terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria (Tomo II) - P.J. Proudhon

Editora: Escala
ISBN: 978-85-7556-901-6
Opinião★★★☆☆
Páginas: 434

         “Liberdade! A esse nome, a democracia, como o touro diante do qual se agita uma capa vermelha, fica furiosa.”


         “Num país, onde o povo não é nada ainda, compreende-se essa perseverança na exploração; mas num país onde o povo é tudo, porque sua voz permanece muda? Por que, nas discussões econômicas, o nome do povo jamais é pronunciado?”


         “Quando se dirá aos operários que o monopólio, do qual se finge querer livrá-los pela abolição da alfândega, deveria receber uma nova energia dessa abolição; que o monopólio, de outro modo muito mais profundo do que se gostaria de confessar, consiste não somente no fornecimento exclusivo do mercado, mas também, sobretudo, na exploração exclusiva do solo e das máquinas, na apropriação invasora dos capitais, no abarcamento dos produtos, no arbítrio das trocas; quando se fará ver a eles que foram sacrificados às especulações da agiotagem, entregues, de mãos e pés atados, à renda do capital; que daí surgiram os efeitos subversivos do trabalho parcelar, da opressão das máquinas, dos sobressaltos desastrosos da concorrência e dessa iníqua ridicularização do imposto; quando se mostrará a eles a seguir como a abolição dos direitos protetores mais não fez que estender a rede do privilégio, multiplicar a desapropriação e unir contra o proletariado os monopólios de todos os países; quando se contará a eles que a burguesia eleitoral e dinástica, sob pretexto de liberdade, fez os maiores esforços para manter, consolidar e preparar esse regime de mentira e de rapina; que postos foram criados, recompensas propostas e distribuídas, sofistas contratados, jornais pagos, a justiça corrompida, a religião invocada para defendê-lo; que nem a premeditação, nem a hipocrisia, nem a violência faltaram à tirania do capital; pensa-se acaso que, no fim, não se levantarão em sua cólera e que, uma vez donos da vingança, vão repousar na anistia?”


         “Mas para a economia política, esta ciência da discórdia, nunca há na sociedade senão indivíduos opostos em seus interesses e direitos.”


         “A teoria do livre monopólio, uma teoria da abundância! Ah! Verdadeiramente, se não existissem filósofos, nem padres, bastariam economistas para dar a medida do ridículo e da credulidade humana.”


         “Tenho medo que minha crítica, por força da evidência, não se torne, no fim, irreverente; e antes que irritar, por uma discussão pública, respeitáveis homens repletos de amor próprio, preferiria mil vezes abandoná-los a solidão de seus remorsos.”


         Povos importadores, povos explorados: aí está o que sabem maravilhosamente bem os homens de Estado da Grã-Bretanha que, não podendo impor pela força das armas seus produtos ao universo, se puseram cavar sob as cinco partes do mundo a mina do livre comércio.”


         “O livre comércio, isto é, o livre monopólio, é a santa aliança dos grandes feudatários do capital e da indústria, a argamassa monstra que deve terminar em cada ponto do globo a obra começada pela divisão do trabalho, pelas máquinas, pela concorrência, pelo monopólio e pela política econômica; esmagar a pequena indústria e submeter definitivamente o proletariado. É a centralização em toda face da terra desse regime de espoliação e de miséria, produto espontâneo de uma civilização que começa, mas que deve perecer logo que a civilização tiver adquirido consciência de suas leis; é a propriedade em sua força e sua glória. E é para introduzir o consumo desse sistema que tantos milhões de trabalhadores estão famintos, tantas criaturas inocentes ainda amamentando atiradas no nada, tantas jovens e mulheres prostituídas, tantas almas vendidas, tantos caracteres emurchecidos! Se ao menos os economistas soubessem de uma saída para esse labirinto, de um fim para essa tortura. Mas não, sempre! Nunca! Como o relógio dos condenados, é um refrão do apocalipse econômico. Oh! Se os condenados pudessem queimar o inferno!...”


