domingo, 2 de setembro de 2018

A crise do neoliberalismo (Parte I) – Gérard Duménil e Dominique Lévy

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-368-4
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 368
Sinopse: Em A crise do neoliberalismo, Gérard Duménil e Dominique Lévy, dois dos mais influentes pesquisadores sobre o neoliberalismo, recontam a história desse novo estágio do capitalismo: do colapso dos subprimes à dita ‘Grande Contração’. Ao discutir a financeirização econômica, a reestruturação produtiva, as lutas de classes e as relações internacionais às portas de uma nova ordem global multipolar, os autores propõem uma reflexão fundamental à compreensão da história e dos rumos da economia. O livro traz uma análise da chamada ‘Grande Contração’ de 2007-2010 no contexto da globalização neoliberal iniciada nos primeiros anos da década de 1980. Com uma abordagem crítica não dogmática, Duménil e Levy articulam uma enorme quantidade de dados perturbadores para revelar, como saldo da globalização neoliberal, o enriquecimento dos 5% norte-americanos mais ricos, em paralelo à redução de 40% para menos de 10% do PIB dos Estados Unidos em trinta anos. A queda do investimento interno na indústria, uma dívida doméstica insustentável e a crescente dependência de importações, aliados ao financiamento e ao desenvolvimento de uma estrutura financeira global frágil e impraticável, ameaçam a força do dólar. A menos que haja uma alteração radical da organização político-econômica do país, os autores preveem um declínio agudo da economia norte-americana – e não hesitam em diagnosticar: ‘Sair da crise vai ser muito difícil’.
A do neoliberalismo é a quarta crise estrutural do capitalismo desde o fim do século XIX. A comparação com as crises anteriores – das décadas de 1890, 1930 e 1970 – coloca em perspectiva a análise profunda e detalhada que os autores fazem da situação atual. Contrapondo-se a diversas explicações sobre a crise econômica vigente, eles defendem a tese ousada de que a contração econômica em curso, à semelhança da Grande Depressão de 1929, é uma crise da hegemonia financeira.
Em vez de lançar a culpa sobre indivíduos isolados, como o fazem, por exemplo, Alan Greenspan e Ben Bernanke, Duménil e Levy concentram-se nas forças estruturantes da economia. Para eles, a presente crise é resultado direto das contradições inerentes ao próprio projeto neoliberal. Suas tendências abalaram as fundações da economia da ‘base segura’ – isto é, a capacidade dos Estados Unidos de crescer, manter a liderança de suas instituições financeiras em todo o mundo e assegurar a posição dominante de sua moeda –, uma estratégia imperial e de classe que resultou em um impasse. Segundo os autores, consertar a quebra da economia norte-americana exige a imposição de limites sobre o livre comércio e a livre movimentação de capitais, além de políticas destinadas a aprimorar a educação, a pesquisa e a infraestrutura; a reindustrialização e a fixação de tributação das rendas mais altas.
Como observa Armando Boito Jr. no texto de orelha, ‘Diferentemente da maioria dos economistas, e inclusive de boa parte dos economistas críticos, Duménil e Lévy articulam a análise econômica com a sociológica e a política’. Assim, esboçam a natureza de um novo modelo – que, após essa crise estrutural, viria substituir o capitalismo neoliberal – a partir das dinâmicas da luta de classes e da correlação política de forças nos diferentes países e em escala internacional. A crise do neoliberalismo conta ainda com um prefácio inédito escrito especialmente para a edição brasileira, em que os autores atualizam sua análise com considerações acerca do lugar da União Europeia e do Brasil no cenário global, fazendo um balanço das políticas econômicas brasileiras a partir de 2000.


