Editora: Editora das Américas
ISBN: 978-85-7232-780-0
Tradução:
Frederico Ozanam Pessoa de Barros
Opinião: ★☆☆☆☆
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Páginas: 454
Sinopse: A
Cidade Antiga – La Cité Antique – é um livro surpreendente: apesar de se tratar
de obra composta no século XIX, acerca de instituições de povos antigos,
transmite uma visão globalizante da fundamentação, elaboração e evolução da
história futura desses mesmos povos, assim como de tantos outros por eles
influenciados. Tanto Roma quanto a Grécia aparecem como cenários da formação do
sistema de classes que herdamos, da transição do politeísmo para a civilização
moderna de origem greco-latina e no entanto vinculada ao monoteísmo de origem oriental
– a civilização judaico-cristã; a compreensão do direito moderno, a partir das
conquistas progressivas do "homem antigo", é realizada com rara
transparência. O panorama de fundo desta obra permite incontáveis análises
sobre a modernidade, na medida em que refletimos sobre seu conteúdo sociológico
e político, através da linguagem clara, precisa e de leitura agradável,
características do autor.
“Grécia e Roma apresentam-se-nos com um
caráter absolutamente inimitável. Nada do que é moderno lhes é semelhante. E no
futuro nada poderá ser-lhes semelhante.”
“Felizmente, o passado nunca morre por
completo para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo
em seu íntimo, pois o seu estado em determinada época é produto e resumo de
todas as épocas anteriores. Se ele descer à sua alma, poderá encontrar e
distinguir nela as diferentes épocas pelo que cada uma deixou gravada em si
mesmo.
“Quanto mais nos aprofundamos na história da
raça indo-europeia, na qual se ramificaram os povos gregos e itálicos,
constatamos que essa raça sempre pensou que depois desta vida breve tudo acaba
para o homem. As mais antigas gerações, muito antes que aparecessem os
filósofos, acreditaram em uma segunda existência depois da atual. Encararam a
morte não como dissolução do ser, mas como simples mudança de vida.
Mas em que lugar e de que maneira se
desenrolava essa existência? Acreditavam que o espírito imortal, uma vez livre
do corpo, ia animar a outro? Não; a crença na metempsicose jamais tomou raízes
no espírito das populações greco-romanas; também não é a mais antiga opinião
entre os árias do Oriente, pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença.
Acreditava-se então que o espírito ia para o céu, para a região da luz? Nem
isso; o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de
época relativamente recente no Ocidente; a morada celeste era considerada
apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade. De
acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos, a alma não
passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos;
continuava junto dos homens, vivendo sobre a terra(1).
Acreditou-se até por muito tempo que durante
essa segunda existência a alma continuava unida ao corpo. Nascendo junto a ele,
a alma não se separava, mas fechava-se com ele na sepultura.
Por mais antigas que sejam essas crenças,
delas nos ficaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos são os ritos
fúnebres, que sobreviveram a essas crenças primitivas, mas que certamente haviam
nascido ao mesmo tempo, servindo para que as compreendamos melhor.
Os ritos fúnebres mostram claramente que
quando colocavam um corpo na sepultura acreditavam enterrar algo vivo.
Virgílio, que sempre descreve com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias
religiosas, termina a narração dos funerais de Polidoro com estas palavras:
“Encerramos a alma do túmulo.” — Idêntica expressão encontra-se em Ovídio e em
Plínio, o Jovem; não que elas correspondessem à ideia que esses escritores
tinham da alma; mas, desde tempos imemoriais, essa crença perpetuara-se na
linguagem, atestando antigas crenças populares(2).
Era costume, no fim da cerimônia fúnebre,
chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido, desejando-lhe vida
feliz sobre a terra. Diziam-lhe três vezes: Passe bem. — E acrescentavam: Que a
terra lhe seja leve(3) — tanta era a certeza de que a criatura continuava a
viver sobre a terra, conservando a sensação de bem-estar ou de sofrimento. No
epitáfio declarava-se que o morto ali repousava, expressão que sobreviveu a
essas crenças, e que de século em século chegou até nós. Nós usamos ainda este
costume, embora ninguém hoje pense que um ser imortal possa repousar em um
túmulo. Mas antigamente acreditava-se tão firmemente que ali vivia um homem, que
nunca deixavam de enterrar junto com o corpo objetos que supunham ser-lhe
necessários, como vestidos, vasos e armas(4). Derramava-se vinho sobre o
túmulo, para matar-lhe a sede; levavam-lhe alimentos, para saciar-lhe a
fome(5). — Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que essas criaturas,
sepultadas juntamente com os mortos, prestar-lhes-iam serviços dentro do
túmulo, como o haviam feito durante a vida(6). Depois da tomada de Tróia os
gregos retornam a seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles,
que está morto, também exige uma escrava, e lhe entregam Polixena(7).