         “Agora é a vez dos patrícios das finanças. Como se já tivessem o pressentimento de sua próxima derrota, só estão ocupados em se reconhecer, em se coligar, se classificar e se repartir segundo suas qualidades e seu peso; em fixar suas respectivas partes nos despojos do trabalhador e em celebrar uma paz, cujo único objeto é a submissão definitiva do proletariado. Nessa santa aliança, os governos, tornando-se solidários uns para com os outros e ligados por uma amizade indissolúvel, nada mais são que os satélites do monopólio: reis absolutos e constitucionais, príncipes, duques, boiardos e margraves; grandes proprietários, grandes industriais, grandes capitalistas; funcionários da administração, dos tribunais e da Igreja, tudo o que, numa palavra, em vez de fazer obras, vive da lista de civis, de rendas, de agiotagem, de política e de fanatismo, unido num interesse comum e logo reunida pela tempestade revolucionária que já ribomba no horizonte, se encontra necessariamente engajado nesta vasta conjuração do capital contra o trabalho.
Pensaram nisso, proletários?”


         “Para conter as classes trabalhadoras, apesar de sua ignorância, apesar do desamparo e da disseminação em que são retidas, todas as políticas administrativas, todas as burguesias, todas as dinastias da terra se dão a mão. Finalmente, a cumplicidade da classe média, dispersa, segundo o princípio hierárquico, numa multidão de empregos e de privilégios; o engajamento dos operários mais inteligentes, que se tornaram condutores, contramestres, agentes e vigilantes por conta da coalizão; a defecção da imprensa, a influência das sacristias, a ameaça dos tribunais e das baionetas; de um lado, a riqueza e o poder, de outro a divisão e a miséria; tantas causas reunidas que tornam inexpugnável o improdutivo, um longo período de decadência vai começar para a humanidade.
Pela segunda vez, pensaram nisso, proletários?”


         “Em vão trabalhadores e capitalistas se esgotam numa luta brutal; em vão a divisão parcelar, as máquinas, a concorrência e o monopólio dizimam o proletariado; em vão as iniquidades dos governos e a mentira do imposto, a conspiração dos privilégios, a decepção do crédito, a tirania da propriedade e as ilusões do comunismo multiplicam nos povos a servidão, a corrupção e o desespero; a carruagem da humanidade avança, sem jamais parar nem recuar, em sua estrada fatal, e as coalizões, a fome, as bancarrotas, aparecem menos sob suas rodas imensas que os picos dos Alpes e das cordilheiras sobre a face unida do globo. Deus, com a balança na mão, avança numa majestade serena; e o saibro na corrida pela estrada só imprime a seu duplo prato da balança um invisível estremecimento.”


         “Socialistas! Esclarecedores perdidos no futuro, pioneiros devotados à exploração de uma região tenebrosa, nós cuja obra desconhecida desperta simpatias tão raras e parece para a multidão um presságio sinistro; nossa missão é redar ao mundo crenças, leis, deuses, mas sem que nós mesmos, durante a realização de nossa obra, conservemos nem fé, nem esperança, nem amor. Nosso maior inimigo, socialistas, é a utopia! Caminhando com um passo resoluto, sob o archote da experiência, só devemos conhecer nossa senha, avante! Quantos dentre nós pereceram e ninguém chorou sua sorte?! As gerações para as quais abríamos alas passam alegres sobre nossos túmulos; o presente nos excomunga, o futuro é desprovido de lembrança para conosco, e nossa existência se abisma num duplo nada...
Mas nossos esforços não serão perdidos. A ciência colherá o fruto de nosso ceticismo heroico e a posteridade, sem saber que existimos um dia, usufruirá por nosso sacrifício dessa felicidade que não é feita para nós. Avante! Aí estão nosso deus, nossa crença, nosso fanatismo. Cairemos uns depois dos outros, até o último. A pá do recém-vindo cobrirá de terra o veterano; nosso fim será como o dos animais; não somos, apesar de nosso martírio, daqueles sobre os quais o padre irá cantar a estrofe fúnebre: Deus guarde os ossos dos santos! Separados da humanidade que nos segue, sejamos para nós mesmos a humanidade inteira; o princípio de nossa força está nesse egoísmo sublime. Que os sábios nos desdenhem se quiserem; suas ideias estão à altura de sua coragem; e nós aprendemos, ao lê-los, a prescindir de sua estima. Mas saúde ao poeta que nenhuma contradição surpreende, àquele que vai cantar, velho bardo, os reprovados da civilização e que vai vir meditar um dia sobre seus vestígios! Poeta, aqueles que o esquecimento já cerca, mas que não temem nem o inferno nem a morte, te saúdam!”


