quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Réquiem para o sonho americano: os dez princípios de concentração de renda e poder (Parte III) – Noam Chomsky

Editora: Bertran Russell
ISBN: 978-85-2862-194-5
Tradução: Milton Chaves de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192

“Isso nos leva a voltar no tempo e suas raízes são interessantes. Há 150 anos, nos primórdios da Revolução Industrial, os americanos tinham uma imprensa bastante livre.4 Por exemplo, trabalhadores possuíam seus próprios jornais, tanto em fábricas quanto em outros lugares, principalmente nos arredores da Nova Inglaterra. Na época, alguns temas eram presença constante nas páginas da imprensa. Havia um ataque feroz ao sistema industrial, com acusações de que estavam transformando americanos livres em verdadeiros escravos. O trabalho assalariado era considerado algo que não diferia muito da escravidão, mas o tema mais impressionante era a oposição ao que alguns chamavam de “O Novo Espírito da Época: enriquecer às custas dos outros.” E isso foi em meados do século XIX. Esse era o “Novo Espírito” 150 anos atrás — o melhor negócio é enriquecer, sem pensar nas necessidades dos outros. Era uma afiada percepção do espírito de classe. Para os interessados na manutenção do poder e dos privilégios, seria bom modificar o que as pessoas pensavam. Afinal, não iriam querer que elas se dessem conta que pertenciam a uma classe oprimida. Chegamos, assim, à situação atual, na qual o termo “classe” se tornou uma palavra indecente, quase um palavrão — a pessoa não pode nem pensar em pronunciá-la.
Imagino que muitos tenham lido o primeiro parágrafo de A riqueza das nações na qual o autor fala sobre o açougueiro, o padeiro, as pessoas trabalhando junto, numa situação em que a divisão do trabalho é a coisa mais maravilhosa do mundo. Porém, poucos leitores devem ter chegado à página 450, onde ele condena veementemente a divisão do trabalho, pois transforma as pessoas em criaturas extremamente estúpidas e ignorantes, dado que são obrigadas a executar tarefas simples e repetitivas, no lugar de desenvolver e exercitar sua inteligência e criatividade. Assim, ele lança um apelo para que as sociedades civilizadas intervenham de modo a impedir que isso aconteça.
Afinal de contas, somos seres humanos, e não autômatos. A necessidade de trabalhar não retira a condição de ser humano. E a própria condição de ser humano implica no direito às tradições culturais — não apenas às suas próprias tradições, mas também às de muitas outras pessoas — e tornar-se não apenas um hábil operador, mas também um ser intelectualizado. Alguém que seja capaz de pensar criativamente e de forma independente, bem como pesquisar e questionar, e, desse modo, contribuir com a sociedade. Sem isso, você pode muito bem ser substituído por um robô. Enfim, acho que essas coisas simplesmente não podem ser ignoradas se quisermos ter uma sociedade em que valha a pena viver.
Aliás, outra palavra impronunciável é “lucros”. Portanto, quando você ouvir um político dizer: “Precisamos gerar empregos”, reflita um pouco, visto que, quase sempre, é o mesmo que se ele dissesse: “Temos que gerar lucros.” Eles não estão nem aí para a geração de empregos, pois as pessoas que vivem dizendo: “Temos de gerar empregos” são as mesmas que os exportam para o México e a China, já que isso aumenta seus lucros, que é a verdadeira meta de seus anseios. Em suma, os poderosos fizeram mudanças em sua retórica, na tentativa de impedir que as pessoas vissem o que estava acontecendo — é uma atitude esperada de quem tem muito poder nas mãos, mas precisamos entender como isso acontece.”


“Na última vez que pesquisei sobre o assunto, vi que os responsáveis pelo recenseamento nem sequer dividem as pessoas em classes sociais. Aliás, a ideia de classes sociais é algo muito simples: Quem dá as ordens? Quem as obedece? Isso basicamente define a divisão de classes sociais. Logicamente, ela tem as suas nuances e complexidades, mas, basicamente, é isso.
Não somos geneticamente diferentes das pessoas da década de 1930. Aquilo que foi feito pode, portanto, ser feito de novo. E não deixe de considerar que, naquela época, os avanços vieram após um período que não difere em nada do atual — um tempo de grandes desigualdades, duras repressões, destruição do movimento operário, numa sociedade bem mais pobre do que a atual e com menos oportunidades. Podemos refazer o mesmo caminho e reorientar as recentes inovações naquela direção. Isso precisa ser feito, mas não acontecerá espontaneamente.”