“Uma tese central de nosso já citado Capital Resurgent é que a dinâmica geral do capitalismo sob o neoliberalismo, tanto nacional quanto internacionalmente, foi determinada por novos objetivos de classe que operaram em benefício das camadas mais altas de renda, isto é, os proprietários capitalistas e as frações superiores da administração. A maior concentração de renda em favor de uma minoria privilegiada foi uma realização crucial da nova ordem social. Os dados de declaração de renda tornam evidente esse fato. Sob esse aspecto, uma ordem social é também uma configuração de poder, e implícita nesta última noção está o poder de “classe”. A essa observação, as estruturas de contabilidade nacional acrescentam que uma fração grande e crescente da renda do capital norte-americano vem de fora dos Estados Unidos. Isso envolve não apenas relações de classe, mas também hierarquias imperiais, uma característica permanente do capitalismo.
A nova configuração da distribuição de renda foi o resultado de várias tendências convergentes. Forte pressão foi aplicada sobre a massa de trabalhadores assalariados, o que ajudou a reerguer as taxas de lucro dos baixos níveis atingidos nos anos 1970 — ou, no mínimo, a interromper a tendência de queda. A abertura das fronteiras do comércio e do capital inaugurou o caminho para grandes investimentos nas regiões do globo onde as condições sociais prevalentes permitiam altas taxas de retorno, gerando fluxos de capital na direção das classes altas dos Estados Unidos (e de grupos maiores que, até certo ponto, conseguem se beneficiar das rendas de capital). O livre comércio aumentou a pressão sobre os trabalhadores, efeito da competição dos países onde os custos da mão de obra são mais baixos. O endividamento crescente das famílias e do governo também gerou grandes fluxos de renda de capital. Graus extremos de sofisticação e expansão dos mecanismos de financiamento surgiram depois de 2000, possibilitando enormes fontes de renda para o setor financeiro e para as famílias mais ricas. Finalmente, a crise revelou que uma parcela significativa desses fluxos de renda se baseava em lucros duvidosos, a uma crescente supervalorização dos ativos de securitização (securities). (...)
A ordem neoliberal internacional – conhecida como globalização neoliberal foi imposta a todo o mundo, desde os principais países capitalistas do centro até os países menos desenvolvidos da periferia, geralmente ao custo de severas crises, como na Ásia e na América Latina durante as décadas de 1990 e 2000. Como em todos os estágios do imperialismo, os principais instrumentos dessas relações internacionais de poder, além da violência econômica direta, são a corrupção, a subversão e a guerra. E o principal instrumento político é sempre a instalação de um governo local pró-imperialista. A colaboração das elites do país dominado é fundamental, bem como, no capitalismo contemporâneo, a ação de instituições internacionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Economicamente, o objetivo dessa dominação é a extração de “excedentes” pela imposição de preços baixos aos recursos naturais e investimentos no exterior, seja ele em bolsa ou o investimento externo direto. O fato de os países da periferia desejarem vender seus recursos naturais e receber investimentos externos não altera a natureza das relações de dominação, assim como, no interior de um país, os trabalhadores se dispõem a vender sua força de trabalho, a fonte última de lucro. (...)
No neoliberalismo, as camadas superiores da classe capitalista, com o apoio das instituições financeiras, agem como líderes dentro do grupo mais abrangente das classes altas no exercício da dominação comum. Da mesma forma, os Estados Unidos agem como líder no âmbito do grupo mais abrangente dos países imperialistas.”