         “O estado é a casta dos improdutivos.”


         “Trabalhar e comer são, que isso não desagrade aos escritores artistas, a única finalidade aparente do homem. O resto não passa de idas e vindas de pessoas que procuram ocupação ou que pedem pão. Para cumprir esse humilde programa, o profano comum despendeu mais gênio que todos os filósofos, os sábios e os poetas puseram para compor suas obras-primas.”


         “Logo, apesar da etimologia do termo, crédito é desconfiança, porquanto o homem que nada possui nunca vai conseguir o crédito. Bem ao contrário daquele que, forçado a servir para viver, entregará eternamente seu trabalho a crédito, durante oito, quinze ou trinta dias, a um empresário!”


         “O capital inaugura na sociedade um feudalismo inevitável.”


         “O crédito é hipócrita como o imposto, espoliador como o monopólio, agente de servidão como as máquinas. Como um contágio sutil e lento, propaga, estende, distribui entre a massa dos povos os efeitos mais concentrados, mais localizados dos flagelos anteriores. Mas, por qualquer máscara com que se cubra, piedade, trabalho, progresso, associação, filantropia, o crédito é ladrão e assassino, princípio, meio e fim do feudalismo industrial. O legislador hebreu havia sondado todas essas profundezas quando recomendava a seu povo dar crédito às outras nações, mas nunca aceitá-los delas, e que lhes prometia, com essa condição, a dominação e o império:
         “Se dás crédito às nações e tu mesmo não o aceitas, reinarás sobre todos os povos e ninguém será teu senhor” (Deuteronômio, XV, 6)
         Os judeus nunca desobedeceram a esse preceito, infiéis a Javé muitas vezes, fiéis a Mamon sempre. E pode-se ver hoje se a promessa de Moisés se cumpriu.”


         “O princípio da miséria é exclusivamente social, é o crime de todos.”


         “Costuma-se dizer ao pobre: sofra mais, abstenha-se, jejue, seja mais pobre ainda, mais necessitado, mais despojado; não se case, não ame, para que o patrão durma tranquilo com sua resignação e para que se disponha a levá-lo ao hospital no momento derradeiro.”


         “Não podemos sentir, amar, raciocinar, agir, existir, enfim, enquanto ficarmos encerrados em nós mesmos; é necessário que o eu dê o impulso a suas faculdades, que desdobre seu ser, que saia de alguma maneira de sua nulidade; que, depois de se ter posto, se oponha, isto é, se coloque em relação com um eu não sei quê, que é ou que lhe parece ser outro que não ele, numa palavra, com um não-eu.”


         “Deus é o egoísmo perfeito, a solidão absoluta, a concentração suprema. Sob todos os aspectos, Deus, natureza inversa do homem, existe por si mesmo e sem oposição, ou melhor, ele produz dentro dele o não-eu, em vez de procurá-lo fora; embora se distinga, ele é sempre eu; sua vida não se apoia em nada de outro.”


         “Tudo se passa no espírito, a matéria é uma abstração.”


         “A natureza não é uma quimera, porque é a obra que manifesta o operário; o não-eu, tão real quanto o eu, é o produto e a expressão do eu; e Deus nada mais é que a relação abstrata que une o eu e o não-eu numa fenomenalidade idêntica; tudo se rege, tudo se liga e se explica. A experiência é a ciência, escrita, o pensamento manifesto do sujeito e encontrado pelo sujeito.”


         “O silogismo, a indução, a antinomia e a série formam o armamento completo da inteligência; é fácil ver que nenhum outro instrumento dialético pode ser descoberto além.”


         “Sim, pois, a propriedade começa, melhor dizendo, se manifesta por uma ocupação soberana, efetiva, que exclui toda ideia de participação e de comunidade; sim, ainda, essa ocupação, em sua forma legítima e autêntica, não é outra coisa senão o trabalho; sem isso, como a sociedade teria consentido em conceder e em fazer respeitar a propriedade? (...) A propriedade se estabeleceu pelo trabalho; deve-se lembrar isso muitas vezes, não para a conservação da propriedade, mas para a instrução dos trabalhadores.”


