Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-368-4
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 368
Sinopse: Em A
crise do neoliberalismo, Gérard Duménil e Dominique Lévy, dois dos mais
influentes pesquisadores sobre o neoliberalismo, recontam a história desse novo
estágio do capitalismo: do colapso dos subprimes à dita ‘Grande Contração’. Ao
discutir a financeirização econômica, a reestruturação produtiva, as lutas de
classes e as relações internacionais às portas de uma nova ordem global
multipolar, os autores propõem uma reflexão fundamental à compreensão da
história e dos rumos da economia. O livro traz uma análise da chamada ‘Grande
Contração’ de 2007-2010 no contexto da globalização neoliberal iniciada nos
primeiros anos da década de 1980. Com uma abordagem crítica não dogmática,
Duménil e Levy articulam uma enorme quantidade de dados perturbadores para
revelar, como saldo da globalização neoliberal, o enriquecimento dos 5%
norte-americanos mais ricos, em paralelo à redução de 40% para menos de 10% do
PIB dos Estados Unidos em trinta anos. A queda do investimento interno na
indústria, uma dívida doméstica insustentável e a crescente dependência de
importações, aliados ao financiamento e ao desenvolvimento de uma estrutura
financeira global frágil e impraticável, ameaçam a força do dólar. A menos que
haja uma alteração radical da organização político-econômica do país, os
autores preveem um declínio agudo da economia norte-americana – e não hesitam
em diagnosticar: ‘Sair da crise vai ser muito difícil’.
A do neoliberalismo é a quarta crise estrutural do
capitalismo desde o fim do século XIX. A comparação com as crises anteriores –
das décadas de 1890, 1930 e 1970 – coloca em perspectiva a análise profunda e
detalhada que os autores fazem da situação atual. Contrapondo-se a diversas
explicações sobre a crise econômica vigente, eles defendem a tese ousada de que
a contração econômica em curso, à semelhança da Grande Depressão de 1929, é uma
crise da hegemonia financeira.
Em vez de lançar a culpa sobre indivíduos isolados, como
o fazem, por exemplo, Alan Greenspan e Ben Bernanke, Duménil e Levy
concentram-se nas forças estruturantes da economia. Para eles, a presente crise
é resultado direto das contradições inerentes ao próprio projeto neoliberal.
Suas tendências abalaram as fundações da economia da ‘base segura’ – isto é, a
capacidade dos Estados Unidos de crescer, manter a liderança de suas instituições
financeiras em todo o mundo e assegurar a posição dominante de sua moeda –, uma
estratégia imperial e de classe que resultou em um impasse. Segundo os autores,
consertar a quebra da economia norte-americana exige a imposição de limites
sobre o livre comércio e a livre movimentação de capitais, além de políticas
destinadas a aprimorar a educação, a pesquisa e a infraestrutura; a
reindustrialização e a fixação de tributação das rendas mais altas.
Como observa Armando Boito Jr. no texto de orelha, ‘Diferentemente
da maioria dos economistas, e inclusive de boa parte dos economistas críticos,
Duménil e Lévy articulam a análise econômica com a sociológica e a política’.
Assim, esboçam a natureza de um novo modelo – que, após essa crise estrutural,
viria substituir o capitalismo neoliberal – a partir das dinâmicas da luta de
classes e da correlação política de forças nos diferentes países e em escala
internacional. A crise do neoliberalismo conta ainda com um prefácio inédito
escrito especialmente para a edição brasileira, em que os autores atualizam sua
análise com considerações acerca do lugar da União Europeia e do Brasil no
cenário global, fazendo um balanço das políticas econômicas brasileiras a
partir de 2000.
