Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-368-4
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 368
Sinopse: Ver Parte
I
“Os defensores do neoliberalismo se opõem a
excessiva intervenção do Estado sempre que os governos coloquem limites à
liberdade dos negócios, protejam os direitos dos trabalhadores, imponham
impostos sobre as altas rendas, e assim por diante. O neoliberalismo rejeitou o
Estado do compromisso social-democrático, não o Estado em geral. Estados
neoliberais como emanações e instrumentos das hegemonias e compromissos
prevalentes no topo das hierarquias sociais negociaram deliberadamente acordos
visando à liberdade de comércio e à livre movimentação de capital que limitavam
sua capacidade política. Foi esse, em particular, o caso na Europa, com a
formação da União Europeia, mas também nos Estados Unidos. A criação do novo
contexto de globalização neoliberal foi parte dos objetivos deliberados dos
Estados, que espelham os das classes que representam.
Em geral, o papel dos Estados é fundamental
para o estabelecimento e preservação de sociedades de classe, fazendo uso de
seu potencial legal e recorrendo à violência direta, antes ou durante o
neoliberalismo, mas não menos sob o neoliberalismo. Estados são as instituições
centrais em que se definem as hierarquias de classe e os compromissos de cada
ordem social. Dependendo das características políticas das configurações de
poder, mais ou menos espaço é liberado para a expressão das tensões entre os
componentes do compromisso, mas os Estados são sempre as instituições em que
esses compromissos são definidos e o instrumento que assegura sua prevalência.”
“A análise mostra a enorme expansão dos
mecanismos financeiros e globais, às vezes num período muito curto, e as
consequências dramáticas do neoliberalismo e da globalização neoliberal na sua
configuração mais avançada. Todas as barreiras — regulamentos e fronteiras entre
países — foram levantadas. A dinâmica selvagem de um mundo de livre comércio e
movimentação livre de capitais alterou os mecanismos econômicos básicos.
Macropolíticas perderam seu potencial estabilizador. O surto de expansão mais
recente após 2000 marcou a última fase da construção de uma estrutura altamente
frágil e pouco funcional.
A busca descontrolada dos altos níveis de renda
A raiz da expansão dos mecanismos financeiros
e da globalização durante as décadas neoliberais é a busca de altos lucros e, de
modo mais geral, de altos níveis de renda. Notadamente, a expansão financeira
na década anterior à crise foi conduzida pelos segmentos mais avançados das
classes altas e as instituições financeiras de ponta. Proprietários
capitalistas, altos administradores e gerentes financeiros se envolveram em
conjunto nas corporações financeiras, nas não financeiras e nas empresas de private equity. A busca foi levada ao
extremo.
Julgado pelos seus próprios objetivos, esse
esforço foi muito bem-sucedido, até a chegada da crise. A renda das faixas mais
altas aumentou dramaticamente durante as décadas neoliberais. O aumento dos
lucros e do valor das ações das empresas financeiras alimentou o crescimento
acelerado dos ganhos. O único meio de avaliar os graus atingidos no mundo
restrito dos hedge funds e empresas
de private equity é ouvir os
discursos orgulhosos dos administradores de fundos hedge sobre as suas altas
taxas de retorno.
Mas existe uma distância entre a observação
dos resultados e uma interpretação que segue a financeirização e globalização
até a busca de altos níveis de renda. No centro da interpretação de classe do
neoliberalismo está a afirmação de que tudo que o neoliberalismo fez em
benefício de uma minoria é o que essa minoria — nas suas empresas, governos,
instituições internacionais e assim por diante — lutou para conquistar. Esses
resultados teriam sido impossíveis se não se tivesse suprimido a regulação,
principalmente a regulação financeira, e as limitações ao comércio
internacional e às movimentações de capital. Retrospectivamente, a crise
demonstra que a lógica foi esticada além da razão, fato com o qual concorda a
maioria dos analistas, exceção feita aos adoradores intransigentes da ideologia
do mercado livre. (...)