“A combinação das revoluções corporativa e financeira, com o surgimento das grandes corporações apoiadas por instituições financeiras, introduziu novos tipos de relações em que o poder das camadas superiores das classes capitalistas dependia pesadamente das instituições financeiras. Essa concentração de poder capitalista nas instituições financeiras e a importância desses títulos na propriedade dos meios de produção deram à dominação das classes capitalistas na sociedade moderna um caráter fortemente financeiro. Por isso, este livro usa o termo “finanças” para se referir a tais camadas e instituições em qualquer organização social na qual as primeiras controlem as segundas como geralmente se dá no capitalismo. Finanças, como usado aqui, não são uma indústria à parte. Ao contrário, combinam aspectos de classe e institucionais.
Essa noção do termo só existe no capitalismo moderno. Antes das três revoluções, houve obviamente capitalistas monetários além dos “capitalistas ativos” (empreendedores), bem como o setor financeiro na economia. Porém no início do século XX construiu-se uma nova configuração institucional, em que grandes famílias capitalistas controlavam grandes lotes de ações e apólices, potencialmente diversificadas em muitas indústrias e na qual um setor financeiro desempenhava papel importante no financiamento da acumulação e no exercício das prerrogativas ligadas à propriedade. A noção de finanças é fundamental para a análise do neoliberalismo. Mas o poder das classes capitalistas mais altas e das instituições financeiras nessa ordem social não pode ser separado do progresso da administração — principalmente, mesmo que de forma não exclusiva, a administração financeira —, que, por sua vez, ganhou considerável importância. Assim, o início do século XX marcou a culminância de tendências sociais já em desenvolvimento durante o século XIX, cujas figuras emblemáticas foram o burguês rentista — uma “classe ociosa”, no dizer de Thorstein Veblen — e as novas classes gerenciais.”


“O neoliberalismo é a mais recente das três ordens sociais que, em conjunto constituem o capitalismo moderno. Essas organizações sociais fundamentam-se no sistema de classe. Por isso, podem ser chamadas de “configurações do poder de classe”. A primeira e a terceira, respectivamente do início do século XX até o New Deal e a partir do início da década de 1980, podem ser chamadas de “primeira” e “segunda hegemonia financeira”. Hegemonia financeira, tal como usamos aqui, refere-se ao fato de as classes capitalistas – ou seja, as finanças e a camada superior das classes capitalistas e das instituições financeiras – se beneficiarem de uma capacidade ilimitada de comandar a economia e a sociedade em geral, de acordo com interesses próprios ou o que percebam como tal. De alguma forma, essa é uma situação “normal” no capitalismo moderno das primeiras décadas do pós-guerra, desde o New Deal até o fim dos anos 1970, quando esse poder foi reduzido, destaca-se como uma exceção. A ordem social que prevaleceu durante aqueles anos é geralmente chamada de “compromisso keynesiano” ou “social-democrata”, mas essa terminologia tem seus problemas.”


“O neoliberalismo desprendeu a liberdade de ação das empresas, presumivelmente para uma volta à “economia de mercado” (um eufemismo para a dinâmica capitalista sem limites, doméstica ou internacionalmente). Paralelamente a essa ideologia de mercado, o neoliberalismo promoveu a desregulamentação em todos os campos, particularmente o dos mecanismos financeiros. Impôs fortes macropolíticas, destinadas a proteger os emprestadores por meio da estabilidade forçada de preços e da abertura das fronteiras de comércio e de capital.
A ideologia não foi o instrumento da revolução neoliberal. A relação com as hierarquias de classe era óbvia demais. Cada uma das realizações anteriormente citadas era coerente com os interesses das classes altas, ou seja, a maximização das rendas mais altas. O poder de compra dos trabalhadores foi restringido, o mundo se abriu para as corporações multinacionais, as dívidas crescentes de governos e famílias eram uma fonte de grandes fluxos de juros, e a financeirização tornou possíveis rendas gigantescas (salários, bônus, opções de ações e dividendos) no setor financeiro. A hegemonia das classes altas foi deliberadamente restaurada, uma volta à hegemonia financeira. Surgiu uma ideologia neoliberal, a expressão dos objetivos de classe do neoliberalismo. Essa ideologia foi o instrumento político crucial no estabelecimento do neoliberalismo.”