         “‘O direito a uma coisa, diz Kant, é o direito de uso privado de uma coisa, a respeito da qual estou em comunidade de posse com todos os outros homens’. Em virtude desse princípio. Todo homem privado de propriedade pode, portanto, e deve apelar à comunidade, guardiã dos direitos de todos; disso resulta que, como já foi dito, que na visão da providência, as condições devem ser iguais.”


“Mas, enfim, o pensamento que presidiu o estabelecimento da propriedade foi bom (...) Todas as evoluções subsequentes tendem a um tempo, de uma parte a reequilibrar as faculdades, de outro, a desenvolver sempre a indústria e o bem-estar. Foi visto como, ao contrário, o esforço providencial termina sempre num progresso igual e divergente de miséria e de riqueza, de incapacidade e de ciência. Na segunda época, aparecem o capital e o assalariado, a distribuição egoísta e injuriosa; na terceira, o mal se agrava pela guerra comercial; na quarta, se concentra e se generaliza pelo monopólio; na quinta recebe a consagração do Estado. O comércio internacional e o crédito vêm por sua vez conferir um novo impulso ao antagonismo. Mais tarde, a ficção da produtividade do capital tornando-se pelo poder da opinião quase uma realidade, um novo perigo ameaça a sociedade, a própria negação do trabalho pelo transbordamento do capital. É nesse momento, é dessa situação extrema que nasce teoricamente a propriedade e essa é a transição que se trata para nós de conhecer muito bem.”


“A bancocracia mudou seu caráter e suas ideias. Outrora viviam entre eles como patrões e assalariados, vassalos e suseranos; agora não se conhecem mais a não ser como tomadores de empréstimo e usurários, ganhadores e perdedores. O trabalho desapareceu ao sopro do crédito; o valor real se esvai diante do valor fictício, a produção diante da agiotagem. A terra, os capitais, o talento, o próprio trabalho, se em lugar algum ainda há trabalho, eles a esperam de um lançamento de dados. O crédito, dizia a teoria, tem necessidade de uma base fixa; e eis justamente que o crédito pôs tudo em movimento. Só se encosta, acrescentava ela, a hipotecas; e faz correr essas hipotecas. Ele procura garantias; e como, a despeito da teoria que só quer ver garantias nas realidades, a garantia do crédito é sempre o homem, porque é o homem que faz valer a penhora e porque sem o homem a garantia seria absolutamente ineficaz e nula, ocorre que o homem, não se agarrando mais às realidades, com a garantia do homem a penhora desaparece e o crédito permanece o que ele em vão se gabava de não ser, uma ficção.
O crédito, numa palavra, à força de desvincular o capital, terminou por desvincular o próprio homem da sociedade e da natureza. Nesse idealismo universal, o homem não se apega mais ao solo; é suspenso no ar por um poder invisível. A terra está coberta de habitantes, uns nadando na opulência, outros hediondos de miséria, e ela não é possuída por ninguém. Ela só tem senhores que a desdenham e servos que a deixam, pois não a cultivam para eles, mas para um portador de cupons que ninguém conhece, que não verão nunca mais, que talvez passará de novo por essa terra sem olhá-la, sem desconfiar que é dele. O detentor da terra, isto é, o possuidor de inscrição de renda, se assemelha ao mercador de bricolagens; em sua carteira tem sítios, pastagens, ricas colheitas, excelentes parreirais; que lhe importa! Está pronto a ceder tudo em troca de dez centavos de alta; à noite vai se desfazer de seus bens, da mesma forma que os havia recebido pela manhã, sem amor e sem pesar.
Assim, pela ficção da produtividade do capital, o crédito chegou à ficção da riqueza; a terra não é mais a fábrica do gênero humano, é um banco; e se fosse possível que esse banco não fizesse sem cessar novas vítimas, forçadas a pedir de novo ao trabalho a renda que perderam no jogo e, com isso, sustentar a realidade dos capitais; se fosse possível que a bancarrota não viesse interromper de tempos em tempos essa infernal orgia, o valor da garantia baixando sempre enquanto que a ficção multiplicava seus papéis, a riqueza real se tornaria nula e a riqueza subscrita cresceria ao infinito.”