“Uma tese central de nosso já citado Capital Resurgent é que a dinâmica geral
do capitalismo sob o neoliberalismo, tanto nacional quanto internacionalmente,
foi determinada por novos objetivos de classe que operaram em benefício das
camadas mais altas de renda, isto é, os proprietários capitalistas e as frações
superiores da administração. A maior concentração de renda em favor de uma
minoria privilegiada foi uma realização crucial da nova ordem social. Os dados de declaração de renda tornam evidente esse
fato. Sob esse aspecto, uma ordem social é também uma configuração de poder, e implícita nesta última noção está o poder
de “classe”. A essa observação, as estruturas de contabilidade nacional
acrescentam que uma fração grande e crescente da renda do capital
norte-americano vem de fora dos Estados Unidos. Isso envolve não apenas
relações de classe, mas também hierarquias imperiais, uma característica
permanente do capitalismo.
A nova configuração da distribuição de renda
foi o resultado de várias tendências convergentes. Forte pressão foi aplicada
sobre a massa de trabalhadores assalariados, o que ajudou a reerguer as taxas
de lucro dos baixos níveis atingidos nos anos 1970 — ou, no mínimo, a
interromper a tendência de queda. A abertura das fronteiras do comércio e do
capital inaugurou o caminho para grandes investimentos nas regiões do globo
onde as condições sociais prevalentes permitiam altas taxas de retorno, gerando
fluxos de capital na direção das classes altas dos Estados Unidos (e de grupos
maiores que, até certo ponto, conseguem se beneficiar das rendas de capital). O
livre comércio aumentou a pressão sobre os trabalhadores, efeito da competição
dos países onde os custos da mão de obra são mais baixos. O endividamento
crescente das famílias e do governo também gerou grandes fluxos de renda de
capital. Graus extremos de sofisticação e expansão dos mecanismos de
financiamento surgiram depois de 2000, possibilitando enormes fontes de renda
para o setor financeiro e para as famílias mais ricas. Finalmente, a crise
revelou que uma parcela significativa desses fluxos de renda se baseava em
lucros duvidosos, a uma crescente supervalorização dos ativos de securitização
(securities). (...)
A ordem neoliberal internacional – conhecida como
globalização neoliberal foi imposta a todo o mundo, desde os principais países
capitalistas do centro até os países menos desenvolvidos da periferia,
geralmente ao custo de severas crises, como na Ásia e na América Latina durante
as décadas de 1990 e 2000. Como em todos os estágios do imperialismo, os
principais instrumentos dessas relações internacionais de poder, além da
violência econômica direta, são a corrupção, a subversão e a guerra. E o
principal instrumento político é sempre a instalação de um governo local
pró-imperialista. A colaboração das elites do país dominado é fundamental, bem
como, no capitalismo contemporâneo, a ação de instituições internacionais, como
a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Fundo Monetário
Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Economicamente, o objetivo dessa dominação é a extração de “excedentes” pela
imposição de preços baixos aos recursos naturais e investimentos no exterior,
seja ele em bolsa ou o investimento externo direto. O fato de os países da
periferia desejarem vender seus recursos naturais e receber investimentos
externos não altera a natureza das relações de dominação, assim como, no
interior de um país, os trabalhadores se dispõem a vender sua força de
trabalho, a fonte última de lucro. (...)
No neoliberalismo, as camadas superiores da
classe capitalista, com o apoio das instituições financeiras, agem como líderes
dentro do grupo mais abrangente das classes altas no exercício da dominação
comum. Da mesma forma, os Estados Unidos agem como líder no âmbito do grupo
mais abrangente dos países imperialistas.”
“A combinação das revoluções corporativa e
financeira, com o surgimento das grandes corporações apoiadas por instituições
financeiras, introduziu novos tipos de relações em que o poder das camadas
superiores das classes capitalistas dependia pesadamente das instituições
financeiras. Essa concentração de poder capitalista nas instituições
financeiras e a importância desses títulos na propriedade dos meios de produção
deram à dominação das classes capitalistas na sociedade moderna um caráter
fortemente financeiro. Por isso, este livro usa o termo “finanças” para se
referir a tais camadas e instituições em qualquer organização social na qual as
primeiras controlem as segundas como geralmente se dá no capitalismo. Finanças,
como usado aqui, não são uma indústria à parte. Ao contrário, combinam aspectos
de classe e institucionais.