“O neoliberalismo é uma ordem social destinada a gerar rendimentos para as faixas superiores de renda não para investimentos na produção, muito menos para o progresso social. Nos países centrais, a acumulação do capital privado foi sacrificada em favor da distribuição de rendas em benefício das camadas mais altas. Principalmente nos Estados Unidos, o neoliberalismo significou uma desterritorialização (transferência para fora do território) da produção em benefício de várias economias da periferia. A aposta original era que os países do centro se transformariam gradualmente em economias de serviço, concentrando ainda várias atividades em que são fundamentais conhecimento, educação e pesquisa, e passariam a fornecer ao mundo serviços financeiros. A chamada propriedade intelectual seria evidentemente protegida. Acima de tudo, essas economias deveriam se transformar em centros financeiros o sonho de Margaret Thatcher, que acabou se revelando um pesadelo. Sob esse aspecto, havia o risco de novos concorrentes buscarem não somente eficiência na fabricação de produtos básicos, mas também acesso às altas tecnologias, pesquisa e inovação, além de, possivelmente, serviços financeiros, a tal ponto que as economias do centro gradualmente perderam terreno para esses concorrentes ambiciosos.”


“Julgado por seus objetivos de classe, o neoliberalismo foi um sucesso indiscutível antes da crise atual. Houve importantes resistências sociais nos países do centro, por exemplo, para manter certo grau de proteção de bem-estar social, e também manifestações de resistência pelo mundo, como na América Latina, como reação à devastação causada, mas isso não mudou o fato de que em toda parte a renda e a riqueza dos segmentos mais ricos da população aumentaram enormemente.”


“Existe um contraste nítido entre o declínio comparativo da economia interna dos Estados Unidos e o sucesso inegável da estratégia das classes altas. Essas classes aumentaram e restauraram seu próprio poder e renda, pelo menos até a crise. Na busca dos objetivos de classe neoliberais, é irrelevante os lucros serem realizados no país ou em qualquer outra região do globo, desde que os países onde forem feitos os investimentos continuem sendo politicamente confiáveis. Também não terá importância o fato de a trajetória da economia norte-americana ser cada vez mais dependente do financiamento externo. O mesmo vale para o crescimento da dívida do governo e das famílias, vistas como fontes crescentes de renda financeira em vez de um perigoso processo interno. Nos Estados Unidos, essa divergência atingiu proporções tão dramáticas que é possível falar em “divórcio” entre as classes altas e a economia interna do país.
O que é realmente novo nesse padrão de acontecimentos não é a desconexão em si. Muitos países da periferia são ou foram governados por suas classes altas ou por parcelas de classes sem compromisso com o progresso da própria nação. Pelo contrário, o comportamento dessas elites é geralmente determinado pelo desejo de colaborar com os países imperialistas do centro e aumentar a riqueza pessoal (principalmente no estrangeiro). As consequências para as economias e sociedades locais são devastadoras. Nacionalismo ou patriotismo por parte das classes altas é fundamental para o avanço das economias nacionais. O que é novo a partir da década de 1980 é o fato de as estratégias neoliberais terem significado um divórcio no centro do mundo neoliberal, semelhante ao que se observou em muitos países menos desenvolvidos.”