“Apesar da sublime metáfora da fraternidade cidadã, é claro que, se todos são meus irmãos, não tenho mais irmãos.”


“Mudem o meio em que vivemos; façam com que todo indivíduo que se apresenta à sociedade para servi-la esteja certo de encontrar nela o livro uso de suas faculdades e o meio de participar do trabalho coletivo; a previdência paterna é, nesse caso, substituída pela previdência social. E é o que deve ser; para a criança, a proteção da família; a proteção da sociedade para o homem.”


“Como a sociedade se estabeleceu pela luta, assim também a ciência só caminha impelida pela controvérsia.”


“Essa mania de tudo comercializar é sinal de uma sociedade em decadência, na qual não mais serão produzidas obras-primas, porque não se sabe reconhecê-las.”


“O talento é geralmente o atributo de uma natureza deficiente, na qual a desarmonia das aptidões produz uma especialidade extraordinária, monstruosa.”


“Sob a influência da propriedade, o artista, depravado em sua razão, dissoluto em seus costumes, cheio de desprezo por seus coirmãos, cuja propaganda o destaca sozinho, venal e sem dignidade, é a imagem impura do egoísmo. Nele, o belo, o moral, é exclusivamente assunto de convenção, de matéria para imagens. A ideia do justo e do honesto desliza sobre seu coração sem plantar raízes; e de todas as classes da sociedade, aquela dos artistas é a mais pobre em almas fortes e em caracteres nobres. Se classificássemos as posições sociais segundo a influência que exerceram sobre a civilização pela energia da vontade, pela grandeza dos sentimentos, pelo poder das paixões, pelo entusiasmo da verdade e da justiça e, abstração feita do valor das doutrinas, os padres e os filósofos apareceriam em primeiro lugar; logo a seguir viriam os homens de Estado e os capitães; depois, os comerciantes, os industriais, os agricultores; finalmente, os sábios e os artistas. Enquanto o padre, em sua língua poética, se considera como o templo vivo de Deus; enquanto o filósofo se diz a si mesmo: Age de tal modo que cada uma de tuas ações possa servir de modelo e de regra; o artista permanece indiferente ao significado de sua obra; não procura personificar nele o tipo que quer transmitir, ele se abstrai; explora o belo e o sublime, não o adora; coloca Cristo na tela, não o traz, como santo Inácio, em seu peito.”


“Trabalhem, repetem sem cessar ao povo os economistas; trabalhem, poupem, capitalizem, tornem-se por sua vez proprietários. Como se dissessem: Operários, vocês são os recrutas da propriedade. Cada um de vocês traz em sua escola a vara que serve para corrigir e que pode servir um dia para corrigir os outros. Elevem-se pelo trabalho até a propriedade; e quando tiverem degustado carne humana, não vão querer outro tipo de carne e vão compensar suas longas abstinências.
Cair do proletariado na propriedade! Da escravidão na tirania, isto é, segundo Platão, sempre na escravidão! Que perspectiva! E, no entanto, é necessário, pois a condição de escravo não é mais tolerável. É necessário, ir em frente, libertar-se do salário, tornar-se capitalista, transformar-se em tirano! É necessário, entendem, proletários? A propriedade não é coisa de escolha na humanidade, é a ordem absoluta do destino. Vocês só serão livres depois de terem sido resgatados, pela sujeição de seus patrões, da servidão que fazem pesar sobre vocês.”


“A propriedade, que devia nos tornar livres, a propriedade nos torna, pois, prisioneiros. Que digo? Ela nos degrada, ao nos tornar criados e tiranos uns dos outros. (...) A propriedade é infame.”


“Ao jornalista, é assim que se fala: Empresta-nos suas colunas e até mesmo, se isso lhe convier, seu serviço. Aqui está o que tem a dizer e o que tem de calar. Seja o que for que pensar de nossas ideias, de nossos fins, de nossos meios, defenda sempre nosso lado, faça valer nossas opiniões. Isso não pode comprometê-lo, não deve preocupá-lo; a característica do jornalista é o anonimato. Aqui estão, como honorários, 10 mil francos. Está bem assim? E o jornalista, como o jesuíta caluniador, responde suspirando: Preciso viver!