Além dos fatores — a busca sem limites de
níveis altos de renda, fluxos de renda real baseados em excedentes fictícios,
tendências gerenciais tendenciosas, e desregulação discutidos anteriormente, as
tendências inerentes à globalização neoliberal tiveram um forte impacto
desestabilizador na estabilidade macroeconômica.
A política monetária do banco central,
possivelmente suplementada quando necessário pela política fiscal, é um
componente crucial do controle da macroeconomia. Isso foi verdade antes e
durante as décadas neoliberais. A função da política monetária é ajustar os
níveis de crédito de acordo com a situação da macroeconomia, tanto para cima
quanto para baixo. A macroeconomia (produção e preços) se desorientaria na
ausência dessas políticas.”
“A fragilidade da estrutura financeira global
e o caráter insustentável da trajetória da economia dos Estados Unidos são as
duas classes de determinantes que levaram à crise (1: a globalização e a
financeirização liberais; 2: a macrotrajetória insustentável da economia dos
Estados unidos). De um lado, a ausência da restrição à preservação do
equilíbrio da conta corrente do país tornou possível a continuação da busca
pelo aumento de renda por parte das classes altas por meio do avanço ousado da
financeirização e da globalização. Simultaneamente, somente a expansão ao
extremo dos mecanismos financeiros tornou possível o aumento da dívida das
famílias, condição básica para a continuação da trajetória da economia
norte-americana, sem a qual ela teria estagnado (sendo a alternativa o aumento
da dívida do governo).
Com relação à estabilidade da estrutura
geral, o financiamento crescente por parte do resto do mundo e a dívida
interna, considerados intrinsecamente, representaram desenvolvimentos
perigosos. Sob esse aspecto, a ameaça citada com mais frequência são as
possíveis consequências dos déficits norte-americanos na taxa de câmbio do
dólar. Os estrangeiros estarão dispostos a continuar emprestando para um país
cuja dívida externa cresce continuamente? Embora o setor privado esteja na
origem do grosso do financiamento externo da economia norte-americana, muitos
comentaristas apontam para a dívida do governo. A China vai continuar a comprar
títulos do Tesouro dos Estados Unidos? Entretanto, o gatilho da crise não foi o
colapso do dólar. O neoliberalismo sob a hegemonia norte-americana foi
desestabilizado pela onda sísmica da crise dos mercados de hipotecas, indicando
a fraqueza da dívida das famílias, um componente básico da trajetória da
economia norte-americana. É aí que se torna crucial a relação entre as duas
classes de determinantes. A fraqueza inerente à dívida das famílias pode ser
imputada separadamente a cada uma das classes de determinantes:
1. O aumento da dívida das famílias pode ser
abordado como um componente das tendências à financeirização e globalização
próprias do neoliberalismo. Foi motivado pela busca de altos níveis de renda,
tornada possível pelas audaciosas inovações financeiras, e levado ao extremo
pela capacidade de financiamento do resto do mundo. O suficiente para
desestabilizar uma frágil estrutura financeira.
2. O aumento da dívida das famílias foi
produto direto da trajetória da economia norte-americana e dos dois desvios
neoliberais. Ano após ano, mais crédito era necessário pela manutenção dessa
trajetória. Mais, até o limite da sustentabilidade. Novamente, o suficiente
para um grande colapso financeiro.
A dívida das famílias na verdade define a
interseção entre as duas classes de determinantes, o seu ponto de convergência.
Essa convergência não explica a crise em si. Ela define a modalidade exata, ou
seja, como a crise chegou ao mundo.”
“Política
monetária
A política monetária se refere a um conjunto
de mecanismos pelos quais o banco central, motivado por vários objetivos,
modifica as condições segundo as quais os empréstimos são oferecidos aos
agentes econômicos, impactando, assim, os níveis de demanda (consumo e
investimento) e produção da economia. (“Política monetária” é, de certo modo,
um nome incorreto para “política de crédito”.) Os objetivos da política
monetária são a estabilização da macroeconomia (a limitação dos aquecimentos e
recessões, e a luta contra o desemprego) e o controle da inflação. No
neoliberalismo a prioridade é dada à estabilidade de preços1.