Essa noção do termo só existe no capitalismo
moderno. Antes das três revoluções, houve obviamente capitalistas monetários
além dos “capitalistas ativos” (empreendedores), bem como o setor financeiro na
economia. Porém no início do século XX construiu-se uma nova configuração
institucional, em que grandes famílias capitalistas controlavam grandes lotes
de ações e apólices, potencialmente diversificadas em muitas indústrias e na
qual um setor financeiro desempenhava papel importante no financiamento da
acumulação e no exercício das prerrogativas ligadas à propriedade. A noção de
finanças é fundamental para a análise do neoliberalismo. Mas o poder das classes
capitalistas mais altas e das instituições financeiras nessa ordem social não
pode ser separado do progresso da administração — principalmente, mesmo que de
forma não exclusiva, a administração financeira —, que, por sua vez, ganhou
considerável importância. Assim, o início do século XX marcou a culminância de
tendências sociais já em desenvolvimento durante o século XIX, cujas figuras
emblemáticas foram o burguês rentista — uma “classe ociosa”, no dizer de
Thorstein Veblen — e as novas classes gerenciais.”
“O neoliberalismo é a mais recente das três ordens
sociais que, em conjunto constituem o capitalismo moderno. Essas organizações
sociais fundamentam-se no sistema de classe. Por isso, podem ser chamadas de “configurações
do poder de classe”. A primeira e a terceira, respectivamente do início do
século XX até o New Deal e a partir do início da década de 1980, podem ser
chamadas de “primeira” e “segunda hegemonia financeira”. Hegemonia financeira,
tal como usamos aqui, refere-se ao fato de as classes capitalistas – ou seja,
as finanças e a camada superior das classes capitalistas e das instituições
financeiras – se beneficiarem de uma capacidade ilimitada de comandar a
economia e a sociedade em geral, de acordo com interesses próprios ou o que
percebam como tal. De alguma forma, essa é uma situação “normal” no capitalismo
moderno das primeiras décadas do pós-guerra, desde o New Deal até o fim dos
anos 1970, quando esse poder foi reduzido, destaca-se como uma exceção. A ordem
social que prevaleceu durante aqueles anos é geralmente chamada de “compromisso
keynesiano” ou “social-democrata”, mas essa terminologia tem seus problemas.”
“O neoliberalismo desprendeu a liberdade de
ação das empresas, presumivelmente para uma volta à “economia de mercado” (um
eufemismo para a dinâmica capitalista sem limites, doméstica ou
internacionalmente). Paralelamente a essa ideologia de mercado, o
neoliberalismo promoveu a desregulamentação em todos os campos, particularmente
o dos mecanismos financeiros. Impôs fortes macropolíticas, destinadas a
proteger os emprestadores por meio da estabilidade forçada de preços e da
abertura das fronteiras de comércio e de capital.
A ideologia não foi o instrumento da
revolução neoliberal. A relação com as hierarquias de classe era óbvia demais.
Cada uma das realizações anteriormente citadas era coerente com os interesses
das classes altas, ou seja, a maximização das rendas mais altas. O poder de
compra dos trabalhadores foi restringido, o mundo se abriu para as corporações
multinacionais, as dívidas crescentes de governos e famílias eram uma fonte de
grandes fluxos de juros, e a financeirização tornou possíveis rendas
gigantescas (salários, bônus, opções de ações e dividendos) no setor
financeiro. A hegemonia das classes altas foi deliberadamente restaurada, uma
volta à hegemonia financeira. Surgiu uma ideologia neoliberal, a expressão dos objetivos
de classe do neoliberalismo. Essa ideologia foi o instrumento político crucial
no estabelecimento do neoliberalismo.”
“O neoliberalismo é uma ordem social
destinada a gerar rendimentos para as faixas superiores de renda não para
investimentos na produção, muito menos para o progresso social. Nos países
centrais, a acumulação do capital privado foi sacrificada em favor da distribuição
de rendas em benefício das camadas mais altas. Principalmente nos Estados
Unidos, o neoliberalismo significou uma desterritorialização (transferência
para fora do território) da produção em benefício de várias economias da
periferia. A aposta original era que os países do centro se transformariam
gradualmente em economias de serviço, concentrando ainda várias atividades em
que são fundamentais conhecimento, educação e pesquisa, e passariam a fornecer
ao mundo serviços financeiros. A chamada propriedade intelectual seria evidentemente
protegida. Acima de tudo, essas economias deveriam se transformar em centros
financeiros o sonho de Margaret Thatcher, que acabou se revelando um pesadelo.