Um verso de Píndaro guardou-nos curioso
vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido
a deixar a Grécia, fugindo até a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto,
desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que
fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a
nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas, unida aos restos
corporais, não podia deixar sozinha a Cólquida(8).
Dessa crença primitiva derivou-se a
necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada
subterrânea, necessária para sua segunda vida, era preciso que o corpo, ao qual
permanecia ligada, fosse coberto de terra. A alma que não possuía sepultura não
possuía morada, e ficava errante. Em vão aspirava ao repouso, que deveria
desejar depois das agitações e trabalhos desta vida; e era obrigada a errar
sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem se deter jamais, e sem receber
nunca as ofertas e alimentos de que necessitava. Como era infeliz, logo se
tornava perversa. Atormentava os vivos, provocava-lhes doenças, destruía
colheitas, assustava-os com aparições lúgubres, a fim de fazer com que dessem
sepultura a seu corpo e a si mesma. Daí se originou a crença nas almas do outro
mundo(9). Toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma
era miserável, e que pela sepultura tornava-se feliz. Não era por ostentação de
dor que se oficiavam as pompas fúnebres, mas para repouso e felicidade da alma
do morto(10).
Notemos bem que não bastava confiar o corpo à
terra. Era necessário ainda obedecer a ritos tradicionais, e pronunciar
determinadas fórmulas. Em Plauto encontra-se a história de uma alma penada(11),
forçada a andar errante, porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido
ritual. Suetônio conta que o corpo de Calígula, enterrado antes de se completar
a cerimônia fúnebre, fez com que sua alma se tornasse errante, aparecendo a
diversas pessoas, até o dia em que o desenterraram, sepultando-o novamente de
acordo com as regras(12). Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito
que se atribuía aos ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre. Já que sem eles as
almas tornavam-se errantes e apareciam aos vivos, era evidente que tais ritos
fixavam-nas e encerravam-nas dentro dos túmulos. E assim como havia algumas
fórmulas que possuíam essa virtude, os antigos possuíam outras que produziam
efeitos contrários, capazes de evocar as almas, fazendo-as sair momentaneamente
de seus sepulcros.
Vê-se claramente, pelos escritores antigos,
como o homem era atormentado pelo medo de que, depois de sua morte, não fossem
observados os devidos ritos. Essa era uma fonte de inquietudes pungentes(13).
Temia-se menos a morte que a privação da sepultura, pois desta última dependia
o repouso e felicidade eterna. Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver
os atenienses matar os generais que, depois de uma vitória naval, haviam
negligenciado a sepultura dos mortos. Esses generais, discípulos dos filósofos,
talvez distinguissem a alma do corpo, e como não acreditavam que a sorte da
alma estivesse ligada à do corpo, julgaram de pouca importância que um cadáver
se decompusesse na água ou na terra. Por isso não desafiaram a tempestade pela
vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos. Mas a plebe, que, mesmo em
Atenas, mantinha-se fiel às antigas crenças, acusou seus generais de impiedade,
e condenou-os à morte. Por sua vitória haviam salvado Atenas, mas por sua
negligência haviam perdido milhares de almas. Os parentes dos mortos, pensando
nos longos suplícios a que estavam condenadas aquelas almas, apresentaram-se ao
tribunal vestidos de luto, e pediram vingança(14).
Nas cidades antigas a lei punia os grandes
criminosos com um castigo considerado terrível, a privação da sepultura(15).
Punia-se desse modo a própria alma, condenando-a a suplício quase eterno.
É necessário observar que entre os antigos
estabeleceu-se ainda uma outra opinião a respeito da morada dos mortos.