O instrumento básico é a taxa de juro cobrada
pelo banco central nos seus empréstimos às instituições financeiras. Nos
Estados Unidos, o Federal Reserve ajusta uma “taxa alvo” e as transações são
finalmente executadas pelo que é conhecido como taxa dos Fundos Federais. A
manipulação dessa taxa altera a capacidade dos bancos de emprestar aos agentes
que estão na origem da produção e da demanda.
A diferença entre taxas de juro de longo e de
curto prazo é importante. Nos Estados Unidos, o impacto das políticas do
Federal Reserve sobre as taxas de juro de curto prazo que os bancos cobram dos
tomadores de empréstimos é imediato2 e intrinsecamente impacta as
decisões tomadas pelos agentes econômicos (geralmente empresas em busca de
liquidez). Uma alavanca da política monetária é, entretanto, a capacidade de
influenciar diretamente as taxas de juro de longo prazo, principalmente as que
são cobradas nos empréstimos hipotecários, o principal canal pelo qual a
política monetária afeta a demanda final (com efeitos sobre os investimentos
residenciais e sobre o consumo em sentido estrito).
Existem duas condições básicas para a
eficácia da política monetária. Primeiro, deve haver uma demanda por
empréstimos na economia. Sob condições normais esse requisito é cumprido. Se a
busca por empréstimos é temporariamente muito baixa ou lenta, o governo deve
intervir como “tomador último”, como se dá na política fiscal. Um segundo
requisito é um sistema de crédito muito “saudável”. Na condução da política
monetária, o sistema de crédito opera como uma “correia transmissora”, já que o
banco central financia as instituições financeiras, principalmente os bancos,
que por sua vez emprestam aos agentes econômicos na origem dos fluxos de
demanda. Consequentemente, uma crise bancária pode tornar a política monetária
ineficaz, como se deu no início da década de 1930 ou na crise atual. Quando a
correia de transmissão está quebrada ou frouxa, os créditos se contraem no que
é chamado de “arrocho de crédito”.”
1: Outra função do banco central
(possivelmente suplementada por outras instituições) é o controle da atividade
do setor financeiro.
2: Desde o final de 1992, as taxas de juro de
curto prazo dos empréstimos bancários para as empresas (taxas preferenciais)
são iguais à taxa de Fundos Federais mais três pontos percentuais.
“Outro instrumento nas mãos do Federal
Reserve era a re-regulamentação, mas as tendências vigentes eram favoráveis à
desregulamentação. A despeito do compromisso inabalável de Greenspan com a
economia de livre mercado, o resultado final dessa política de juros puros por
parte do Federal Reserve não foi a esperada aterrissagem suave, mas a explosão
da crise do subprime3. Na crise, Greenspan reconheceu que, na
realidade, estava errado: “Cometi o erro de admitir que o interesse próprio das
organizações, especificamente os bancos, é tal que eles seriam os mais capazes
de proteger os acionistas e o capital próprio nas empresas”4.
Uma defesa tardia e surpreendente da análise
de Keynes.
3:
(...) Alan Greenspan preferiu sustentar a macroeconomia norte-americana
no curto prazo. Se a taxa de Fundos Federais tivesse sido fortemente aumentada
antes do que o foi, a economia dos Estados Unidos não teria se recuperado da
recessão, ou a recuperação teria sido muito fraca. Não havia nenhuma saída
direta. Uma opção seria uma política monetária de estímulo, acompanhada por
certo grau de regulação dos mercados hipotecários e de securitização. É aí que
estaria envolvida mais diretamente a responsabilidade de Greenspan, pois essas
práticas estavam em desacordo com suas opiniões relativas à autodisciplina dos
mercados. Mas o caminho era estreito.
4: Resposta ao congressista Henry Waxman, do
Comitê de Supervisão e Reforma do Governo em 23 de outubro de 2008.”