“Os instrumentos (do neoliberalismo) são o aumento da pressão sobre os trabalhadores, o aperfeiçoamento da organização em geral, as exportações de capital e os fluxos correspondentes de lucros das filiais de empresas multinacionais no exterior. Em cada país, o neoliberalismo se baseia numa nova disciplina imposta aos trabalhadores, da qual os principais aspectos são a estagnação dos poderes de compra, o desmantelamento gradual da proteção social, condições de trabalho mais difíceis e a chamada flexibilização do mercado de trabalho – ou seja, maior liberdade para contratar e demitir. A gerência também teve de se adaptar aos novos objetivos. A diferença entre trabalhadores e gerentes, entretanto, é que, na metáfora da cenoura e do chicote*, os primeiros ficam no lado do chicote e os segundos, no da cenoura. Na verdade, a gerência, em particular os cargos mais altos, aumentou gradualmente sua capacidade de separar em seu benefício uma fração crescente do excedente empresarial sob a forma de aumento da remuneração (no sentido mais amplo usado neste estudo).
Ainda no tocante à gerência, além de a busca por altos níveis de lucratividade ser estimulada, existe a sujeição dos gerentes privados ao controle corporativo, destinado à maximização do valor das ações e da distribuição de dividendos. Acontece que, nessas novas regras, há um componente político que envolve funcionários e demais representantes do governo. Seus aspectos principais incluem políticas monetárias destinadas a controlar as pressões inflacionárias (em vez de voltadas a estimular o crescimento e o emprego), a privatização da proteção social e a substituição parcial dos fundos de pensão por sistemas públicos em que o trabalhador recolhe contribuições durante o seu período de atividade**, além da desregulação.
Os dois pilares do aspecto internacional do neoliberalismo são o livre comércio e a livre mobilidade internacional do capital. A imposição do livre comércio foi o resultado de um processo longo e gradual desde a Segunda Guerra Mundial. O neoliberalismo impôs um “modelo aberto” a todo o mundo, com a colaboração das elites locais. Os controles de capital foram gradualmente desmantelados, a começar pelos Estados Unidos durante os anos 1970. A partir da década de 1990, os fluxos de investimento direto estrangeiro (IDE) aumentaram dramaticamente, uma expressão do crescimento das empresas multinacionais. Existem, evidentemente, várias ligações entre esses diversos componentes, tanto internos quanto internacionais. O investimento no exterior permitiu às empresas buscar altas taxas de retorno em países periféricos. A globalização, portanto, colocou os trabalhadores dos países capitalistas avançados em uma situação de competição com esses trabalhadores da periferia. As importações de bens de consumo baratos de lugares onde os custos de mão de obra são particularmente baixos reduziram os salários nominais necessários para comprar uma determinada quantidade de bens nos países avançados. Assim, elas contribuíram para a recuperação das taxas de lucro, dada a constância (ou declínio) do poder de compra da maioria dos assalariados.
De particular relevância para a análise da crise atual são os mecanismos monetários e financeiros. Primeiro, a dívida crescente do governo e das famílias foi uma fonte de grandes fluxos de juros. Segundo, a desregulação e a inovação financeiras tornaram possível a explosão da atividade e da renda do setor financeiro. Os procedimentos para obtenção de altas taxas de retorno, além do pagamento de dividendos e altos salários, foram levados ao extremo. Essas práticas chegaram ao ponto do que neste livro será chamado de “ficticidade”. A colaboração de servidores e representantes governamentais foi fundamental em todos esses campos.”
* Do inglês “sitck-and-carrot metaphor”, expressão que se refere ao sistema que combina recompensas e punições para manter a produtividade dos trabalhadores elevada. A metáfora alude à mula que caminha estimulada pela cenoura dependurada à sua frente pelo montador – que, por sua vez, leva consigo um chicote, para puni-la quando achar necessário. (N. T.)
**: Refere-se aqui ao fato de as empresas nos países desenvolvidos deixarem de prover fundos de pensão aos seus trabalhadores.


