domingo, 16 de setembro de 2018

Filosofia da religião — Adriano Antônio Faria

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-308-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 230
Sinopse: Mergulhar nas reflexões propostas pela filosofia da religião nos instiga a pensar sobre nossa própria existência, nossos propósitos de vida e a amplitude do universo. O tema nos conduz à busca do conhecimento sobre a espiritualidade e as conexões que estabelecemos com a vida e com o que nos cerca. A investigação realizada nesta obra é fundamental para estudarmos o fenômeno religioso e seus contextos histórico, social e cultural, a fim de compreendermos as influências da religião na vida do ser humano e das sociedades.



“Tentar responder aos questionamentos mais profundos do ser humano — sua origem, sua missão e seu destino bem como compreender as condições circunstanciais que o limitam — como a dor, o sofrimento, a alegria, a angústia, o bem e o mal — ajuda-nos a discernir a origem do fenômeno religioso, pois ele transcende o espaço físico e temporal, visto que por meio dele se transfere à esfera da divindade e do misticismo aquilo que está além do entendimento humano. Essa transferência gera dúvida e, consequentemente, pesquisa, tentativas de respostas, enfim, conhecimento.
Em decorrência dessa reflexão especulativa, começam a surgir tentativas de respostas, que vão sendo transmitidas às novas gerações, primeiramente de forma incipiente, oral e, aos poucos, dando origem a um corpo doutrinal que vai sendo ordenado, sistematizado e purificado.
O estudo do fenômeno religioso, em função de sua especificidade, tem papel fundamental na compreensão da dimensão religiosa de um povo, pois sempre está em sintonia com a cultura e os costumes de uma determinada população. Como vimos, tal fenômeno se manifesta em rituais, celebrações, doutrina e devocionário próprios. Convém lembrarmos que o meio no qual o indivíduo está inserido condiciona seu ser religioso e, na maioria das vezes, determina sua filiação a um credo específico. Geralmente, os indivíduos são livres para fizer suas próprias escolhas, porém, quando no ambiente de algumas denominações fundamentalistas, a tentativa de mudança implica enfrentamento familiar, social e cultural e é vista como uma traição. Portanto, o fenômeno religioso deve ser compreendido sempre de um ponto de vista macro, que envolve os aspectos culturais, sociais e a dimensão humana como um todo e com todas as suas implicações.
Assim, compreender o fenômeno religioso é entender como um determinado grupo vivencia o ethos e as implicações de tal comportamento em sua relação com a sociedade como um todo — tanto do indivíduo com seus pares quanto com o diferente. A filosofia da religião nos ajuda a compreender melhor esse universo misterioso do fenômeno religioso e a emergência da alteridade.”


“Segundo J. Ferrater Mora (Dicionário de filosofía, 1964, p. 731, tradução nossa), o subjetivismo se caracteriza pela “redução de qualquer juízo ao sujeito que julga; é o mesmo que dizer da limitação da validez ao sujeito que julga”. O subjetivismo é a tendência a só se levar em conta os dados subjetivos, ou seja, do sujeito envolvido. Como também afirmam La Brosse, Henri e Rouillard (Dicionário de termos da fé, [S.d.], p 739), subjetivismo é o sistema segundo o qual o homem não conhece as coisas em si mesmas, mas tais como são para ele, como se lhe apresentam. Duas divisões: sistema que afirma que só existe o sujeito que pensa e que representa as coisas (idealismo absoluto) ou sistema em que representações exteriores não têm substância (fenomenismo).
Com a corrente filosófica subjetivista, a crise do saber, a ausência dos valores fundamentais e universais e, particularmente, a crise generalizada que atinge todas as instâncias da sociedade, sobretudo os campos da educação e da cultura, há a tendência de se cair no relativismo sistêmico. Segundo J. B. Libânio (Seminário sobre pastoral urbana, 1995), a desconfiança atinge os sistemas de verdade, de bem e de valores criados pela razão. As crises das verdades e dos valores perenes, das grandes teorias explicativas da realidade e da história e das instâncias decisórias sociais abrem espaço para as particularidades em todos os níveis. Surgem as “pequenas verdades”, as morais provisórias, os interesses pessoais que geram o individualismo. (...)
Libânio nos fala da pretensão da modernidade de remeter a religião ao mundo privado e, se fosse possível, de aboli-la totalmente:
Entronizou-se a razão crítica como a normadora fundamental da sociedade. O malogro desse projeto revela-se pelo fato de a razão fracassar na tarefa de criar uma sociedade humana, igual, fraterna, livre. Além do mais, ao desalojar a religião da função estruturante e normativa da sociedade e entregá-la à subjetividade das pessoas, terminou por provocar um fenomenal surto de denominações e grupos religiosos. Em vez de uma grande religião, de um único universo simbólico tradicional ou de uma razão com pretensões religiosas, assistimos ao emergir de infinitas manifestações religiosas, novos movimentos religiosos, autônomos, independes, flexíveis, criativos, em numero sempre maior.”


“A filosofia da religião, como expressão crítica da reflexão humana sobre o fenômeno religioso, norteia-se por um conjunto de pressupostos. Identificar adequadamente esses pressupostos é fundamental para que seu discurso não se confunda com o discurso religioso em si, aquele que é feito pelo fiel — a quem estamos chamando de Homo religiosus. Sem pretender apresentar uma lista exaustiva de pressupostos para a reflexão filosófica acerca do fenômeno religioso, passamos à exposição de alguns que julgamos fundamentais:
• A filosofia da religião ou o estudo filosófico da religião baseia-se na pressuposição de que a religião e as ideias religiosas, pertencentes primariamente à esfera do sentimento e à experiência prática, podem ser também objetos da interpretação científica ou racional.
• O estudo filosófico da religião pressupõe também que, embora a religião e filosofia estudem os mesmos assuntos, a atitude humana para com eles é diferente em cada caso. Na religião, esses assuntos se apresentam como realidades imediatas e objeto de devoção e gozo espiritual; ao passo que, na filosofia, esses mesmos assuntos se apresentam como objeto de reflexão, apreensão intelectual e mesmo pesquisa especulativa.”
(U. Zilles, Filosofia da religião, 2010, p. 17-19).


“Para Alves e Redyson (Religare, 2010) ocorreu na Grécia uma passagem da teogonia para a cosmogonia e, na sequência, para a cosmologia. Teogonia (Θεογονία) que tem origem grega e, etimologicamente, é uma palavra composta pelos termos theos (deus) e gonia (nascimento) — pode ser tomada pelo sentido de narrativa sobre a origem dos deuses, dos homens e das coisas.
Já cosmogonia (κοσμογονία) — que também vem do grego e é composta pelos termos κοσμοç (universo) e yoviα (nascimento) — pode ser tomada pelo sentido de narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo por meio de forças geradoras — narrativa ainda ligada aos mitos.
Por sua vez, a cosmologia surgiu como o estudo da origem do universo e do mundo com base na natureza (physis). O período pré-socrático cosmológico é considerado por Marilena Chaui (Introdução à história da filosofia, 2002) o primeiro período da história da filosofia.
Reale e Antiseri (História da filosofia, v.1, 2007, p. 7) observam que para os gregos também foi muito importante Hesíodo com sua Teogonia, que relata
o nascimento de todos os deuses. E, como muitos deuses coincidem com partes do universo e com fenômeno do cosmo, a teogonia torna-se também cosmogonia, ou seja, explicação mítico-poética e fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos, a partir do Caos original, que foi o primeiro a se gerar. Esse poema abriu o caminho para a posterior cosmologia filosófica, que, ao invés de usar a fantasia, buscaria com a razão o “princípio primeiro” do qual tudo se gerou.
Nesse período da história da filosofia, os pensadores buscavam superar as explicações sobre a origem e a transformação do mundo e das coisas por meio de mitos sobre divindades e forças sobrenaturais, substituindo-as por explicações racionais embasadas na observação da natureza e pela formulação de teorias lógicas.”