“Visto que a propriedade se manifesta pela ocupação e pela exploração, visto que tem por objetivo fortificar e aumentar o monopólio pelo domínio e pela herança, visto que por meio da renda recolhe sem trabalho e por meio da hipoteca compromete sem caução, visto que é refratária à sociedade, visto que sua regra é o puro prazer e visto que deve perecer por meio da justiça, a propriedade é a religião da força.”


“Se a propriedade, porém, espontânea e progressiva, é uma religião, é como a monarquia e o sacerdócio, direito divino. De modo semelhante, a desigualdade das condições e das fortunas, a miséria, é de direito divino; o perjúrio e o roubo são instituições divinas; a exploração do homem pelo homem é afirmação – que digo? –, manifestação de Deus. Os verdadeiros teístas são os proletários; os defensores da propriedade são todos os homens que temem a Deus; as condenações à morte e à tortura, que executam uns contra os outros por seus desentendimentos sobre a propriedade, são os sacrifícios humanos oferecidos ao deus da força. Aqueles, ao contrário, que anunciam o fim próximo da propriedade, que provocam com Jesus Cristo e com São Paulo a abolição da propriedade, que raciocinam sobre a produção, o consumo e a distribuição das riquezas, são os anarquistas e os ateus; e a sociedade, que caminha visivelmente na igualdade e na ciência, a sociedade é a negação incessante de Deus.”


“Mas Deus e o homem, apesar da necessidade que os envolve, são irredutíveis; o que os moralistas chamaram, por uma piedosa calúnia, a guerra do homem contra si mesmo e que no fundo nada mais é que a guerra do homem contra Deus, a guerra da reflexão contra o instinto, a guerra da razão que prepara, que escolhe e temporiza contra a paixão impetuosa e fatal, é sua prova irrefutável. A existência de Deus e do homem é provada por seu antagonismo eterno; isso é o que explica a contradição dos cultos que ora suplicam Deus para poupar o homem, não entregá-lo a tentação como Fedra* conjurando Vênus para que arrancasse de seu coração o amor de Hipólito, ora pedem a Deus a sabedoria e a inteligência, como o filho de Davi** ao subir ao trono, como nós fazemos ainda em nossas missas do Espírito Santo. Isso é o que explica, enfim, a maioria das guerras civis e de religião, a perseguição das ideias, o fanatismo dos costumes, o ódio da ciência, o horror ao progresso, causas primeiras de todos os males que afligem nossa espécie.”
*: Segundo a mitologia grega, Fedra era a mulher de Teseu e se apaixonou pelo enteado Hipólito; este rejeitou suas investidas e Fedra o acusou de ter tentado violentá-la. Hipólito foi executado e Fedra se enforcou.
** Trata-se de Salomão, filho de Davi, fato narrado no livro dos Reis da Bíblia.


“Que procurar, num escrito comunista, senão a imaginação e o talento do escritor?”


“Sou, portanto, comunista, mas somente por hipótese e enquanto eu nego a propriedade. Uma vez a propriedade abatida, trata-se de verificar a hipótese comunista. Vendo então que o comunismo está, como a propriedade, em decadência contínua, que é utópico, ou seja, igual a nada, que cada vez que tenta se reproduzir, se resume numa caricatura da propriedade, sou forçado, para estar de acordo comigo mesmo, fiel à razão bem como a experiência, a concluir contra a comunidade como fiz antes contra a propriedade e, se hoje me acho menos avançado dos socialistas, é porque saio da utopia, enquanto eles nela ficam. (...) O comunismo reproduz, portanto, mas num plano inverso, todas as contradições da economia política. Seu segredo consiste em substituir o indivíduo pelo homem coletivo em cada uma das funções sociais, produção, troca, consumo, educação, família. E como essa nova evolução não concilia e nunca resolve nada, termina fatalmente, bem como as precedentes, na iniquidade e na miséria.”