“Quando vende um bem seu qualquer, você continua na posse de si mesmo. Porém, quando vende o produto de seu trabalho, você vende a si mesmo, perdendo os direitos dos homens livres e tornando-se vassalo de estabelecimentos gigantescos, controlados por uma aristocracia endinheirada que ameaça aniquilar qualquer um que ouse questionar seu direito de escravizar e oprimir. As pessoas que trabalham nas fábricas deveriam ser seus donos, e não ter o status de máquinas controladas por déspotas do capital privado, que estão encravando princípios monárquicos no solo democrático, rebaixando os níveis de liberdade e a plena fruição de direitos, a dignidade da civilização, a qualidade da saúde, os bons costumes e a inteligência à baixeza dos domínios rasteiros do novo feudalismo comercial.”
(“Panfletos de Fábrica”, as “Jovens Operárias” de Lowell, Massachusetts, 1845)


Fabricando consumidores
Estava claro e bem entendido que, na visão da elite, era necessário controlar as massas por intermédio de crenças e atitudes. Ora, uma das melhores formas de se controlar as possíveis atitudes das pessoas é com aquilo que o importante economista Thorstein Veblen denominou de “fabricação de consumidores”. Se for possível, fabricar necessidades e tornar indispensável à vida das pessoas a aquisição de determinados produtos, elas devem ser induzidas a cair na armadilha do consumo. Desse modo, quem lesse as páginas de jornais de negócios da década de 1920, veria artigos falando da necessidade de se induzir as pessoas a tomarem gosto por supérfluos, tais como “produtos da moda”, pois isso faria com que não incomodassem a elite.
Aliás, Bernays realizou tamanhas façanhas na vida que vale a pena citá-las. A primeira delas foi fazer com que as mulheres passassem a fumar.3 Como as mulheres não fumavam naquela época, ele organizou grandes campanhas publicitárias — acho que foi para a Chesterfield, na década de 1930 — para convencê-las que fumar era o que chamaríamos hoje de atitude “chique”. Algo condizente com os tempos modernos e que a mulher livre deveria fazer, e por aí vai. Impossível calcular quantas dezenas de milhões de mortes podemos atribuir a esse sucesso. (Outro grande sucesso dele foi na década de 1950, quando trabalhava para a United Fruit Company, e convenceu as pessoas a derrubarem o governo democrático da Guatemala — pois seus políticos estavam ameaçando o controle que a empresa queria ter sobre a economia e a sociedade guatemalteca —, campanha que levou a mais de cinquenta anos de horrores e atrocidades.)
Portanto, são conceitos e valores da elite que vêm permeando nossa história desde longa data. A indústria da publicidade teve um crescimento rápido com a busca desse objetivo — fabricar consumidores e induzir as pessoas a caírem na armadilha de um consumismo inescapável —, e isso é feito com grande sofisticação. A situação ideal é a que temos hoje quando, por exemplo, adolescentes com tempo livre numa tarde de sábado resolvem passear num shopping em vez de irem a uma biblioteca ou a outro lugar qualquer. Certamente, essas crianças sentem-se da seguinte forma: “Não terei conseguido nada na vida se eu não puder comprar mais um aparelho eletrônico.”
A ideia é tentar controlar todos, transformar a sociedade inteira num sistema de consumo perfeito. O sistema perfeito seria uma sociedade que funcionasse como uma díade — isto é, aos pares. Essa dupla seria você e seu aparelho de televisão, ou talvez você com seu iPhone e a Internet. Procuram incutir na mente das pessoas imagens do que consideram uma vida ideal — quais os aparelhos que devem ter, o que fazer para preservar a saúde etc. Gasta-se tempo e esforço adquirindo coisas que não são necessárias — e que talvez até se jogue fora após algum tempo —, mas que são símbolo de uma vida digna.”
3: Ver “De Tabu Social a ‘Chama da Liberdade’: A Propaganda para a Venda de Cigarros a Mulheres”, Amanda Amos e Margaretha Haglund, 2000, na página 153.