“As questões filosóficas e religiosas não podem ser evitadas: “Como a religião era parte desta vida concreta, os filósofos não podiam deixar de formular a questão da verdade da religião, de sua significação para a vida humana e a questão filosófica sobre Deus” (Zilles, 2010, p. 8). Os questionamentos acerca da realidade do mundo e de Deus estão aí, ao alcance de qualquer pessoa que se aventure a pensar. Transcrevemos a seguir o que Reale e Antiseri (História da filosofia, v.3, 2005b) apresentam no preâmbulo de seus estudos sobre a história da filosofia e o argumento da razão. Essas indagações são as mesmas que os primeiros pensadores fizeram, que nós fazemos e que outros farão por todo o sempre, pois tratam da essência do ser, da relação com a divindade e com o cosmos:
Deus existe, ou existiríamos apenas nós, perdidos neste imenso universo? O mundo é um cosmo ou um caos? A história humana tem sentido? E se tem, qual é? Ou, então, tudo — a glória e a miséria, as grandes conquistas e os sofrimentos inocentes, vítimas e carnífices — tudo acabará no absurdo, desprovido de qualquer sentido? E o homem: é livre e responsável, ou é um simples fragmento insignificante do universo, determinado em suas ações por rígidas leis naturais? A ciência pode nos dar certezas? O que é a verdade? Quais são as relações entre razão científica e fé religiosa? Quando podemos dizer que um Estado é democrático? E quais são os fundamentos da democracia? É possível obter uma justificação racional dos valores mais elevados? E quando é que somos racionais? (Reale; Antiseri, 2005b, p.3)”


“Segundo La Brosse, Henri e Rouillard [S.d.], o sagrado tem sua origem latina no vocábulo sacer, santo, e pode ser compreendido por três enfoques distintos. O primeiro é da história das religiões, que entende que ele “qualifica uma coisa, uma disposição ou um costume considerados intocáveis, exceto por algumas pessoas”. Nessa categoria, podemos citar os ritos e cerimônias e, até mesmos os objetos utilizados para o ritual. O segundo enfoque é o da filosofia da religião, que entende o sagrado como “aquilo pelo qual se experimenta um contato com o divino, que suscita simultaneamente admiração e atração, terror e afastamento”, portanto, envolve o indivíduo, provocando nele um estado de espírito e uma mudança comportamental. O terceiro enfoque é o da sociologia da religião, que reconhece como sagrado o domínio das coisas segregadas e reservadas ao culto”.”


“Para as três grandes religiões monoteístas, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, o sagrado é tudo aquilo que tem uma proximidade com Deus ou a ele é consagrado por um ritual específico: espaços celebrativos ou de significação especial, objetos de devoção ou próprios de rituais celebrativos, situações e datas específicas, pessoas consagradas ou outros elementos próprios de cada denominação.
Nas religiões tradicionais, animistas e politeístas, o conceito de sagrado se expande conforme as divindades cultuadas, que muitas vezes representam as forças da natureza ou estão associadas a ela. Nesse sentido, o sagrado está presente em muitos ambientes, como a mata, a água, o fogo, o vento, a montanha e assim por diante. Gaarder, Hellern e Notaker (O Livro das Religiões, 2001, p. 18) nos ajudam a compreender essa dimensão do sagrado afirmando que “Alguém que adora uma pedra não está prestando homenagem à pedra em si. Venera a pedra porque esta é um hierofani, ou seja, ela aponta o caminho para algo que é mais do que uma simples pedra: é o sagrado”. Portanto, cada religião tem seu universo sagrado, que vai desde um símbolo, um lugar de culto, objetos e forças da natureza até pessoas e divindades. O objeto, a pessoa ou o lugar sagrados servem de sinais para apontar o divinos como imagens simbólicas que transcendem o visível e o palpável e apontam para o infinito ou o universo religioso.”


““De que modo, então, não entender a natureza como sagrada, uma mediação para se chegar à divindade? Segundo M. Eliade (O Tratado e o Profano, 1992, p. 59), para o homem religioso, a natureza tem origem divina, pois nasceu por obra das mãos da divindade, portanto “o mundo fica impregnado de sacralidade”. Muitas religiões, principalmente as primitivas, de origem tribal, entendem a natureza como manifestação do sagrado. Religiões atuais, contudo, também consideram a natureza como espaço sagrado por exemplo, as de matriz africana e indígena, como veremos adiante.
O estudioso romeno, especialista do sagrado, afirma:
Não se trata somente de urna sacralidade comunicada pelos deuses, como é o caso, por exemplo, de um lugar ou um objeto consagrado por uma presença divina. Os deuses fizeram mais: manifestaram as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo e dos fenômenos cósmicos. (Eliade, 1992, p. 59)
Na concepção indígena, por exemplo, ninguém pode ser dono da terra, pois é um elemento religioso sagrado que pertence a todos e assegura a vida e a sobrevivência da coletividade. A Mãe Terra é a casa desses povos, acolhe e alimenta os filhos com os seus frutos. Há um relacionamento de proximidade e de afeto do indígena com esse elemento sagrado, a terra e tudo o que nela existe. Assim sendo, Deus, segundo a tradição indígena, o Grande Espírito, é o protetor da natureza e determina o seu cuidado. Segundo G. Schwikart (Dicionário ilustrado das religiões, 2001, p. 96), muitas são as religiões indígenas que “cultuam uma força misteriosa que os assiste e protege. É chamada por alguns ‘Wakan Tanka’ ou ‘Grande Espírito’”.
Segundo a Assintec (Tradições religiosas indígenas e afro-brasileiras, 2007, p. 21), para as religiões de matriz africana, tudo está impregnado de axé, ou seja, da força vital que a tudo e a todos sustenta:
as raízes, o leito dos rios, as pedras, e outros elementos, também possuem Axé. Receber o Axé significa incorporar os elementos simbólicos que representam os princípios vitais de tudo o que existe no mundo visível (Àiyé) e no mundo invisível (Òrun), num processo de expansão permanente.
A concepção da natureza como espaço sagrado traz implicações muito importantes e impactantes para o mundo atual. Apenas como um desdobramento do tema — e com parcialidade —, se a natureza fosse compreendida em sua real sacralidade, isto é, o templo onde habitam o homem e a mulher, criaturas divinas, e o local para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, a natureza não seria tão desprezada, espezinhada e destruída. A religião, nesse caso, seria um excelente fator de proteção.
Notem a incongruência: a natureza, com a sua força inexplicável e poderosa, deu origem às mais profundas inquietações humanas, que resultaram na filosofia e na religião. Essa mesma natureza, maculada pela ganância dos mesmos homens, pode dar origem ao seu extermínio. O ponto de convergência das religiões é a busca do equilíbrio do ser humano com os outros seres, a natureza e a divindade. A ruptura significa morte, o contrário de religião, que, em uma de suas definições, é reatar ou religar.”