Imaginaram uma região, também subterrânea, mas infinitamente mais espaçosa que
o túmulo, onde todas as almas, longe dos corpos, viviam reunidas, penando ou
gozando, de acordo com a conduta do homem durante a vida. Mas os ritos fúnebres,
como os descrevemos acima, estão manifestamente em desacordo com essas crenças,
prova certa de que na época em que foram estabelecidos, não se acreditava ainda
na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios. A primeira opinião dessas
gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura, que a alma não
se separava do corpo, e que permanecia unida à parte do solo onde os ossos
estavam enterrados. Por sua vez, o homem não tinha que prestar nenhuma conta de
sua vida anterior. Uma vez sepultado, não esperava nem recompensas, nem
suplícios. Opinião certamente primitiva, mas que é a infância da noção sobre a
vida futura.
A criatura que vivia debaixo da terra não
estava tão livre de sua condição humana para não ter necessidade de alimentos.
Assim, em determinados dias do ano, levava-se uma refeição a cada túmulo(16).
Ovídio e Virgílio deixaram-nos a descrição
dessa cerimônia, cujo uso conservara-se intacto até seu tempo, embora as
crenças já se houvessem transformado. Segundo nos narram, afeitavam-se os túmulos
com grandes grinaldas de folhas e flores, ofereciam-se doces, frutas, sal,
fazendo sobre a terra libações de leite e vinho, ou mesmo regando-a com o
sangue de alguma vítima(17).
Enganar-se-ia muito quem pensasse que essa
refeição fúnebre não era senão uma espécie de comemoração. Os alimentos que a
família levava eram realmente para o morto, exclusivamente para ele. E isso
concluímos pelo seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do
túmulo; um buraco era cavado, a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o
defunto; se lhe imolavam uma vítima, todas as carnes eram queimadas, para que
nenhuma pessoa viva delas participasse; pronunciavam-se certas fórmulas
consagradas, para convidar o morto a comer e a beber; se a família inteira assistia
à refeição, ninguém tocava nos alimentos; e, por fim, ao se retirarem, os
familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns doces em
vasos; considerava-se grande impiedade o fato de alguém tocar nessa pequena
provisão, destinada às necessidades do morto.
Essas velhas crenças persistiram por muito
tempo, e sua expressão ainda se encontra entre os grandes escritores da Grécia:
“Derramo sobre a terra do túmulo — diz Ifigênia em Eurípides — leite, mel e
vinho, pois só assim podemos contentar os mortos(18).” — “Filho de Peleu — diz
Neoptólemo — recebe esta bebida tão grata aos mortos; vem, e bebe este
sangue(19).” — Electra faz libações e diz: “A bebida penetrou na terra; meu pai
a recebeu(20).” — Eis a prece de Orestes a seu pai defunto: “Ó meu pai, se eu
viver, receberás ricos banquetes; mas, se eu morrer, não terás parte nas mesas
fumegantes onde os mortos se alimentam(21).” — As sátiras de Luciano atestam
que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo: “Os homens imaginam que as
almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes oferecem, que se
regalam com o cheiro das iguarias, e que bebem o vinho derramado sobre seus
túmulos(22).” — Entre os gregos, diante de cada túmulo havia um local destinado
à imolação da vítima e ao cozimento das carnes(23). Os túmulos romanos tinham
igualmente sua culina, espécie de cozinha especial, unicamente para uso
do morto(24). Plutarco conta que depois da batalha de Plateia, como os
guerreiros mortos haviam sido enterrados no lugar do combate, os plateanos se
comprometeram a oferecer-lhes cada ano o banquete fúnebre. Em consequência, no
aniversário da batalha, dirigiam-se em grande procissão, conduzidos pelos
primeiros magistrados, à colina sob a qual repousavam os mortos. Ofereciam-lhes
leite, óleo, perfumes e imolavam-lhes uma vítima. Quando os alimentos estavam
colocados sobre os túmulos, os plateanos pronunciavam uma fórmula mediante a
qual chamavam os mortos, convidando-os a que tomassem suas refeições. Esta
cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que presenciou o sexto
centenário dessa comemoração(25). Luciano nos conta qual a opinião que deu
origem a todos esses costumes: “Os mortos — escreve ele — alimentam-se dos
manjares que colocamos sobre seus túmulos, e bebem o vinho que neles derramamos;
desse modo, o morto que nada recebe, é condenado à fome perpétua(26).”
(1)
Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum. Cícero, Tusc., I, 16. Essa
crença era tão forte, acrescenta Cícero, que mesmo quando se estabeleceu o
costume de queimar os corpos, continuou-se a acreditar que os mortos viviam
debaixo da terra. — Cf. Eurípides, Alceste, 163; Hécuba, passim.