Escolhas irracionais
Se você já fez algum curso de economia, sabe que os mercados supostamente são baseados em consumidores informados que fazem escolhas racionais. Nem preciso lhe dizer que não é o que acontece. Se os anunciantes se guiassem pelos princípios lógicos do mercado, então grandes empresas, como a General Motors, faria uma pequena propaganda anunciando seus produtos, junto com uma descrição de suas características, acompanhada de comentários da revista Consumer Reports, de modo que a pessoa pudesse formar uma opinião sobre suas qualidades e conveniência.
No entanto, as propagandas de carros não são feitas dessa forma — geralmente, o que vemos numa propaganda de carro é um astro do futebol, ou uma atriz de grande sucesso, fazendo coisas loucas dentro de um veículo, como subir uma montanha ou algo assim. Se você assiste à televisão de vez em quando, sabe que centenas de milhões de dólares são gastos na tentativa de criar consumidores desinformados que façam escolhas irracionais — esse é o objetivo das propagandas.
Alguns anos atrás, a indústria da publicidade percebeu que havia uma parcela da população que não estava sendo alcançada por seus esforços — a das crianças.4 É que, pensavam eles, como as crianças não têm dinheiro, não faz sentido realizar campanhas publicitárias voltadas para elas. Porém, finalmente compreenderam que era um erro e que, embora elas não tenham dinheiro, seus pais têm. Assim, desenvolveram um novo conceito na indústria da propaganda, o qual denominaram de “fator amolação”. No mundo acadêmico, departamentos de psicologia aplicada estudam várias formas de amolação — caso o anunciante queira que a criança importune os pais para que eles comprem um determinado produto, anunciam de uma determinada forma; caso o foco seja outro produto, anunciam de outra maneira.
Os pais estão familiarizados com essas artimanhas porque veem a coisa acontecer. Quando assisto à televisão com meus netos, por exemplo, percebo que, já aos 2 anos, eles são inundados com propagandas — as coisas que seus pais têm de comprar para eles. Tudo começa na infância e podemos ver isso claramente. Aliás, existem bons estudos sobre os efeitos disso em crianças e adultos. Em suma, é uma das formas de aprisionar pessoas na armadilha do consumo.
Outra importante forma de aprisionamento das pessoas é levá-las a contrair dívidas. Não foi um artifício inventado aqui, e tem uma história interessante. Na década de 1830, quando os britânicos estavam abandonando suas práticas escravocratas nas colônias, depararam-se com um problema. O que fariam quando os escravos ficassem livres? Como seria possível fazê-los continuar trabalhando nas grandes monoculturas de exportação? Afinal de contas, as terras eram abundantes e eles poderiam simplesmente partir para outra região, conseguir um lote de terra e levar uma vida bastante feliz. Ora, para resolver o problema, eles simplesmente lançaram mão do método de dominação de sempre.
O que eles precisavam fazer era induzi-los a cair na armadilha do consumismo. Enchê-los de propaganda, tentá-los com ofertas sedutoras, e assim por diante, de modo que os libertos adquirissem esses produtos de um jeito ou de outro. Eles passariam a frequentar as lojas comerciais para comprá-los, se endividariam e, em pouco tempo, estariam presos na armadilha consumista — e, no fim das contas, a economia da escravidão estaria de volta.5
4: Ver País Fast Food: O lado nocivo da comida norte-americana, Eric Schlosser, 2001, na página 154.
5: Ver O Dobro do Trabalho Feito pelo Trabalhador Livre: A Política Econômica do Trabalho de Presidiários na Região Sul dos EUA, Alex Lichtenstein, 1996, na página 155.


Minando as eleições
Quando essas mesmas instituições — as do sistema de relações públicas — participam de campanhas eleitorais, agem de forma idêntica. Procuram criar um eleitorado desinformado que seja levado a fazer escolhas irracionais, quase sempre contra seus próprios interesses.
A democracia parte do pressuposto da existência de cidadãos bem-informados, tomando decisões racionais. Porém, a indústria de relações públicas realiza campanhas para entupir os eleitores de coisas inúteis, como ilusões, personalidades e assim por diante. Afinal, é importante mantê-los distantes dos grandes problemas — e a razão para isso é bastante clara. No que diz respeito aos grandes problemas, existe um claro conflito entre políticas públicas, feitas por uma elite, e a opinião pública. Por isso, tratam de induzir as massas a preocupar-se com coisas irrelevantes e minar a democracia — e também contribuir com o objetivo geral de marginalização e fragmentação política da população e canalizar suas preocupações para longe daquilo que realmente poderia ser importante, na condição de agentes participativos de uma sociedade livre, democrática e vibrante, na qual trabalhassem por ela como um todo.
Enfim, querem que as pessoas sejam meros espectadores, e não participantes. E terão uma “democracia satisfatoriamente funcional” — de volta a Madison, passando pelo Memorando Powell e assim por diante. Isso acontece toda vez que realizam uma dessas extravagâncias eleitoreiras.”