Taxas de juro: o golpe de 1979
Na história do capitalismo, episódios de inflação estiveram na origem de grandes transferências de riqueza de credores para tomadores de empréstimos, como durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Tais momentos tiveram um impacto dramático sobre as instituições financeiras e a riqueza dos possuidores de títulos de securitização. Dessa experiência histórica resulta a aversão que as classes altas nutrem pela inflação.
Quando os países capitalistas mais importantes entraram na crise estrutural dos anos 1970, uma década de baixa lucratividade em todas as medidas citadas, a taxa de crescimento do PIB manteve-se mais ou menos estável nos países centrais. Foi esse o efeito das macropolíticas de estímulo e da tolerância à inflação. A inflação acumulada estava na origem dessa grande transferência de renda à custa dos credores e em benefício do setor não financeiro – e de outros tomadores, como parte das famílias e do governo. Essas tendências políticas foram repentinamente interrompidas, com consequências espetaculares sobre os fluxos de renda do capital. No fim de 1979, o Federal Reserve aumentou de súbito as taxas de juro no “golpe de 1979”.
Esses desdobramentos se refletiram no perfil dos juros reais (taxa de juro menos a taxa de inflação) de longo e de curto prazo para o setor empresarial. Nas décadas de 1960 e 1970, ambas as taxas flutuaram em torno de um platô de cerca de 2,1% (média anual de longo prazo, AAA) antes de cair a valores negativos durante a crise. Então, num ato dramático, emerge o golpe. Um novo platô neoliberal de 5,9%, ainda para o longo prazo, foi mantido durante a segunda metade da década de 1980 e na de 1990.
Tal reviravolta na direção de uma nova estratégia — de acordo com a tentativa monetarista anterior de abandono das políticas de feedback – foi dramática. Na esteira das recessões de 1974 e 1975, a administração Carter ainda buscava a colaboração dos principais países capitalistas para estimular a economia mundial. No fim daquele ano, Paul Volcker, nomeado presidente do Federal Reserve em agosto de 1979, precipitou a subida dos juros a níveis sem precedentes, causando uma grande crise financeira nos Estados Unidos e em países europeus, em seguida à crise da dívida do terceiro mundo em 1982 e então a mais severa recessão nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. Em 1980, a Lei de Desregulação das Instituições Depositárias e de Controle Monetário tornou possível a eliminação das estruturas regulatórias anteriores e, simultaneamente, aumentou o poder do Federal Reserve.
Após 1983, com exceção de uma única recessão em 1991, o golpe limitou a inflação e abriu um período de relativa macroestabilidade, como é típico do neoliberalismo, até a recessão de 2001.”


“Uma segunda fonte de renda de capital é o pagamento de dividendos pelas corporações. O gráfico 4.3 mostra as parcelas dos lucros após impostos pagas como dividendos por corporações financeiras e não financeiras, respectivamente. Nos dois casos, antes de 1980, essas parcelas flutuaram em torno de 51% (média anual durante as décadas de 1960 e 1970, para corporações não financeiras) e então em torno de 74% durante as duas primeiras décadas neoliberais (para o mesmo setor). Esse aumento repentino ecoa a nova governança corporativa em benefício dos acionistas. Durante as primeiras décadas do pós-guerra uma parcela muito maior dos lucros foi reservada pelas corporações não financeiras para investimento produtivo. Distribuir dividendos e investir são decisões combinadas, e a nova governança corporativa era favorável aos fluxos de dividendos. Assim, no neoliberalismo, os lucros são generosamente distribuídos, aumentando o peso das taxas de juro – duas tendências combinadas que limitam a capacidade de investimento das corporações não financeiras.”

Gráfico 4.3 — Parcela de dividendos nos lucros descontados os impostos: corporações financeiras e não financeiras dos Estados Unidos (porcentagem, anual). Dividendos referem-se a dividendos distribuídos. Dividendos recebidos são somados aos lucros descontados os impostos.


“Os objetivos dos gerentes dependem da ordem social em que opera a gerência. Depois da Segunda Guerra Mundial, a gerência visava basicamente ao crescimento (nas corporações e nas definições de políticas) e à mudança técnica. No neoliberalismo, o objetivo principal tornou-se o mercado de ações e a renda do capital. Consequentemente, existe uma relação recíproca entre a prevalência de uma configuração específica de poder e a preeminência de um ou outro componente de gerência. A conjuntura histórica do New Deal conferiu certo grau de preeminência aos funcionários do governo. Orientou o desenvolvimento da gerência para essa direção particular. O compromisso do pós-guerra estimulou as capacidades gerenciais sob todos os aspectos, mas com ênfase particular na tecnologia e na organização. O neoliberalismo influenciou as tendências gerenciais em favor do componente financeiro da gerência.
Gerentes não devem ser vistos como meros agentes passivos na determinação do curso da história. Funcionários do governo tiveram um papel ativo na condução do New Deal e na consolidação do novo compromisso após a Segunda Guerra Mundial. No neoliberalismo, a classe gerencial, em particular nas faixas mais altas, participou ativamente da formação das novas tendências sociais, com a esperança de altas remunerações e com o objetivo de entrar no reino da propriedade ativa. De fato, a imposição do neoliberalismo teria sido impossível não fora a nova aliança entre propriedade e gerência nas camadas superiores da pirâmide social.”