“Para Gaarder, Hellern e Notaker (2001, p. 38-39),
A principal característica das religiões universais surgidas no Oriente Médio é o monoteísmo: elas têm um só Deus. Dá-se grande peso à relação do indivíduo com Deus e à sua salvação. O papel do sacrifício é bem menos proeminente nelas do que nas religiões nacionais, ao passo que o da oração e da meditação é mais importante. As religiões universais foram criadas por profetas fundadores cujos nomes são conhecidos: Moisés, Buda, Lao-Tse, Jesus, Maomé. (...)
As religiões de origem oriental apresentam alguns aspectos comuns, entre eles podemos destacar a visão cíclica da história, que vai se repetindo sempre, em um ciclo eterno e assim “o mundo dura de eternidade em eternidade [...]. O divino está presente em tudo. Ele se manifesta em muitas divindades (politeísmo), ou como uma força impessoal que permeia tudo e a todos (panteísmo)” (Gaarder; Hellern; Notaker, 2001, p. 40). A união com a divindade pode ser conseguida por meio do conhecimento ou de uma experiência de iluminação interior. (...)
Para as religiões orientais, a salvação acontece com a libertação do ciclo das constantes reencarnações até a plena purificação e, para que isso aconteça, o fiel necessita fazer penitência e crescer no conhecimento místico. Essas religiões pregam a fuga do mundo e a pacificidade, entendida como vivência de paz, por esse motivo, florescem entre elas a vida monástica de recolhimento e de oração. Em seus cultos, rituais e celebrações, prevalecem a oração, os mantras, o incenso, os sacrifícios e os exercícios de meditação. (...)
O hinduísmo, religião principal da Índia, não é homogêneo. Existem variantes nas crenças e nas formas de celebrar o culto. Nos vários segmentos do hinduísmo, as castas, a compreensão da vaca como animal sagrado e a ideia do carma (soma das boas e más ações da pessoa, que podem resultar na reencarnação) são elementos comuns. Convém recordar que esse país possui a estratificação em castas: os sacerdotes ou brâmanes; os guerreiros; os agricultores, os comerciantes, os artesãos e, a última, os servos. A vaca é considerada sagrada porque é o símbolo da fecundidade e da fertilidade, concepção herdada dos antigos e consta nos hinos vedas. A palavra veda significa conhecimento e marca um período da história que se inicia em 1500 a.C. e se prolonga até 500 a.C. No que se refere ao carma, segundo Gaarder, Hellern e Notaker (2001, p. 46), “um hinduísta acredita que, depois da morte de um indivíduo, sua alma renasce numa nova criatura vivente. Pode renascer numa casta mais alta ou mais baixa, ou pode passar a habitar um animal”. Segundo o pensamento hinduísta, a alma não morre e nem envelhece, e todas as ações podem reaparecer após a morte.
Há uma ordem inexorável nesse ciclo que vai de uma existência a outra. O impulso por trás dela, ou que a mantém sempre em movimento, é o karma do homem, palavra sânscrita que significa “ato”. Porém, nesse caso, ato se refere a pensamentos, palavras e sentimentos, não apenas a ações físicas. (Gaarder; Hellern; Notaker, 2001, p. 46)
Convém recordar que o hinduísmo é uma religião politeísta cujos principais deuses são: Vishnu, Rama, Krishna, Shiva e Brahma. Existem, igualmente, nessa religião a presença de deusas como Kali, a Deusa Mãe ou a Rainha no Universo. A divindade Oficial da Índia é a Mãe Índia ou Bhárata Mata. Existem, também, muitas outras divindades secundárias.
Quanto ao budismo, seu fundador foi Sidarta Gautama (560 a.C.-480 a.C.). De família nobre, depois de esbanjar sua vida em vaidades, acabou assumindo um estado ascético, isto é, de esforço e de sacrifício, em busca da iluminação, o que conseguiu aos 35 anos de idade, sentado sob uma figueira às margens de um afluente do Ganges. Ali se tornou um buda, ou seja, um iluminado. Alguns definem esse estado como nirvana, isto é, verdade suprema. Essa verdade era uma resposta a alguns aspectos negativos ou estados de alma: “Tudo o que existe no mundo é (a) sem autonomia, (b) transitório, e, em consequência, (c) pleno de sofrimento. Assim, ele [Buda] não via esperança enquanto o homem estivesse preso nesse ciclo” (Gaarder; Hellern; Notaker, 2001, p. 64). A doutrina budista ensina que
existe algo eterno, algo fora do sofrimento. O budista chama a isso de NIRVANA. Essa palavra significa, na verdade, “apagar”. O desejo “se extingue” quando se atinge o nirvana. A imagem representa o desejo como chama que se apaga quando o combustível termina — o combustível é a luxúria humana, o ódio e a ilusão. (Gaarder; Hellern; Notaker, 2001), p. 64, grifo do original) (...)
Em um breve olhar sobre o confucionismo, vemos que é um misto de filosofia de vida e de religião; um conjunto de pensamentos, regras e rituais sociais desenvolvidos pelo filósofo Confúcio. O confucionismo era uma religião praticada pela elite e pelas classes dominantes até o final do império chinês, em 1911. Essa religião não se expandiu em meio à população.
O taoísmo, segundo os pesquisadores da religião Gaarder, Hellern e Notaker (2001, p. 86), “se baseia num livro chamado Tao Te Ching, O livro do Tao e do Te. Tao (ordem do mundo) e te (força vital) são antigos conceitos chineses aos quais Confúcio deu uma interpretação um pouco diferente”. O tao, portanto, representa a suprema ordem do universo. O taoísmo encontrou maior ressonância e difundiu-se mais entre a população em virtude de suas características de magia.
O xintoísmo é conhecido como a antiga religião oficial do Japão, porém, a partir do ano 500 d.C., sofreu grandes impactos do budismo, resultando em uma mútua influência. Segundo os pesquisadores citados, no Japão não existe uma filiação religiosa rígida: as pessoas transitam livremente entre várias religiões, participando de seus cultos e rituais. O xintoísmo entra na categoria de uma religião nacional, não tem um fundador e adota costumes e características de várias outras denominações religiosas.
O tenri-kyo é uma religião recente, surgida no século XIX, com origens no taoísmo. Fundada por uma mulher chamada Miki Nakayama, que recebeu revelações do deus Oya-gami. Segundo sua doutrina, é uma religião monoteísta e a divindade é considerada como o único deus verdadeiro criador de tudo. Seu objetivo é levar o bem-estar a todas as pessoas por meio da bênção do rito cultual. Sua ideologia é de caráter missionário e busca expansão na Ásia e nas Américas.
Embora essas religiosidades e ideologias tenham como sua origem o Oriente e o Extremo Oriente, elas possuem um elevado grau de penetração nas sociedades ocidentais, dado o caráter místico e muitas vezes mágico de seus cultos. Em nossos estudos de filosofia da religião, podemos perceber o fascínio que essas religiões exercem principalmente sobre os jovens.”


“As religiões denominadas afro-brasileiras são muitas e têm suas raízes no continente africano; porém são brasileiras por sua estruturação e surgiram em vários pontos do país, como o candomblé na Bahia, no Rio de Janeiro e em outros estados; o batuque nos estados do Sul, principalmente no Rio Grande do Sul; o tambor de mina no Maranhão e no Pará; o xangó em Recife; xambá e catimbó no Nordeste; e, mais tarde, a umbanda, iniciada em 1908, em Niterói (RJ) — religião de características africanas com um profundo sincretismo com o espiritismo e catolicismo. Essas formas de crer provenientes da África Ocidental chegaram ao Brasil junto com os negros escravizados no período colonial, nos séculos XVIII e XIX.
Segundo o teólogo e pesquisador Hans Küng (Religiões do mundo, 2004), essas manifestações religiosas primitivas deram origem a todas as religiões e têm sua gênese em grupos específicos africanos, aos quais denomina de “religiões tribais que, praticamente sem dispor de quaisquer textos escritos constituem de certa forma o terreno onde todas as religiões estão enraizadas, e que, ao mesmo tempo, continuam a existir nas várias regiões do mundo”.
O animismo é uma característica própria das religiões primitivas e tribais e é aplicado também para as religiões nativas presentes em nosso continente. Segundo Schlesinger e Porto (Dicionário enciclopédico das religiões, 1995, p. 184), o animismo é
a expressão religiosa do homem primitivo que se caracteriza pela adoração de espíritos que residem em árvores, montanhas, poços e fontes sagradas ou mesmo em pedras de formas especiais. Precedem o mosaísmo, mas antes se deu lugar aos deuses antropomórficos. Penetrou na tradição judaica, que no Antigo Testamento procede de ideias animistas, pois concebe o espírito como sujeito individual de índole pessoal que se apossa do homem e o torna capaz de realizar ações que requerem força especial. (...)
As religiões de matriz africana consolidaram-se no Brasil por meio de um profundo sincretismo entre as crenças africanas, o catolicismo tradicional, as tradições nativas brasileiras, o islamismo em alguns grupos e, mais tarde, o espiritismo. Não há uma pureza de raiz africana, mas sim, uma forma de crer envolvendo diversas matrizes religiosas. Em um olhar mais apurado, poderíamos até arriscar dizer que essas denominações representam o rosto do Brasil.
A religião, caminho encontrado pelos negros escravizados para garantirem sua identidade cultural e aliviarem seus sofrimentos e saudades, desempenhou um papel importante no contexto social desses indivíduos. As reuniões celebrativas nos terreiros, com suas orações e cantos, eram uma forma de prestar devoções aos Orixás, que são as forças da natureza, auxiliares de Olorum, o Ser Supremo, criador de todas as coisas. Serviam também para manter vivas as suas raízes e representaram uma forma de resistência contra os portugueses colonizadores. Segundo Küng (2004, p. 41),
entre as religiões tribais da África Negra existe uma ampla faixa espíritos. Bons e maus, previsíveis e imprevisíveis. Espíritos ancestrais (vadzimu), que agora se manifestam como espíritos protetores da família, sobretudo as crianças. Espíritos errantes (mashavi), que, não tendo sido corretamente sepultados em terras estranhas, não querem ficar esquecidos. Espíritos tribais (mhondoro) que se preocupam com o bem da tribo e de seu chefe. Não é, como muitas vezes se ouve, que as religiões tribais sejam marcadas inteiramente pelo medo dos demônios.
Entre as denominações de matriz africana destaca-se o candomblé, que significa cantar e dançar em louvor e, segundo A. Schultz (O protestantismo e as estruturas teológicas do imaginário religioso brasileiro, 2005), é a religião dos ancestrais africanos, portanto, no parecer de seus seguidores, guarda a pureza de sua origem. Contudo, o candomblé apresenta em sua estrutura sinais claros de outras tradições religiosas, em uma profunda simbiose. “Na verdade, o candomblé não é uma religião africana, mas que surge do contato das religiões africanas trazidas pelos escravizados com o contexto brasileiro. As diversas tradições africanas se misturaram no Brasil, e estas com o catolicismo e com a matriz indígena” (Schultz, 2005, p. 55).
Um elemento comum presente nas religiões de matriz africana, no candomblé, na umbanda e nos outros grupos religiosos, é a energia vital, por elas denominada de axé. Segundo a Assintec (2007, p. 21),
a palavra Axé pode ser traduzida como “aquilo que deve ser realizado”. Segundo as tradições religiosas africanas essa força é contida e transmitida por meio de elementos materiais e de certas substâncias, mantendo e renovando neles sua capacidade de realização. Nas manifestações religiosas, o sangue portador do Axé pertence ao Ser Superior, Criador de todas as coisas, e é oferecido a Ele em primeiro lugar. O sangue pode ser de origem animal, vegetal ou mineral. O coração, o fígado, os pulmões e os órgãos genitais são partes do corpo consideradas plenas de Axé. As raízes, as folhas, o leito dos rios, as pedras, e outros elementos, também possuem Axé. Receber o Axé significa incorporar os elementos simbólicos que representam os princípios vitais de tudo o que existe no mundo visível (Àiyé) e no mundo invisível (Òrun), num processo de expansão permanente.
Além do candomblé, destacamos em nosso estudo a umbanda. Sua estrutura é tipicamente brasileira e surgiu da fusão de vários elementos dos cultos afro, da devoção popular católica, da doutrina espírita e do relacionamento com o mundo dos espíritos e os costumes dos pajés indígenas. Além desses elementos, aparecem também traços esotéricos, principalmente em sua simbologia. A palavra umbanda, segundo a Assintec (2007), tem dois significados, o primeiro significa a arte de curar, e deriva do kimbundo, um dos idiomas africanos; e o segundo diz que a palavra umbanda se traduz como a Lei Maior ou Lei Suprema do Bem.
Destacamos em nosso estudo alguns aspectos que são considerados essenciais na cultura e na tradição religiosa afro-brasileira: a oralidade, o símbolo e o diálogo. Segundo os apontamentos da Assintec (2007, p. 21), “o sistema comunicativo da oralidade prevê a identificação, a expressão e a conservação da bagagem etnocultural. O símbolo é fundamental para a expressão da crença”. A dimensão dialógica tem um espaço crucial nessas denominações religiosas, pois é por meio dela que os mitos e as tradições culturais são transmitidos às novas gerações. Lugar de destaque nesse processo tem o ancião, pois ele é o mestre da palavra e, como na cultura tribal africana, tem o papel de autoridade: nas religiões de matriz africana, são denominados de pai de santo ou mãe de santo e são a referência do grupo religioso.
Não existe nas religiões de matriz africana um corpo doutrinário sistematizado e, por esse motivo, é comum perceber crianças de famílias pertencentes a cultos africanos frequentarem catequese católica para adquirirem um conteúdo doutrinário que lhes ajude na assimilação de valores religiosos.
É interessante notar em nosso estudo sobre a filosofia da religião como as religiões de matriz africana influenciaram e marcaram o tecido cultural, social e religioso brasileiro. Essa profunda simbiose; um misto de culturas, crenças, rituais, símbolos e magia, despertou no imaginário das pessoas uma espécie de sedução e a possibilidade de responder a algumas das inquietações mais profundas da existência e a solução para problemas concretos do dia a dia. Exemplos concretos são os trabalhos encomendados para se conseguir atingir a determinados objetivos, a comunicação com os espíritos e, consequentemente, com os mortos, que exerce um fascínio sobre muitas pessoas. Todos esses fatores levam-nos a compreender por que essas religiões transcenderam o universo racial negro e atraíram um número significativo de pessoas brancas e de outras etnias. É comum perceber que a umbanda, por exemplo, não parece ser uma religião de rosto negro.”