“Ao longo da década de 1980, houve um aumento explosivo das campanhas publicitárias voltadas para o consumidor infantil. Muitos trabalhadores, sentindo um peso na consciência pelo fato de que vinham dedicando menos tempo aos filhos, começaram a gastar mais dinheiro com as crianças. Um especialista em marketing chamou os anos de 1980 de “a década do consumo infantil”. Depois de anos ignorando quase totalmente o potencial de consumo nas crianças, Madison Avenue começou a estudá-las e a pesquisar sobre elas. (...) O crescimento do setor publicitário dedicado ao mercado consumidor infantil tem sido conduzido por esforços objetivando o aumento do consumo nesse mercado não apenas agora, mas no futuro também. Movidas pela esperança de que lembranças nostálgicas de uma famosa marca da infância podem levar o consumidor a comprá-la ao longo da vida inteira, as empresas estão preparando agora estratégias publicitárias envolvendo a ideia de uma fidelidade de consumo que se estenda do “berço ao túmulo”. É que elas passaram a acreditar naquilo que Ray Kroc e Walt Disney haviam percebido muito tempo antes — a “fidelidade à marca” de uma pessoa pode começar já aos dois anos de idade. Aliás, pesquisas de mercado indicam que, muitas vezes, as crianças reconhecem um logotipo de marca antes mesmo de se tornarem capazes de reconhecer o próprio nome [...].
Nos dias atuais, o grosso das campanhas publicitárias direcionadas a crianças tem por objetivo obter resultados imediatos. “E não se trata apenas de induzir as crianças a espernear”, explicou um marqueteiro numa entrevista para a Selling to Kids, “mas também dar a elas um motivo específico para pedir que lhes comprem o produto.” Anos atrás, o sociólogo Vance Packard comparou as crianças a “assistentes de vendas” que tinham de persuadir outras pessoas, geralmente os próprios pais, a comprar o que elas queriam.”
(País Fast Food: O lado nocivo da comida norte-americana, Eric Schlosser, 2001)


MARGINALIZAR A POPULAÇÃO
Martin Gilens, um dos mais destacados cientistas políticos da atualidade, fez importantes estudos sobre as correlações entre os anseios da população e as políticas públicas, com base em dados de pesquisas de opinião. Por sinal, é um assunto muito fácil de estudar — afinal de contas, políticas governamentais podem ser vistas, e opinião pública surge dos dados das pesquisas de opinião. Num desses estudos,1 feito em conjunto com Benjamin Page, outro excelente cientista político, Gilens escolheu para exame 1.700 decisões relacionadas com políticas públicas e as comparou com os anseios do público e o interesse corporativo. O que elas demonstram, e acho que convincentemente, é o fato de que políticas públicas não têm nada a ver com os anseios do povo, e estão estreitamente vinculadas aos interesses das grandes empresas. Em outro trabalho, ele demonstrou que cerca de setenta por cento da população não exercem nenhuma influência na definição de políticas públicas — é como se morassem em outro país. E quando examinamos o nível de renda e de riqueza, o impacto das políticas públicas é ainda maior — os ricos, de uma forma geral, conseguem o que eles querem.
Os dados dessas pesquisas de opinião não são suficientemente detalhados para que pudéssemos examinar a questão além dos dez por cento mais ricos da população, o que é meio enganador, pois a verdadeira concentração de poder está na ínfima fração de um por cento da população. No entanto, se o estudo tivesse chegado a esse nível de requinte, teria sido óbvio o que constataríamos: essa pequena parcela consegue tudo o que quer, porque, na prática, são eles que administram e controlam tudo.
O fato de políticas públicas não corresponderem aos interesses da população não deveria surpreender ninguém. Afinal, é o tipo de coisa que vem ocorrendo há muito tempo. A verdade é que as políticas governamentais são feitas para instituir e preservar o poder do Estado e das classes dominantes. Nos EUA, esse poder de classes está, principalmente, nas mãos do setor corporativo. O bem-estar da sociedade está em segundo plano e quase nunca recebe a atenção necessária. E a população sabe disso. Por esse motivo temos essa grande hostilidade com as instituições — com todas elas. Assim, quase sempre o apoio ao Congresso se expressa em números de apenas um dígito; as pessoas não gostam da presidência; detestam as grandes empresas; bancos são odiados — isso se estende por todos os setores. Até mesmo a ciência é desprezada: “por que deveríamos acreditar nela?”.