Sob esse aspecto, havia o risco de novos concorrentes buscarem não somente
eficiência na fabricação de produtos básicos, mas também acesso às altas
tecnologias, pesquisa e inovação, além de, possivelmente, serviços financeiros,
a tal ponto que as economias do centro gradualmente perderam terreno para esses
concorrentes ambiciosos.”
“Julgado por seus objetivos de classe, o
neoliberalismo foi um sucesso indiscutível antes da crise atual. Houve
importantes resistências sociais nos países do centro, por exemplo, para manter
certo grau de proteção de bem-estar social, e também manifestações de
resistência pelo mundo, como na América Latina, como reação à devastação
causada, mas isso não mudou o fato de que em toda parte a renda e a riqueza dos
segmentos mais ricos da população aumentaram enormemente.”
“Existe um contraste nítido entre o declínio
comparativo da economia interna dos Estados Unidos e o sucesso inegável da
estratégia das classes altas. Essas classes aumentaram e restauraram seu
próprio poder e renda, pelo menos até a crise. Na busca dos objetivos de classe
neoliberais, é irrelevante os lucros serem realizados no país ou em qualquer
outra região do globo, desde que os países onde forem feitos os investimentos
continuem sendo politicamente confiáveis. Também não terá importância o fato de
a trajetória da economia norte-americana ser cada vez mais dependente do
financiamento externo. O mesmo vale para o crescimento da dívida do governo e
das famílias, vistas como fontes crescentes de renda financeira em vez de um
perigoso processo interno. Nos Estados Unidos, essa divergência atingiu
proporções tão dramáticas que é possível falar em “divórcio” entre as classes
altas e a economia interna do país.
O que é realmente novo nesse padrão de
acontecimentos não é a desconexão em si. Muitos países da periferia são ou foram
governados por suas classes altas ou por parcelas de classes sem compromisso
com o progresso da própria nação. Pelo contrário, o comportamento dessas elites
é geralmente determinado pelo desejo de colaborar com os países imperialistas
do centro e aumentar a riqueza pessoal (principalmente no estrangeiro). As
consequências para as economias e sociedades locais são devastadoras.
Nacionalismo ou patriotismo por parte das classes altas é fundamental para o
avanço das economias nacionais. O que é novo a partir da década de 1980 é o
fato de as estratégias neoliberais terem significado um divórcio no centro do
mundo neoliberal, semelhante ao que se observou em muitos países menos
desenvolvidos.”
“Os instrumentos (do neoliberalismo) são o
aumento da pressão sobre os trabalhadores, o aperfeiçoamento da organização em
geral, as exportações de capital e os fluxos correspondentes de lucros das
filiais de empresas multinacionais no exterior. Em cada país, o neoliberalismo
se baseia numa nova disciplina imposta aos trabalhadores, da qual os principais
aspectos são a estagnação dos poderes de compra, o desmantelamento gradual da
proteção social, condições de trabalho mais difíceis e a chamada flexibilização
do mercado de trabalho – ou seja, maior liberdade para contratar e demitir. A
gerência também teve de se adaptar aos novos objetivos. A diferença entre
trabalhadores e gerentes, entretanto, é que, na metáfora da cenoura e do
chicote*, os primeiros ficam no lado do chicote e os segundos, no da cenoura.
Na verdade, a gerência, em particular os cargos mais altos, aumentou
gradualmente sua capacidade de separar em seu benefício uma fração crescente do
excedente empresarial sob a forma de aumento da remuneração (no sentido mais
amplo usado neste estudo).