“Tanto as religiões africanas quanto as indígenas brasileiras, bem como as da América como um todo e de outras partes do planeta com características tribais, entram na classificação de religiões primais, definidas como
São aquelas que os estudiosos costumavam chamar de “religiões primitivas” e que se encontram, ou se encontravam, em culturas ágrafas, entre os povos tribais da África, Ásia, América do Norte e do Sul e Polinésia. A marca mais característica dessas religiões é a crença numa miríade de forças, deuses e espíritos que controlam a vida cotidiana. O culto aos antepassados e os ritos de passagem desempenham um papel importante. A comunidade religiosa não se separa da vida social, e o sacerdócio normalmente é sinônimo de liderança política da tribo. (Gaarder; Hellern; Notaker, 2001, p.38)
Por conta da opressão que pesou sobre as nações indígenas no território brasileiro nesses pouco mais de quinhentos anos de colonização, com a consequente dizimação de incontáveis culturas, sobrevivem no Brasil pouco mais de 200 povos diferentes e 170 línguas distintas das mais de mil nações indígenas que existiam. Cada uma delas com sua herança cultural, suas tradições; seus mitos e suas crenças específicas.
Nesse universo da diversidade cultural indígena, os pesquisadores constataram que as tradições religiosas são diferentes, pois
há uma diversidade de povos e culturas que se distinguem no tipo biológico, línguas, costumes, ritos, organização social, etc. Suas religiões são profundamente marcadas por rituais nos quais os mitos são revividos com intensidade de modo que em algumas comunidades os participantes no ato ritualístico sentem-se parte da divindade.(Assintec, 2007 p. 5)
Os ritos celebrativos são de grande riqueza, envolvem expressões corporais com dança, cantos, com uma variedade de entonações vocais e a beleza dos instrumentos musicais, além da prática de rituais de defumação e o uso de bebidas produzidas com plantas nativas que provocam transe e evocam incorporações.
Uma das características dessas religiões tribais indígenas é a sua estruturação. Comum a todas elas é a busca do equilíbrio entre o humano e o mundo exterior — a natureza, por exemplos denominada de Mãe Terra. Essa harmonização é a garantia da sobrevivência da nação, pois a natureza recebe a caracterização do sagrado, Homem e natureza estão intimamente ligados. A essa característica denominamos de animismo, como vimos nas religiões de matriz africana com as mesmas características tribais. Portanto, destruir a natureza e tudo o que ela contém representa um rompimento com a divindade. Tudo na vida de uma aldeia gira em torno dessa dimensão sagrada e o seu dia a dia está impregnado do sentimento religioso. Portanto, a terra intocada é condição da sobrevivência da cultura indígena.
Outro aspecto importante na compreensão da religiosidade indígena é a sua visão do mundo, tudo está em perfeita harmonia. Para essas culturas, os elementos da natureza, a água, o vento, a terra, o fogo, o sol. a lua e os demais astros foram criados e dispostos no mundo de forma orgânica e em perfeita harmonia. Em sua origem, o indígena vivia essa perfeita simbiose com os elementos da natureza e a característica principal de sua forma de vida era a partilha e a solidariedade em uma vida comum. Esse equilíbrio foi destruído com a chegada dos colonizadores e muitos desses valores desapareceram em virtude da luta pela sobrevivência. À medida que a natureza desaparece, também desaparecem os povos indígenas.
Para muitas das religiões nativas, a figura do Grande Espírito, ou do transcendente, é compreendida como sendo a de um ser dotado de bondade e que se preocupa com todas as pessoas e está em harmonia com elas. Também há crenças em divindades menores que auxiliam o Grande Espírito e em espíritos que povoam o mundo, como os dos ancestrais, os espíritos das florestas ou outras forças de cura, como é o caso das ervas medicinais utilizadas pelos pajés em cuidados de saúde. Segundo a Assintec (2007, p. 5), “os espíritos maus devem ser apaziguados e os bons devem ser convencidos a ajudá-los. Os nomes dados à divindade superior e aos espíritos variam de uma nação para outra: Maira, Itukoóviti (aquele que criou todas as coisas), Nhyanderú, Nhyanderuvusú, Nhyanderupapá, etc.”.
Outra característica dos povos indígenas é a crença nos mitos, sempre com alguma conexão com a religião e a proteção da floresta. Eles povoam o universo cultural indígena e surgem nos mais variados contextos, sempre estão integrados ao cotidiano da vida das comunidades. Os mitos tratam de temas, como o surgimento do mundo e a vida da aldeia e dos outros povos. Os mitos surgiram para explicar o desconhecido, principalmente os fenômenos naturais e as situações que afetam a vida dos membros da tribo, como o nascimento, a puberdade, a doença e a morte. Neles estão contidos muitos dos seus textos sagrados e daquilo que é considerado sagrado por essas etnias, bem como de seus ritos, celebrações e festas. Entre os incontáveis mitos, destacamos alguns: o da chegada do fogo, o da origem do mundo, o do surgimento de alguns alimentos e bebidas (como o milho, a mandioca e o guaraná), o da lua, o do sol, o da Iara (Mãe d’água), o do Anhangá (protetor dos animais), o Curupira (protetor das matas), o das Amazonas, o do boto, o da vitória-régia, o do boitatá, o da caipora e o da cuca.
Esse rico conjunto de povos indígenas, com suas crenças, ritos e mitos, compôs o berço sobre o qual nasceu a nação brasileira, com seu rosto plurifacetado, marcado com os traços de todas as raças do planeta. Muitos desses mitos, herdados das civilizações indígenas e transmitidos oralmente, entraram no universo cultural do povo brasileiro, fazendo parte do seu dia a dia.”

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Antropologia filosófica, de Ranieri Carli

Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-8212-202-0

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 174

Sinopse: O ser humano já representou diferentes papéis na sua existência. Já foi considerado o centro do universo e já foi punido por descobrir que essa é a função do Sol. A cada época houve um conceito dominante e os pensadores de cada período tinham uma visão sobre o papel do homem. É isto que você encontrará em Antropologia Filosófica: um livro que resgata os pensadores e suas ideias ao longo dos séculos, promovendo, desta forma, um rico e inteligente debate sobre o tema.



“Toda formação histórico-social brota do processo de ruína de uma antiga formação. Com a Grécia Antiga não é diferente. As sociedades antigas nascem da dissolução das comunidades primitivas. Essas primeiras formas de organização social não conheciam a divisão dos homens em classes sociais antagônicas: “As atividades de seus membros eram comuns (a coleta, a caça, a pesca), seus resultados eram partilhados por todos e não havia propriedade privada de nenhum bem” (José Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia Política, 2006, p. 56). A escassez da produção não permitia que houvesse o acúmulo de bens; não havia excedente econômicos1.

Em geral, as comunidades primitivas eram agrupadas internamente entre as famílias, que, por sua vez, poderiam se reunir em associações gentílicas; as gens são um conjunto coeso de famílias agregadas.