“O homem que tem descendentes se torna logo, pela própria paternidade, pouco comunicativo e feroz: é inimigo do universo, seus semelhantes lhe parecem todos estranhos, hostis. O casamento e a paternidade, que pareciam dever aumentar no homem a afeição pelo próximo, só fazem alimentar sua inveja, sua desconfiança e seu ódio. O pai de família é mais duro de ser conquistado, mais implacável, mais insociável que o celibatário; é como esses devotos que, à força de amar a Deus, passam a detestar os homens. É que não havia muito dessa energia de querer e de egoísmo no pai de família para proteger a infância daqueles que deveriam sucedê-lo um dia e continuar depois dele a série de gerações. Um dia não basta para formar um homem; são necessários anos, penosos trabalhos, grandes economias. O homem está em luta por sua subsistência com a natureza e pelo futuro de seus filhos com a sociedade inteira. A comunidade, dizem, vai destruir esse antagonismo. Como vai chegar a isso, se ela só sabe destruir a família e, por conseguinte, a espécie ou tolerar a família, dissolvendo a comunidade?”


“O comunismo, para subsistir, suprime tantas palavras, tantas ideias, tantos fatos, que os indivíduos formados sob seus cuidados não terão mais necessidade de falar, de pensar, nem de agir: serão ostras agarradas lado a lado, sem atividade nem sentimento, no rochedo... da fraternidade. Que filosofia inteligente e progressista é o comunismo!”


“A comunidade com o trabalho, a comunidade com a liberdade, a comunidade com a organização, meu Deus! É o caos com os atributos da luz, da vida e da inteligência. E ainda perguntam por que não sou comunista! Consultem, por favor, o dicionário dos antônimos e poderão saber porque não sou comunista.”


“O socialismo, tomando-o seriamente, é a comunidade do mal, a imputação feita à sociedade das culpas individuais, a solidariedade entre todos os delitos de cada um. A propriedade, pelo contrário, por sua tendência, é a distribuição comutativa do bem e a insolidariedade do mal, enquanto o mal provém do indivíduo. Sob esse ponto de vista, a propriedade se distingue por uma tendência à justiça que se está longe de encontrar na comunidade. Para tornar insolidárias a atividade e a inércia, criar a responsabilidade individual, sanção suprema da lei social, fundar a modéstia dos costumes, o zelo do bem público, a submissão do dever, a estima e a confiança recíproca, o amor desinteressado do próximo, para assegurar todas essas coisas – vou dizê-lo? – o dinheiro, esse infame dinheiro, símbolo da desigualdade e da conquista, é instrumento cem vezes mais eficaz, mais incorruptível e mais seguro que todas as preparações e as drogas comunistas.”


“Se uma coisa é necessária só por um momento, ela se torna para sempre, a transição é eterna.”


“O comunismo, plágio infeliz da rotina da propriedade, é o desgosto do trabalho, o enfado da vida, a supressão do pensamento, a morte do eu, a afirmação do nada. O comunismo, na ciência, como na natureza, é o sinônimo do niilismo, de indivisão, de imobilidade, de noite, de silêncio; é o oposto do real, o fundo negro sobre o qual o criador, Deus da luz, desenhou o universo. (...) Em filosofia, o comunismo não pensa nem raciocina; tem horror da lógica, da dialética e da metafísica; não aprende, ele crê. Em economia social, o comunismo não conta nem calcula; não sabe organizar, nem produzir, nem distribuir; o trabalho lhe é suspeito, a justiça lhe mete medo. Indigente por si mesmo, incompatível com toda especificação, toda realização, toda lei; copiando suas ideias das velhas tradições, vago, místico, indefinido; pregando a abstinência em ódio ao luxo, a obediência com receio da liberdade, o quietismo em horror da previdência; é a privação em toda parte, a privação sempre. A comunidade desleixada e enervante, pobre em invenção, pobre em execução, pobre de estilo, a comunidade é a religião da miséria.”


“Quem quer que seja que, para organizar o trabalho, apela ao poder e ao capital, mentiu; porque a organização do trabalho deve ser a derrocada do capital e do poder.”


“Vamos repetir em todo lugar, com um som de trovão: A economia política é a organização da miséria; e os apóstolos do roubo, os provedores da morte, são os economistas.
Quem é que sustenta hoje, para e contra todos, apesar da lógica e apesar da experiência, a instabilidade do valor, a incomensurabilidade dos produtos, o desequilíbrio das forças industriais? Os economistas. Quem é que defende a desigualdade de distribuição, a arbitrariedade da troca, a cilada da concorrência, a opressão do trabalho parcelar, as bruscas transições das máquinas? Os economistas. Quem é que apoia a preponderância da ordem improdutiva, a mentira do livre comércio, a mistificação do crédito, os abusos da propriedade? Os economistas. Quem é que, por instigação da Inglaterra, forma uma Liga para aplicar ao universo esse sistema de anarquia, de velhacaria e de rapina? Sempre os economistas.”


