da vantagem própria, mas, como já há muito
dizíamos, busca e prescreve a do subordinado, visando ao vantajoso para o mais
fraco e não para o mais forte” (Platão, 2006, p. 31). Isto é, os governantes e
os governados estão sob uma mesma moral; um não submete o outro à sua vontade.
É a aristocracia arcaica que se reflete nas epopeias de Homero, a quem Platão
batizou de “educador de toda a Grécia”. O governo é dado naturalmente pelas
tradições, e a aristocracia prescreve a conduta dos subordinados porque essa é
a sua função dentro do íntegro corpo societário. No parágrafo seguinte, Platão
exibe com clareza a sua concepção de homem: “Se existisse uma cidade de homens
de bem, poderia muito bem acontecer que a disputa deles fosse para conseguir
ficar fora do governo como hoje é para assumi-lo; e aí ficaria evidente que
realmente o verdadeiro governante, por sua natureza, não tem em vista sua
vantagem pessoal, mas a do subordinado” (Platão, 2006, p. 33).”
“Afinal, vê-se
que, em sua peculiar concepção de humanidade, Platão apresenta uns aspectos
racionais e dialéticos (em geral, resgatados do método de Sócrates) e outros
“românticos”.
Distinta é a
maneira pela qual Aristóteles (384-322 a.C.) conceberá o humano. Aquilo que
Coutinho chama de romantismo platônico não terá vez na filosofia
aristotélica, o autor de Metafísica é um realista convicto. Nada há de
utópico em Aristóteles: o seu homem é o homem de seu presente histórico. A
sociedade grega está em seu período escravista, distinguem-se as classes de
escravos e senhores de escravos, É essa a realidade com que Aristóteles lidará
em sua filosofia. Vejamos uma passagem de Política: “a natureza
distinguiu os corpos do escravo e do senhor, fazendo o primeiro forte para o
trabalho servil e o segundo guio e, se bem que inútil para o trabalho físico,
útil para a vida política e para as artes, tanto na guerra quanto na paz”
(Aristóteles, Política, 1999, p. 151). A distinção entre os escravos e
os seus senhores advém da natureza: o escravo nasce para o trabalho direto de
sustento da vida social; o senhor, para a política de dominação, as artes e a
guerra (que significa a captura de novos escravos). Ao contrário de Platão,
Aristóteles aborda o homem de sua história presente enquanto uma “intenção da
natureza”.
Ademais,
Aristóteles recrimina os filósofos que “argumentam ser indefensável a ideia de
que, porque um homem possui o poder de infligir violência e ser superior em
força bruta, o outro tenha de ser seu escravo” (Aristóteles, Política
1999, p. 152). Aqueles que desejam que a engrenagem da história gire para trás
não veem nenhum tipo de “excelência” na “virtude da superioridade”, segundo
Aristóteles. Percebam que é uma postura diametralmente oposta à de Platão.
(...)
A democracia grega
reflete-se em todo o seu esplendor na filosofia aristotélica. É o novo homem
que nasce da desagregação da antiga Pólis. Sabe-se, no entanto, que a
democracia dos antigos restringia-se aos homens pertencentes à cidade-Estado. O
que excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Observem que,
comentando a arte da tragédia, Aristóteles (Poética, p. 54) argumenta que o trágico deve
configurar os personagens com atos moralmente elevados, com bom caráter,
acrescentando que “essa bondade pode estar em todos os tipos de personagens,
incluindo a mulher e o escravo, ainda que a mulher seja inferior e o escravo,
insignificante”. Heller (1983, p. 180) acerta então ao caracterizar a
perspectiva aristotélica de humanidade: “Sua perspectiva não é a de toda
humanidade, senão do mundo helênico tão somente”.
O seu objeto não é
a inteira humanidade, senão a humanidade da civilização helênica. Efetivamente,
ao discutir o homem de seu período histórico, Aristóteles não se limita cidade
em que habita, Atenas. A sua preocupação transborda as fronteiras atenienses e
atinge a totalidade da civilização helênica. O homem de Aristóteles era o homem
helênico. É certo que não chega a toda humanidade, como disse Heller no
parágrafo mostrado. Porém, os problemas que interessam Aristóteles ampliam-se
para além da democracia de Atenas, o que se apresenta uma novidade entre os
gregos.