Na história da Grécia, as sociedades gentílicas possuíam uma forma de governo correspondente à sua organização socioeconômica, Segundo as pesquisas antropológicas de Engels (A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2000, p. 106), “todas as querelas, todos os conflitos são dirimidos pela coletividade a que concernem, pela gens ou pela tribo, ou ainda pelas gens entre si”. Essa política comunitária é reconhecida por Engels nas tribos iroquesas (um grupo nativo americano), mas que se pode inferir como generalizada para o caso grego2.

No plano da história universal, a decadência das comunidades primitivas dá-se com a descoberta de dois fatores econômicos: a agricultura e a domesticação dos animais. Com essas duas poderosas forças produtivas, os homens puderam produzir um excedente, uma sobra de bens que fosse para além do seu consumo imediato. O excedente econômico determinou a ruína das relações comunitárias porque, com um número maior de produtos, foi possível escravizar. Explicamos: se antes era impossível a manutenção da vida do inimigo conquistado em guerra, agora, ao contrário, uma parte do sobreproduto poderia ser destinada à sua sobrevivência. Graças ao excedente que permite a sua subsistência, o inimigo conquistado é incorporado às sociedades conquistadoras como escravo.

Aos poucos e de diferentes maneiras, a humanidade transcendeu as comunidades tribais e progrediu rumo ao escravismo, Todas as grandes civilizações da Antiguidade foram escravistas.”

1: Nem sempre a escassez de excedente era fruto da penúria da produção, Godelier fala de tribos que se proibiam de produzir senão aquilo que seria consumido de pronto: “Em quase lodos os casos [dos estudos da época], as sociedades primitivas poderiam produzir um excedente, mas não o fazem, É assim que Carneiro calculou que os Kuikuus da bacia amazônica, que praticam a agricultura em queimadas e a pesca, só despendem três horas e meia em média por dia para assegurar a sua subsistência: duas horas para as atividades agrícolas e uma hora e meia para a pesca. Consagram as restantes dez horas ou doze do dia ao repouso, às caminhadas, prática da luta, dança, etc.” (Godelier, Antropologia, 1981, p. 37).

2: “Nos tempos pré-históricos já os gregos, como os pelasgos e outros povos da mesma origem tribal, estavam constituídos em séries orgânicas idênticas à dos americanos: gens, fratria, tribo, confederação de tribos” (Engels, 2000, p. 109).

 

 

“No instante em que Platão (427-347 a.C.) surgiu para o cenário filosófico, a Grécia já estava se desenvolvendo como uma sociedade escravista e as formações gentílicas estavam em vias de ser coisa do passado. Atenas estava sob o jugo dos “tiranos” escravistas. No entanto, a concepção de homem em Platão é a nostalgia daquele tempo em que vigoravam as comunidades tribais. Conforme Carlos Nelson Coutinho (Literatura e humanismo, 1967, p. 89), o homem platônico é o reflexo de um homem que existiu realmente, “em determinado período da evolução da humanidade e de sua autoconsciência, o da comunidade primitiva; contudo, ela já é inexistente — realmente inexistente, embora subsista residualmente no plano ideológico! Platão é uma tentativa de se recuperar a pureza perdida das antigas gens comunitárias, é a subsistência no plano das ideias daquele homem ainda sem a cisão entre classes antagônicas; é um retorno ideal do escravismo para as tribos primitivas. Agnes Heller (Aristóteles y el mundo antigo, 1998, p. 68) escreveu corretamente que “a vida inteira de Platão constitui uma luta teórica e prática pela renovação da polis, pela restauração da comunidade orgânica e da ética comunitária”. Por isso, brincando com os termos modernos, Coutinho define Platão como um “romântico”.”

 

 

A República é a obra capital para o entendimento da concepção de homem em Platão. Por meio de Trasímaco, Platão expõe as ideias representativas das sociedades escravistas; por exemplo, no que concerne à justiça, o personagem afirma que “o que eu digo ser justo sempre, em todas as cidades sem exceção: o vantajoso para o governante estabelecido. É ele que tem o poder e, para quem raciocina corretamente, em todos os lugares, o justo é sempre a mesma coisa, a vantagem do mais forte” (Platão, 2006, p. 20). A justiça é sempre a justiça do mais forte, daquele que exerce o poder, da classe dominante, que, à época, era formada pelos senhores de escravos. É certo, portanto, dizer que “Trasímaco sustém que a justiça é sempre justiça de classe” (Agnes Heller, O homem do renascimento, 1983, p. 95).

No diálogo que compõe A República, as ideias de Trasímaco serão refutadas por Sócrates, a voz pela qual Platão faz proferir suas próprias palavras, como sempre. É ele quem opõe à justiça de um homem cindindo em classes a justiça integra das comunidades gentílicas: “Então, Trasímaco, isto já é evidente, que nenhuma arte, nenhum governo, cuida da vantagem própria, mas, como já há muito dizíamos, busca e prescreve a do subordinado, visando ao vantajoso para o mais fraco e não para o mais forte” (Platão, 2006, p. 31). Isto é, os governantes e os governados estão sob uma mesma moral; um não submete o outro à sua vontade. É a aristocracia arcaica que se reflete nas epopeias de Homero, a quem Platão batizou de “educador de toda a Grécia”. O governo é dado naturalmente pelas tradições, e a aristocracia prescreve a conduta dos subordinados porque essa é a sua função dentro do íntegro corpo societário. No parágrafo seguinte, Platão exibe com clareza a sua concepção de homem: “Se existisse uma cidade de homens de bem, poderia muito bem acontecer que a disputa deles fosse para conseguir ficar fora do governo como hoje é para assumi-lo; e aí ficaria evidente que realmente o verdadeiro governante, por sua natureza, não tem em vista sua vantagem pessoal, mas a do subordinado” (Platão, 2006, p. 33).”

 

 

“Afinal, vê-se que, em sua peculiar concepção de humanidade, Platão apresenta uns aspectos racionais e dialéticos (em geral, resgatados do método de Sócrates) e outros “românticos”.

Distinta é a maneira pela qual Aristóteles (384-322 a.C.) conceberá o humano. Aquilo que Coutinho chama de romantismo platônico não terá vez na filosofia aristotélica, o autor de Metafísica é um realista convicto. Nada há de utópico em Aristóteles: o seu homem é o homem de seu presente histórico. A sociedade grega está em seu período escravista, distinguem-se as classes de escravos e senhores de escravos, É essa a realidade com que Aristóteles lidará em sua filosofia. Vejamos uma passagem de Política: “a natureza distinguiu os corpos do escravo e do senhor, fazendo o primeiro forte para o trabalho servil e o segundo guio e, se bem que inútil para o trabalho físico, útil para a vida política e para as artes, tanto na guerra quanto na paz” (Aristóteles, Política, 1999, p. 151). A distinção entre os escravos e os seus senhores advém da natureza: o escravo nasce para o trabalho direto de sustento da vida social; o senhor, para a política de dominação, as artes e a guerra (que significa a captura de novos escravos). Ao contrário de Platão, Aristóteles aborda o homem de sua história presente enquanto uma “intenção da natureza”.

Ademais, Aristóteles recrimina os filósofos que “argumentam ser indefensável a ideia de que, porque um homem possui o poder de infligir violência e ser superior em força bruta, o outro tenha de ser seu escravo” (Aristóteles, Política 1999, p. 152). Aqueles que desejam que a engrenagem da história gire para trás não veem nenhum tipo de “excelência” na “virtude da superioridade”, segundo Aristóteles. Percebam que é uma postura diametralmente oposta à de Platão. (...)

A democracia grega reflete-se em todo o seu esplendor na filosofia aristotélica. É o novo homem que nasce da desagregação da antiga Pólis. Sabe-se, no entanto, que a democracia dos antigos restringia-se aos homens pertencentes à cidade-Estado. O que excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Observem que, comentando a arte da tragédia, Aristóteles (Poética, p. 54) argumenta que o trágico deve configurar os personagens com atos moralmente elevados, com bom caráter, acrescentando que “essa bondade pode estar em todos os tipos de personagens, incluindo a mulher e o escravo, ainda que a mulher seja inferior e o escravo, insignificante”. Heller (1983, p. 180) acerta então ao caracterizar a perspectiva aristotélica de humanidade: “Sua perspectiva não é a de toda humanidade, senão do mundo helênico tão somente”.

O seu objeto não é a inteira humanidade, senão a humanidade da civilização helênica. Efetivamente, ao discutir o homem de seu período histórico, Aristóteles não se limita cidade em que habita, Atenas. A sua preocupação transborda as fronteiras atenienses e atinge a totalidade da civilização helênica. O homem de Aristóteles era o homem helênico. É certo que não chega a toda humanidade, como disse Heller no parágrafo mostrado. Porém, os problemas que interessam Aristóteles ampliam-se para além da democracia de Atenas, o que se apresenta uma novidade entre os gregos.