“Apesar da crença profundamente enraizada na
economia de livre mercado e na chamada disciplina dos mercados, a crise deu
início a uma cadeia de intervenções por parte das instituições centrais. Não há
nada de surpreendente nessa reversão súbita dos princípios básicos do credo
neoliberal. O neoliberalismo não se trata de princípios ou ideologia, é uma
ordem social que busca o poder e a renda das classes mais altas. Ideologia é um
instrumento político. Considerado desse ângulo, não houve mudança de objetivos.
No neoliberalismo, o Estado (tomado aqui no sentido mais amplo que inclui o
banco central) sempre trabalhou a favor das classes altas. O tratamento da
crise não é exceção, só diferem as circunstâncias e, consequentemente, os
instrumentos. A possibilidade de uma crise estrutural profunda e duradoura
gerar uma nova ordem social, expressão de compromissos e hierarquias de classe
diferentes, é outra história.”
“Apesar das óbvias diferenças de contexto, os
aspectos comuns entre a primeira metade do século XX e o capitalismo
contemporâneo são impressionantes. Oitenta anos depois, a mesma lógica
obstinada oculta atrás da busca do lucro e alto nível de renda levou o
capitalismo ao longo de um caminho histórico insustentável, em que a
regulamentação e o controle foram sacrificados no altar da liberdade sem
limites para a ação de uma minoria privilegiada. Dinâmicas semelhantes levaram
a resultados comparáveis.
Não existe acordo geral relativo à
interpretação da Grande Depressão, um fenômeno multifacetado. Explicações
alternativas são o excesso ou a falta de concorrência, uma falta estrutural de
demanda provocada por um viés na distribuição de renda, um erro na condução das
políticas, as consequências sobre a demanda da queda dos preços das ações, e
assim por diante. Essa diversidade de diagnósticos é expressão das divergências
mais básicas na interpretação ampla da história do capitalismo. (...)
Num nível mais alto de generalização, pode-se
ser levado a interpretar a Depressão como o resultado da combinação por parte
das classes capitalistas no início do século XX de, de um lado, uma enorme
capacidade de estimular a inovação técnica, organizacional e financeira e, de
outro, uma assustadora resistência a criar as instituições e mecanismos exigidos
pela estabilização do setor financeiro e da macroeconomia. Houve uma forte
resistência à criação de instituições centrais capazes de se contrapor ao
potencial desestabilizador inerente à formação de uma estrutura monetária e de
crédito moderna, e não se tentou moderar o avanço dos mecanismos financeiros
durante os anos 1920.
Na análise dos processos sociais, é
importante não fazer referência a motivações individuais em termos de mera “recusa”
ou “vontades”, como expresso em esforços deliberados. Mas é igualmente
necessário enfatizar a consciência geralmente clara das implicações das
transformações sociais por parte das classes altas, de segmentos de classe ou
de grupos de interesses estreitos. Há uma profunda percepção — ainda que por
vezes mal orientada e com possíveis opções divergentes — dos interesses dessas
comunidades por seus membros. Há uma visão tipicamente de direita dos
interesses capitalistas básicos que está constantemente oculta sob as
controvérsias correntes e a tomada de decisão (como no neoliberalismo). Ela
manifesta uma forte aversão à excessiva intervenção do Estado (exceto quando
exigido pela preservação dos interesses imediatos), a defesa dos livres
mercados (ou seja, a busca ilimitada das rendas mais altas), a afirmação de que
a “disciplina” do mercado é suficiente para assegurar a estabilidade do
sistema, a necessária flexibilidade dos mercados (em particular o mercado de
trabalho), os supostos efeitos negativos da organização dos trabalhadores, o
medo da inflação, e assim por diante. Intelectuais importantes, politicamente
orientados para a direita, dão a esses princípios a aparência de declarações
científicas, congressos e think tanks
contribuem para seu refinamento e renovação constantes. Lobistas agem para
convencer funcionários do governo sempre que se fizer necessário.