Esta concepção
global de homem ressoa na Política e na sua análise da escravidão. De
novo, Heller afirma que os contemporâneos de Aristóteles procuravam compreender
a prática política a partir da distinção entre as formas de governo; a
discussão girava em torno das modalidades de governos mais apropriadas para a
manutenção dos Estados: democracia ou aristocracia. Ao contrário, Aristóteles
não toma como ponto de partida essa questão. Para ele, o essencial é antes
discutir a escravidão. Todas as
cidades helênicas estavam transitando para o escravismo (ou já se organizavam
assim). Daí, a discussão das formas de governo era secundária para um helênico
como Aristóteles:
É a escravidão que ocupa o centro de seu interesse, tanto no plano teórico
quanto estrutural (na política). O ponto de partida da política não é a
elucidação da melhor forma estatal, senão a análise das relações amo-escravo e
dos problemas relativos à aquisição e posse de escravos. Em outras palavras,
parte de um problema comum a todas as “poleis” gregas e inclusive a todo
território do império helênico. Com efeito, todas as “poleis”, fossem
democráticas ou aristocráticas, estavam baseadas, pelo menos parcialmente, na
escravidão. (Heller, 1983, p. 178, grifo do original)
Isso faz com que
Aristóteles seja o principal responsável pelo nascimento da concepção helênica
de humano, o que repercutirá posteriormente na filosofia dos estoicos e
epicuristas, os reais representantes do helenismo consolidado. É o primeiro filósofo
que interpreta a totalidade do homem da civilização helênica.
O realismo
aristotélico trouxe consequências àquele que Cassirer elegeu como o “ponto
arquimédico” da antropologia filosófica: o processo de autoconsciência do
homem. Ao definir em que consiste a verdade, Aristóteles foi claro: “A verdade
é dar o nome adequado à coisa”. Isto é, “das ideias, portanto, e em nenhuma das
formas que se costumam afirmar, não podem provir as outras coisas”
(Aristóteles, Metafísica, 1984, p. 31). As coisas não provêm das ideias.
Não existiria uma definição tão realista quanto essa. Isso quer dizer que,
independentemente da opinião particular do filósofo, existe um nome adequado à
coisa; a realidade concreta não aceitaria qualquer denominação: há uma que é a
precisa. O nome verdadeiro diz respeito à própria legalidade imanente às coisas
reais. As coisas, a natureza, os e ventos da vida possuem prioridade face à
vontade do sujeito do conhecimento. No movimento de obtenção da verdade, não se
deve projetar um ideal sobre o real, como fez Platão em seu turno. O próprio
real deve ser investigado a ponto de que se constate qual o nome que lhe
compete. Em outras palavras, chegar à verdade é se apropriar da verdade que
está na coisa.
Apropriar-se da
coisa significa apoderar-se de sua verdade. Não se deve abstrair, então, a
particularidade de cada coisa singular. Por exemplo, caso tomemos a abstração
desprovida de conteúdo, de determinações concretas, seria como “se chamasse homem,
ao mesmo tempo, a Cálias e à madeira, sem nada ter observado entre eles em
comum” (Aristóteles, 1984, p. 31, grifo do original). As particularidades
características de Cálias demonstram que se trata de um humano, de um ser
social, enquanto a madeira é um ser inorgânico. Essas são as suas verdades; são
os nomes que condizem com a sua respectiva materialidade.
Por essa razão,
Aristóteles não repudia as sensações. É uma outra vertente de seu afastamento
do homem platônico. O homem aristotélico não é apenas contemplativo; é prático
e sensitivo. Logo nas primeiras palavras da Metafísica, é dito que
“todos os homens têm, por Natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o
prazer das sensações, pois, fora até de sua utilidade, elas nos agradam por si
mesmas e, mais que todas outras, as visuais” (Aristóteles, 1984, p. 11). O
desejo de conhecimento humano inicia a sua marcha com as sensações, com o
primeiro contato com o mundo dos objetos, com a percepção sensível da
materialidade do real. Com as sensações, o homem começa a tomar consciência de
seu redor. E da experiência prática dos sentidos, o homem avança até a cultura;
a consciência humana não se estanca nos sentidos, mas sim sua prática ascende à
constituição dos valores culturais, das tradições, ou, nos termos da Metafísica,
da memória, “é da memória que deriva aos homens a experiência: pois as
recordações repetidas da mesma coisa reproduzem o efeito duma única
experiência” (Aristóteles, 1984, p. 11).