Esta concepção global de homem ressoa na Política e na sua análise da escravidão. De novo, Heller afirma que os contemporâneos de Aristóteles procuravam compreender a prática política a partir da distinção entre as formas de governo; a discussão girava em torno das modalidades de governos mais apropriadas para a manutenção dos Estados: democracia ou aristocracia. Ao contrário, Aristóteles não toma como ponto de partida essa questão. Para ele, o essencial é antes discutir a escravidão. Todas as cidades helênicas estavam transitando para o escravismo (ou já se organizavam assim). Daí, a discussão das formas de governo era secundária para um helênico como Aristóteles:

É a escravidão que ocupa o centro de seu interesse, tanto no plano teórico quanto estrutural (na política). O ponto de partida da política não é a elucidação da melhor forma estatal, senão a análise das relações amo-escravo e dos problemas relativos à aquisição e posse de escravos. Em outras palavras, parte de um problema comum a todas as “poleis” gregas e inclusive a todo território do império helênico. Com efeito, todas as “poleis”, fossem democráticas ou aristocráticas, estavam baseadas, pelo menos parcialmente, na escravidão. (Heller, 1983, p. 178, grifo do original)

Isso faz com que Aristóteles seja o principal responsável pelo nascimento da concepção helênica de humano, o que repercutirá posteriormente na filosofia dos estoicos e epicuristas, os reais representantes do helenismo consolidado. É o primeiro filósofo que interpreta a totalidade do homem da civilização helênica.

O realismo aristotélico trouxe consequências àquele que Cassirer elegeu como o “ponto arquimédico” da antropologia filosófica: o processo de autoconsciência do homem. Ao definir em que consiste a verdade, Aristóteles foi claro: “A verdade é dar o nome adequado à coisa”. Isto é, “das ideias, portanto, e em nenhuma das formas que se costumam afirmar, não podem provir as outras coisas” (Aristóteles, Metafísica, 1984, p. 31). As coisas não provêm das ideias. Não existiria uma definição tão realista quanto essa. Isso quer dizer que, independentemente da opinião particular do filósofo, existe um nome adequado à coisa; a realidade concreta não aceitaria qualquer denominação: há uma que é a precisa. O nome verdadeiro diz respeito à própria legalidade imanente às coisas reais. As coisas, a natureza, os e ventos da vida possuem prioridade face à vontade do sujeito do conhecimento. No movimento de obtenção da verdade, não se deve projetar um ideal sobre o real, como fez Platão em seu turno. O próprio real deve ser investigado a ponto de que se constate qual o nome que lhe compete. Em outras palavras, chegar à verdade é se apropriar da verdade que está na coisa.

Apropriar-se da coisa significa apoderar-se de sua verdade. Não se deve abstrair, então, a particularidade de cada coisa singular. Por exemplo, caso tomemos a abstração desprovida de conteúdo, de determinações concretas, seria como “se chamasse homem, ao mesmo tempo, a Cálias e à madeira, sem nada ter observado entre eles em comum” (Aristóteles, 1984, p. 31, grifo do original). As particularidades características de Cálias demonstram que se trata de um humano, de um ser social, enquanto a madeira é um ser inorgânico. Essas são as suas verdades; são os nomes que condizem com a sua respectiva materialidade.

Por essa razão, Aristóteles não repudia as sensações. É uma outra vertente de seu afastamento do homem platônico. O homem aristotélico não é apenas contemplativo; é prático e sensitivo. Logo nas primeiras palavras da Metafísica, é dito que “todos os homens têm, por Natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas outras, as visuais” (Aristóteles, 1984, p. 11). O desejo de conhecimento humano inicia a sua marcha com as sensações, com o primeiro contato com o mundo dos objetos, com a percepção sensível da materialidade do real. Com as sensações, o homem começa a tomar consciência de seu redor. E da experiência prática dos sentidos, o homem avança até a cultura; a consciência humana não se estanca nos sentidos, mas sim sua prática ascende à constituição dos valores culturais, das tradições, ou, nos termos da Metafísica, da memória, “é da memória que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da mesma coisa reproduzem o efeito duma única experiência” (Aristóteles, 1984, p. 11).

É bom que se ressalve que, na concepção aristotélica de homem, as sensações são o início da autoconsciência humana sem que seja o seu único e exclusivo fim. Aristóteles reconhecia que o conhecimento parte do empírico, mas não se reduz a ele. É preciso superar o caráter imediato das coisas para que se faça a ciência: “Não julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência, embora elas constituam, sem dúvida, os conhecimentos mais seguros dos singulares. Mas não dizem o ‘porquê’ de coisa alguma, por exemplo, por que o fogo é quente, mas só que ele é quente” (Aristóteles, 1984, p. 12). Com a sensação, descobrimos que o fogo é quente, mas não as propriedades físico-químicas que o levam a isso. Para tal, deve-se requerer o auxílio da ciência.

No instante em que definiu, portanto, a mais “elevada das ciências”, Aristóteles (1984, p. 14) fez valer o seu realismo convicto, determinando-a como “aquela que conhece aquilo do qual cada coisa se deve fazer. E isto é o bem em cada coisa e, de maneira geral, o ótimo no conjunto da Natureza”. A filosofia, isto é, a “mais elevada de todas as ciências”, é a consciência do bem que existe em cada coisa singular e do ótimo que há no universo da natureza.”

 

 

“As sensações não foram levadas em conta por Platão, segundo Aristóteles. A imbricação entre a ideia universal e o singular sensível não foi capturada pelo autor de A República. Assim, o princípio da mudança, o movimento, que é determinação elementar das sensações, fugiu às definições da filosofia platônica.

Com efeito, Aristóteles coloca o movimento como categoria essencial da vida humana. Dada a sua posição histórica, Aristóteles pôde filosofar sobre o princípio da mudança como nenhum antes pudera. A matéria sempre em mutação é um tema que ocupa uma das maiores preocupações da Metafísica aristotélica. Isso se explica pelo já anunciado: Aristóteles percebia a vida grega transformando-se e tomava partido favorável a essa transformação. Ao se pôr a favor da história em transformação, Aristóteles sentiu-se à vontade para afirmar o caráter mutável das relações humanas. Sob esse aspecto, o debate acerca da categoria do movimento não poderia ser excluído de sua filosofia.

Nada há de eterno no homem aristotélico, a não ser o Deus imóvel que dá início à existência. De resto, o móvel é o impulso da história e da natureza. Tudo é passível de perecer: “Quanto ao movimento, se estas [determinações] são o movimento, é evidente que as ideias também deverão morrer; e se não, de onde é que ele [o movimento] veio? Cairia assim o estudo inteiro da natureza” (Aristóteles, 1984, p. 33-34). Seria impossível se realizar o estudo da natureza se as ideias fossem eternas; sem o princípio do movimento, não se concebem as realidades da natureza e da sociedade*.

Enfim, a concepção de homem em Aristóteles está aqui delineada em sua essência. Repetimos à guisa de conclusão que o humano aristotélico é a afirmação do homem de seu presente histórico, do homem helênico, que ou já está cindindo em classes sociais ou caminha para tal cisão.”

* “Ora, se o movimento não é substância da alma, a alma se move contra a Natureza” (Aristóteles, De anima, 2006, p. 59).

 

 

“Também Hegel nos fala de Epicuro (341-272 a.C.), o mais renomado dos helênicos. Ao descrever o que a filosofia de Epicuro reconhecia como o caminho para se obter a verdade, Hegel demonstra que há uma certa semelhança entre Aristóteles e o helênico; segundo Epicuro, “três são os graus ou fases do conhecimento: o primeiro é a sensação, como o lado do exterior; o segundo a representação, como o lado do interior; o terceiro, a opinião, como unidade dos dois anteriores” (Hegel, Lecciones sobre la historia de la filosofía, 1996, p. 379). Porém, Epicuro se difere de Aristóteles quando eleva a sensação à “verdade por si mesma”. Epicuro entende que a sensação é verdadeira por si mesma quando se manifesta firmemente (Hegel, 1996, p. 380). Lembrem-se de que a sensação era eleita por Aristóteles como o ponto de partida da verdade, e não como a “verdade em si mesma”. Dessa forma, pode-se dizer que o homem imediato, unilateral e abstrato é o homem que comparece à concepção de mundo dos epicuristas e dos helênicos em geral. É da letra de Epicuro que se lê que o essencial para a felicidade é a nossa condição íntima, e dela somos todos senhores.”

 

 

“A desagregação das sociedades antigas dura séculos. Gradativamente, as civilizações da Antiguidade deram lugar a uma nova modalidade de organização social. A última floração da Antiguidade foi o Império Romano, dominante de quase toda a Europa e o oriente próximo.

As invasões bárbaras foram o último grão de cal na ruína das relações antigas. Sob o domínio do Império romano, as comunidades germânicas iniciaram um processo de invasão a partir de 480 d.C. Essas tribos estavam organizadas de acordo com o comunismo primitivo; possuíam uma divisão gentílica da estrutura social. Aos poucos, à medida que as invasões se intensificavam, as relações comunitárias dos bárbaros germânicos foram se entrelaçando com a antiga formação dos romanos. Dessa imbricação, originou-se o feudalismo: “A longa simbiose das formações sociais romana e germânica nas regiões fronteiriças gradualmente estreitara a brecha entre ambas, embora ainda continuasse uma fenda enorme da maioria dos aspectos. De sua colisão e fusão final e cataclismática iria surgir finalmente o feudalismo” (Perry Anderson, Passagens da antiguidade ao feudalismo, 2007, p. 107).