“Há um problema evidente de vocabulário com relação à sociedade das primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial. Não se encontrou nenhum termo de aceitação geral. Este livro usa as frases “pós-guerra”, “social-democrata” ou “compromisso keynesiano”, mas “capitalismo gerencial” ou, em alguns países, “economias mistas” também seriam apropriadas. Apesar de essa organização social ser prevalente na maioria dos países capitalistas mais importantes, as configurações e graus exatos foram variados, geográfica e cronologicamente. Os métodos diferiram entre países e mudaram significativamente ao longo do tempo.
A perspectiva tripolar de classe permite uma interpretação de classe das características próprias do capitalismo do pós-guerra. A base dessa ordem social foi um compromisso entre as classes populares (dos empregados na produção e funcionários de escritório) e a de gerentes, inclusive funcionários do governo, sob a pressão estimulante do movimento popular. Enquanto a classe popular foi o motor da transformação, gerentes e servidores públicos foram a chave da nova ordem social.
É importante que se entenda que três atores sociais diferentes estão envolvidos no compromisso do pós-guerra e comandam três pontos de vista diferentes. (...)
1. O componente social (classes populares). A noção de compromisso social do pós-guerra implica a alteração da situação da classe popular. Esse capitalismo surge retrospectivamente como uma economia e, de modo mais geral, como uma sociedade cuja violência tivesse sido moderada, em nítido contraste com a primeira hegemonia financeira e com o neoliberalismo. Então, a denominação alternativa “capitalismo temperado” também pode ser usada. O compromisso com a classe popular se manifestou no progresso dos poderes de compra, nas políticas visando ao pleno emprego, na proteção do welfare, educação, saúde, aposentadoria, e assim por diante. O capitalismo das primeiras décadas do pós-guerra é geralmente apresentado dessa forma, com um forte sabor rooseveltiano nos Estados Unidos, uma referência implícita à Frente Popular, na França, ou à Inglaterra de William Beveridge.
2. Autonomia gerencial (gerentes). Com relação à situação da administração, não existem realmente muitas alternativas. As duas observações, a de que os trabalhadores não estavam no poder e a de que o poder dos proprietários capitalistas era controlado, implicam a ampliação do papel e autonomia conferidos à classe gerencial. Em geral, os trabalhadores não estavam no poder, a classe capitalista era controlada, e a organização estava nas mãos dos gerentes. Essa autonomia cresceu sobre o alicerce lançado pelas tendências da revolução gerencial e encontrou uma oportunidade de expressar seu potencial intrínseco nas circunstâncias políticas e econômicas do New Deal, da economia de guerra, e do compromisso do pós-guerra. O período intermediário que se estende entre as duas hegemonias financeiras oferece uma história única dessa ordem social nos Estados Unidos.
As corporações eram administradas com preocupações, tais como investimento e mudança técnica, significativamente diferentes da criação de “valor para os acionistas”. Os gerentes desfrutavam de relativa liberdade para agir com relação aos proprietários e conseguiam reter na corporação uma parcela considerável dos lucros para investimento. Em alguns países, grandes setores da economia estavam sob o controle dos governos graças à nacionalização. A isso se pode acrescentar um setor financeiro a serviço da economia não financeira, e colocado sob o controle de gerentes. Essa autonomia gerencial se manifestou também no aparelho do Estado das décadas do pós-guerra. Um papel organizacional específico foi conferido a funcionários do governo. Políticas propostas por esses funcionários objetivavam o crescimento e o emprego.