Um sentimento de raiva difuso
Existe mobilização e ativismo popular em nosso país, mas na direção de objetivos prejudiciais às próprias pessoas que deles participam. São coisas que estão tomando forma de um sentimento de raiva difuso — manifestações de ódio, ataques recíprocos, alvos vulneráveis. Irracionalidade de pessoas agindo contra seus próprios interesses — aliás, isso ocorre literalmente falando. Apoio a políticos cujo objetivo é prejudicá-las ao máximo. Estamos vendo essas coisas acontecerem bem diante de nossos olhos. Basta assistir à televisão e navegar pela Internet para ver esse fenômeno todos os dias. É o que acontece. Funciona como um agente de corrosão nas relações sociais, mas a finalidade é justamente esta. O objetivo é fazer com que as pessoas se odeiem e tenham medo umas das outras, que tratem de cuidar apenas de si e não façam nada por ninguém.
Donald Trump, por exemplo. Faz muitos anos que venho escrevendo e falando sobre o perigo do surgimento, nos Estados Unidos, de um ideólogo carismático, alguém que conseguisse explorar o medo e o ódio que anda fervilhando, um perigo latente em grande parte da sociedade, enfim, alguém que fosse capaz de desviar esse sentimento para longe das verdadeiras causas de nossos males, canalizando-o na direção de alvos frágeis e inofensivos. Contudo, faz muitos anos também que esses perigos são reais, talvez ainda mais se considerarmos as forças que Trump desencadeou, até porque ele não se enquadra na imagem de um verdadeiro ideólogo. Na verdade, ele parece ter muito pouco de uma ideologia efetivamente pensada exceto pelo eu e meus amigos.
Ele recebeu um apoio enorme de pessoas com raiva e ódio de tudo e todos. Tanto é assim que, sempre que Trump faz algum comentário horrível a respeito de alguém, sua popularidade aumenta. É uma popularidade assentada em sentimentos de ódio e medo. O fenômeno que estamos vendo aqui é de “ódio generalizado”. Em grande medida, por parte de pessoas brancas, da classe operária, de integrantes da baixa classe média, de pessoas que ficaram abandonadas e esquecidas durante o período do neoliberalismo. Elas atravessaram uma geração inteira de estagnação e decadência. E decadência, inclusive, no funcionamento da democracia, pois até mesmo a atuação política mal reflete suas preocupações e a busca da concretização de seus interesses. Tiraram tudo. Não existe crescimento econômico, só para uma minoria. Todas as instituições estão contra. Por isso, elas têm um desprezo imenso pelas instituições, principalmente pelo Congresso. Grande é a preocupação que elas têm de que estejam perdendo seu próprio país porque um “eles generalizado” está tomando conta de tudo. Essa forma de transformar em bode expiatório aqueles que são mais vulneráveis, juntamente com a ilusão de que estão sendo tratados com mimos e leniência pelas “elites liberais”, é algo bem conhecido, acompanhado de seu habitual cortejo com resultados dolorosos. É importante considerar que legítimos receios e preocupações das massas podem ser enfrentados com políticas públicas sérias e construtivas.
Em 2008, muitos dos seguidores de Trump votaram em Obama, acreditando na mensagem de “esperança e mudanças”. Porém, viram muito pouca coisa ser feita e, agora, desiludidos, foram seduzidos por um impostor oferecendo uma mensagem diferente, mas que poderá levar a uma reação terrível quando sua imagem desmoronar. Todavia, os resultados dessas promessas poderiam ser muito mais promissores se houvesse um programa autêntico e expressivo, que verdadeiramente infundisse esperança na população e prometesse gerar de fato, com a devida seriedade, mudanças extremamente necessárias. Em vez disso, a resposta a esse estado de coisas é a manifestação de um ódio generalizado contra tudo e contra todos. (...)
As tendências a que nos referimos, que vão se materializando na sociedade americana, criarão, a menos que sejam revertidas, uma sociedade extremamente ruim para se viver. Uma sociedade cujos alicerces se assentarão na máxima vil de Adam Smith do “tudo para nós, e nada para os outros”, uma sociedade movida pelo Espírito de Época do “conquistar riquezas esquecendo-se de todos, exceto de si mesmo”, uma sociedade na qual os instintos e sentimentos, normais ao ser humano, como empatia, solidariedade, apoio mútuo, serão rejeitados. Não gostaria de ver meus filhos vivendo nesse lugar.
Se uma sociedade se baseia no controle da riqueza privada, ela refletirá esses valores — valores de ganância e o aumento do ganho pessoal, em detrimento dos outros. Por enquanto, uma pequena sociedade movida por esse princípio pode ser horrível, mas consegue sobreviver. Porém, uma sociedade global baseada nesses princípios caminhará para uma destruição em massa.”
1: Ver “Testando Teorias da Política Americana: Elites, Grupos de Interesse e Cidadãos Comuns”, Martin Gilens e Benjamin I. Page, 2014, na página 171.