(2) Virgílio, Eneida, III, 67; Ovídio,
Fast, V, 451; Plínio, Ep.. VII, 27. — A descrição de Virgílio refere-se ao uso
dos cenotáfios; admitia-se que quando não se podia encontrar o corpo de um
parente, se realizasse uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos
da sepultura, acreditando-se com isso encerrar a alma do morto no túmulo, mesmo
na falta do corpo. Eurípides, Helena, 1061, 1240. Escoliastes ad Píndar., IV,
234. Virgílio, VI, 505; XII, 214.
(3) Ilíada, XXIII, 221. Eurípides, Alceste, 479.
Pausânias, II, 7, 2. Catulo, C. 10. Sérvio, ad Aeneid., II, 640; III, 68; XI,
97. Ovídio, Fast., IV, 852; Metam., X, 62. Juvenal, VII, 207. Marcial, I, 89;
V, 35; IX, 30.
(4) Eurípides, Alceste, 637, 638; Orestes,
1416-1418. Virgílio, En., VI, 221; XI. 191-196. O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos
é atestado, quanto a Atenas, por Tucídides, II, 34. A lei de Sólon proibia
enterrar mais de três vestidos com o morto (Plutarco, Sólon, 21). Luciano fala
ainda deste costume: “Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os
mortos, como se eles fossem usá-los debaixo da terra!” — Ainda nos funerais de
César, em época de grande superstição, observou-se o antigo costume, levando-se
à fogueira os munera, roupas, armas, joias (Suetônio, César, 34); Cf.
Tácito, Ann., III, 3.
(5) Eurípides, Ifigênia em Táurida, 163.
Virgílio, En., V, 76-80; VI, 225.
(6) Ilíada, XXI, 27-28; XXIII, 165-176.
Virgílio, En., X, 519-20; XI, 80-84; 197. — Idêntico costume existia na Gália,
César. B. G., V, 17.
(7) Eurípides, Hécuba, 40-41; 107-113; 637-638.
(8) Píndaro, Pitiq., IV, 284, ed. Heyne; ver o
Escoliastes.
(9) Cícero, Tusculunas, I, 16. Eurípides. Tróia,
1085. Heródoto, V, 92. Virgílio, VI, 371, 379. Horácio, Odes, I, 23. Ovídio,
Fast., V, 483. Plínio, Epist. VII, 27. Suetônio, Calíg., 59. Sérvio, ad. Aen.,
III, 63.
(10) Ilíada, XXII, 358; Odisseia,
XI. 73.
(11) Plauto, Mostellaria, III, 2.
(13) Vide, na Ilíada, XXII, 338-344, Heitor
pedindo ao vencedor que não o deixe insepulto: “Rogo-te por teus joelhos, por
tua vida, por teus pais, não dês meu corpo aos cães junto aos navios dos
gregos; aceita o ouro que meu pai te há de oferecer em abundância, e manda-lhe
meu corpo, a fim de que troianos e troianas me prestem as honras devidas na
fogueira.” — No mesmo sentido, em Sófocles, Antígone enfrenta a morte “para que
seu irmão não fique insepulto” (Sóf., Antígone, 467). — O mesmo sentimento é
expresso por Virgílio, IX, 213; Horácio, Odes, 1, 18, v. 24-36; Ovídio,
Heróides, X, 119-123; Tristes, III, 3, 45. — Igualmente, nas maldições, o que
se podia desejar de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto
(Virgílio, Eneida, IV, 620).
(14) Xenofonte, Helênicas, I, 7.
(15) Ésquilo, Os sete contra Tebas, 1013.
Sófocles, Antígone, 198. Eurípides, Fen., 1627-1632. — Cf. Lísias, Epitáf.,
7-9. Todas as cidades antigas acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos
a privação da sepultura.
(16) Isso em latim chama-se inferias ferre,
parentare, ferre solemnia. — Cícero, De legibus, II, 21. Lucrécio, III, 52.