“O que é, portanto, o trabalho? Ninguém ainda o definiu. O trabalho é a emissão do espírito. Trabalhar é gastar a própria vida; trabalhar, numa palavra, é se devotar, é morrer. Que os utopistas não nos falem mais de devotamento: o devotamento é o trabalho, expresso e medido por suas obras...”


“O trabalho é para o amor uma causa ativa de resfriamento; é o mais poderoso de todos os anti-afrodisíacos, tanto mais poderoso, sobretudo, quando afeta o espírito e o corpo.”


“O homem nada faz segundo a natureza; é, se posso me exprimir desse modo, um animal moldador. Nada lhe agrada se não lhe trouxer algo a fazer; tudo o que toca, deve arranjá-lo, corrigi-lo, depurá-lo, recriá-lo. Para o prazer de seus olhos, inventa pintura, arquitetura, artes plásticas, decoração, todo um mundo de obras-primas, do qual não saberia dizer a razão e a utilidade, a não ser que para ele é uma necessidade da imaginação, que isso lhe agrada. Para seus ouvidos, castiga sua linguagem, conta suas sílabas, mede os tempos de sua voz. Depois inventa a melodia e o acorde, reúne orquestras de vozes poderosas e melodiosas e, nos concertos que promove, acredita ouvir a música das esferas celestes e o canto dos espíritos invisíveis. De que lhe serve comer somente para viver? Para sua delicadeza são necessários disfarces, fantasia, um gênero. Julga quase chocante ter de morrer; não cede à fome, transige com seu estômago. Antes que provar seu alimento, se deixaria morrer de fome. A água pura do rochedo nada é para ele; inventa a ambrosia e o néctar. As funções de sua vida que não consegue dominar, chama-as de vergonhosas, desonestas, ignóbeis. Ensina-se a si mesmo a caminhar e a correr. Tem um método para deitar, levantar, sentar, vestir-se, dominar-se, governar-se, fazer-se justiça; encontrou até mesmo a perfeição do horrível, do ridículo, o ideal do feio. Enfim, ele se cumprimenta, se dá respeito, tem por sua pessoa um culto minucioso, se adora como uma divindade!...”


“O trabalho é livre. Mas que liberdade, Deus dos céus! A liberdade para o proletário é a possibilidade de trabalhar, isto é, de se deixar espoliar ainda ou de não trabalhar, isto é, em morrer de fome!”


“Qual será, porém, a fórmula geral de todas as nossas contradições?
Já nos é permitido entrevê-la: deve ser uma lei de troca, uma teoria de mutualidade, um sistema de garantias que resolva as formas antigas de nossas sociedades civis e comerciais e que satisfaça todas as condições de eficácia, de progresso e de justiça que foram assinaladas pela crítica; uma sociedade não mais somente convencional, mas rela, que transforme a divisão parcelar em instrumento de ciência; que abula a servidão das máquinas e previna as crises ao aparecerem, que faça da concorrência um benefício e do monopólio uma garantia de segurança para todos; que, pelo poder de seu princípio, em lugar de pedir crédito ao capital e proteção ao Estado, submeta ao trabalho o capital do Estado; que pela sinceridade da troca crie uma verdadeira solidariedade entre os povos; que, sem proibir a iniciativa individual, sem proibir a poupança doméstica, leve incessantemente à sociedade as riquezas que a apropriação desvia dela; que, por esse movimento de saída e de entrada dos capitais, assegure a igualdade política e industrial dos cidadãos e, por um vasto sistema de educação pública, proporcione, elevando sempre seu nível, a igualdade das funções e a equivalência das aptidões; que, pela justiça, pelo bem-estar e pela virtude, renovando a consciência humana, assegure a harmonia e o equilíbrio das gerações; uma sociedade, numa palavra, que, sendo a um tempo organização e transição, fuja do provisório, garanta tudo e não empenhe nada...”

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