Macropolíticas keynesianas definem um aspecto importante desse componente político. A noção de que a macroeconomia tem de ser controlada por instituições centrais — por meio de políticas fiscais e monetárias e com metas específicas em termos de emprego e preços — indica diretamente práticas gerenciais. É necessário recolher informações e tomar decisões. Avaliar resultados. O fato de essas tarefas serem executadas por funcionários de instituições centrais, e não por gerentes das empresas privadas, acentua, em vez de anular, as características gerenciais desses mecanismos.
Esse aspecto gerencial é geralmente mal articulado pelos atores ou analistas dessa via do meio real (por oposição à via do meio alegada pelo neoliberalismo), que tendem a perceber esse curso de eventos em termos de moderação da violência inerente ao capitalismo. Uma exceção importante é a referência, nos Estados Unidos, a capitalismo gerencial no seu clímax durante as décadas de 1960 e 1970.
3. A contenção dos interesses capitalistas (capitalistas). Cada uma das características anteriores atesta a situação da classe capitalista. A pouca preocupação com o desempenho do mercado de ações na administração das corporações é um exemplo claro. A existência de um setor financeiro a serviço da acumulação no setor não financeiro oferece mais uma expressão da morte da classe capitalista. Essa classe perdeu parcialmente o controle do setor financeiro, um instrumento crucial da sua hegemonia (ou seja, do seu poder e renda) sobre as finanças.
Com relação à contenção dos interesses capitalistas, a situação foi bastante diferente entre os países. Na França, por exemplo, onde um forte setor público (no sentido de “propriedade do Estado”) tinha sido estabelecido após a Segunda Guerra Mundial, inclusive em importantes segmentos do setor financeiro, essa contenção foi mais forte do que nos Estados Unidos. No Japão o desenvolvimento nacional foi diretamente para as mãos de gerentes públicos e privados, com alto grau de cooperação. A situação foi diferente também na América Latina, no contexto da industrialização por substituição de importações, que conferiu um papel específico às classes capitalistas “nacionais”.
Sob os três aspectos anteriores, o capitalismo durante essas décadas foi menos capitalismo do que durante a primeira hegemonia financeira ou o neoliberalismo. Em certo sentido a força de trabalho foi menos uma mercadoria do que qualquer outro produto na economia. Nos Estados Unidos, a Lei do Emprego de 1946, que tornou o pleno emprego um dever do governo, foi emblemática do início desse novo período. As dinâmicas de acumulação estavam nas mãos dos gerentes. Muitas exceções dos assim chamados mecanismos de mercado foram colocadas em prática (o que o neoliberalismo tentou eliminar). Mas a sociedade do pós-guerra, apesar de ser menos capitalista que durante a primeira hegemonia financeira, foi uma sociedade de classes, em que a exploração se baseava na extração de um excedente em benefício das classes altas. Os dois canais foram a renda de capital e os salários mais altos, dadas as hierarquias e tendências descritas.
É importante entender as relações entre os três componentes anteriores. Os dois primeiros aspectos — as características de welfare e a autonomia gerencial — são estruturalmente independentes, ou seja, um pode existir independentemente do outro. É verdade que, sob circunstâncias específicas, o estabelecimento da autonomia pode ser condicionado pelo apoio da classe popular, e que essa condição talvez exija várias melhorias em benefício desta. Mas a autonomia gerencial poderia prevalecer em circunstâncias nas quais nenhuma situação favorável particular é atribuída à classe popular. No nazismo, um papel crucial foi atribuído aos funcionários públicos em um arranjo social de extrema direita. Reciprocamente, o terceiro componente — a contenção dos interesses capitalistas é tipicamente uma consequência dos dois componentes anteriores. O progresso do poder de compra da classe popular e a proteção social custam a redução das rendas de capital e a autonomia gerencial limita o poder da classe capitalista. No compromisso do pós-guerra combinaram-se os dois aspectos.”

Um comentário:

Doney disse...

Infelizmente, a editora deixou um pouco a desejar na revisão do livro.