Ainda no tocante à gerência, além de a busca
por altos níveis de lucratividade ser estimulada, existe a sujeição dos
gerentes privados ao controle corporativo, destinado à maximização do valor das
ações e da distribuição de dividendos. Acontece que, nessas novas regras, há um
componente político que envolve funcionários e demais representantes do
governo. Seus aspectos principais incluem políticas monetárias destinadas a
controlar as pressões inflacionárias (em vez de voltadas a estimular o
crescimento e o emprego), a privatização da proteção social e a substituição
parcial dos fundos de pensão por sistemas públicos em que o trabalhador recolhe
contribuições durante o seu período de atividade**, além da desregulação.
Os dois pilares do aspecto internacional do
neoliberalismo são o livre comércio e a livre mobilidade internacional do
capital. A imposição do livre comércio foi o resultado de um processo longo e
gradual desde a Segunda Guerra Mundial. O neoliberalismo impôs um “modelo
aberto” a todo o mundo, com a colaboração das elites locais. Os controles de
capital foram gradualmente desmantelados, a começar pelos Estados Unidos
durante os anos 1970. A partir da década de 1990, os fluxos de investimento
direto estrangeiro (IDE) aumentaram dramaticamente, uma expressão do
crescimento das empresas multinacionais. Existem, evidentemente, várias
ligações entre esses diversos componentes, tanto internos quanto
internacionais. O investimento no exterior permitiu às empresas buscar altas
taxas de retorno em países periféricos. A globalização, portanto, colocou os
trabalhadores dos países capitalistas avançados em uma situação de competição
com esses trabalhadores da periferia. As importações de bens de consumo baratos
de lugares onde os custos de mão de obra são particularmente baixos reduziram
os salários nominais necessários para comprar uma determinada quantidade de
bens nos países avançados. Assim, elas contribuíram para a recuperação das
taxas de lucro, dada a constância (ou declínio) do poder de compra da maioria
dos assalariados.
De particular relevância para a análise da
crise atual são os mecanismos monetários e financeiros. Primeiro, a dívida
crescente do governo e das famílias foi uma fonte de grandes fluxos de juros.
Segundo, a desregulação e a inovação financeiras tornaram possível a explosão
da atividade e da renda do setor financeiro. Os procedimentos para obtenção de
altas taxas de retorno, além do pagamento de dividendos e altos salários, foram
levados ao extremo. Essas práticas chegaram ao ponto do que neste livro será
chamado de “ficticidade”. A colaboração de servidores e representantes
governamentais foi fundamental em todos esses campos.”
* Do inglês “sitck-and-carrot metaphor”, expressão que se refere ao sistema que
combina recompensas e punições para manter a produtividade dos trabalhadores
elevada. A metáfora alude à mula que caminha estimulada pela cenoura
dependurada à sua frente pelo montador – que, por sua vez, leva consigo um
chicote, para puni-la quando achar necessário. (N. T.)
**: Refere-se aqui ao fato de as empresas nos
países desenvolvidos deixarem de prover fundos de pensão aos seus
trabalhadores.
“Taxas
de juro: o golpe de 1979
Na história do capitalismo, episódios de
inflação estiveram na origem de grandes transferências de riqueza de credores
para tomadores de empréstimos, como durante a Primeira Guerra Mundial, por
exemplo. Tais momentos tiveram um impacto dramático sobre as instituições
financeiras e a riqueza dos possuidores de títulos de securitização. Dessa
experiência histórica resulta a aversão que as classes altas nutrem pela
inflação.
Quando os países capitalistas mais
importantes entraram na crise estrutural dos anos 1970, uma década de baixa
lucratividade em todas as medidas citadas, a taxa de crescimento do PIB
manteve-se mais ou menos estável nos países centrais. Foi esse o efeito das
macropolíticas de estímulo e da tolerância à inflação. A inflação acumulada
estava na origem dessa grande transferência de renda à custa dos credores e em
benefício do setor não financeiro – e de outros tomadores, como parte das
famílias e do governo. Essas tendências políticas foram repentinamente
interrompidas, com consequências espetaculares sobre os fluxos de renda do
capital. No fim de 1979, o Federal Reserve aumentou de súbito as taxas de juro no
“golpe de 1979”.