É bom que se
ressalve que, na concepção aristotélica de homem, as sensações são o início da
autoconsciência humana sem que seja o seu único e exclusivo fim. Aristóteles
reconhecia que o conhecimento parte do empírico, mas não se reduz a ele. É
preciso superar o caráter imediato das coisas para que se faça a ciência: “Não
julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência, embora elas
constituam, sem dúvida, os conhecimentos mais seguros dos singulares. Mas não
dizem o ‘porquê’ de coisa alguma, por exemplo, por que o fogo é quente, mas só
que ele é quente” (Aristóteles, 1984, p. 12). Com a sensação, descobrimos que o
fogo é quente, mas não as propriedades físico-químicas que o levam a isso. Para
tal, deve-se requerer o auxílio da ciência.
No instante em que
definiu, portanto, a mais “elevada das ciências”, Aristóteles (1984, p. 14) fez
valer o seu realismo convicto, determinando-a como “aquela que conhece aquilo
do qual cada coisa se deve fazer. E isto é o bem em cada coisa e, de maneira
geral, o ótimo no conjunto da Natureza”. A filosofia, isto é, a “mais elevada
de todas as ciências”, é a consciência do bem que existe em cada coisa singular
e do ótimo que há no universo da natureza.”
“As sensações não
foram levadas em conta por Platão, segundo Aristóteles. A imbricação entre a
ideia universal e o singular sensível não foi capturada pelo autor de A
República. Assim, o princípio da mudança, o movimento, que é determinação elementar das sensações, fugiu às definições
da filosofia platônica.
Com efeito,
Aristóteles coloca o movimento como
categoria essencial da vida humana. Dada a sua posição histórica, Aristóteles
pôde filosofar sobre o princípio da mudança como nenhum antes pudera. A matéria
sempre em mutação é um tema que ocupa uma das maiores preocupações da
Metafísica aristotélica. Isso se explica pelo já anunciado: Aristóteles
percebia a vida grega transformando-se e tomava partido favorável a essa
transformação. Ao se pôr a favor da história em transformação, Aristóteles
sentiu-se à vontade para afirmar o caráter mutável das relações humanas. Sob
esse aspecto, o debate acerca da categoria do movimento não poderia ser
excluído de sua filosofia.
Nada há de eterno
no homem aristotélico, a não ser o Deus imóvel que dá início à existência. De
resto, o móvel é o impulso da história e da natureza. Tudo é passível de
perecer: “Quanto ao movimento, se estas [determinações] são o movimento, é
evidente que as ideias também deverão morrer; e se não, de onde é que ele [o
movimento] veio? Cairia assim o estudo inteiro da natureza” (Aristóteles, 1984,
p. 33-34). Seria impossível se realizar o estudo da natureza se as ideias
fossem eternas; sem o princípio do movimento, não se concebem as realidades da
natureza e da sociedade*.
Enfim, a concepção
de homem em Aristóteles está aqui delineada em sua essência. Repetimos à guisa
de conclusão que o humano aristotélico é a afirmação do homem de seu presente
histórico, do homem helênico, que ou já está cindindo em classes sociais ou
caminha para tal cisão.”
* “Ora, se o
movimento não é substância da alma, a alma se move contra a Natureza”
(Aristóteles, De anima, 2006, p. 59).