Virgílio, Eneida, VI, 380; IX, 214. Ovid., Amor., I, 13, 3. — Essas dádivas, às
quais os mortos tinham direito, chamavam-se Manium jura. — Cf. Cícero,
De legib., II, 21. Cícero aludia a isso em Pro Flacco, 38, e na primeira
Filípica, 6. — Esses costumes eram ainda observados nos tempos de Tácito
(Hist., II, 95); Tertuliano ataca-os como se estivessem ainda em pleno vigor em
seu tempo (De ressurr. carnis, I; De testim. animae, 4),
(17) Virgílio. En.. III, 301-303; V. 77-81.
Ovídio, Fast., II, 535-542.
(18) Eurípídes, Ifigênia em Táurida, 157-163.
(19) Eurípides, Hécuba, 536; Electra, 505 e
seguintes.
(21) Ésquilo, Coéforas, 432-484. — Nos Persas,
Ésquilo atribui a Atossa as ideias dos gregos: “Trago a meu esposo estes
manjares, para satisfação dos mortos: leite, mel dourado e o fruto da vinha;
chamemos a alma de Dario, e derramemos estas bebidas, que a terra há de tragar,
e que penetrarão até os deuses lá debaixo.” (Persas, 610- 620). — Quando as
vítimas eram oferecidas às divindades do céu, a carne era comida pelos
ofertantes; mas quando eram oferecidas aos mortos, a carne era queimada por
completo (Pausânias, II, 10).
(22) Luciano, Caron, 22. Ovídio, Fastos, II,
566.
(23) Luciano, Caron, 22: “Cavam valas junto aos
túmulos e ali cozinham alimentos para os mortos.”
“Essa religião dos mortos parecia ser a mais
antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o
homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa
a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem
teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que
ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o
homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o
invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino.”
“Na verdade, hoje em dia muito dificilmente
poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado.
Fazer do homem um deus, parece-nos contrário à religião. É-nos quase tão
difícil compreender as antigas crenças desses homens, como teria sido a eles
imaginar as nossas. Mas reflitamos que os antigos não tinham ideia da criação;
para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da
criação. O que gerava parecia-lhes uma criatura divina, e por isso adoravam os
antepassados. Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e
poderoso, porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase
todas as sociedades humanas; encontramo-lo entre os chineses, como entre os
antigos getas e citas; entre os povos da África, como entre os do Novo
Mundo(11).
O fogo sagrado, que tão intimamente estava
ligado ao culto dos mortos, tinha também, como caráter essencial, pertencer
apenas a uma família, representava os antepassados(12); era a providência da
família; não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha, que era outra
providência. Cada lar protegia apenas os seus.
Toda essa religião limitava-se ao círculo de
uma casa. O culto não era público. Pelo contrário, todas as cerimônias, eram
celebradas apenas pelos familiares(13). O fogo sagrado nunca era colocado fora
da casa, nem mesmo perto da porta externa, onde um estranho poderia vê-lo. Os
gregos colocavam-no sempre em um recinto fechado(14), para protegê-lo do
contacto e olhar dos profanos. Os romanos escondiam-no no meio da casa. Todos
esses deuses, fogo sagrado, lares, manes, eram chamados de deuses escondidos,
ou deuses do interior(15). Para todos os atos dessa religião exigia-se segredo
— sacrifícia occulta — diz Cícero(16); se uma cerimônia fosse assistida
por um estranho, era considerada perturbada, manchada por um único olhar.
Para essa religião doméstica não havia nem
regras uniformes, nem ritual comum. Cada família tinha a mais completa
independência. Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse
culto ou crença. Não havia outro sacerdote além do pai; como sacerdote, ele não
conhecia nenhuma hierarquia. O pontífice de Roma, ou o arconte de Atenas, podia
certificar-se de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos,
mas não tinha o direito de obrigá-lo a nenhuma modificação. Suo quisque ritu
sacrificium faciat(17) — era a regra absoluta. Cada família tinha suas
cerimônias, que lhe eram próprias, suas festas particulares, suas fórmulas de
oração e seus hinos(18). O pai, único intérprete e pontífice dessa religião,
era o único que tinha o poder de ensiná-la, e não o podia fazer senão a seu
filho. Os ritos, as palavras da oração, os cantos, que faziam parte essencial
dessa religião doméstica, eram patrimônio ou propriedade sagrada, que a família
não participava a ninguém, e que era até proibido revelar a estranhos. Assim
era na Índia: “Sou forte contra meus inimigos — diz o brâmane — com os cantos
que pertencem à minha família, e que meu pai me ensinou(19).”