Esses desdobramentos se refletiram no perfil
dos juros reais (taxa de juro menos a taxa de inflação) de longo e de curto
prazo para o setor empresarial. Nas décadas de 1960 e 1970, ambas as taxas
flutuaram em torno de um platô de cerca de 2,1% (média anual de longo prazo,
AAA) antes de cair a valores negativos durante a crise. Então, num ato
dramático, emerge o golpe. Um novo platô neoliberal de 5,9%, ainda para o longo
prazo, foi mantido durante a segunda metade da década de 1980 e na de 1990.
Tal reviravolta na direção de uma nova
estratégia — de acordo com a tentativa monetarista anterior de abandono das
políticas de feedback – foi dramática.
Na esteira das recessões de 1974 e 1975, a administração Carter ainda buscava a
colaboração dos principais países capitalistas para estimular a economia
mundial. No fim daquele ano, Paul Volcker, nomeado presidente do Federal
Reserve em agosto de 1979, precipitou a subida dos juros a níveis sem
precedentes, causando uma grande crise financeira nos Estados Unidos e em
países europeus, em seguida à crise da dívida do terceiro mundo em 1982 e então
a mais severa recessão nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. Em
1980, a Lei de Desregulação das Instituições Depositárias e de Controle Monetário
tornou possível a eliminação das estruturas regulatórias anteriores e,
simultaneamente, aumentou o poder do Federal Reserve.
Após 1983, com exceção de uma única recessão
em 1991, o golpe limitou a inflação e abriu um período de relativa macroestabilidade,
como é típico do neoliberalismo, até a recessão de 2001.”
“Uma segunda fonte de renda de capital é o
pagamento de dividendos pelas corporações. O gráfico 4.3 mostra as parcelas dos
lucros após impostos pagas como dividendos por corporações financeiras e não financeiras,
respectivamente. Nos dois casos, antes de 1980, essas parcelas flutuaram em
torno de 51% (média anual durante as décadas de 1960 e 1970, para corporações
não financeiras) e então em torno de 74% durante as duas primeiras décadas
neoliberais (para o mesmo setor). Esse aumento repentino ecoa a nova governança
corporativa em benefício dos acionistas. Durante as primeiras décadas do
pós-guerra uma parcela muito maior dos lucros foi reservada pelas corporações não
financeiras para investimento produtivo. Distribuir dividendos e investir são
decisões combinadas, e a nova governança corporativa era favorável aos fluxos
de dividendos. Assim, no neoliberalismo, os lucros são generosamente
distribuídos, aumentando o peso das taxas de juro – duas tendências combinadas
que limitam a capacidade de investimento das corporações não financeiras.”
Gráfico 4.3 — Parcela de dividendos nos lucros descontados os impostos: corporações financeiras e não financeiras dos Estados Unidos (porcentagem, anual). Dividendos referem-se a dividendos distribuídos. Dividendos recebidos são somados aos lucros descontados os impostos.
“Os objetivos dos gerentes dependem da ordem
social em que opera a gerência. Depois da Segunda Guerra Mundial, a gerência
visava basicamente ao crescimento (nas corporações e nas definições de
políticas) e à mudança técnica. No neoliberalismo, o objetivo principal
tornou-se o mercado de ações e a renda do capital. Consequentemente, existe uma
relação recíproca entre a prevalência de uma configuração específica de poder e
a preeminência de um ou outro componente de gerência. A conjuntura histórica do
New Deal conferiu certo grau de preeminência aos funcionários do governo.
Orientou o desenvolvimento da gerência para essa direção particular. O
compromisso do pós-guerra estimulou as capacidades gerenciais sob todos os aspectos,
mas com ênfase particular na tecnologia e na organização. O neoliberalismo
influenciou as tendências gerenciais em favor do componente financeiro da
gerência.