“Também Hegel nos
fala de Epicuro (341-272 a.C.), o mais renomado dos helênicos. Ao descrever o
que a filosofia de Epicuro reconhecia como o caminho para se obter a verdade,
Hegel demonstra que há uma certa semelhança entre Aristóteles e o helênico;
segundo Epicuro, “três são os graus ou fases do conhecimento: o primeiro é a
sensação, como o lado do exterior; o segundo a representação, como o lado do
interior; o terceiro, a opinião, como unidade dos dois anteriores” (Hegel, Lecciones
sobre la historia de la filosofía, 1996, p. 379). Porém, Epicuro se difere
de Aristóteles quando eleva a sensação à “verdade por si mesma”. Epicuro
entende que a sensação é verdadeira por si mesma quando se manifesta firmemente
(Hegel, 1996, p. 380). Lembrem-se de que a sensação era eleita por Aristóteles
como o ponto de partida da verdade, e não como a “verdade em si mesma”. Dessa
forma, pode-se dizer que o homem imediato, unilateral e abstrato é o homem que
comparece à concepção de mundo dos epicuristas e dos helênicos em geral. É da letra
de Epicuro que se lê que o essencial para a felicidade é a nossa condição íntima, e dela somos todos
senhores.”
“A desagregação
das sociedades antigas dura séculos. Gradativamente, as civilizações da
Antiguidade deram lugar a uma nova modalidade de organização social. A última floração
da Antiguidade foi o Império Romano, dominante de quase toda a Europa e o
oriente próximo.
As invasões
bárbaras foram o último grão de cal na ruína das relações antigas. Sob o
domínio do Império romano, as comunidades germânicas iniciaram um processo de
invasão a partir de 480 d.C. Essas tribos estavam organizadas de acordo com o
comunismo primitivo; possuíam uma divisão gentílica da estrutura social. Aos
poucos, à medida que as invasões se intensificavam, as relações comunitárias dos
bárbaros germânicos foram se entrelaçando com a antiga formação dos romanos.
Dessa imbricação, originou-se o feudalismo: “A longa simbiose das formações
sociais romana e germânica nas regiões fronteiriças gradualmente estreitara a
brecha entre ambas, embora ainda continuasse uma fenda enorme da maioria dos
aspectos. De sua colisão e fusão final e cataclismática iria surgir finalmente
o feudalismo” (Perry Anderson, Passagens da antiguidade ao feudalismo,
2007, p. 107).
O feudalismo
começa a se solidificar no final do século V nos países da Europa Ocidental e
Central. O Estado romano não resiste às sublevações invasoras das tribos
germânicas e, desse longo processo de lutas e síntese, nasceu o sistema feudal,
que caracteriza a economia da Idade Média.”
“A filosofia
pressupõe a religião em santo Agostinho. Segundo a sua concepção filosófica, o
conhecimento provém das escrituras e, para conhecê-las, é necessário ter fé,
crer que elas dizem a verdade (Étienne Gilson, A filosofia na idade média,
2007, p. 144). Por isso, a fé precede o conhecimento ou, em outros termos, a
religião precede a filosofia. Primeiro, é preciso acreditar na veracidade das
escrituras para depois extrair delas o autêntico conhecimento sobre as coisas.
Cassirer (Antropologia
filosófica, 1967, p. 14) está correto quando afirma que, nas Confissões (1999) de santo Agostinho, seguimos a marcha
da filosofia grega à religião cristã. O caráter racional do homem aristotélico
(e também do helênico de Epicuro) não comparece à concepção de homem da
nascente sociedade feudal. Descrevendo a época juvenil em que lia Aristóteles e
era influenciado pela filosofia racionalista do grego, santo Agostinho (1999,
p. 117) questiona: “De que me aproveitava isto, se só me prejudicava?”
Reconhece posteriormente, em sua confissão direta ao próprio Deus, quando via o
mundo com as lentes de Aristóteles: “Era falso o que pensava de Vós. Era
mentira. Eram ficções da minha miséria, e não uma concretização da vossa beleza”
(Agostinho, 1999, p. 117). Santo Agostinho defende que as filosofias anteriores
à aparição de Cristo padeceram do erro de acreditar na razão, esquecendo-se de
que todo o poder de conhecimento emana das “revelações divinas”. Daí se conclui
com santo Agostinho que a razão é uma das faculdades mais duvidosas do homem, a
qual jamais poderia nos conceder o caminho da luz, da verdade e da sabedoria
(Cassirer, 1967, p. 14).
Em santo
Agostinho, “temos assim uma subversão completa de todos os valores mantidos
pela filosofia grega. O que em um tempo pareceu ser o sumo privilégio do homem
aparece agora como seu perigo e tentação; o que constituía seu orgulho resulta
em sua humilhação mais profunda” (Cassirer, 1967, p. 14).”