O feudalismo começa a se solidificar no final do século V nos países da Europa Ocidental e Central. O Estado romano não resiste às sublevações invasoras das tribos germânicas e, desse longo processo de lutas e síntese, nasceu o sistema feudal, que caracteriza a economia da Idade Média.”

 

 

“A filosofia pressupõe a religião em santo Agostinho. Segundo a sua concepção filosófica, o conhecimento provém das escrituras e, para conhecê-las, é necessário ter fé, crer que elas dizem a verdade (Étienne Gilson, A filosofia na idade média, 2007, p. 144). Por isso, a fé precede o conhecimento ou, em outros termos, a religião precede a filosofia. Primeiro, é preciso acreditar na veracidade das escrituras para depois extrair delas o autêntico conhecimento sobre as coisas.

Cassirer (Antropologia filosófica, 1967, p. 14) está correto quando afirma que, nas Confissões (1999) de santo Agostinho, seguimos a marcha da filosofia grega à religião cristã. O caráter racional do homem aristotélico (e também do helênico de Epicuro) não comparece à concepção de homem da nascente sociedade feudal. Descrevendo a época juvenil em que lia Aristóteles e era influenciado pela filosofia racionalista do grego, santo Agostinho (1999, p. 117) questiona: “De que me aproveitava isto, se só me prejudicava?” Reconhece posteriormente, em sua confissão direta ao próprio Deus, quando via o mundo com as lentes de Aristóteles: “Era falso o que pensava de Vós. Era mentira. Eram ficções da minha miséria, e não uma concretização da vossa beleza” (Agostinho, 1999, p. 117). Santo Agostinho defende que as filosofias anteriores à aparição de Cristo padeceram do erro de acreditar na razão, esquecendo-se de que todo o poder de conhecimento emana das “revelações divinas”. Daí se conclui com santo Agostinho que a razão é uma das faculdades mais duvidosas do homem, a qual jamais poderia nos conceder o caminho da luz, da verdade e da sabedoria (Cassirer, 1967, p. 14).

Em santo Agostinho, “temos assim uma subversão completa de todos os valores mantidos pela filosofia grega. O que em um tempo pareceu ser o sumo privilégio do homem aparece agora como seu perigo e tentação; o que constituía seu orgulho resulta em sua humilhação mais profunda” (Cassirer, 1967, p. 14).”

 

 

“As inconveniências, no caso de o serem, e sejam quantas forem, podem ser maléficas ou úteis, do mesmo modo que todas as demais coisas, tudo dependendo da condição de quem as escuta [...] Nenhum espírito corrompido jamais pôde compreender sadiamente qualquer palavra sã. Tanto quanto as palavras honestas não beneficiam o espírito perverso, também as palavras que não são honestas demais não podem contaminar a mente bem formada.” (Giovanni Boccaccio – Decamerão, 1971, p.579-580)

 

 

“Efetivamente, o racionalismo de Hume pretendia a ingerência na vida social. Não era uma concepção aristocrática de homem que procurava limpar-se da ação prática. A teoria não se isola da prática. A filosofia e a política não são duas modalidades de comportamento excludentes. Hume escrevia para que os homens lessem e se transformassem. A leitura das obras filosóficas não era mera diversão ou simples passatempo. A filosofia apresentava um modelo de conduta social a ser seguido, respaldado antes de tudo na razão humana.

A razão nos livraria das superstições, assim entendia Hume. A nossa conduta seria purificada das crenças populares com a incorporação dos conceitos filosóficos à nossa vida cotidiana. De acordo com o filósofo escocês, “o raciocínio exato e justo é o único remédio universal adequado a todas as pessoas e aptidões, o único capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados com a superstição popular, se tornam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores descuidados e se afiguram com ciência e sabedoria” (David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, 1999, p. 31).

É a típica linguagem iluminista: a filosofia é o remédio contra os males do obscurantismo medieval. (...)

É com esse racionalismo resoluto que Hume consegue explicar a noção de Deus, de uma maneira impossível de ser vista em Tomás de Aquino, por exemplo. Para Hume (1999, p. 37), “a ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria”. A ideia de um Deus é resultado da nossa reflexão sobre a nossa própria bondade e sabedoria, com a sua posterior projeção em um Ser que portaria indefinidamente essas qualidades humanas. Deus nasce como reflexo do homem acerca de si mesmo.”

 

 

“Hume nos apresenta a concepção de homem do Iluminismo: racional, antropocêntrico, crítico e prático.

Em seus estudos sobre a religião, Paul Henry Thiry, conhecido como Barão de Holbach (1723-1789), por exemplo, chegou a constatações similares às de Hume. Na História natural da superstição (La contagion sacrée ou Histoire naturelle de la superstition, 2006), o historiador francês afirmou que a religião demanda em primeiro lugar o sacrifício da razão (p. 52). A partir do momento em que deixam de tomar a razão como a guia de seus conhecimentos sobre a natureza das coisas, os homens tornam-se entes passivos das superstições. Se Deus criou a natureza, é ele quem deve comandá-la, o que implica que a direção sobre os eventos sai das mãos dos homens. O problema é que precisamente naquele instante o homem estava tomando em seu pulso o destino da história; Holbach assistia à Revolução Francesa e não poderia aceitar que aquela grande obra libertadora não fosse fruto das ações humanas, e sim um simples desígnio de um Deus transcendental.

Holbach (2006, p. 61) preocupava-se com a submissão da moral à religião porque, sendo o criador de todas as coisas, seria Deus o responsável pela distinção entre o certo e o errado. Diz o iluminista francês que, sob a vontade divina, o crime pode se tornar virtude e vice-versa.

Esse mesmo autor menciona uma série de consequências que resultam da conduta moral estipulada pelas religiões: renunciar à razão, cegar-se voluntariamente, fechar os seus olhos à verdade, ocupar-se unicamente de quimeras sem sequer perceber, combater com zelo e destruir com furor os que se recusam a se iludir, sacrificar nossos bens aos caprichos dos padres, renunciar aos bens que se creem que não partem da divindade, mortificar os seus sentidos, rendendo-se a uma vida insuportável, defender com vigor os preconceitos que não foram submetidos ao exame da razão etc.

Cabia ao homem, portanto, desvincular-se dos “caprichos da religião” e decidir ele mesmo quais de suas ações eram morais e quais eram imorais. E, ao fazê-lo, o homem não deveria se sentir culpado perante nenhum Deus.”

 

 

“A consolidação do modo de produção capitalista demarcou uma etapa distinta de seu período de instauração. A filosofia dos partidários da revolução foi igualmente transformadora; o seu projeto de homem era baseado na crença de que o reino da razão poderia ser realizado na história. Com o devir, a concretização da sociedade burguesa desfez as ilusões historicamente legítimas dos renascentistas, dos cartesianos, dos iluministas e dos racionalistas em geral. O reino da razão demonstrou ser impraticável. O domínio da natureza e da história pela racionalidade não ocorreu como se havia planejado. Pelo contrário, a racionalidade capitalista exibiu-se como uma jaula de ferro que aprisionou as forças do homem de maneira similar ao feito pelas amarras medievais à sua época.

A racionalidade burguesa tornou-se a burocracia da rotina diária, que limita a experiência humana. O labor cotidiano, produzido em meio a repetições incessantes, transformou-se em um fardo a ser suportado.

Max Weber (1860-1920) analisou de modo exemplar esse aprisionamento do homem burguês. Em Economia e sociedade (1999), escreve-se que, com a gerência burocrática da vida social,

O aparelho psicofísico do homem é aqui completamente adaptado às exigências do mundo externo, do instrumento, da máquina ou, em uma palavra, da função, despojado de seu ritmo dado por sua própria estrutura orgânica e submetido a um novo ritmo que, depois da análise sistemática das funções de cada músculo e da criação de uma ótima economia de forças, corresponde perfeitamente às condições do trabalho. (p. 362)

O ritmo da esteira das indústrias capitalistas sobrepôs-se ao ritmo natural do corpo dos homens. O homem é um mero apêndice da máquina das empresas do capitalismo avançado. Em outro livro, A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, Weber (2004, p. 47-48) narra com palavras diferentes:

Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica. O fabricante que insistir em transgredir essas normas é indefectivelmente eliminado, do mesmo modo que o operário que a elas não possa ou não queira adaptar é posto no olho da rua como desempregado.

O que se lê nas obras de Weber é a consolidação da sociedade burguesa, quando as esferas da vida do homem são transformadas em mercadoria, quando as relações sociais obtêm a feição mercantilizada do capital. É a época em que, como diz José Paulo Netto (Capitalismo e reificação, 1981, p. 82), “a disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova”.