Gerentes não devem ser vistos como meros
agentes passivos na determinação do curso da história. Funcionários do governo
tiveram um papel ativo na condução do New Deal e na consolidação do novo
compromisso após a Segunda Guerra Mundial. No neoliberalismo, a classe
gerencial, em particular nas faixas mais altas, participou ativamente da
formação das novas tendências sociais, com a esperança de altas remunerações e
com o objetivo de entrar no reino da propriedade ativa. De fato, a imposição do
neoliberalismo teria sido impossível não fora a nova aliança entre propriedade
e gerência nas camadas superiores da pirâmide social.”
“Há um problema evidente de vocabulário com
relação à sociedade das primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial. Não se
encontrou nenhum termo de aceitação geral. Este livro usa as frases
“pós-guerra”, “social-democrata” ou “compromisso keynesiano”, mas “capitalismo
gerencial” ou, em alguns países, “economias mistas” também seriam apropriadas.
Apesar de essa organização social ser prevalente na maioria dos países
capitalistas mais importantes, as configurações e graus exatos foram variados,
geográfica e cronologicamente. Os métodos diferiram entre países e mudaram
significativamente ao longo do tempo.
A perspectiva tripolar de classe permite uma
interpretação de classe das características próprias do capitalismo do
pós-guerra. A base dessa ordem social foi um compromisso entre as classes
populares (dos empregados na produção e funcionários de escritório) e a de
gerentes, inclusive funcionários do governo, sob a pressão estimulante do
movimento popular. Enquanto a classe popular foi o motor da transformação,
gerentes e servidores públicos foram a chave da nova ordem social.
É importante que se entenda que três atores
sociais diferentes estão envolvidos no compromisso do pós-guerra e comandam
três pontos de vista diferentes. (...)
1. O
componente social (classes populares). A noção de compromisso social do
pós-guerra implica a alteração da situação da classe popular. Esse capitalismo
surge retrospectivamente como uma economia e, de modo mais geral, como uma
sociedade cuja violência tivesse sido moderada, em nítido contraste com a
primeira hegemonia financeira e com o neoliberalismo. Então, a denominação
alternativa “capitalismo temperado” também pode ser usada. O compromisso com a
classe popular se manifestou no progresso dos poderes de compra, nas políticas
visando ao pleno emprego, na proteção do welfare,
educação, saúde, aposentadoria, e assim por diante. O capitalismo das primeiras
décadas do pós-guerra é geralmente apresentado dessa forma, com um forte sabor
rooseveltiano nos Estados Unidos, uma referência implícita à Frente Popular, na
França, ou à Inglaterra de William Beveridge.
2. Autonomia
gerencial (gerentes). Com relação à situação da administração, não existem
realmente muitas alternativas. As duas observações, a de que os trabalhadores
não estavam no poder e a de que o poder dos proprietários capitalistas era
controlado, implicam a ampliação do papel e autonomia conferidos à classe
gerencial. Em geral, os trabalhadores não estavam no poder, a classe
capitalista era controlada, e a organização estava nas mãos dos gerentes. Essa
autonomia cresceu sobre o alicerce lançado pelas tendências da revolução
gerencial e encontrou uma oportunidade de expressar seu potencial intrínseco
nas circunstâncias políticas e econômicas do New Deal, da economia de guerra, e
do compromisso do pós-guerra. O período intermediário que se estende entre as
duas hegemonias financeiras oferece uma história única dessa ordem social nos
Estados Unidos.
As corporações eram administradas com
preocupações, tais como investimento e mudança técnica, significativamente
diferentes da criação de “valor para os acionistas”. Os gerentes desfrutavam de
relativa liberdade para agir com relação aos proprietários e conseguiam reter
na corporação uma parcela considerável dos lucros para investimento. Em alguns
países, grandes setores da economia estavam sob o controle dos governos graças
à nacionalização. A isso se pode acrescentar um setor financeiro a serviço da
economia não financeira, e colocado sob o controle de gerentes. Essa autonomia
gerencial se manifestou também no aparelho do Estado das décadas do pós-guerra.
Um papel organizacional específico foi conferido a funcionários do governo.
Políticas propostas por esses funcionários objetivavam o crescimento e o
emprego.