“As
inconveniências, no caso de o serem, e sejam quantas forem, podem ser maléficas
ou úteis, do mesmo modo que todas as demais coisas, tudo dependendo da condição
de quem as escuta [...] Nenhum espírito corrompido jamais pôde compreender
sadiamente qualquer palavra sã. Tanto quanto as palavras honestas não beneficiam
o espírito perverso, também as palavras que não são honestas demais não podem
contaminar a mente bem formada.” (Giovanni Boccaccio – Decamerão, 1971,
p.579-580)
“Efetivamente, o
racionalismo de Hume pretendia a ingerência na vida social. Não era uma
concepção aristocrática de homem que procurava limpar-se da ação prática. A
teoria não se isola da prática. A filosofia e a política não são duas
modalidades de comportamento excludentes. Hume escrevia para que os homens
lessem e se transformassem. A leitura das obras filosóficas não era mera
diversão ou simples passatempo. A filosofia apresentava um modelo de conduta
social a ser seguido, respaldado antes de tudo na razão humana.
A razão nos
livraria das superstições, assim entendia Hume. A nossa conduta seria purificada
das crenças populares com a incorporação dos conceitos filosóficos à nossa vida
cotidiana. De acordo com o filósofo escocês, “o raciocínio exato e justo é o
único remédio universal adequado a todas as pessoas e aptidões, o único capaz
de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados com a
superstição popular, se tornam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores
descuidados e se afiguram com ciência e sabedoria” (David Hume, Investigação acerca do
entendimento humano,
1999, p. 31).
É a típica
linguagem iluminista: a filosofia é o remédio contra os males do obscurantismo
medieval. (...)
É com esse
racionalismo resoluto que Hume consegue explicar a noção de Deus, de uma
maneira impossível de ser vista em Tomás de Aquino, por exemplo. Para Hume
(1999, p. 37), “a ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente,
sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito,
quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria”. A
ideia de um Deus é resultado da nossa reflexão sobre a nossa própria bondade e
sabedoria, com a sua posterior projeção em um Ser que portaria indefinidamente
essas qualidades humanas. Deus nasce como reflexo do homem acerca de si mesmo.”
“Hume nos
apresenta a concepção de homem do Iluminismo: racional, antropocêntrico,
crítico e prático.
Em seus estudos
sobre a religião, Paul Henry Thiry, conhecido como Barão de Holbach
(1723-1789), por exemplo, chegou a constatações similares às de Hume. Na História
natural da superstição (La contagion sacrée ou Histoire naturelle de la
superstition, 2006), o historiador francês afirmou que a religião demanda
em primeiro lugar o sacrifício da razão (p. 52). A partir do momento em que
deixam de tomar a razão como a guia de seus conhecimentos sobre a natureza das
coisas, os homens tornam-se entes passivos das superstições. Se Deus criou a
natureza, é ele quem deve comandá-la, o que implica que a direção sobre os
eventos sai das mãos dos homens. O problema é que precisamente naquele instante
o homem estava tomando em seu pulso o destino da história; Holbach assistia à
Revolução Francesa e não poderia aceitar que aquela grande obra libertadora não
fosse fruto das ações humanas, e sim um simples desígnio de um Deus
transcendental.
Holbach (2006, p.
61) preocupava-se com a submissão da moral à religião porque, sendo o criador
de todas as coisas, seria Deus o responsável pela distinção entre o certo e o
errado. Diz o iluminista francês que, sob a vontade divina, o crime pode se
tornar virtude e vice-versa.
Esse mesmo autor
menciona uma série de consequências que resultam da conduta moral estipulada
pelas religiões: renunciar à razão, cegar-se voluntariamente, fechar os seus
olhos à verdade, ocupar-se unicamente de quimeras sem sequer perceber, combater
com zelo e destruir com furor os que se recusam a se iludir, sacrificar nossos
bens aos caprichos dos padres, renunciar aos bens que se creem que não partem
da divindade, mortificar os seus sentidos, rendendo-se a uma vida insuportável,
defender com vigor os preconceitos que não foram submetidos ao exame da razão
etc.
Cabia ao homem,
portanto, desvincular-se dos “caprichos da religião” e decidir ele mesmo quais
de suas ações eram morais e quais eram imorais. E, ao fazê-lo, o homem não
deveria se sentir culpado perante nenhum Deus.”