Assim, a religião não residia nos templos,
mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma
família, e era deus apenas de uma casa. Não se pode supor razoavelmente que uma
religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação
poderosa de alguém, ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes. Ela
nasceu espontaneamente no espírito humano; seu berço foi a família; cada
família fez seus próprios deuses.”
(11)
Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa
guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio. Seriam essas
imagens simples retratos de família, ou ídolos?
(12) Do mesmo modo, nos Vedas, Agni é ainda
invocado como deus doméstico.
(13) Iseu, De Cironis haereditate, 15-18.
(14) Esse recinto chamava-se hérkos.
(15) Cícero, De nat. Deor., II, 27. Sérvio, in
Aen., III, 12.
(16) Cícero, De arusp. resp., 17.
(17) Varrão, De ling. lat., VII, 88.
(18) Hesíodo, Opera, 701. Macróbio, Sat., I, 16.
Cíc., De legib., II, 11.
(19) Rig-Veda, tr. Langlois, t. I, p. 113. As
leis de Manu mencionam frequentemente os ritos particulares de cada família:
VIII, 3; IX, 7.
“É necessário notar que essa religião do lar
e dos antepassados, que se transmitia de varão para varão, não pertencia, contudo,
exclusivamente ao homem; a mulher tomava parte no culto. Como filha, assistia
aos atos religiosos do pai; como casada, aos do marido.
Somente por isso se pode avaliar o caráter
essencial da união conjugal entre os antigos. Duas famílias vivem uma ao lado
da outra, mas possuem deuses diversos. Em uma delas, a jovem participa, desde a
infância, da religião do pai, invoca seu lar, oferece-lhe todos os dias
libações, enfeita-o com flores e grinaldas nos dias festivos, pede-lhe
proteção, agradece-lhe benefícios. Esse fogo paterno é o seu deus. Se um jovem
de outra família a pede em casamento, para ela isso significa muito mais do que
passar de uma casa para outra. Trata-se de abandonar o lar paterno, para
invocar daí por diante os deuses do esposo. Trata-se de mudar de religião, de
praticar outros ritos, de pronunciar outras orações. Trata-se de deixar o deus
de sua infância, para colocar-se sob o império de um deus desconhecido. E ela
não espera permanecer fiel a um, honrando a outro, porque um dos princípios
imutáveis dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares, nem duas
séries de antepassados. “A partir do casamento, diz um antigo, a mulher não tem
nada mais em comum com a religião doméstica dos pais: ela passa a sacrificar
aos manes do marido(1).”
O casamento, portanto, é ato sério para a
jovem, e não o é menos para o esposo, porque a religião exige que se nasça
junto ao fogo sagrado para ter-se o direito de oferecer-lhe sacrifícios. E, no
entanto, o rapaz vai introduzir em seu lar uma estranha; em sua companhia,
oficiará as cerimônias misteriosas do culto, revelando-lhe ritos e fórmulas,
que constituem patrimônio de família. Não há nada mais precioso que essa
herança; os deuses, ritos e hinos, que recebeu dos pais, é quem o protege na vida,
e lhe promete riqueza, felicidade, virtude. No entanto, em vez de guardar para
si esse poder tutelar, como o selvagem guarda um ídolo ou amuleto, vai admitir
uma mulher para participante dos mesmos.
Desse modo, quando penetramos o pensamento
dos antigos, vemos a importância que tem para eles a união conjugal, e quanto
lhe é imprescindível a intervenção da religião. Não seria, portanto,
necessário, para que a jovem fosse iniciada no culto que iria seguir, uma
cerimônia sagrada de iniciação? Para tornar-se sacerdotisa de um novo fogo, não
haveria uma espécie de ordenação ou de adoção?
O casamento era a cerimônia sagrada que
deveria produzir esses grandes efeitos. Os escritores latinos e gregos têm o
hábito de designar o casamento por palavras que indicam ato religioso(2).
Pólux, que viveu no tempo dos Antoninos, mas que podia manusear toda uma antiga
literatura que não possuímos mais, diz que nos tempos remotos, em lugar de
designar o casamento por seu nome particular (gámos), designavam-no
simplesmente pela palavra télos, que significa cerimônia sagrada(3),
como se o casamento fosse, nesses tempos antigos, a cerimônia sagrada por
excelência.”
(1)
Dicearca, citado por Estêvão de Bizâncio.
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