Macropolíticas keynesianas definem um aspecto
importante desse componente político. A noção de que a macroeconomia tem de ser
controlada por instituições centrais — por meio de políticas fiscais e
monetárias e com metas específicas em termos de emprego e preços — indica
diretamente práticas gerenciais. É necessário recolher informações e tomar
decisões. Avaliar resultados. O fato de essas tarefas serem executadas por
funcionários de instituições centrais, e não por gerentes das empresas
privadas, acentua, em vez de anular, as características gerenciais desses
mecanismos.
Esse aspecto gerencial é geralmente mal
articulado pelos atores ou analistas dessa via do meio real (por oposição à via
do meio alegada pelo neoliberalismo), que tendem a perceber esse curso de
eventos em termos de moderação da violência inerente ao capitalismo. Uma
exceção importante é a referência, nos Estados Unidos, a capitalismo gerencial
no seu clímax durante as décadas de 1960 e 1970.
3. A
contenção dos interesses capitalistas (capitalistas). Cada uma das
características anteriores atesta a situação da classe capitalista. A pouca
preocupação com o desempenho do mercado de ações na administração das
corporações é um exemplo claro. A existência de um setor financeiro a serviço
da acumulação no setor não financeiro oferece mais uma expressão da morte da
classe capitalista. Essa classe perdeu parcialmente o controle do setor
financeiro, um instrumento crucial da sua hegemonia (ou seja, do seu poder e
renda) sobre as finanças.
Com relação à contenção dos interesses
capitalistas, a situação foi bastante diferente entre os países. Na França, por
exemplo, onde um forte setor público (no sentido de “propriedade do Estado”)
tinha sido estabelecido após a Segunda Guerra Mundial, inclusive em importantes
segmentos do setor financeiro, essa contenção foi mais forte do que nos Estados
Unidos. No Japão o desenvolvimento nacional foi diretamente para as mãos de
gerentes públicos e privados, com alto grau de cooperação. A situação foi
diferente também na América Latina, no contexto da industrialização por
substituição de importações, que conferiu um papel específico às classes
capitalistas “nacionais”.
Sob os três aspectos anteriores, o
capitalismo durante essas décadas foi menos capitalismo do que durante a
primeira hegemonia financeira ou o neoliberalismo. Em certo sentido a força de
trabalho foi menos uma mercadoria do que qualquer outro produto na economia.
Nos Estados Unidos, a Lei do Emprego de 1946, que tornou o pleno emprego um
dever do governo, foi emblemática do início desse novo período. As dinâmicas de
acumulação estavam nas mãos dos gerentes. Muitas exceções dos assim chamados
mecanismos de mercado foram colocadas em prática (o que o neoliberalismo tentou
eliminar). Mas a sociedade do pós-guerra, apesar de ser menos capitalista que
durante a primeira hegemonia financeira, foi uma sociedade de classes, em que a
exploração se baseava na extração de um excedente em benefício das classes
altas. Os dois canais foram a renda de capital e os salários mais altos, dadas
as hierarquias e tendências descritas.
É importante entender as relações entre os
três componentes anteriores. Os dois primeiros aspectos — as características de
welfare e a autonomia gerencial — são
estruturalmente independentes, ou
seja, um pode existir independentemente do outro. É verdade que, sob
circunstâncias específicas, o estabelecimento da autonomia pode ser
condicionado pelo apoio da classe popular, e que essa condição talvez exija
várias melhorias em benefício desta. Mas a autonomia gerencial poderia
prevalecer em circunstâncias nas quais nenhuma situação favorável particular é
atribuída à classe popular. No nazismo, um papel crucial foi atribuído aos
funcionários públicos em um arranjo social de extrema direita. Reciprocamente,
o terceiro componente — a contenção dos interesses capitalistas é tipicamente
uma consequência dos dois componentes anteriores. O progresso do poder de compra
da classe popular e a proteção social custam a redução das rendas de capital e
a autonomia gerencial limita o poder da classe capitalista. No compromisso do
pós-guerra combinaram-se os dois aspectos.”
Um comentário:
Infelizmente, a editora deixou um pouco a desejar na revisão do livro.
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