“A consolidação do
modo de produção capitalista demarcou uma etapa distinta de seu período de
instauração. A filosofia dos partidários da revolução foi igualmente
transformadora; o seu projeto de homem era baseado na crença de que o reino da
razão poderia ser realizado na história. Com o devir, a concretização da
sociedade burguesa desfez as ilusões historicamente legítimas dos
renascentistas, dos cartesianos, dos iluministas e dos racionalistas em geral.
O reino da razão demonstrou ser impraticável. O domínio da natureza e da
história pela racionalidade não ocorreu como se havia planejado. Pelo
contrário, a racionalidade capitalista exibiu-se como uma jaula de ferro que
aprisionou as forças do homem de maneira similar ao feito pelas amarras
medievais à sua época.
A racionalidade
burguesa tornou-se a burocracia da rotina diária, que limita a experiência
humana. O labor cotidiano, produzido em meio a repetições incessantes,
transformou-se em um fardo a ser suportado.
Max Weber
(1860-1920) analisou de modo exemplar esse aprisionamento do homem burguês. Em Economia
e sociedade (1999), escreve-se que, com a gerência burocrática da vida
social,
O aparelho psicofísico do homem é aqui
completamente adaptado às exigências do mundo externo, do instrumento, da
máquina ou, em uma palavra, da função, despojado de seu ritmo dado por sua
própria estrutura orgânica e submetido a um novo ritmo que, depois da análise
sistemática das funções de cada músculo e da criação de uma ótima economia de
forças, corresponde perfeitamente às condições do trabalho. (p. 362)
O ritmo da esteira
das indústrias capitalistas sobrepôs-se ao ritmo natural do corpo dos homens. O
homem é um mero apêndice da máquina das empresas do capitalismo avançado. Em outro
livro, A ética protestante e o
“espírito” do capitalismo, Weber (2004, p. 47-48) narra com palavras diferentes:
Atualmente a ordem econômica capitalista é um
imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos
enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e
dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes
do mercado, as normas de ação econômica. O fabricante que insistir em
transgredir essas normas é indefectivelmente eliminado, do mesmo modo que o
operário que a elas não possa ou não queira adaptar é posto no olho da rua como
desempregado.
O que se lê nas
obras de Weber é a consolidação da sociedade burguesa, quando as esferas da
vida do homem são transformadas em mercadoria, quando as relações sociais obtêm
a feição mercantilizada do capital. É a época em que, como diz José Paulo Netto
(Capitalismo e reificação, 1981, p. 82), “a disciplina burocrática
transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os
homens, do útero à cova”.
O ideal do bem
supremo defendido por Kant quase desaparece da filosofia. A jaula de ferro da
modernidade não permite o otimismo que era então generalizado entre os
iluministas.”
“Em que consiste a
antropologia materialista?
Marx diz que o
método materialista de interpretação do homem não parte de conceitos elaborados
mentalmente. O seu ponto de partida é a própria efetividade do real. Marx parte
de pressupostos empíricos. É desse modo que descreve a sua concepção de filosofia:
Ela não tem necessidade, como na concepção
idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de
permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a
práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da
práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e
[todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da
crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua
transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela
demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações
idealistas. (Karl Marx e
Friedrich, A ideologia alemã, 2007, p. 42-43)
Está aqui
estampada a concepção materialista de homem: não se parte, então, daquilo que
os indivíduos pensam sobre si mesmos, senão daquilo que são de fato, os homens
de carne e osso.
Esse método serviu
para Marx discernir qual a peculiaridade do sujeito frente à natureza. Adotando
como princípio de sua filosofia o homem que produz a sua própria realidade,
Marx reconheceu o trabalho, isto é, a atividade humana consciente, como a
primeira das características que distinguem o homem da natureza. Leiamos:
O animal identifica-se imediatamente com a
sua atividade vital. Não se distingue dela. É a SUA PRÓPRIA ATIVIDADE. Mas o
homem faz da sua atividade vital objeto da vontade e da consciência. Possui uma
atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele
imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da
atividade vital dos animais.