O ideal do bem supremo defendido por Kant quase desaparece da filosofia. A jaula de ferro da modernidade não permite o otimismo que era então generalizado entre os iluministas.”

 

 

“Em que consiste a antropologia materialista?

Marx diz que o método materialista de interpretação do homem não parte de conceitos elaborados mentalmente. O seu ponto de partida é a própria efetividade do real. Marx parte de pressupostos empíricos. É desse modo que descreve a sua concepção de filosofia:

Ela não tem necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações idealistas. (Karl Marx e Friedrich, A ideologia alemã, 2007, p. 42-43)

Está aqui estampada a concepção materialista de homem: não se parte, então, daquilo que os indivíduos pensam sobre si mesmos, senão daquilo que são de fato, os homens de carne e osso.

Esse método serviu para Marx discernir qual a peculiaridade do sujeito frente à natureza. Adotando como princípio de sua filosofia o homem que produz a sua própria realidade, Marx reconheceu o trabalho, isto é, a atividade humana consciente, como a primeira das características que distinguem o homem da natureza. Leiamos:

O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a SUA PRÓPRIA ATIVIDADE. Mas o homem faz da sua atividade vital objeto da vontade e da consciência. Possui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais. (Marx, Grundrisse, 1993a, p. 164-165, grifo do original)

A última frase da citação é lapidar: a atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais. É a consciência, a razão concernente ao trabalho humano, que distingue o homem do animalesco. O homem é a única das espécies produzidas pela natureza que pôde superar a sua condição natural porque detém a razão. A atividade humana é racional, é transformadora, e não meramente adaptativa, da maneira como é a dos animais. O animal apenas se adapta ao ambiente em seu redor; o homem o transforma em algo diverso: o homem arranca uma parcela da natureza, a madeira ou as pedras, por exemplo, e faz dela um objeto de uso social, como um machado. Esse machado feito de madeira e pedra não é mais somente natureza; é também (e principalmente) um objeto de valor social, humano. (...)

O homem começa a se diferenciar da natureza a partir do trabalho: com a sua atividade consciente, ele torna-se um ser social. (...)

Com essa nova modalidade de ser, o homem, surgem categorias não vistas até então. Sobre a consciência, já vimos que a diferença está posta: no reino da natureza não há a atividade consciente. Mas também não há entre os animas a liberdade. Os seres naturais reproduzem a sua vida de forma mecânica, automática, previamente determinada pelos instintos inerentes à sua espécie. Quanto ao homem, a situação é diversa. Por ser racional, o homem consegue formular escolhas diante de determinada circunstância. Não está estabelecido geneticamente que, em um cruzamento de duas vias, um ser humano singular deverá optar sempre pela via direita. Resta ao homem escolher. Daí provém o princípio da liberdade.

Marx (O Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, 1974, p. 335) expressou essa ideia com as seguintes e famosas palavras: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Os homens fazem a sua própria história; um indivíduo pode tomar a via direita, enquanto o outro se decidirá pela esquerda.

O dado relevante dessas escolhas é que Marx acrescenta que a alternativa não é individualmente colocada pelos homens. Fazem a sua própria história, mas não como querem; as alternativas foram legadas pelas gerações anteriores, pelos antepassados dos homens atuais e estes últimos recebem essa herança para continuá-la, preservá-la, transformá-la etc. Por exemplo, um homem que vive em nosso tempo não conseguiria viver segundo os padrões socioeconômicos da Antiguidade grega. Mesmo que quisesse, não seria possível. Um burguês que pretendesse se comportar como Sócrates não seria capaz de reproduzir todos os aspectos da vida do filósofo grego. É objetivamente irrealizável. O homem faz a sua própria história, mas em circunstâncias que não foram individualmente escolhidas por ele.

Segundo a concepção antropológica de Marx, o homem e a totalidade social são dois aspectos indissociáveis da realidade concreta. Um não pode ser pensado sem o outro. As circunstâncias são produzidas pela ação humana que, por sua vez, é condicionada por elas. (...)

A questão é que, durante a história, o homem produziu realidades que não se repetem ao longo do tempo. A antropologia materialista de Marx possui um caráter inapelavelmente histórico. A essência do homem é a transformação histórica; aquilo que permanece é meramente fenomênico. O modo como os homens produzem e reproduzem as condições de sua vida são diferentes nos vários est ágios de desenvolvimento da história.

O modo de produção capitalista é mais um desses estágios. Não é o único senão apenas um outro em meio a tantos, de acordo com as teorias desenvolvidas por Marx. Assim como todas as etapas anteriores se puseram em um inesgotável processo de dissolução histórica, o capitalismo também se põe dentro desse processo.”

 

 

“Houve, no entanto, filósofos que não participaram do projeto racionalista do homem do Iluminismo e tampouco aceitaram os pressupostos inerentes à antropologia materialista. Não viam saída para o homem acuado pelo desenvolvimento do capitalismo burocrático, fosse o racionalismo iluminista ou a sua herança marxista. Continuaram nos limites do homem burguês, sem que se nutrissem do otimismo do ideal do bem supremo de Kant.

É desse contexto que nasce a antropologia filosófica de Martin Heidegger (1889-1976). Georg Lukács (El asalto a la razón, 1968, p. 398) constata que os pressupostos históricos para a filosofia de Heidegger condizem com a situação temerosa em que se encontrava a sociedade europeia no início do século XX: “Não havia nada de seguro, nenhum ponto de apoio. E, no meio do caminho, se levantava o indivíduo solitário, cheio de angústia e medo”. É o que caracteriza a noção antropológica de Heidegger : o homem solitário e desesperado diante da história. À sua corrente filosófica, Heidegger deu o nome de existencialismo, cuja descrição é feita nesses moldes novamente por Lukács (1968, p. 399):

A “filosofia existencial”, nascida das depressões profundas do desespero de um subjetivismo extremo, que se devora a si mesmo e que encontrava justificação precisamente no “pathos” deste desespero, na intenção de denunciar como vãs e vazias quimeras do pensamento todos os ideais da vida sócio-histórica, por oposição à única realidade existente: o sujeito.

A partir dos comentários de Lukács fica clara qual é a fórmula para se compreender a antropologia filosófica de Heidegger: o sujeito acrescido da angústia existencial. O filósofo existencialista costumava dizer que em nenhuma época houve um homem tão problemático quanto na atual. A angústia de seu tempo se traduzia assim na concepção de homem de Heidegger (Ser e tempo, 1997a, p. 250, grifo do original): “Aquilo com que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do em parte alguma intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo com o tal”. A angústia que o homem porta em si é a angústia que brota do confronto com o mundo enquanto tal. Intramundano, o homem está sob o signo do desespero.

O existencialismo de Heidegger incorpora à antropologia a tônica do desespero como característica constitutiva do ser do homem. A marca indefectível do gênero humano é o desesperar-se com o mundo em torno.

Este elemento filosófico de Heidegger possui antepassados. Pensemos no filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). O seu Tratado sobre o desespero humano (Traité du désespoir, 1963) representava os indivíduos como seres angustiados por natureza. De suas palavras podemos ler a definição de humano que, segundo Kierkegaard (p. 67), “é o ácido, é a gangrena do desespero, a súplica cuja ponta, dirigida ao interior, afunda-nos cada vez mais no sentido da autodestruição impotente”. Essa súplica ácida e pontiaguda que nos atinge no interior e que nos leva à autodestruição impotente é universal, é comum a todos os homens. É parte inerente à espécie humana: “O desespero é uma categoria do espírito, suspensa na eternidade, e por consequência um pouco de eternidade entra em sua dialética” (p. 76). O desespero é então uma categoria partícipe do espírito de nosso gênero.

À mesma época que Kierkegaard, Arthur Schopenhauer (1788-1860) dizia que “a vida oscila, como um pêndulo, da direita para esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes são os dois elementos de que ela é feita” (O mundo como vontade e representação, 2004, p. 327). Há também em Schopenhauer um quê de desespero e de pessimismo que resultariam posteriormente nas elaborações filosóficas de Heidegger. Schopenhauer argumentava que a moral de autoflagelação dos hindus é a conduta que está em concordância com a essência humana; o pessimismo de Schopenhauer (2004, p. 407) o conduz a preconizar os mandamentos da negação desesperada do mundo:

Despojar-se de suas riquezas, abandonar qualquer habitação, deixar os seus, viver no isolamento mais profundo, afundado numa contemplação silenciosa, infligir-se uma penitência voluntária no meio de lentos e terríveis suplícios, em vista de uma mortificação completa da vontade, levada finalmente à morte pela fome [...], precipitando-se da rocha sagrada do alto do Himalaia, ou fazendo-se enterrar vivo [...] Preceitos observados durante tanto tempo por um povo que conta milhões de indivíduos, impondo sacrifícios tão pesados, não pode ser uma fantasia inventada por capricho, mas devem ter a sua raiz na própria essência humana.”

 

 

“Toda vida está posta entre dois parênteses: o nascimento e a morte. E só o homem tem consciência disso.” (Karl Jaspers, Introdução ao pensamento filosófico, 1985, p. 127)