A investigação histórica revela a percepção
aguda das apostas sociais em torno da evolução da regulação financeira e das
macropolíticas financeiras centralizadas. Houve nos Estados Unidos uma oposição
forte e duradoura à criação de um banco central. Foi necessária toda a
violência das crises recorrentes. E quando o banco foi criado, ele continuou a
agir sobre princípios retrógrados, como a doutrina das notas reais, que ligava
o nível adequado de crédito ao volume de comércio. Mesmo no capitalismo
contemporâneo, antes da crise, existiu uma forte oposição nos níveis mais altos
da administração (embora não se questionasse o papel central do Federal
Reserve). Somente um punhado de pensadores ultradireitistas ainda se opõem ao
Federal Reserve ou EPGs, em defesa da ausência da responsabilidade financeira
quanto às consequências das decisões.”
“Do ponto de vista da sua gênese durante os
anos 1930 e 1940, as principais características do novo capitalismo do
pós-guerra podem ser resumidas da seguinte forma. O mercado existe, no sentido
de que as empresas privadas decidem investimentos produção e preços. O Estado é
grande. O setor financeiro é regulado. Limites sérios são impostos sobre o
livre comércio e a livre movimentação internacional de capital. O controle da
macroeconomia está nas mãos das instituições centrais. O direito de o trabalho
se organizar é, até certo ponto, garantido. A concentração de salários e, de
modo mais geral, de rendas em benefício das faixas mais altas de renda é
reduzida. Uma fração limitada dos lucros é paga como dividendos, e o mercado de
ações aumenta moderadamente. É garantido certo grau de bem-estar.
Além da correção da contração da produção,
foi necessária cerca de uma década e meia – uma depressão e uma guerra – para a
economia dos Estados Unidos e a sociedade em geral realizarem essa metamorfose.
Uma forte liderança política e todos os músculos do movimento trabalhista foram
exigidos, (este seria) um programa para as próximas décadas num cenário
otimista.”
“As
lutas populares: diversidade crescente
Trinta anos de globalização neoliberal sob a
hegemonia norte-americana gradualmente impuseram a visão da convergência de
todas as ordens sociais para uma única configuração. Os sofrimentos nos países
sujeitos à nova ordem neoliberal, como na África, Ásia e América Latina, foram
apresentados pelos inquilinos do neoliberalismo como os efeitos infelizes de
uma capacidade deficiente de se adaptar a um destino comum inescapável. O mesmo
vale para as frações da população especificamente prejudicadas pelo
neoliberalismo em todos os países. O mundo inteiro foi alegadamente programado
para convergir para o modelo comum, mesmo a China. Isso foi executado, mas
também com algumas limitações que podem desempenhar um papel significativo
durante as próximas décadas:
1. Em primeiro lugar, as regras internas do
neoliberalismo tiveram de ser introduzidas em todos os países, o que foi, em
grande parte, feito com sucesso. Por toda parte, o “mercado” (outro nome para a
liberdade de agir das classes altas e dos países mais poderosos) teria de
dominar. Essa estrutura combinaria um apoio mínimo para as frações mais fracas
da população, seguro-saúde privado e fundos de pensão, mas não um sistema de
bem-estar que pudesse manifestar uma ameaçadora solidariedade no meio das
classes populares.
Esse quadro “róseo” do ajuste global às
tendências neoliberais, como nas mentes dos líderes neoliberais, nunca
correspondeu completamente aos acordos sociais prevalentes. Na maioria dos
países, o compromisso neoliberal entre as classes altas é menos avançado que
nos Estados Unidos. Na Europa (com situações distintas em diferentes países) e
no Japão, os padrões sociais anteriores nunca foram totalmente deslocados, nem
mesmo nos Estados Unidos. As sociedades europeias ou a sociedade japonesa ainda
são penetradas pela experiência das décadas do pós-guerra, com forte
envolvimento do governo em assuntos econômicos e sistemas de bem-estar. Embora
grandes partidos políticos tradicionalmente considerados entidades de esquerda
tenham se movido na direção do compromisso neoliberal (como no chamado “caminho
do meio” das décadas de 1980 e 1990), um segmento do movimento popular, como os
sindicatos e organizações da esquerda radical, ainda é inspirado pela lembrança
de uma configuração alternativa de poder.