(Marx, Grundrisse, 1993a, p. 164-165, grifo do original)
A última frase da
citação é lapidar: a atividade vital consciente distingue o homem da atividade
vital dos animais. É a consciência, a razão concernente ao trabalho humano, que
distingue o homem do animalesco. O homem é a única das espécies produzidas pela
natureza que pôde superar a sua condição natural porque detém a razão. A
atividade humana é racional, é transformadora, e não meramente adaptativa, da
maneira como é a dos animais. O animal apenas se adapta ao ambiente em seu
redor; o homem o transforma em algo diverso: o homem arranca uma parcela da
natureza, a madeira ou as pedras, por exemplo, e faz dela um objeto de uso
social, como um machado. Esse machado feito de madeira e pedra não é mais
somente natureza; é também (e principalmente) um objeto de valor social,
humano. (...)
O homem começa a
se diferenciar da natureza a partir do trabalho: com a sua atividade
consciente, ele torna-se um ser social. (...)
Com essa nova
modalidade de ser, o homem, surgem categorias não vistas até então. Sobre a
consciência, já vimos que a diferença está posta: no reino da natureza não há a
atividade consciente. Mas também não há entre os animas a liberdade. Os seres
naturais reproduzem a sua vida de forma mecânica, automática, previamente
determinada pelos instintos inerentes à sua espécie. Quanto ao homem, a
situação é diversa. Por ser racional, o homem consegue formular escolhas diante
de determinada circunstância. Não está estabelecido geneticamente que, em um
cruzamento de duas vias, um ser humano singular deverá optar sempre pela via
direita. Resta ao homem escolher. Daí provém o princípio da liberdade.
Marx (O
Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, 1974, p. 335) expressou essa ideia com as seguintes e famosas
palavras: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Os homens fazem a
sua própria história; um indivíduo pode tomar a via direita, enquanto o outro
se decidirá pela esquerda.
O dado relevante
dessas escolhas é que Marx acrescenta que a alternativa não é individualmente
colocada pelos homens. Fazem a sua própria história, mas não como querem; as
alternativas foram legadas pelas gerações anteriores, pelos antepassados dos
homens atuais e estes últimos recebem essa herança para continuá-la,
preservá-la, transformá-la etc. Por exemplo, um homem que vive em nosso tempo
não conseguiria viver segundo os padrões socioeconômicos da Antiguidade grega.
Mesmo que quisesse, não seria possível. Um burguês que pretendesse se comportar
como Sócrates não seria capaz de reproduzir todos os aspectos da vida do filósofo
grego. É objetivamente irrealizável. O homem faz a sua própria história, mas em
circunstâncias que não foram individualmente escolhidas por ele.
Segundo a
concepção antropológica de Marx, o homem e a totalidade social são dois
aspectos indissociáveis da realidade concreta. Um não pode ser pensado sem o
outro. As circunstâncias são produzidas pela ação humana que, por sua vez, é
condicionada por elas. (...)
A questão é que,
durante a história, o homem produziu realidades que não se repetem ao longo do
tempo. A antropologia materialista de Marx possui um caráter inapelavelmente
histórico. A essência do homem é a transformação histórica; aquilo que
permanece é meramente fenomênico. O modo como os homens produzem e reproduzem
as condições de sua vida são diferentes nos vários est ágios de desenvolvimento
da história.
O modo de produção
capitalista é mais um desses estágios. Não é o único senão apenas um outro em
meio a tantos, de acordo com as teorias desenvolvidas por Marx. Assim como
todas as etapas anteriores se puseram em um inesgotável processo de dissolução
histórica, o capitalismo também se põe dentro desse processo.”
“Houve, no entanto,
filósofos que não participaram do projeto racionalista do homem do Iluminismo e
tampouco aceitaram os pressupostos inerentes à antropologia materialista. Não
viam saída para o homem acuado pelo desenvolvimento do capitalismo burocrático,
fosse o racionalismo iluminista ou a sua herança marxista. Continuaram nos
limites do homem burguês, sem que se nutrissem do otimismo do ideal do bem
supremo de Kant.