A sobrevivência da espécie
Acho que temos um futuro muito sombrio pela frente. Digo isso considerando os graves problemas que enfrentamos na atualidade. Existe uma questão que não deveria ser ignorada sob hipótese alguma — a de que estamos num estágio da história em que, pela primeira vez, nos defrontamos com questões decisivas para a sobrevivência da espécie. Poderá a espécie humana continuar a existir, pelo menos de forma digna? É um problema de fato.
Em 8 de novembro de 2016, o país mais poderoso da história, que deixará a marca de sua existência no que está por vir, realizou uma eleição presidencial. O resultado do pleito pôs o controle total do governo — o Executivo, o Congresso, a Suprema Corte — nas mãos do Partido Republicano, que se tornou a mais perigosa organização da história mundial.
Com exceção da última frase, nada do que expus acima pode ser considerado controverso. A última frase pode parecer estranha, ou até ultrajante. Mas será mesmo? Os fatos indicam justamente o contrário. O partido vem se empenhando em acelerar ao máximo a destruição da vida humana. Não existe nenhum precedente histórico de uma atitude como essa.
Acha que é um exagero? Então, considere o que acabamos de testemunhar. O candidato vitorioso exige um rápido aumento do uso de combustíveis fósseis, incluindo o carvão; a aniquilação de normas reguladoras; e a recusa a ajudar países em desenvolvimento que estão tentando mudar para sistemas de produção de energia limpa; enfim, de uma forma geral, correndo para a beira do abismo a toda velocidade.
Já houve consequências diretas dessa atitude. As negociações da COP 21, Conferência do Clima para tratar de questões sobre mudanças climáticas, realizada em Paris, tinham por objetivo o estabelecimento de um tratado oficial, mas seus participantes tiveram que se contentar com promessas verbais de confirmação do acordo, pois os representantes republicanos no Congresso se recusaram a aceitar qualquer compromisso de caráter irrevogável. A COP 22, conferência subsequente realizada em Marraquexe, destinava-se a preencher lacunas e remediar deficiências com vistas a amarrar bem o acordo. Ela começou em 7 de novembro de 2016. Em 8 de novembro, dia de eleição nos EUA, a Organização Meteorológica Mundial divulgou um relatório estarrecedor sobre a situação atual da destruição do meio ambiente. Quando o resultado da eleição chegou ao conhecimento dos participantes da conferência, eles começaram a se perguntar se o processo de negociações podia continuar, já que o país mais poderoso do planeta havia retirado seus representantes do encontro e iniciara então tentativas para enfraquecê-lo. Por fim, a conferência foi encerrada — um espetáculo assombroso. O líder da defesa da condição humana foi a China! E o líder de destruição do planeta foi o “líder do Mundo Livre”. Mais uma vez, é difícil descrever com exatidão um espetáculo triste como esse.
Não é menos difícil achar palavras para explicar o fato absolutamente assombroso que, apesar da ampla cobertura jornalística da extravagância eleitoreira nos Estados Unidos, esse tipo de evento sobre o clima recebe uma insignificante menção na mídia. Até eu sinto dificuldade para achar as palavras certas que elucidem esse fenômeno.
Por isso, estamos avançando, de olhos abertos, para um mundo em que nossos netos talvez não consigam sobreviver. Vamos caminhando fatalmente na direção de um desastre ambiental, e não apenas caminhando, mas correndo ao encontro desse destino. Com a pressão dos grandes negócios, os Estados Unidos liderando o aceleramento dessas ameaças, em grande parte por motivos institucionais. É só o leitor prestar atenção nas manchetes. Na primeira página do New York Times, por exemplo, vimos a chamada de uma reportagem sobre um relatório revelador sobre a redução da calota polar no Ártico. E com isso ficamos sabendo que seu derretimento chegou a um ponto muito além de tudo que fora previsto por sofisticados modelos matemáticos computacionais, lembrando que a calota polar do Ártico gera efeitos consideráveis sobre o clima como um todo.
É um problema que se agrava a cada dia, pois à medida que a calota polar derrete, há menos reflexão dos raios solares. Isso permite que uma quantidade maior de energia solar se concentre na atmosfera, criando assim um processo de gravidade crescente e imprevisível, sem nenhuma possibilidade de controle. A matéria do jornal relatou também as reações de governos e grandes empresas, que foi de entusiasmo. Agora, pensaram eles, podemos acelerar o processo, pois novas áreas já estão acessíveis a perfurações e à extração de combustíveis fósseis, e teremos condições de expandi-las ainda mais. Sábia decisão, para não dizer o contrário.
Essa deliberação é uma sentença de morte para os nossos descendentes.”