2. No que diz respeito às relações
internacionais, (o neoliberalismo defende que) cada país deveria ocupar seu
lugar específico na divisão internacional do trabalho, com grandes zonas de
livre comércio ou num mundo totalmente aberto aos fluxos internacionais de
mercadorias e capitais. Países da periferia deveriam se especializar nas
atividades em que têm melhor desempenho. (“Desempenho” deve ser entendido aqui
em comparação com outras atividades, uma taxa de câmbio que torne possível sua
competitividade internacional e o equilíbrio do comércio externo, como na teoria
das vantagens comparativas.) Assim, a periferia poderia ser capaz de oferecer
mercadorias baratas ao centro e oportunidades de lucro aos investidores em
outras palavras, o melhor das palavras imperiais do neoliberalismo. Mas
estratégias nacionais de desenvolvimento mais complexas são postas em prática,
não só na China, e a resistência às pressões imperialistas às vezes é forte.
Depois de mais ou menos vinte anos de ajustes
(às vezes dramáticos, como nas ditaduras, ou nas crises da década de 1990 no
México ou na de 2001 na Argentina), a América Latina é a primeira região do
mundo em que as lutas populares, votos e novas políticas manifestaram uma
recusa da ordem imperialista neoliberal. O Acordo de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta), efetivado em janeiro de 1994, foi imposto ao México quando o
neoliberalismo ainda estava na ofensiva. Mas a projetada Área de Livre Comércio
das Américas (Alca), iniciada em 2001, perdeu o prazo de 2005, na esteira do
fracasso da Rodada Doha da OMC. (Desde o fim de 2009, o processo está em
negociação, mas com poucas chances de sucesso.) A Alternativa Bolivariana para
os Povos de Nossa América (Alba) foi criada no início de 2004 com a Venezuela e
Cuba e, a partir de 2010, já incluía também a Nicarágua, Bolívia, Equador e
três pequenas ilhas do Caribe. A eleição de governos orientados para a esquerda
na América do Sul sinaliza uma tendência semelhante (com exceção da Colômbia e
Peru).
Já depois da Segunda Guerra Mundial, a
prevalência de um mundo bipolar permitiu certo grau de autonomia no que era
conhecido como “terceiro mundo” em relação às duas superpotências da época.
Emblemático do período foram a Conferência de Bandung, de 1995, a
industrialização por substituição de importações na América Latina e um forte
envolvimento dos governos no desenvolvimento de muitos países (inspirados pela
industrialização europeia no século XIX e pelo sovietismo daqueles anos). A
crise do neoliberalismo está criando uma oportunidade semelhante para ser
agarrada pelos países em desenvolvimento. A configuração exata ainda deve ser
encontrada e a transição, administrada.
Resumindo, entre as questões cruciais das
próximas décadas estão as trajetórias econômicas e políticas em outras regiões
do mundo. Que tendências irão prevalecer? Ê difícil imaginar um mundo dominado
pela dinâmica neoliberal e os Estados Unidos atraídos para novas lógicas. A
Europa não necessita enfrentar as restrições de uma trajetória insustentável,
como os Estados Unidos. A situação europeia é muito menos grave, é apenas medíocre.
A questão principal é o que vai acontecer com as ordens sociais dominantes em
países como China, Rússia, Índia e Brasil. A continuação do movimento em
direção ao neoliberalismo ou caminhos inovadores? O mesmo vale para as
tendências socialdemocratas que hoje prevalecem na América Latina.
Assim, o destino do neoliberalismo numa
escala mundial não está estritamente nas mãos dos Estados Unidos nem da Europa
e, nas próximas décadas, deverá estar ainda menos. Esse destino será em grande
parte determinado no longo prazo pelo caminho seguido pelos desafiantes de
outras regiões do mundo. Depois de trinta anos de globalização neoliberal, essa
situação abre novas perspectivas. Fundamentais para as tendências históricas
serão os rumos políticos na China e na América do Sul.”