É desse contexto
que nasce a antropologia filosófica de Martin Heidegger (1889-1976). Georg
Lukács (El asalto a la razón, 1968, p. 398) constata que os pressupostos
históricos para a filosofia de Heidegger condizem com a situação temerosa em
que se encontrava a sociedade europeia no início do século XX: “Não havia nada
de seguro, nenhum ponto de apoio. E, no meio do caminho, se levantava o
indivíduo solitário, cheio de angústia e medo”. É o que caracteriza a noção
antropológica de Heidegger : o homem solitário e desesperado diante da
história. À sua corrente filosófica, Heidegger deu o nome de existencialismo,
cuja descrição é feita nesses moldes novamente por Lukács (1968, p. 399):
A “filosofia existencial”, nascida das
depressões profundas do desespero de um subjetivismo extremo, que se devora a
si mesmo e que encontrava justificação precisamente no “pathos” deste
desespero, na intenção de denunciar como vãs e vazias quimeras do pensamento
todos os ideais da vida sócio-histórica, por oposição à única realidade
existente: o sujeito.
A partir dos
comentários de Lukács fica clara qual é a fórmula para se compreender a
antropologia filosófica de Heidegger: o
sujeito acrescido da angústia existencial. O filósofo existencialista
costumava dizer que em nenhuma época houve um homem tão problemático quanto na
atual. A angústia de seu tempo se traduzia assim na concepção de homem de
Heidegger (Ser e tempo, 1997a, p. 250, grifo do original): “Aquilo com
que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’.
Fenomenalmente, a impertinência do nada e do em parte alguma intramundanos
significa que a angústia se angustia com
o mundo com o tal”. A angústia que o homem porta em si é a angústia que
brota do confronto com o mundo enquanto tal. Intramundano, o homem está sob o
signo do desespero.
O existencialismo
de Heidegger incorpora à antropologia a tônica do desespero como característica
constitutiva do ser do homem. A marca indefectível do gênero humano é o
desesperar-se com o mundo em torno.
Este elemento filosófico
de Heidegger possui antepassados. Pensemos no filósofo dinamarquês Sören
Kierkegaard (1813-1855). O seu Tratado sobre o desespero humano (Traité
du désespoir, 1963) representava os indivíduos como seres
angustiados por natureza. De suas palavras podemos ler a definição de humano
que, segundo Kierkegaard (p. 67), “é o ácido, é a gangrena do desespero, a
súplica cuja ponta, dirigida ao interior, afunda-nos cada vez mais no sentido
da autodestruição impotente”. Essa súplica ácida e pontiaguda que nos atinge no
interior e que nos leva à autodestruição impotente é universal, é comum a todos
os homens. É parte inerente à espécie humana: “O desespero é uma categoria do
espírito, suspensa na eternidade, e por consequência um pouco de eternidade
entra em sua dialética” (p. 76). O desespero é então uma categoria partícipe do
espírito de nosso gênero.
À mesma época que
Kierkegaard, Arthur Schopenhauer (1788-1860) dizia que “a vida oscila, como um
pêndulo, da direita para esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes
são os dois elementos de que ela é feita” (O mundo como vontade e
representação, 2004, p. 327). Há também em Schopenhauer um quê de desespero
e de pessimismo que resultariam posteriormente nas elaborações filosóficas de
Heidegger. Schopenhauer argumentava que a moral de autoflagelação dos hindus é
a conduta que está em concordância com a essência humana; o pessimismo de
Schopenhauer (2004, p. 407) o conduz a preconizar os mandamentos da negação
desesperada do mundo:
Despojar-se de suas riquezas, abandonar
qualquer habitação, deixar os seus, viver no isolamento mais profundo, afundado
numa contemplação silenciosa, infligir-se uma penitência voluntária no meio de
lentos e terríveis suplícios, em vista de uma mortificação completa da vontade,
levada finalmente à morte pela fome [...], precipitando-se da rocha sagrada do
alto do Himalaia, ou fazendo-se enterrar vivo [...] Preceitos observados
durante tanto tempo por um povo que conta milhões de indivíduos, impondo
sacrifícios tão pesados, não pode ser uma fantasia inventada por capricho, mas
devem ter a sua raiz na própria essência humana.”
“Toda vida está
posta entre dois parênteses: o nascimento e a morte. E só o homem tem
consciência disso.” (Karl Jaspers, Introdução ao pensamento filosófico,
1985, p. 127)