As estruturas de autoridade não se justificam por si mesmas
Acho que não somos suficientemente inteligentes para projetar em todos os detalhes como seria uma sociedade perfeitamente justa e livre. No entanto, acredito que podemos propor algumas ideias e, sobretudo, nos questionar acerca da forma pela qual seríamos capazes de avançar nessa direção. John Dewey,2 um dos mais destacados filósofos sociais da primeira metade do século XX, defendia a tese de que, enquanto todas as instituições — da indústria, do comércio, da imprensa — não estiverem sob o controle de um sistema de participação efetivamente democrática, não teremos uma sociedade democrática realmente funcional. Nas palavras dele: “As políticas públicas serão a sombra do mundo dos negócios projetada sobre a sociedade.” Bem, isso é essencialmente verdade.
Onde existirem estruturas de poder, de autoridade, de dominação e de hierarquia — em que alguém dá as ordens e outros obedecem —, elas não se justificam por si sós. Na verdade, elas precisam justificar sua razão de ser. Elas precisam provar sua necessidade de existência. Olhando de perto, veremos que normalmente elas não conseguem justificar sua existência. Se não conseguem fazer isso, então temos que desmantelá-las — na tentativa de expandir os domínios da liberdade e da justiça, somente possível com o desmantelamento dessa estrutura ilegítima de autoridade. É mais uma tarefa que cabe à população organizada, engajada e dedicada: não apenas para regulá-las, mas também para questionar por que existem e para que servem. É um conceito do componente libertário do Iluminismo e do pensamento clássico liberal. É também o princípio mais importante do anarquismo, mas anarquia também é democracia. E não acho que, sob nenhum aspecto, um esteja em conflito com o outro. São apenas formas diferentes de se considerar o mesmo problema — o da tomada de decisões, nas mãos de pessoas preocupadas com grandes decisões, e o das suas consequências. Aliás, o progresso que tivemos ao longo dos anos — ou pelo menos aquilo que todos nós, com um sentimento de gratidão, nos convencemos de que foi progresso — veio justamente assim.”
2: Ver The Later Works: 1925-1953, Volume 6: 1931-1932, John Dewey, 1985, na página 173.


“Consideremos, por exemplo, a liberdade de expressão, uma das mais importantes conquistas da sociedade americana. Somos os primeiros do mundo neste particular. Ainda que não seja verdadeiramente garantida pelos Direitos Fundamentais do Cidadão, na Constituição. Questões relacionadas com a liberdade de expressão começaram a ser levadas à apreciação da Suprema Corte no início do século XX. As maiores contribuições vieram na década de 1960.3 Uma das mais importantes foi um caso do movimento pelos direitos civis.4 Tínhamos então um grande movimento popular, cujos integrantes vinham exigindo direitos, jamais desistindo de lutar por seus objetivos.5 Naquela conjuntura, a Suprema Corte impôs normas rígidas à liberdade de expressão. Vejamos outro exemplo, o do direito das mulheres. Elas começaram identificando estruturas opressoras, recusando a aceitá-las e aglomerando outras pessoas a elas. É assim que se conquistam direitos.
Não existe um remédio genérico. Existem remédios específicos para casos específicos, já que a cura para todos os males não existe — pelo menos não que eu saiba. Os ativistas foram as pessoas que conquistaram ou ajudaram a instituir os direitos que desfrutamos hoje. Eles não vêm influenciando políticas públicas exclusivamente com base em informações que recebem, eles vêm também contribuindo para a sua compreensão. É um processo recíproco. Tenta-se fazer certas coisas. E aprende-se com isso. Aprende-se como o mundo funciona e dessa forma realimenta-se a percepção sobre a melhor maneira de seguir em frente.
A melhor forma de aprender é interagindo, e isso se aplica até nas ciências avançadas. Basta visitar um laboratório de pesquisas científicas para ver pessoas conversando, trocando ideias. Elas vivem questionando umas às outras, lançando desafios, suscitando reações nos colegas, nos alunos e por aí vai. Se você é uma pessoa que vive isolada, talvez possa até ser um gênio capaz de descobrir e equacionar certas coisas sozinho, mas gênios são casos raros. De forma geral, não se avança quando não há recursos necessários, o devido apoio, ou ainda o incentivo para tentar descobrir quem você é, o que está acontecendo no mundo, onde você deveria buscar informações, saber como agir e assim por diante.
Assim, em sociedades com organizações realmente funcionais e de peso considerável, tais como sindicatos de trabalhadores — os sindicatos foram forças educacionais, e não apenas instrumentos de luta, ou seja, foram um local onde a educação dos trabalhadores era um fenômeno relevante —, você sabe o que fazer. Nelas, as pessoas podem incentivar-se umas às outras. Conseguem manter-se informadas. Podem questionar mutuamente seus pontos de vista e aperfeiçoá-los, entre outras coisas mais. Desse modo, as pessoas conseguem vencer as instituições da elite ao aprender aquilo que elas não querem que se aprenda. Como sempre, é uma luta constante contra os poderosos.”
3: Ver O Caso Judicial Brandeburg versus Ohio, Suprema Corte dos Estados Unidos, 9 de junho de 1969, na página 174.
4: Ver O Caso Judicial Edwards versus Carolina do Sul, Suprema Corte dos Estados Unidos, 25 de fevereiro de 1963, na página 175.
5: Ver O Caso Judicial Times versus Sullivan, Suprema Corte dos Estados Unidos, 9 de março de 1964, na página 176.