“O
caminho para a centro-direita
Apesar das circunstâncias históricas
completamente distintas, a crise contemporânea cria uma grande oportunidade
histórica para as lutas populares, reminiscente da Grande Depressão. Dominar a
situação presente da economia norte-americana — reconstrução do sistema
financeiro, restauração das tendências de acumulação e correção dos
desequilíbrios — exige a contenção dos interesses das finanças. Há potencial na
crise para desestabilizar a coesão entre as classes altas, como se deu durante
a década de 1930.
Assim, um cenário otimista é que a situação
criada poderia operar a favor de uma transição evocativa do New Deal, em que um
grande segmento das frações superiores dos assalariados busca e, de fato,
encontra o apoio das classes populares. A passagem à liderança seria realizada
sob a pressão de um movimento popular. Essas tendências criariam as condições
favoráveis às demandas das classes populares, pois os gerentes iriam necessitar
do apoio destas para realizar seus novos objetivos. Em outras palavras, não
haveria nenhuma outra opção para acalmar os interesses capitalistas que não
essa esperança nas classes populares. Funcionários do governo, aliados a
frações da gerência (outros componentes que não a gerência financeira, os
segmentos técnicos e inferiores da gerência etc.) que não estejam
irreversivelmente comprometidos com a defesa das frações mais ricas da
população, não teriam outra escolha que não confiar no apoio popular.
Os primeiros sintomas tímidos desse movimento
por parte de uma fração das classes altas ficaram evidentes no tratamento
inicial da crise contemporânea nos Estados Unidos dado pelo governo Obama,
principalmente no que se refere às altas rendas, tributação, regulação e
bem-estar. Desde o fim de 2009, contudo, o novo curso dos acontecimentos não
manifesta a prevalência dessas tendências políticas.
Um cenário pessimista é que, na ausência de
um impetuoso movimento popular, seria possível criar uma oportunidade para uma
alternativa de extrema direita, o pior de todos os resultados, mas um resultado
que não pode ser afastado*. Foi o que a luta popular de apoio à ação do
presidente Roosevelt evitou durante os anos entre guerras, enquanto em outros
países, como a Alemanha nazista, prevaleceu a extrema direita. As consequências
teriam sido terríveis, com repressão nacional e propensão a perigosas aventuras
militares internacionais, pior que as tendências neoconservadoras que, em certo
sentido, marcariam o seu ponto máximo.
O capitalismo neogerencial define um terceiro
cenário, mais realista. Uma característica estrutural das relações sociais nos
Estados Unidos, significativamente diferente das de outros países, é a relação
íntima entre os componentes das faixas mais altas da pirâmide social. A
contenção dos interesses capitalistas durante o compromisso do pós-guerra já
tinha sido significativamente menos aguda nos Estados Unidos que na Europa ou
no Japão. Esses traços se manifestam no compromisso neoliberal e no processo de
hibridização no topo, quando as economias das faixas mais altas de salários já
estão investidas em securities e os
proprietários também estão engajados na alta administração e, como tal,
nababescamente remunerados.
No pós-neoliberalismo, essas ligações
privilegiadas poderiam operar no curto prazo, para atrasar a realização das
mudanças radicais urgentemente necessárias, caso os gerentes e funcionários
hesitem em prejudicar por meio de medidas drásticas os interesses dos seus “primos”
sociais, os proprietários capitalistas. Desde 2009, esses acordos parecem
prevalecer. Mas, em prazo mais longo, essas configurações ocultas no topo das
hierarquias sociais também oferecem bases robustas para uma estratégia conjunta
das classes altas, independentemente da distribuição de poder e das
consequências sobre os padrões de renda. Isso significa um grande potencial de
mudança, embora não favorável às classes populares.
Assim, em geral, as tendências sociais
indicam o estabelecimento no topo das hierarquias sociais de um novo
compromisso de centro-direita, e não de centro-esquerda. Dado o que o capítulo
anterior chama de “fator nacional” e a fraqueza das lutas populares, essa nova
estratégia do capitalismo neogerencial parece ser o resultado mais provável da
crise do neoliberalismo nas próximas décadas.”
*: O livro foi escrito em 2014 – antes,
portanto, da eleição de Donald Trump.
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