“Durante a Primavera Árabe, nos primeiros dias dos protestos na Praça Tahrir, as pressões do governo foram bastante significativas. Grande parte da mobilização foi realizada pelas redes sociais, e o presidente Mubarak tomou a decisão de tirar a Internet do ar. Qual foi o efeito dessa medida? A militância aumentou, pois as pessoas focaram no que realmente importa, isto é, o contato cara-a-cara entre elas. Começaram, portanto, a falar umas com as outras. Aliás, temos muitas evidências de que essas relações concretas — o ato de se organizar com outras pessoas diretamente, conversar com elas no mundo real, escutá-las, e assim por diante — gera resultados importantes. Sem dúvida, as redes sociais são úteis, mas não é a mesma coisa que participar de um debate com outras pessoas diretamente. Afinal de contas, somos seres humanos, e não robôs. Não podemos nos esquecer disso.
Portanto, vamos agora à seguinte questão: “O que podemos fazer?” Quase tudo que quisermos fazer. A verdade é que, em comparação com sociedades semelhantes, a nossa é uma sociedade com um alto nível de liberdade. Isso não foi um presente dos céus. A liberdade que conquistamos foi conquistada com lutas populares árduas, dolorosas, corajosas, e existe de fato. Herdamos esse legado — um legado que nos foi deixado pelas lutas de outras pessoas. Nesta sociedade, existem enormes oportunidades — visto que ainda é a sociedade mais livre do mundo, em muitos aspectos. O governo tem uma capacidade muito limitada de nos coagir. As grandes corporações podem até tentar nos coagir a fazer o que elas querem, mas não têm os mecanismos para tanto. Podemos muito se as pessoas se organizarem — podemos lutar por nossos direitos tal como fizeram nossos antepassados, e conseguir muitas vitórias.
Acho que podemos ver muito claramente alguns defeitos e falhas graves de nossa sociedade, em nosso nível de cultura, em nossas instituições — os quais terão de ser corrigidos com uma atuação fora da estrutura e do contexto comumente aceitos. Acredito que precisamos descobrir novas formas de atuação política. Temos uma mudança em andamento, principalmente entre os jovens, mas é geralmente neles mesmos que as mudanças começam. E para onde essa mudança nos levará? Isso depende muito de você. Ela nos levará para onde pessoas como você a direcionarem.
Trata-se de um tipo de atuação que o falecido Howard Zinn, meu grande amigo durante anos, observou com as seguintes palavras: “O que importa mesmo são as pequenas e incontáveis ações de pessoas desconhecidas, que assentam as bases para o advento de importantes acontecimentos que entram para a História.”6 São elas que fizeram as coisas acontecerem no passado. São elas que as farão acontecer no futuro.”
6: Ver Você não Pode Ser Neutro num Trem em Movimento: Uma História Pessoal dos Nossos Tempos, Howard Zinn, 1994, na página 177.


“Ousei citar declarações esporadicamente, embora com minúcias consideráveis, porque é típica a situação atual em Washington. A situação ali reflete com precisão a situação política em todo o país. Aquela não tem nada a ver com as realidades da vida americana porque a última não apresenta nenhuma correlação com outros fatores. É uma situação que explica a insatisfação e a indignação do povo para com os velhos partidos e constitui uma oportunidade para um novo partido. Faz tempo que as pessoas vêm afirmando que a política não tem importância nenhuma, que o governo é simplesmente um lixo e mero fator de intromissão; que os capitães da indústria e das finanças é que são os sábios, os líderes a cujas mãos as fortunas do país estão seguramente confiadas.
As pessoas que vivem reiterando essas coisas se esquecem, ou tentam esconder do público, de que a confusão, as complicações, o caráter fútil, a irrelevância da política em Washington é um mero reflexo da falência dos “líderes” do setor industrial, do mesmo modo que a política, de uma forma geral, espelha, exceto quando ela funciona como cúmplice, os interesses dos grandes negócios. Sem dúvida, portanto, os impasses e a impotência do Congresso são o espelho da manifesta incapacidade dos capitães da indústria e do setor financeiro de conduzir prosperamente os negócios do país, como consequência natural do processo de tratarem de puxar a brasa para a própria sardinha. Seria ridículo, quando não trágico, acreditar que um apelo aos agentes de atividades não regulamentadas que nos fizeram cair na crise atual bastará para que nos tirem dela, a menos que sejam poupados do pesadelo de terem que enfrentar as consequências de uma reação política. O expediente mágico de a pessoa ingerir pelos do cão que a mordeu, com vistas a tentar curar-se de hidrofobia não é nada se comparado com o feitiço que leva à crença de que os poderosos e privilegiados remediarão o descalabro que eles mesmos criaram. Enquanto a política for apenas a sombra dos interesses dos grandes negócios projetada na sociedade, uma simples rarefação atenuante de sua trevosa densidade não mudará a essência do corpo político. O único remédio para esse mal é uma nova reação política com base nos anseios da população e nas realidades sociais.”
(The Later Works: 1925-1953, Volume 6: 1931-1932, John Dewey, 1985)

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